Se não é boi, é vaca…

A carne mais sensual de raça bovina esteve no VINUM Restaurant & Wine Bar. Pela quinta vez consecutiva, o restaurante da Graham’s dedicou-se, juntamente com o grupo basco Sagardi, a promover o confronto entre o boi velho e a vaca velha, desde o dia 24 de Outubro. TEXTO Mariana Lopes FOTOS Cortesia Vinum ENQUANTO […]
A carne mais sensual de raça bovina esteve no VINUM Restaurant & Wine Bar. Pela quinta vez consecutiva, o restaurante da Graham’s dedicou-se, juntamente com o grupo basco Sagardi, a promover o confronto entre o boi velho e a vaca velha, desde o dia 24 de Outubro.
TEXTO Mariana Lopes FOTOS Cortesia Vinum
ENQUANTO durou o stock do boi de Trás-os-Montes e da vaca da Galiza (raça Rubia Gallega), o Vinum teve à disposição dos clientes um menu muito especial, harmonizado com vinhos Symington Family Estates, com destaque para as carnes seleccionadas pelos espanhóis Imanol Jaca, guru dos cortes bovinos, e Iñaki Lopez de Viñaspre, embaixador da gastronomia do País Basco.
Sagardi é um projecto de restauração e catering com 20 anos que tem na sua génese o transporte do conhecimento sobre a gastronomia tradicional basca para todo o mundo. A locais como Madrid, Barcelona, Valência, Sevilha, Ibiza, Buenos Aires, Cidade do México e Londres, adiciona-se o Porto, onde o grupo gere o restaurante “symingtoniano” Vinum. A Sagardi tem já 30 restaurantes e um hotel sob a sua alçada.
No dia de apresentação das Jornadas, os dois mentores da Sagardi partilharam o seu conhecimento com os presentes, apresentando uma masterclass interactiva sob o mote “Boi ou vaca – contrastes de sabores, contrastes de ideias”.
O boi de trabalho, antigamente usado para puxar as carroças e os arados, vê hoje a sua criação ameaçada pela mecanização da agricultura e pelo aumento das grandes explorações lácteas. Felizmente, em algumas aldeias do Minho e de Trás-os-Montes, onde a cultura tradicional se mantém como bandeira, ainda se encontram estes animais, apesar de poucos serem os exemplares. A vaca Rubia Gallega, grande e pesada, já é muito difícil de encontrar.
Com cerca de 500 quilos, a vaca velha servida no Vinum é proveniente de uma pequena aldeia montanhosa no interior da Galiza, e a sua carne é muito apreciada internacionalmente. Iñaki contou que “os bois eram companheiros de trabalho e tratados como família” e explicou que “o boi era usado para puxar por ser mais musculado e hormonal do que a vaca”. Sempre castrados, estes bois velhos são, na generalidade, criados com uma qualidade de vida considerada superior, tanto no que concerne a alimentação (pasto natural) como ao nível de stress a que estão sujeitos durante a vida, que é baixíssimo. O mesmo se aplica à vaca velha.
Vinãspre frisou que “para os bascos, a qualidade de vida do animal é muito mais importante na escolha da peça do que a raça ou o género, por exemplo” e, de seguida, desafiou-nos a acariciar a carne com a mão, para que sentíssemos a gordura a fundir-se com a temperatura da nossa pele e percebêssemos que na carne de qualidade não há maus odores. Continuou, afirmando: “Não acreditamos em longas maturações”, desenvolvendo depois que prefere a expressão “amadurecimento”, referindo-se à prática de deixar a carne no frio somente até que as gorduras se integrem o suficiente nas fibras, sob o risco de que o sabor se altere ou se desenvolvam bactérias. E, sabiamente, declarou que “o bom artista é o que olha muito para o produto e o ‘estropea’ pouco”. Por esta altura, já estávamos todos com vontade de a estropear, mas no prato…
Na hora de “atirar” as costeletas para a grelha, os mandamentos da dupla espanhola foram outros. “Não se pergunta se é bem ou mal-passada, ou como se quer a carne! Há um ponto ideal.” A temperatura deve ser extremamente alta e a carne deve ser completamente selada antes do punhado de sal marinho grosso cair sobre ela, para não desidratar – Assim a carne só agarra o sal de que necessita – disseram. Eram costeletas com cerca de dois quilos, cada.
