Sogrape apoia comunidade em várias frentes

Para dar resposta às dificuldades criadas pela pandemia mundial, a Sogrape desenvolveu um conjunto de iniciativas de apoio directo à comunidade, desde a produção de álcool-gel a programas solidários. Luís Sottomayor (na foto, de máscara), enólogo responsável pelos vinhos do Douro na Sogrape, nomeadamente pelo incontornável Barca-Velha, lidera a equipa que nos últimos dias trocou […]

Para dar resposta às dificuldades criadas pela pandemia mundial, a Sogrape desenvolveu um conjunto de iniciativas de apoio directo à comunidade, desde a produção de álcool-gel a programas solidários.

Luís Sottomayor (na foto, de máscara), enólogo responsável pelos vinhos do Douro na Sogrape, nomeadamente pelo incontornável Barca-Velha, lidera a equipa que nos últimos dias trocou as garrafas de vinho, rótulos e rolhas para se dedicar à produção de uma solução desinfectante de base alcoólica a 70%.

Elaborada a partir de aguardente vínica, a Sogrape doou cerca de 25 mil litros desta solução para apoiar os profissionais de saúde que estão na linha da frente no combate à Covid-19. Este donativo foi entregue a várias instituições e unidades hospitalares, nomeadamente, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, Bombeiros Voluntários de Avintes, Hospital de Campanha do Porto – Pavilhão Rosa Mota, Hospital São João, Hospital Santo António, Hospital de Aveiro, Cruz Vermelha Portuguesa, lar Dona Antónia Adelaide Ferreira, na Régua, IPO Lisboa, entre outros.

Além desta iniciativa própria, a Sogrape e outros produtores do sector mobilizaram-se, através da Associação das Empresas de Vinho do Porto, para produzir 55 mil litros desta mesma solução antisséptica de base alcoólica. Neste âmbito, a solução preparada pela Sogrape destina-se ao IPO Porto e ao Hospital de Braga.

A Sogrape respondeu também ao apelo da Centromarca (Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca) para efectuar um donativo com vista a equipar três hospitais (Santo António no Porto, Hospital Universitário de Coimbra e Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, que integra os Hospitais de Santa Maria e Hospital Pulido Valente) com salas de pressão negativa, fundamentais no tratamento dos doentes infectados com o novo coronavírus.

O show solidário “Só, mas bem acompanhado”, que decorreu no Instagram e que teve como principal objectivo a angariação de fundos para a Cruz Vermelha Portuguesa, foi mas uma das acções da empresa.  O  valor angariado pela iniciativa “Só, mas bem acompanhado” permitirá à Cruz Vermelha Portuguesa adquirir e doar a Hospitais e técnicos de saúde equipamentos de protecção individual – como máscaras, fatos protectores e gel desinfectante –, material médico – como testes à Covid-19 e medicação –, e ainda dar resposta a diversas necessidades logísticas, como transporte de doentes, manutenção das Unidades de Campanha Hospitalares, entre outras necessidades. Para além do valor angariado, esta iniciativa deu um apoio precioso ao sector cultural, que tem sido dos mais fustigados pelo confinamento social.

Heranças gastronómicas: de Portugal, vê-se todo o Mundo

É impossível andar seguro para a frente olhando apenas para trás, é certo, mas anda-se bem mais seguro quando se sabe donde se vem. A esmagadora maioria do património culinário português está impregnado das muitas influências que ganhou e deixou pelo Mundo. E temos vinhos para todas. TEXTO Fernando Melo África lusófona Angola, Cabo Verde, […]

É impossível andar seguro para a frente olhando apenas para trás, é certo, mas anda-se bem mais seguro quando se sabe donde se vem. A esmagadora maioria do património culinário português está impregnado das muitas influências que ganhou e deixou pelo Mundo. E temos vinhos para todas.

TEXTO Fernando Melo

África lusófona

Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, partilham entre si várias itinerâncias gastronómicas e as raízes do que se come estão nos produtos e costumes locais. Os portugueses foram sempre para ficar, ao contrário dos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que quase sempre viveram apartados dos povos que encontraram ou subjugaram. Há um missionário e um grande amigo em cada português e excepção feita aos óbvios e históricos conflitos, os portugueses são assim lembrados. Além disso, todos os que ousaram partir tornaram-se eles próprios também, de certa forma, portugueses diferentes, no sotaque, nos hábitos e… na mesa. O continente foi-se instituindo como plataforma de fusão e hoje são diversas as delícias provenientes de cada parte. Deliciamo-nos com a muamba de galinha que nos chega de Angola, alquimia sofisticada de texturas e sabores. Óleo de palma, quiabos, malagueta e funge são os quatro pontos cardeais de um prato de cariz popular que nos leva ao céu. De Cabo Verde preenche-nos a fantasia a cachupa de carne, a que também se chama rica – injusto para a de peixe, a pobre – e é alquimia culinária pura. Um estufado de base de milho, feijão e enchidos que pacientemente vai construindo uma catedral. É um dos mais belos edifícios da lusofonia gastronómica e só se faz para muitos convivas. Não se faz cachupa para dois ou quatro à mesa. A Guiné tem o caldo de mancarra, relativamente pouco difundido entre nós, continentais mimados, mas faz-se muito nos lares de guineenses na diáspora portuguesa. Mancarra quer dizer amendoim em guineense e solta na fervura lenta sucos e texturas em que rapidamente nos viciamos. Faz-se normalmente com frango cozido, coberto com uma pasta que resulta de pisar a mancarra juntamente com tomate fresco e piri-piri. Não há quem não fique impressionado pela diferença deste prato único e preso nos seus sabores inefáveis. Moçambique tem caris incríveis, malaguetas muito picantes, e fixou pratos de influências múltiplas, todos sápidos e intensos. A cafriela de frango – cafriela vem de cáfila e de cafres, outrora marginais enjeitados pela sociedade – é a mais perfeita receita de frango que existe. A ave aberta e espalmada, primeiro é marinada em sal, manteiga, piri-piri, limão e azeite ou óleo, depois grelhada, e finalmente estufada. Três processamentos que elevam a mais simples ave de criação a prato glorioso. Praticada em Moçambique, absorveu influências da Guiné, Zambézia e Angola e está na base da profusão de churrasqueiras que encontramos incrustadas nos prédios das cidades portuguesas, receita obviamente simplificada. Quase todas foram fundadas por retornados das ex-colónias e viram que a todos apetecia. S. Tomé e Príncipe tem o incrível e maravilhoso reduto que é o calulu, de peixe ou carne. É pobre na sua génese e o ponto de partida é sempre a demolha da proteína principal, peixe seco ou carne seca. Depois é enriquecido por uma profusão de ingredientes e especiarias, para um resultado fantástico que é pena não estar mais vezes disponível nos nossos restaurantes. É normalmente muito picante.

