Teixuga, de betão à vista

Nova adega, novos vinhos, novos caminhos. A Caminhos Cruzados está no Dão com a promessa de que a região não se esgota em si mesma, com Lígia Santos aos comandos. Só faltava uma adega à altura…   TEXTO Mariana Lopes NOTAS DE PROVA Luís Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga A Caminhos Cruzados vinificou a primeira […]

Nova adega, novos vinhos, novos caminhos. A Caminhos Cruzados está no Dão com a promessa de que a região não se esgota em si mesma, com Lígia Santos aos comandos. Só faltava uma adega à altura…

 

TEXTO Mariana Lopes NOTAS DE PROVA Luís Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga

A Caminhos Cruzados vinificou a primeira vez em 2012 e lançou-se ao mercado com a marca Titular. De regresso à Nelas do avô Coelho dos Santos, as duas gerações mais recentes da família saíram do Porto com vontade de fazer vinho no Dão, e fundar uma empresa de cara fresca, moderna. Paulo, empresário industrial de têxteis, e Lígia, advogada, pai e filha juntos numa actividade que esta viria a assumir a tempo inteiro como CEO. Em 2014, com a chegada dos tarimbados enólogos Carlos Magalhães e Manuel Vieira e com o inevitável crescimento do negócio, foi tempo de investir. A Quinta da Teixuga e os seus trinta hectares, quinze de vinha, já eram explorados pela Caminhos Cruzados desde o ano anterior. Com algumas parcelas de cerca de 50 anos de idade, a propriedade de Vilar Seco foi escolhida para cenário de um projecto de dois milhões de euros com arquitectura de Nuno Pinto Cardoso. Agora, a nova adega está pronta e já recebeu as uvas de 2017. O edifício, de linha super-moderna e a expor o betão ao mundo, é composto por dois blocos que se cruzam sobre um arco (a lembrar o logótipo da empresa) e está perfeitamente integrado no ambiente, sem qualquer efeito postiço. As parcelas de vinha que o rodeiam parecem recebê-lo com carinho, fazendo a cama ao piso assente numa espécie de “lombo de bacalhau”, mais alto no centro e descendente nas laterais.

Porque o Novo Dão não é só vinhos diferentes. É consciente na estética e também na sustentabilidade, factor presente na construção – a adega, de baixa manutenção, tem um reservatório no seu núcleo que recolhe a água da chuva para tratamento e reutilização. Mas o conceito de modernidade não fica por aqui: a estrutura não tem pilares, foi construída com o mesmo método das pontes, em suspensão. No seu interior, encontra-mos uma perfeita harmonia entre o belo e o funcional, com a particularidade de o caminho entre as salas ser quase labiríntico, com micro-divisões nos entretantos e uma vista privilegiada para as vinhas.

Durante a visita, Paulo Santos confessou: “Vou afastar-me de vez e a Lígia vai passar a gerir tudo.” E continuou: “Ela mereceu essa responsabilidade e tem conhecimentos nesta área, que eu não tenho.” Quando ouvimos a jovem produtora a receber-nos na sua nova adega e a explicar o percurso da Caminhos Cruzados, foi fácil perceber o seu papel na região. “Bem-vindos à nossa casa, uma casa informal e moderna.” Lígia representa a rebeldia do sector, o desprendimento dos poderes instituídos e das amarras sociais e políticas que muitas vezes o toldam. Uma lufada de ar fresco no Dão.

Nesta apresentação provámos duas novidades, Caminhos Cruzados Family Edition branco 2015 e tinto 2014. Dois vinhos para comemorar a nova fase da família e da empresa, exclusivamente em tamanho magnum. A base do tinto é Touriga Nacional, com Jaen, Alfrocheiro e Tinta Roriz. Referindo-se ao branco, de Encruzado, Bical, Cerceal-Branco e Malvasia Fina, Manuel Vieira brincou: “Gosto muito de deixar brancos a estagiar à conta do patrão…” Todos nos rimos e a lareira fez-nos companhia até ao regresso a casa.