Antes do almoço, provámos as carnes, boi e vaca lado a lado a mostrar-nos que o único resultado possível é o empate, quando lidamos com produtos desta qualidade. O boi, ostentando as suas teias brancas musculares, revelou-se mais intenso no primeiro contacto com o palato, e a vaca, mais feminina, mostrou uma elegância poderosa, ambos de sabor sublime. À refeição, acompanhou-se a carne de pimentos piquillo e nada mais. Como se fosse preciso acrescentar alguma coisa…
A festa de todas as mesas

O Natal é especial em Portugal e o que o distingue de todos os outros é a marcação religiosa forte e fundadora que lhe reconhecemos, acompanhada de inúmeros pequenos grandes rituais e costumes pagãos que sempre nos deram motivos para rir e foliar. Claro que de permeio está o que comemos e bebemos. TEXTO […]
O Natal é especial em Portugal e o que o distingue de todos os outros é a marcação religiosa forte e fundadora que lhe reconhecemos, acompanhada de inúmeros pequenos grandes rituais e costumes pagãos que sempre nos deram motivos para rir e foliar. Claro que de permeio está o que comemos e bebemos.
TEXTO Fernando Melo FOTOS Ricardo Palma Veiga
O calendário litúrgico nacional chegou a ter mais dias de guarda – jejum e abstinência – do que os dias livres de constrangimentos religiosos, raiando as duas centenas por ano. Não espanta por isso que a quadra natalícia exacerbasse o bacalhau salgado seco, na luxuosa configuração de demolhado e cozido, comido na consoada. Adaptado a cada bolsa, todos tinham acesso à sua posta, complementada por couves que as geadas curtiam como nenhum outro tratamento legumeiro, batatas e um ovo cozido. O polvo conservava-se outrora seco, como o bacalhau, e ainda hoje faz parte do tratamento vespertino do Natal. Digamos que estamos em património literalmente nacional.
O peru é relativamente recente na alimentação europeia, perde para o capão em suculência e sabor, mas há que considerá-lo, pela montagem de palácio que permite, e por não enjeitar nenhum dos recheios com que se lhe enche o papo. Matéria moldável, do ponto de vista culinário, que para mais ninguém se importa de comer fria. Vezeiro e primevo é o cabrito assado, um pouco por toda a parte. Alguém determinou que fosse o animal sacrificial por excelência. Adaptámo-nos depressa, e o bicho também nunca reclamou, é notícia nacional. O Alentejo e o Algarve gostam da carne de porco assada, pelo menos em termos históricos.
Os frutos secos e o fumeiro estão no pico do sabor e frescura, tudo se aprimora e dá ao aconchego das brasas e dos fornos, nos acondicionamentos mais diversos. São campeões os pinhões e as amêndoas, acompanham muito bem os frutos cristalizados, especialmente figos, ameixas e passas de uva. Os sonhos, rabanadas, filhós e seus semelhantes configuram tentação sistemática e a doçaria conventual, o trabalho dos ovos, pudins, quase derrotam o bolo-rei. Mas rei é rei e há assuntos que não têm discussão. Vale a pena fazer um pequeno périplo pelo país, todos os lugares são igualmente importantes, mas todos também têm as suas especificidades.