EXPERIMENTE: Tinto da Bairrada, com muamba de galinha. Branco do Alentejo fermentado em barrica, com cachupa. Branco de Palmela com caldo de mancarra. Alvarinho Monção e Melgaço, com cafriela de frango. Alfrocheiro do Dão com calulu.

Japão

Levámos muitas delícias valiosas para a ilha longínqua a oriente. Figueira, pereira, pessegueiro, marmeleiro, oliveira e até mesmo videira. Também fomos nós que lá pusemos criação, por exemplo galinha, pato e coelho, com a correspondente parafernália culinária. A tempura com que convivemos tanto e tão bem quando comemos com pauzinhos nos restaurantes japoneses, tem uma dupla paternidade. Nasceu a partir dos peixinhos da horta, mas também a partir do acto de temperar. É atribuída aos portugueses também a namban karashi, ou seja mostarda, que conduziu a uma generalização de alguns pratos como sendo nanbam, quando na verdade eles eram originários da região Nanba, em Osaka. Tudo o que fosse animal de criação e levasse alho passou a ter chancela namban. Peixes marinados em vinagre passou a costume integrado pelos japoneses, e tem matriz óbvia nos nossos escabeches. Por lá é bem mais picante do que por cá, ainda hoje, refira-se. O açúcar refinado, inovação de enorme impacto na doçaria japonesa, de que é grande exemplo o bolo castela – pão-de-ló -, que em japonês se diz kasutera, corruptela do termo português. Os fios de ovos enfeitiçaram totalmente os japoneses, pela semelhança com a massa de cabelos de anjo e pela grande recompensa que eram a sua farta doçura e poder nutritivo. A doçaria e a arte da confeitaria receberam também baptismo com um neologismo, o kompeito. Vem de confeito, ou confeitaria e refere-se à fabulosa arte de confitar o açúcar nos frutos e legumes, e todo o trabalho dos pontos de açúcar desenvolvido empiricamente nas cozinhas dos nossos conventos. A alta pastelaria japonesa é uma das mais requintadas do mundo.

EXPERIMENTE: Rosé da região dos Vinhos Verdes com tempura. Branco do Alentejo sem madeira com sushi. Chardonnay novo com kasutera/pão-de-ló.

Índia

Goa é a representação principal da Índia no nosso imaginário e é também o território indiano que mais influência portuguesa recebeu. Portugal foi, de resto, potência administrante até 1961, sente-se bem e claramente em cada pequeno detalhe culinário. Ao mesmo tempo, é porventura o maior exemplo de fusão em todo o mundo, tanto pelo estendimento no tempo como pelo contínuo de influências recíprocas. A carne em vinha d’alhos, por exemplo, preparação típica do norte alentejano e de latitudes mais acima, deu no vindaloo. O vinho tinto foi contudo cedendo terreno ao vinagre, resultando na miscigenação quase perfeita, já que o vinagre também entrou nos hábitos dos portugueses. Inequivocamente alentejano é o sarapatel, mais propriamente de Portalegre, onde ainda se processa como sempre. Em rigor é um cozido de carne e partes moles de porco, na Índia ganhou temperos exóticos como cardamomo, cominhos, malaguetas – estas juntamente com quiabos levadas por nós – gerando um prato universalmente reconhecido e aceite sem reservas como sarapatel. Inefável o caril, de camarão ou galinha, com o competente arroz basmati aromatizado ao lado. A base de leite de coco do caril goês é muito importante, além de registo de proximidade em relação a outras ex-colónias, especialmente Moçambique. Aspecto curioso e digno de registo é a introdução dos caldos e sopas nas muitas dietas de toda a Índia. Foi mesmo um costume levando por nós mediterrâneos, para quem sopa, caldo e ensopado significam a mesma coisa. A arte doceira conventual também chegou longe, a bebinca é forte exemplo do trabalho dos ovos e do açúcar, ao mesmo tempo que incorpora a paciência e a perfeição da mesa indiana ancestral.

EXPERIMENTE: Tinto do Douro com vindaloo. Branco de Lisboa com caril. Moscatel de Setúbal com bebinca.

Edição nº 34, Fevereiro de 2020

The Yeatman abre loja online de vinho com 700 referências

A garrafeira do The Yeatman – hotel do grupo The Fladgate Partnership que também detém a Taylor’s – já era conhecida por ser uma das maiores e melhores do país. Agora, abre as suas portas de forma diferente, através de uma loja online que inclui cerca de 700 das suas referências. Na The Yeatman Wine […]

A garrafeira do The Yeatman – hotel do grupo The Fladgate Partnership que também detém a Taylor’s – já era conhecida por ser uma das maiores e melhores do país. Agora, abre as suas portas de forma diferente, através de uma loja online que inclui cerca de 700 das suas referências.

Na The Yeatman Wine Shop podem assim encontrar-se as sugestões de Beatriz Machado, directora de vinhos do hotel, que englobam os parceiros vínicos do The Yeatman. Está ainda disponível um serviço de aconselhamento personalizado, através do e-mail winecellar@theyeatman.com.

O comunicado de imprensa da empresa, informa também da disponibilidade de packs especiais: “Há uma secção dedicada para os vinhos do dia-a-dia que acompanham as refeições, com opções entre os 5 e os 10€, e ainda quatro packs que fazem ligação directa aos diferentes terroirs de Portugal. Dois deles, desafiam à experimentação em casa: o “Pack Ilhas” aproxima-nos do mar, explorando o território dos Açores e da Madeira e o “Pack Regiões” permite redescobrir cada uma das regiões vitivinícolas portuguesas, provando seis referências e comparando as suas características. Já os restantes dois, são ideais para oferecer: trata-se do “Pack Espumantes” e do “Pack Porto” que conta com duas referências de vinho do Porto”.