Poseidon: o vinho da Volta

É da sabedoria popular que o vinho que sobrava das viagens dos antigos bacalhoeiros tinha um sabor distinto do original. Hoje, o duriense Poseidon vem confirmar isso mesmo: o “vinho da volta”, volta diferente. E bom, por sinal…   TEXTO Mariana Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga O Poseidon tinto 2014 é já a segunda edição […]

É da sabedoria popular que o vinho que sobrava das viagens dos antigos bacalhoeiros tinha um sabor distinto do original. Hoje, o duriense Poseidon vem confirmar isso mesmo: o “vinho da volta”, volta diferente. E bom, por sinal…

 

TEXTO Mariana Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga

O Poseidon tinto 2014 é já a segunda edição deste vinho baptizado em homenagem ao Deus grego dos mares e à memória marítima portuguesa, e o local do lançamento não poderia ter sido mais apropriado. Trata-se do navio-museu Santo André, um bacalhoeiro de arrasto lateral “aposentado” que se encontra atracado na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo, e que foi construído em 1948 na Holanda, por encomenda da Empresa de Pesca de Aveiro. Foi no seu porão de seca de bacalhau, abaixo do nível da água da ria de Aveiro, que provámos a novidade.

Fruto de uma parceria entre a empresa Lua Cheia em Vinhas Velhas e o Clube de Oficiais da Marinha Mercante, o vinho Andreza Grande Reserva 2014 embarcou, em Janeiro, no bacalhoeiro Coimbra rumo aos Grandes Bancos da Terra Nova, no Canadá, e, depois de 72 dias de ondas de 13 metros e ventos de 140 km/h, voltou com outro perfil e outro nome. Com mais seis meses de estágio em terra, o novo Poseidon tem Touriga Nacional, Touriga Franca e Sousão e, segundo o enólogo Francisco Baptista, “o objectivo foi pegar num vinho com taninos fortes para que o tempo em alto-mar amaciasse esses mesmos taninos”. “Está mais aveludado e bem integrado com a barrica”, afirma.

Tiago Silva, o jovem capitão do navio Coimbra, contou uma estória engraçada: “Na primeira viagem, a pesca começou por correr muito mal. Durante muitos dias não havia peixe e decidimos optar pelo último recurso, oferecer uma garrafa ao Deus Poseidon. Provámos o vinho e deitámos um pouco ao mar. O que é certo é que a situação mudou totalmente de figura e a pesca passou a correr tão bem que voltámos mais cedo do que o costume!”. E continuou, relatando pelo meio de risos: “Na segunda viagem, não estivemos com meias medidas. A primeira coisa que fizemos foi oferecer a garrafa ao Poseidon e, além de não termos tido qualquer problema com a pesca, voltámos mais cedo outra vez…”

Não fosse já a história especial, cada garrafa de Poseidon tinto 2014 traz anexado um certificado assinado pelo Clube de Oficiais da Marinha Mercante. Há quem diga que encostar o ouvido à garrafa permite ouvir o mar… Será verdade? Provavelmente não, mas o vinho vale muito a pena.

Adeus 2017, olá 2018

Últimos meses do ano foram pródigos em acontecimentos gastronómicos. E há boas novidades no horizonte lisboeta.   TEXTO Ricardo Dias Felner ABREM cada vez mais restaurantes, muitos deles movidos a turismo. Daqui resulta que há cada vez mais mesas desinteressantes, mas seria estúpido dizer-se que se come pior por causa disso. Dá para tudo. Sobretudo […]

Últimos meses do ano foram pródigos em acontecimentos gastronómicos. E há boas novidades no horizonte lisboeta.

 

TEXTO Ricardo Dias Felner

ABREM cada vez mais restaurantes, muitos deles movidos a turismo. Daqui resulta que há cada vez mais mesas desinteressantes, mas seria estúpido dizer-se que se come pior por causa disso. Dá para tudo. Sobretudo em Lisboa.

Um exemplo claro da popularidade da capital portuguesa é o interesse que desperta em investidores estrangeiros. Entre os restaurantes neste grupo, está o Chustnify, de uma indiana de Nova Deli radicada em Berlim. O conceito é o de indiano cool, música electrónica e empregados hipsters, mas a comida é bem mais autêntica (e picante) do que a que lhe servem noutras salas da capital cheias de incenso e folclore (obrigatórios o caril de borrego e o kabab). Fica entre a Praça das Flores e o Príncipe Real.

Na mesma linha, bem perto dali, inaugurou o Zazah, sociedade de três brasileiros, dois com interesses imobiliários em Lisboa e capital financeiro, o outro um chef, Moisés Franco, que passou recentemente no Bairro do Avillez. A ideia é acolher pessoas que saem do trabalho, ao m da tarde, e que passam ali para beber um cocktail e petiscar, embaladas pela música e distraídas com as obras de arte nas paredes. Na carta, há croquetes de alheira (5,50€), ceviche de atum (9,50€), puré trufado (4€) ou vazia maturada (16€).