Sempre o bacalhau
Em Aveiro, respira-se a maresia como se de oxigénio vital se tratasse, e a pescaria ainda puxa a lágrima às suas gentes, independentemente da condição social, fortuna ou credo. Quando digo que as mãos de um português deviam cheirar sempre uma a peixe outra a marisco, é nesta mancha de mar, ria e salga que estou a pensar. Polvo, raia e bacalhau de antologia, na consoada são fundamentais, nas variantes mais requintadas verdadeiro luxo. Não esquecer que se transpira ovos moles – que pena as barriquinhas de madeira terem sido declaradas perigosas para a saúde! E claro que pontificam na mesa festiva da quadra.
Em Beja e Évora, a proximidade geográfica e familiar com Lisboa atesta e recomenda variações como bacalhaus, perú assado e fritos diversos, Aterra na mesa copiosa doçaria, rica em apontamentos conventuais e doce de ovos. Braga é rica e farta à mesa, está servida de receitas de bacalhau que se aprimoram a gosto, sai a doçaria frita da grande tradição e nem os mais novos se fazem rogados para deitar a mão às guloseimas.
Em Bragança, e de certa forma em toda a província transmontana, na consoada é obrigatório o bacalhau cozido com couve penca curtida pela geada, pico de sabor na altura do frio. O polvo cozido também tem licença para ficar. No dia seguinte, o almoço de Natal pode apresentar canja de galinha, seguindo-se uma carne assada, que pode ser peru, leitão, porco ou borrego. Um dia inteiro de convívio familiar com a mesa a ser renovada ao longo do dia, migas doces, bolinhos de jerimú e muitos frutos secos para ir debicando. A porta é franca e acontece muito a visita recíproca neste dia, o importante da festa já foi na noite de 24. Entre o Douro e Minho está frio, sabe bem o vinho quente a seguir ao jantar e antes de dormir, além de ajudar a digerir a poderosa couvada, com o melhor bacalhau. No próprio dia, a toada é de descanso em família, faz-se roupa velha de bacalhau e o prato central é o peru assado no forno com castanhas e batatas assadas. Cabrito sai mais a contento e também se pratica. E as gloriosas travessas de aletria fazem-nos entrar em órbita, custa a crer o simples que é de fazer face ao que bem sabe. Rabanadas em calda de açúcar, mexidos de leite e vinho e frutos secos completam o estágio delicioso.
A doçaria alentejana
Viseu, Castelo Branco, Coimbra e Guarda querem ver o bacalhau cozido com couve no meio da mesa na véspera, haja missa do galo ou não a família toca a reunir e com isso não se brinca. O almoço do dia seguinte é de quase desforra, há cabrito assado no forno de lenha, criando simpatia de sensações com a lareira da sala, doçaria diversa mas não pode faltar o arroz doce. Só nas Beiras se fazem as filhós do joelho, tendidas com as mãos ou no joelho, ganhando formas divertidas e diversas.
Pelo Ribatejo e Estremadura, coze-se bacalhau com grão e cenoura para servir na véspera, no próprio dia bate o cabrito à porta e é de o deixar entrar, que há broas castelar para ajudar a entrar na digestão. Do Alentejo já se falou acima, mas cabe aqui frisar o extenso e copioso capítulo doceiro, começando nos coscorões e terminando nas azevias de grão ou de batata-doce, de comer e chorar por mais. Em terras algarvias o galo assado canta na ceia de Natal das famílias, mas o bacalhau já o ultrapassou, de certa forma. E o peru conquistou terreno, mesmo face à incrível diversidade e orientação para o prazer dos pratos do barrocal, onde começou a juntar-se mar e terra à mesa. A Madeira permanece fiel a si própria e na consoada come-se espetada de carne em pau de loureiro. No próprio dia, valoriza-se uma boa carne de porco assada, temperada em vinha de alhos, com migas. Bolo de mel, bolo de noz e filhós abrilhantam a festa. Nos Açores é maior a proximidade em relação aos costumes do continente, entrando-se pelo bacalhau na consoada e saindo-se pelo perú no almoço do dia de Natal.
Um país que respira em uníssono mas reluz e brilha com cores muito próprias em cada região ou recanto. Natal é mesmo todos os dias.