Em compras a partir de 50€, a serem entregues em Portugal Continental, os portes estão incluídos.

Brancos de tintas: Com estas uvas também se brinca

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Fazer ao contrário do previsto, inverter os métodos e descobrir novos caminhos com as castas de sempre são alguns dos propósitos destes produtores. Pegaram em uvas tintas e fizeram vinhos brancos tranquilos. A novidade é apresentarem-se como tal, em vez de estarem escondidos.

TEXTO João Paulo Martins

Fazer vinho branco usando uvas tintas não é propriamente uma novidade. Ninguém está fora da lei se usar vinhos tintos vinificados em branco para acrescentar a um lote de branco. Em Portugal tal prática é corrente, sobretudo nos anos em que há pouco branco e em que os produtores sentem necessidade de manter marcas e volume de produção. Mesmo as normas europeias são omissas quanto à obrigatoriedade de apenas se usar sumo de uva branca para fazer o vinho branco. O assunto, neste específico ponto de vista, não é na verdade assunto. A novidade é agora surgirem produtores que, nos anos mais recentes, colocaram no mercado vinhos brancos tranquilos com a indicação específica de terem sido feitos com uvas tintas.
Há muito muito tempo que tal prática é corrente na região de Champagne. Ali usa-se a casta Pinot Noir para fazer vinho branco e o blend mais habitual na região é um vinho branco em que entram quer a uva branca, no caso Chardonnay, quer as tintas Pinot Noir e Pinot Meunier. A prática, antiga, é facilitada pelo facto da variedade Pinot Noir ter pouca cor e originar vinhos bastante descorados, sobretudo se houver pouco tempo de contacto entre o mosto e a película. Ainda no caso da região francesa, se o vinho apenas incorporar uvas tintas, adquire então o nome de Blanc de Noirs ou, em português, Branco de Tintas. Se o produto final apenas incorporar Chardonnay ganha então o nome de Blanc de Blancs. Entre nós, a Bairrada criou o designativo Baga Bairrada para espumantes brancos feitos a partir da casta tinta Baga. Temos então uma técnica clássica do champanhe/espumante que mais recentemente passou para os vinhos tranquilos.
Fazer um vinho branco a partir de uvas tintas é seguramente mais simples do que fazer um tinto com uvas brancas embora tal método já tenha sido ensaiado entre nós. O sumo das uvas (polpa), mesmo das uvas tintas, é por norma branco e são muito poucas as castas tintas em que o sumo é, de per si, vermelho; são castas que ganharam o nome de tintureiras, exactamente por conferirem uma cor muito carregada aos vinhos. Temos algumas entre nós e destacam-se neste capítulo a Alicante Bouschet, muito presente no Alentejo e a Vinhão/Sousão, rainha no Vinho Verde e também muito apreciada no Douro. Não é seguramente com essas que é mais fácil fazer vinho branco de tintas. Não é fácil, mas é possível porque existem actualmente técnicas para se poder retirar a cor aos vinhos e fazer de uvas tintas um vinho branco. A técnica é muito usada no caso dos espumantes – sobretudo usando carvão vegetal – e um produto que retém os polifenóis responsáveis da cor e que impede a tonalidade exageradamente amarela que os vinhos poderiam adquirir com a idade.

Apostar na diferença

Fazer um branco de tintas é, de certa forma, brincar com as uvas, contrariar o seu trajecto mais habitual, desviá-las do seu caminho. Os vinhos que provámos para este trabalho mostram também que, em termos de castas, são várias as escolhas possíveis. E pelo facto de haver aqui mais vinho do Dão do que de qualquer outra zona do país não significa também que essa seja a região naturalmente mais direccionada fazer estes vinhos. Os produtores com quem falámos foram muito claros quanto ao ponto de partida desta aventura: solicitação dos mercados, dos importadores ou distribuidores e vontade de fazer algo diferente que enriquecesse o portefólio. Pelo que nos foi dado perceber, não se chega ao objectivo sem vários ensaios: qual a casta, qual a vinha a escolher, qual o momento certo da vindima para se obter o que se pretende. A meta pode não estar logo ali e o resultado inicial até pode ser pouco entusiasmante; ensaiar e voltar a ensaiar parece ser a norma. Essa é a opinião de Duarte Leal da Costa (Ervideira) que conheceu este tipo de vinhos em viagens no estrangeiro e, na altura, trouxe vinte e tal amostras para provar com o enólogo, Nelson Rolo, mas “eram todos maus e resolvemos tentar fazer algo naquele estilo de branco de tintas; andámos a ensaiar em 2007 e 2008 e foi em 2009 que entrámos no mercado com a marca Invisível, feito a partir de Aragonez. Na altura com 10 000 garrafas mas temos crescido e agora (colheita de 2018) já estamos a fazer 80 000 garrafas”, disse.
Também Julia Kemper, produtora no Dão, assume este carácter exploratório, uma vez que “já fizemos com Touriga Nacional, agora estamos a fazer com Tinta Roriz, mas continuamos os ensaios. A inspiração chegou-me do Rhône e percebi que precisávamos de uvas com uma acidez de branco e com aromas que dispensassem a barrica. Fizemos pela primeira vez em 2017, começámos com 4000 garrafas e agora já vamos fazer 12 000”. A valência da casta Touriga Nacional para este tipo de vinhos foi também acentuada por Osvaldo Amado, enólogo no Dão e Bairrada, em que “a escolha da Touriga foi natural, dado que temos muita quantidade – dos nossos 400 ha de vinha própria cerca de 100 são de Touriga Nacional – e como já tinha a experiência de a usar para fazer espumante, a escolha foi clara; sinto que é uma casta com potencial para estes brancos de tintas. Estamos a fazer 10 000 garrafas mas tivemos ensaios durante três anos. Na verdade, foi um desafio que o departamento comercial da empresa me fez, dada a nossa tradição de uso desta casta”, confirmou.
Diana Silva é produtora na Madeira e tem de lidar com os problemas clássicos da vinha naquela região, sobretudo com o míldio e oídio. Confirmou à Grandes Escolhas que conseguiu uvas numa vinha com cerca de 40 anos implantada em solo de barro da casta Tinta Negra em São Vicente, mais resguardada em relação à influência marítima. Procurou obter uvas de baixa maturação e menos cor. À entrada da adega as uvas tinham cerca de 10,5% de álcool provável e não pôde usar o engaço porque, como as uvas eram compradas a lavradores, não havia a certeza do não uso de pesticidas. Por isso teve de recorrer à colagem com carvão para retirar a cor ao vinho. Não é algo que aprecie – o carvão rapa um pouco os vinhos em termos de aromas – mas não havia outro recurso. O vinho tem sido um sucesso e, tendo começado nas 3000 garrafas estabilizou agora nas 5000. O lado salino destaca-se no vinho e, no futuro, sem o uso do carvão, poderá ganhar outro carácter.