Quem também viajou para Lisboa, embora seja português, para abrir um restaurante foi António Galapito. Conhecido pelo seu trabalho com o chef Nuno Mendes, em Londres, na Taberna do Mercado, este jovem chef (faz 27 anos este mês) estabeleceu-se há um ano junto à Sé, no aparthotel The Lisboans, a preparar a abertura do seu Prado. O restaurante deveria abrir na semana em que este texto fechou, pelo que neste momento já poderá lá ir experimentar o conceito de farm to table (da horta para a mesa) criativo, muito em voga por estes dias.

Quem não cruzou fronteira alguma, a não ser a do Ribatejo, foi Rodrigo Castelo, da Taberna Ó Balcão, em Santarém. Conhecido por estar a recuperar produtos endógenos ribatejanos, como a carne de touro bravo, e de lhe dar tratamento de chef no seu restaurante escalabitano, Rodrigo irá estrear O Mariscador, na Praça do Campo Pequeno, também em Dezembro.

Para o mesmo mês estava prevista ainda a inauguração do novo restaurante de Ljubomir Stanisic, que no entanto relembra à Vinho Grandes Escolhas uma máxima intemporal: “A obra é que manda.” O chef quer trazer para a Rua do Teixeira, ao Bairro Alto, onde o seu 100 Maneiras dará lugar a este novo projecto, animais inteiros e desmanchá-los e assá-los paleoliticamente. Para isso contratou, Manuel Maldonado, especialista na arte de brincar com o fogo.

Mas nem tudo são favas contadas e contos de encantar. Neste final de ano, houve igualmente projectos a fechar. O Bagos, de Henrique Mouro, foi um deles. No que respeita a transições, a mais badalada foi a saída, concretizada em Novembro, de Pedro Pena Bastos da Herdade do Esporão. Os destinos de ambos os chefs são duas das boas interrogações que 2018 nos trará. Venha ele.

Pêra-Manca: O regresso do grande clássico

O lançamento de mais uma colheita do Pêra-Manca tinto é sempre um acontecimento aguardado com grande expectativa pela comunidade dos enófilos. Agora foi a vez do tinto de 2013.   TEXTO João Geirinhas FOTOS Cortesia FEA O vinho é um ícone alentejano e o seu prestígio, aliado ao preço com que chega ao mercado, atiram-no […]

O lançamento de mais uma colheita do Pêra-Manca tinto é sempre um acontecimento aguardado com grande expectativa pela comunidade dos enófilos. Agora foi a vez do tinto de 2013.

 

TEXTO João Geirinhas FOTOS Cortesia FEA

O vinho é um ícone alentejano e o seu prestígio, aliado ao preço com que chega ao mercado, atiram-no para um patamar exclusivo que reforça o seu estatuto de excepção entre os vinhos portugueses. A raridade também se expressa pelo reduzido número de colheitas lançadas até ao momento. O vinho só vê a luz do dia em anos considerados de excepcional qualidade. Desde 1990, data do primeiro Pêra Manca, este tinto teve apenas treze edições, sendo a última a colheita 2011.

A apresentação à imprensa do novo Pêra-Manca tinto 2013 decorreu no Fórum Eugénio Almeida, perante dezenas de convidados. Logo a abrir, Mateus Ginó, presidente do conselho de administração da FEA, dá uma noticia que acentua ainda mais a exclusividade do vinho. Esta é a menor colheita de sempre do Pêra-Manca tinto: apenas 19 mil garrafas! Esta redução, fruto das condições particulares da vindima de 2013, irá acentuar certamente a pressão sobre FOTOS Cortesia FEA o preço de venda ao público e a expectativa da sua prova. Tal como a colheita anterior, as garrafas do Pêra-Manca 2013 surgem no mercado com um selo holográco associado a um código que deve ser validado no site da Fundação, garantindo assim a protecção contra falsicações.

No perfil de um vinho clássico não se mexe ou mexe-se muito pouco. Pedro Baptista, enólogo e administrador da casa, explica-nos que esta colheita de 2013, assenta como de costume nas duas castas tradicionais: Trincadeira e Aragonês, neste ano com a particularidade de uma ligeira pre-dominância da primeira sobre a segunda (55% – 45%). É de três talhões, com a idade média de 35 anos, que as uvas são colhidas à mão e depois carregadas para a nova adega Monte dos Pinheiros, onde são tratadas “com pinças”: previamente refrigeradas, bagos retirados dos cachos e transportados por gravidade sem bombagem de forma a não dilacerar a película, prensagem suave e fermentação em separado em depósitos de carvalho francês.