Curiosidade e negócio

Haverá um segredo para se fazer um vinho assim? Acreditamos que segredo não há mas uma coisa é segura: nenhum enólogo conta tudo o que faz e por isso há que ler nas entrelinhas. Enquanto Leal da Costa refere que “o segredo está na velocidade com que se separa o sumo da película e, depois, o frio que é induzido ao mosto para que a matéria corante se precipite; estamos a falar de uma temperatura de cerca de 7º; facilita a precipitação da cor, com ajuda de argila e não de carvão.”. Já Julia Kemper afirma que “só consigo fazer porque a prensa sofisticada que temos inclui um programa próprio (que dura cerca de 3 horas) e que permite massajar o bago de uva retirando a película sem beliscar o mosto; depois fermenta como se de um vinho branco se tratasse”. A questão da qualidade e exigência da prensagem foi também referida por Osvaldo Amado que nos confidenciou que “escolhemos uvas com menos maturação e mais acidez; as uvas entram directamente na prensa sem desengace e faz-se uma clarificação natural, sem recurso a carvão”. O resto dos pormenores não contou, como é normal na profissão…
O crescimento das vendas e a boa aceitação nos mercados externos indica-nos que o modelo tem condições para vingar e poderá mesmo vir a interessar outros produtores. Os estilos são diversificados e os vinhos têm em comum o facto de serem muito gastronómicos (aspecto salientado por Leal da Costa, da Ervideira, para justificar o sucesso do seu Invisível), o que faz deles vinhos da refeição. Será que se descobre que estamos perante um branco de tintas? É difícil, mas possível em alguns casos, sobretudo nos que sugerem uma leve tonalidade rosada; noutros, cremos que ninguém diria que se trata de um branco de tintas. São vinhos de experiência, são curiosidades, mas podem também ser um bom negócio. Há por isso que ousar mas…passo a passo! A verdade é que Leal da Costa já está a plantar mais Aragonez a pensar no seu vinho.
O carácter contracultura que estes vinhos têm fica bem evidente quando o dia que a Ervideira sempre escolhe para lançar o seu vinho ser… o 1º de Abril, o dia das mentiras. Convenhamos que uma mentira com um vinho de qualidade ao lado até pode passar por verdade ou, vá lá, por mentira piedosa.

Como se faz

Para cumprir o objectivo de fazer um branco e tintas convém ter à disposição várias castas tintas e, melhor ainda, poder escolher o local exacto de onde serão escolhidas as uvas para o projecto. É aconselhável escolher uvas que já de si não sejam muito carregadas de cor e, como é evidente, evitar as uvas tintureiras. É bom ter alguma disponibilidade de uvas (em quantidade) porque o que se aproveita, em termos de sumo de uva na prensagem, é muito pouco, podendo variar de 15 a 30% de mosto. Como não é apenas a questão da coloração da película que é tida em conta, só por si as castas pouco coradas não são necessariamente as que originam melhores brancos de tintas. Exige-se uma atenção redobrada a toda a prensagem para evitar que o mosto comece a ganhar cor. Neste aspecto é um trabalho exigente e que obriga a presença permanente para se tomarem as decisões indispensáveis.
A acidez e o equilíbrio de aromas do mosto em situação de vindima precoce levam a que se torne, por norma, necessário fazer vários ensaios para se chegar a um modelo que possa ser diferenciador.
O produto final pode apresentar uma gama diversa de cor, desde o citrino mais evidente que em nada se distingue de um branco de brancas, até uma leve tonalidade rosada, chegando também a situações extremas em que o vinho quase não tem qualquer tonalidade. Aqui entram o gosto do produtor e aquilo que seu cliente/consumidor pede.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/1″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_column_text]

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Edição nº 34, Fevereiro de 2020

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O tamanho não importa

Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas. Valéria Zeferino Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de […]

Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas.

Valéria Zeferino

Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de vinhos, então, propagam-se como míldio depois da chuva. Quantas vezes ouvimos os entusiastas vínicos a afirmar que só os produtores pequenos fazem vinhos interessantes, vinhos com alma, e as empresas grandes são apenas fábricas a produzir vinho “tecnológico”?
Os pequenos fazem vinho com paixão e muitas vezes de forma artesanal, alguns até indicam no rótulo “hand crafted wine” para que não haja dúvidas que o vinho é feito à mão (já agora, se passarem um dia numa adega, verão que por muita mecanização que haja, continua a existir muito trabalho manual que não pode ser dispensado). E os grandes, claro, só fazem contas. Tudo de forma industrial, a pensar no volume, onde a paixão não tem qualquer impacto. As adegas cooperativas, então, são aquelas que menos romantismo têm aos olhos dos enochatos.
Não tenho absolutamente nada contra os pequenos produtores, mas não dou créditos imediatos só pelo facto de serem pequenos. Acompanho alguns projectos desde o início e agrada-me ver a sua evolução. Há projectos fascinantes, feitos por pessoas determinadas, capazes com o seu conhecimento e dedicação criar grandes vinhos. Mas também vi alguns que produzem vinhos medíocres a serem vendidos caros aos turistas estrangeiros; uns que estacionam o seu carro ao pé das barricas (por mim, não é a falta de espaço, é a falta de rigor); outros que têm vinha e, não sabendo que destino lhe dar e com falta de conhecimento, produzem vinhos sem qualquer alma e conteúdo.
Ao mesmo tempo, conheço várias adegas cooperativas com estratégias bem definidas a nível de viticultura, produção e marketing.
O controlo rigoroso de higiene, equipamento renovado e até sofisticado que permite avaliar a maturação antes da vindima, fazer uma triagem das uvas que chegam à adega, condições ideais de engarrafamento, a abordagem responsável de viticultura – são hoje realidades de empresas sérias na área. As equipas de enologia são formadas por pessoas competentes e interessadas que falam com entusiasmo e paixão de cada vindima e das experiências que fazem.
Por exemplo, na Adega do Cartaxo faz-se classificação de parcelas, sendo as melhores uvas destinadas aos vinhos de topo de gama. Aplica-se um sistema de penalizações e incentivos para garantir uma constância de qualidade e sanidade da matéria prima. As grandes produções (acima dos 35 tn/ha) ficam altamente penalizadas; e se a uva chegar em estado perfeito de uma vinha com produção até 8 tn/ha, o preço sobe até 1 euro por quilo. Os funcionários da adega acompanham as vinhas dos sócios, controlam o estado sanitário e a maturação. Definem as castas a serem plantadas conforme a localização da vinha para obter o melhor resultado. Segundo o enólogo Pedro Gil, os sócios com a vinha na sub-região do Campo têm que plantar no mínimo 20% de Alicante Bouschet porque as habituais Castelão e Tinta Roriz lá não amadurecem tão bem. O Alicante Bouschet é a primeira casta a completar a maturação fenólica antes da alcoólica (pode ser com 13% já com boa maturação e grainhas maduras, enquanto a Castelão pode estar com 14% a apresentar grainha verde e tanino agressivo). Na zona do Bairro, já todas conseguem amadurecer melhor e basta só 10% de Alicante Bouschet.
Outro exemplo. Na Adega de Monção a equipa de enologia mantém a mesma liderança desde 1990. É importante em termos de consistência e conhecimento acumulado. O enólogo responsável, Fenando Moura, tem a experiência de 30 anos, que é praticamente uma vida. Falem e provem vinhos com ele, e verão o entusiasmo e a paixão nos olhos.
Aqui poderão contar-vos muito sobre a arte de blend. As uvas provêm das altitudes diferentes de 30-100 até 200-350 metros acima do mar; apanhadas em momentos diferentes; são vinificadas com e sem maceração pelicular (se forem apanhadas depois das chuvas, não fazem); com e sem micro-oxigenação; fermentam com leveduras diferentes e as temperaturas de fermentação também variam. Alguns destes vinhos têm mais corpo, outros mais acidez. Uns apresentam aromas tropicais, outros citrinos, ou florais. E tudo isto para garantir a consistência de qualidade e de características organolépticas dos seus vinhos. No total, são mais de 100 amostras. Daí sai o clássico Deu-la-Deu, o monovarietal de Alvarinho mais vendido em Portugal (cerca de 450 mil garrafas) e que é sempre uma aposta de confiança.
A Adega de Favaios é mais um exemplo de pfofissionalismo e qualidade, cuja gama de vinhos vai muito para além do seu sucesso comercial – Favaítos. Embora a casta Moscatel Galego tenha predominância, trabalham-se outras castas típicas do Douro. Mais uma vez, trata-se de profissionalismo de quem dirige e depois se traduz na equipa de enologia, com grande empenho pessoal e acompanhamento técnico dos viticultores.
É claro que nem todas as adegas cooperativas são assim. Algumas até já nem existem. Não sou pro ou contra ninguém, apenas acho que nos devemos livrar de preconceitos. Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente com outro que produz 250.000 garrafas, por exemplo.
A Quinta do Vale Meão produz mais de 200 mil garrafas do Meandro sem comprometer a qualidade. É um vinho que dá prazer de beber em qualquer parte do mundo. O Barca Velha tamém não é propriamente uma edição limitada: em função do ano produzem-se 16-18 mil garrafas (no universo de milhões de litros de vinhos noutras gamas). E é um vinho extraordinário de classe mundial.
Conseguir fazer muito e bem também é uma arte em aliança com profissionalismo. Sei que repeti esta palavra muitas vezes, mas, para mim, o profissionalismo vai sempre à frente do romantismo, de todo glamour que um produtor possa ter e, obviamente, da dimenção da sua produção.

O bazar de Istambul

A promoção, o desconto, está cada vez mais enraizado no sector do vinho. Aparentemente, os elos mais visíveis da cadeia de valor – hipermercados e clientes – estão satisfeitos. Mas a produção fica completamente estrangulada e refém de um modelo de negócio que não lhe deixa margem e não promove a justa retribuição para quem […]

A promoção, o desconto, está cada vez mais enraizado no sector do vinho. Aparentemente, os elos mais visíveis da cadeia de valor – hipermercados e clientes – estão satisfeitos. Mas a produção fica completamente estrangulada e refém de um modelo de negócio que não lhe deixa margem e não promove a justa retribuição para quem criou as uvas e fez os vinhos.

Luís Lopes

“O consumidor português é um bocado viciado em promoções (…) No sector alimentar, 50% das compras são feitas em promoções. Naturalmente que, a partir de certa altura, não há milagres. A indústria defende-se, empolando os preços, para poder absorver essas promoções. Mas, de facto, é um problema cultural. Como eu costumo dizer, há uma cultura, não sei se mediterrânica, que faz lembrar o bazar de Istambul” – João Vieira Lopes, presidente da Confederação de Comércio e Serviços, em entrevista ao Público, 28 de Novembro de 2019

O autor das frases que acima reproduzo definiu de forma perfeita as raízes em que assenta este modelo de negócio. O português adora, na verdade, discutir o preço, regatear, sair de um encontro negocial com a sensação de que levou a melhor sobre a outra parte. Está-lhe no sangue. Como nas lojas modernas o cliente não tem um interlocutor físico, e a discussão do preço não é possível entre comprador e vendedor, a loja presta diligentemente esse autêntico serviço social e cultural que é simular uma negociação na qual o cliente sai vencedor e satisfeito.
E o cliente tem razões para isso. Os vinhos tabelados a €9 e vendidos €3 são, na esmagadora maioria dos casos, bons vinhos, vinhos que valem inteiramente o que custaram. Foram feitos para valer €3 e não €9, é claro, mas se o consumidor bebe um bom vinho e ainda por cima julga que fez um grande negócio, qual é o problema?
Acontece que, se no sector alimentar 50% das compras são feitas em promoções, no que ao vinho diz respeito são mais de 70%. E isso traz não um problema, mas muitos. Desde logo, problema para toda a cadeia de valor a montante. Quem produziu e engarrafou fica com pouco ou nada de margem. Por conseguinte, para não perder dinheiro (e muitos perdem), reduz ao máximo os seus custos, o que significa também pagar o mínimo pelas uvas ou vinhos que comprou. Nada sobra para investir nas marcas. E o elo mais fraco, o mexilhão da nossa estória, quem trabalha a terra o ano inteiro para manter a vinha, empobrece a cada vindima.
Depois, problema para a marca do produtor. Um vinho vendido em promoção durante 9 meses por ano tem a sua imagem colada ao modelo. No dia (e esse dia virá) em que for substituído na prateleira por outro ainda mais barato, a marca nunca mais recupera o valor. Nenhum restaurante ou garrafeira a quererá comprar. Foi-se, já era, kaputt.
Problema ainda para a cotação do vinho português. Os muitos milhões de turistas que nos visitam, se gostam de vinho e entram num hipermercado para levar uma garrafa para o seu airbnb, devem pensar que chegaram ao paraíso terrestre. E regressam a casa não se lembrando da marca que compraram, apenas que era vinho português, era muito barato e era bom. E isso torna-se a identidade dos vinhos de Portugal.
Os hipermercados fazem o seu trabalho, que é ganhar dinheiro e satisfazer o cliente, e fazem-no muito bem. O consumidor, esse, leva um bom vinho por pouco dinheiro e está na maior. Que pode fazer, então, quem produz? Colectivamente, o sector perdeu uma excelente oportunidade para subir preços, após duas colheitas sucessivas de escassa quantidade. 30 ou 40 cêntimos que fossem, fariam toda a diferença. E nesta euforia pós-troika, em que o consumidor acredita que é rico, se as garrafas de €2.49 passassem a €2.89 ninguém se iria queixar e as vendas não se ressentiriam. Mas para isso seria preciso que as associações do sector funcionassem, e não funcionam. Será cada um por si, como sempre foi. E o bazar de Istambul soma e segue.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

Alentejo meu

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. Sem barreiras.

Luís Francisco

O saca-rolhas cumpre a sua função e os copos estendem-se para a garrafa acabada de abrir. O vinho corre e a conversa anima-se, ao ritmo da paisagem que desfila por baixo de nós, a linha sinuosa do rio brilhando aos primeiros raios do sol, prados, vinhas e montado numa sucessão de cores e texturas. De vez em quando, uma casa. E animais, muitos animais. Domésticos e selvagens, vagueando pela terra alheios à presença silenciosa do balão de ar quente e da meia-dúzia de seres humanos que nele se aninham.
Sim, quem nunca saboreou um copo de vinho branco bem fresquinho às sete da manhã a bordo de um balão de ar quente não sabe o que perde. Lá em cima não há medos nem sustos, só um constante maravilhamento. O balão progride suavemente ao sabor da leve brisa do amanhecer, que, por caprichos da meteorologia, sopra exactamente na direcção contrária ao que estava planeado: em vez de nos levar a sobrevoar a reserva de caça da Herdade do Sobroso na serra do Mendro, num safari aéreo que prometia emoções fortes, transporta-nos na sua almofada de sossego para Sul.
Não há tempo nem disposição para desilusões. Os sentidos estão demasiado ocupados na tarefa de tentar absorver tudo o que nos rodeia. O piloto do balão capricha numa travessia rasante sobre o espelho de água do Guadiana, elevando depois o aparelho para evitar as árvores da margem oposta. O ruído dos queimadores é, por agora, o único som que quebra o mar de silêncio em que navegamos. Bom, isso e a ocasional exclamação de espanto de algum dos presentes. E, claro, há alguns minutos, o murmúrio arrastado da rolha que saltou da garrafa de vinho…

Vida selvagem

A serra fica para trás – e, com ela, a promessa de vermos de cima o que na véspera tínhamos adivinhado num passeio de jipe: a vida selvagem pujante desta zona. Centenas de hectares da serra do Mendro albergam animais de grande porte, como gamos, muflões, javalis ou veados. E nós vimo-los todos: um enorme veado trotando pelas curvas da estrada à nossa frente, um grupo de javalis avistado ao longe junto a uma charca, um gamo espreitando pelo meio dos arbustos lá mais em cima, perto do cabeço panorâmico onde armámos um piquenique, meia-dúzia de muflões atravessando o caminho assim que deixaram de ouvir o ruído do motor.
Mas soube a pouco e hoje havia a promessa de podermos olhar de cima, pairando nos ares sem que a bicharada se apercebesse, sequer, da nossa presença… A expectativa era grande e o mini-pequeno-almoço é engolido à pressa para não perdermos tempo. Ainda deitado em terra, o tamanho do balão impressiona. A pouco e pouco, os queimadores aquecem o ar no interior e a cúpula vai subindo. Não tarda nada estamos a bordo e a aventura vai começar!
A brisa é que não está de feição e, num balão, contra isso não há engenho humano que nos valha. Aproveitemos, portanto, para gozar as emoções do voo por si só e tentar reter todos os detalhes desta viagem pelos céus de copo na mão. Pode não ser um safari, mas é uma experiência única.
E, no entanto, aquilo que ali se mexe, espantosamente a apenas algumas dezenas de metros de uma casa, parece ser… isso mesmo, é um veado! E depois outro, e mais uns quantos. Imperturbável pelos sinais de ocupação humana, a grande fauna vagueia também na margem oposta do Guadiana. Há javalis que trotam por carreiros que levam a uma pequena barragem – onde, por sinal, uma raposa caça por entre a vegetação rasteira – e parece quase surreal a visão de um veado que “estacionou” junto ao reboque de tractor parado debaixo de um grande sobreiro.

Regressar à terra

Lá se vai a teoria de que o abandono dos terrenos agrícolas é a mais forte explicação para o regresso dos grandes mamíferos selvagens… Aqui há agricultura e vida selvagem, lado a lado. Talvez a melhor explicação seja mesmo a política de gestão sustentável da reserva de caça do outro lado do rio. Mas quem vai perder tempo com estas elucubrações quando o mundo desfila aos nossos pés?
De vez em quando, o ruído dos queimadores desperta os animais do seu sossego, mas eles não conseguem perceber de onde veio o som e não lhes passa pela cabeça olhar para cima. Se o fizessem, dariam de caras com seis pares de olhos humanos que os fitam em embevecido espanto, por momentos o copo de vinho esquecido na mão. E assim se passam os minutos, ou serão horas, que nestas ocasiões o tempo é uma entidade sinuosa.
Só que a silhueta distante de casario e cabeços torna-se cada vez mais nítida e isso é uma clara indicação de que o dia já avança – o sol está mais alto e com o aumento da temperatura começam a gerar-se correntes térmicas que podem complicar a vida ao piloto do balão. O que é bom depressa se acaba, diz o povo. Está na altura de descer.
No solo, uma viatura acompanha o nosso trajecto, para nos recolher (e ao balão) assim que tocarmos o solo. O ritmo das comunicações intensifica-se. É preciso procurar um local plano, sem árvores nem linhas eléctricas, com acesso à estrada. Mesmo no Alentejo, isto nem sempre é fácil. E é preciso que o vento nos leve na direcção correcta. Aterrar um balão, portanto, não é pensar e fazer.
Ao fim de algum tempo, a bonomia do piloto acalmando as ansiedades de quem viaja a bordo, lá surge um belo prado e é lá que pousamos. Já vivemos uma eternidade neste dia e ainda nem são dez da manhã! Abre-se mais uma garrafa de vinho, enquanto se revivem as visões exaltantes da bicharada à solta na imensa paisagem alentejana. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. Com uma vantagem: o vinho por aqui é muito melhor!

Edição nº 34, Fevereiro 2020

Legumes, capão e Michelin

Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos. Fernando Melo São dois os problemas fundamentais da cozedura […]

Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos.

Fernando Melo

São dois os problemas fundamentais da cozedura dos legumes que nos servem nos restaurantes. O mais gritante é o excesso de água em que normalmente cozem, o outro é o tempo de cozedura que se pratica. Gosto de pegar no tomate como referência, por ser rico em licopeno e também pelo seu conteúdo elevado de açúcar. Acontece que no tomate cru nem um nem outro se manifestam, mas na cozedura correcta manifestam-se ambos e tornam o fruto/hortícola determinante enquanto fonte de nutrientes para a nossa subsistência e ao mesmo tempo facilitador de digestões mais eficazes. A palavra-chave é disponibilidade, o mesmo é dizer o que cada verdura oferece ao organismo, mediante a intervenção culinária. A quantidade de água em que se coze determina o ponto óptimo da disponibilidade de nutrientes para o corpo humano, devendo evitar-se o excesso, por provocar a sua dissolução. Ao mesmo tempo o prolongamento exagerado da cozedura leva à destruição da estrutura das fibras e dos nutrientes dos legumes em causa. Os cozinheiros lúcidos e avisados já cozinham legumes e verduras de acordo com este vector da disponibilidade e extracção óptimas. Apesar dessa evidência, continua a cozer-se demais, aliás não só vegetais mas tudo o resto. Está mais que provado que a cozedura certa – mesmo que se trate de bringir apenas – determina directamente o bem-estar e o nosso funcionamento interno. Constato que mesmo no meio da cozinha profissional estamos ainda nos antípodas das considerações de digestibilidade. O nosso “bocadinho de salada”, à laia de ornamento baralha-nos completamente o esquema e pouco ou nada contribui para melhorar o perfil do que comemos, justamente pela pouca disponibilidade de nutrientes face à bateria existente no prato. Somos um sistema, não somos o repositório de ingredientes que a maioria dos nutricionistas não-médicos nos querem fazer crer. Não me quero – nem sei – alongar mais sobre este assunto, mas quero aqui lavrar a súplica aos cozinheiros: enquanto não tiverem a certeza absoluta do que estão a fazer não ponham lado a lado legumes crus e cozidos.
Todos os anos no dia 12 de Dezembro, véspera do dia de Santa Luzia, tem lugar o concurso e jantar de gala do capão à Freamunde. Desde há três anos engalanado – passe a redundância – com a certificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP), o passareco gigante está a caminho dos píncaros da qualidade, prestes a tornar-se no mais sublime animal de criação em todo o país. Originário das chamadas Chãs de Ferreira, planalto granítico triangular definido por Ferreira, Paços de Ferreira e Freamunde, está agora aberto a empresários que queiram investir na produção. Há muito espaço ainda para o efeito, a área consagrada na certificação tem ainda pelo menos um par de décadas de franco crescimento pela frente. A prazo vai ser mais importante a proveniência que a receita, de resto já está a acontecer. Cozinheiros de todo o país, incluindo estrelados Michelin estão a oferecer as suas versões da grande ave aos clientes. Uma epopeia que vem dos tempos da ocupação romana – o galo capado não canta, por isso era mais cómodo para os centuriões de então -, atravessa quase dois mil anos de história e atinge hoje a maior glória de sempre. Ombreia com as grandes denominações de origem, por exemplo Bresse, em França, e é único no mundo. O concurso português é porventura o melhor de todos os que se fazem, pois a prova é inteiramente feita às cegas e sem possibilidade de cruzar opiniões; cada membro do júri tem no prato perna, peito e recheio de um capão e no mesmo serviço ninguém tem o mesmo. É sempre surpreendente o restaurante vencedor, muitas vezes o próprio não está sequer à espera. Na gala, todos os presentes, vencedor e os outros estão em festa e aplaudem com entusiasmo os que ganham. O nível culinário é desde os últimos anos muito elevado, sinal de que todos estão a melhorar e provar os capões da concorrência. Dado muito importante para nos entendermos e crescermos. Viva o capão de Freamunde.
Ambiente de festa rija houve também em Sevilha no dia 20 de Novembro, na noite do anúncio das estrelas Michelin Portugal e Espanha. Foi de encher a alma a subida dos chefs Diogo Lemos (Mesa de Lemos, VIseu) e Rui Silvestre (Vistas, Monte Rei Golf, Vila Real de Santo António) ao novo estrelato, e muito importante todos os actuais detentores de estrelas estarem lá para felicitar e festejar todos, uns aos outros. Foi uma festa ibérica, é certo, mas senti-a também muito portuguesa. E é verdade que os nossos chefs têm o denominador comum da entreajuda, as portas das suas cozinhas estão sempre abertas para os que quiserem estagiar, aprender e desenvolver a sua forma de trabalhar. Claro que formos uma vez mais fulminados em número pelas novas estrelas espanholas, mas há um sentimento grande de vitória por parte de todos os nossos. É preciso continuar, assim como estamos, assentes nos redutos das raízes e da proximidade. O Guia Michelin já fala de Portugal como quem fala do paraíso, temos produto, talento e história para crescer exponencialmente de ano para ano. Estamos em festa.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui. João Paulo Martins Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos […]

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.

João Paulo Martins

Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.

Afinal, o que ganhámos com a técnica?

Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O frio é uma coisa relativa

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos que eles teimem em mostrar-se.

Luís Francisco

Há quem continue a achar que o vinho é uma coisa que dá trabalho, sim, mas apenas em algumas ocasiões bem definidas no calendário. Na vindima, claro, quando as uvas se precipitam para a adega e toda a gente anda numa correria, mostos para aqui, mostos para ali, depósitos a encher e a esvaziar, fermentações e decisões enológicas, mão-de-obra intensiva e o nervoso miudinho de ver todos os sonhos e planos de um ano a ganharem forma. Claro, também há aquela coisa da poda, no Inverno, mas isso é o menos. Basta visitar uma adega em outra altura do ano que não na vindima e percebe-se logo o sossego de quem dá o litro (metáfora irresistível) em Setembro e Outubro e depois descansa durante 300 dias…
E, no entanto, não é nada assim. Na vinha ou na adega, há sempre trabalho para fazer. E foi para falar nisso que um dia saímos em reportagem. Escolhemos o destino – no caso, a Quinta do Gradil, região de Lisboa – e lá fomos, decididos a recolher e partilhar informação sobre tudo o que se passa numa exploração vitivinícola nos meses que medeiam entre uma vindima e a outra. É claro que, num acesso de masoquismo ou consciência profissional (prefiro a segunda, mas, como hão-de ver a seguir, há indícios de que o primeiro não esteve totalmente ausente do cenário…), não embarcámos em facilidades. Se era para mostrar trabalho, então que fosse na altura mais improvável, o Inverno.
Escusava era de ser o dia mais frio do ano. A suspeita começou a ganhar forma com os primeiros arrepios da madrugada, a nortada gélida a fatiar sadicamente as résteas de conforto térmico oferecido pela roupa. E foi então que vimos um post no Facebook. De saída para o Alentejo, onde a empresa estava a preparar terrenos para plantar novas vinhas, o viticólogo do Gradil, Bento Rogado, registara a temperatura que se fazia sentir às 6h30 da manhã no sopé da Serra de Montejunto. O termómetro do carro anunciava uns inquietantes -7º centígrados…
Ler esta indicação nas férias, sentados junto à lareira num chalet de montanha até pode ser giro, mas garanto que não tem graça nenhuma quando nos preparamos para andar pelas vinhas, de máquina fotográfica em punho ou de bloco e esferográfica na mão para tomar notas… E, naturalmente, as duas inocentes alminhas que viajam para o Gradil nessa madrugada esqueceram-se de levar luvas. Provavelmente não dariam jeito nenhum quando chegasse a hora de trabalhar, mas, caramba, para algum momento haviam de servir…

Uma cave… quentinha

Chegamos, depois de deixarmos a estrada numa viragem perpendicular que nos aponta à linha amarela dos edifícios para lá do vale coberto de vinhas. O vento vai soprando. Mas, ansiamos, o termómetro há-de ter agora melhores notícias para nós – diz-se que a última hora da noite é a mais negra e a mais fria, mas o Sol já nasceu. Envergonhado, tímido, lá vai espreitando num tom esbranquiçado por entre as nuvens do amanhecer. Os cientistas juram que esta gigantesca fornalha celestial que queima hidrogénio e o transforma em hélio funciona ininterruptamente a uma temperatura que atinge os 5500 graus centígrados, mas esta manhã, desculpem lá, não há ciência que nos salve… Está tanto frio que até a ameaça do aquecimento global soa a música para os nossos enregelados ouvidos.
São 8h30 da manhã e ainda estão dois graus negativos. Daí a duas horas, o termómetro chegará finalmente ao zero. E, pela hora do almoço, a água que tapa o fundo do tanque situado no terreiro central da quinta, junto ao restaurante, continua sólida. Atiramos uma pedrinha, outra. E sempre o som cavo do gelo, austero e definitivo. Valha a verdade, por essa altura o pior já passou: andámos pelas vinhas para saber mais sobre a poda e a orientação das videiras, conversando com gente que maneja a tesoura com mestria (perdoem-me a insistência, mas eles tinham luvas!), visitámos a adega para conversar sobre operações de filtragem e estabilização, perceber trasfegas e limpezas, conhecer os muitos pequenos passos que nos permitem abrir uma garrafa e beber com prazer.
Quando nos convidam para descer à cave das barricas, que fica uns bons metros abaixo do solo, a primeira sensação é de arrepio. Se em dias quentes às vezes é complicado visitar estes sítios de manga curta, como será hoje… O elevador transporta-nos para o subsolo e, de repente, está quentinho! Longa vida às maravilhas do isolamento térmico: aqui a temperatura mantém-se estável à volta dos 15/16ºC, um verdadeiro paraíso tropical quando comparado com a manhã siberiana que nos aguarda lá em cima, no regresso à superfície. O elevador sobe e o bafo da respiração diz-nos que nestes últimos minutos o cenário térmico não mudou.
Felizmente, a reportagem aproxima-se do seu fim e a última parte será feita à mesa, onde vamos conversar com os responsáveis do Gradil. Lá fora, o tanque continua gelado e as vinhas, despidas, parecem encolher-se para resistirem à nortada. Até os passarinhos estão mudos que nem pedras. Uma breve mirada às notas no bloco confirma que a manhã não foi fácil: gatafunhos quase imperceptíveis, palavras cortadas a meio, frases que se perdem em linhas mal amanhadas… não vai ser fácil decifrar isto.
Mas agora temos vinho no copo. As mãos e a alma começam a aquecer. Lá fora, a silhueta da serra ganha luz e cor. De repente, tudo parece bonito e acolhedor. A mente humana tem a espantosa capacidade de obliterar impiedosamente as más memorias. Sim, porque isto do frio é uma coisa muito relativa.

Edição n.º33, Janeiro 2020