Antes da composição do lote final, o vinho estagia entre 18 e 24 meses em grandes tonéis nas caves da Adega da Cartuxa. Só após este estágio Pedro Baptista inicia o trabalho, muitas vezes solitário, de preparar o lote final, um exercício exigente que alia um método cientifico, uma técnica precisa, bastante sensibilidade e, como não poderia deixar de ser, um toque de cunho pessoal. Feito o lote, o vinho já engarrafado estagia mais dois anos e meio antes de ser finalmente lançado no mercado. Assim nasce mais um Pêra-Manca tinto.

Vinho de talha vem a seguir
Antes do jantar servido na Adega da Cartuxa, Quinta Valbom, tivemos oportunidade de provar aquela que será uma das novidades da FEA num futuro muito próximo: um vinho de talha da vindima de 2017. Correspondendo ao interesse crescente que esta arte milenar do Alentejo tem despertado junto de cada vez mais vastas camadas de consumidores, pela autenticidade e forte caracter dos vinhos assim produzidos, as grandes talhas de barro têm tido uma enorme procura por parte de muitos produtores, o que as transformou num objecto de desejo raro e muitas vezes já inacessível.Quis, contudo, o destino que, quando da desactivação de uma velha adega em Reguengos de Monsaraz, os responsáveis da Fundação tivessem conhecimento da existência de 25 talhas de com cerca de 1200 litros de capacidade qu

e rapidamente foram adquiridas e transportadas para Évora. Apesar de todos os cuidados, no transporte acabou por se perder uma das talhas, mas conseguiu-se que as outras 24 fossem instaladas e tornadas operacionais. O vinho que provámos em ante-estreia absoluta revelou-se uma surpresa face ao perfil tradicional que estes vinhos da talha costumam exibir. Mas independentemente do estilo mais ou menos clássico, é muito importante para a afirmação destes vinhos a entrada da Adega da Cartuxa no ainda restrito lote de produtores alentejanos que cultivam esta prática.No decorrer do jantar foram ainda servidos os vinhos que estão a ser lançados ne

ste final de ano e que serão objecto de prova nas próximas edições da V Grandes Escolhas: Scala Coelli branco 2015, este ano feito exclusivamente da casta Alvarinho; o Pêra-Manca branco 2015; e os tintos Cartuxa Colheita 2014, Cartuxa Reserva 2014 e Scala Coelli tinto 2014, feito de Petit Verdot. Impressiona desde já a diversidade desta ampla oferta de vinhos, tal como a consistência que as sucessivas colheitas têm apresentado ano após ano em quantidades cada vez mais significativas e que no caso do Cartuxa atinge já as muitas centenas de milhar de unidades.

Se não é boi, é vaca…

A carne mais sensual de raça bovina esteve no VINUM Restaurant & Wine Bar. Pela quinta vez consecutiva, o restaurante da Graham’s dedicou-se, juntamente com o grupo basco Sagardi, a promover o confronto entre o boi velho e a vaca velha, desde o dia 24 de Outubro.   TEXTO Mariana Lopes FOTOS Cortesia Vinum ENQUANTO […]

A carne mais sensual de raça bovina esteve no VINUM Restaurant & Wine Bar. Pela quinta vez consecutiva, o restaurante da Graham’s dedicou-se, juntamente com o grupo basco Sagardi, a promover o confronto entre o boi velho e a vaca velha, desde o dia 24 de Outubro.

 

TEXTO Mariana Lopes FOTOS Cortesia Vinum

ENQUANTO durou o stock do boi de Trás-os-Montes e da vaca da Galiza (raça Rubia Gallega), o Vinum teve à disposição dos clientes um menu muito especial, harmonizado com vinhos Symington Family Estates, com destaque para as carnes seleccionadas pelos espanhóis Imanol Jaca, guru dos cortes bovinos, e Iñaki Lopez de Viñaspre, embaixador da gastronomia do País Basco.

Sagardi é um projecto de restauração e catering com 20 anos que tem na sua génese o transporte do conhecimento sobre a gastronomia tradicional basca para todo o mundo. A locais como Madrid, Barcelona, Valência, Sevilha, Ibiza, Buenos Aires, Cidade do México e Londres, adiciona-se o Porto, onde o grupo gere o restaurante “symingtoniano” Vinum. A Sagardi tem já 30 restaurantes e um hotel sob a sua alçada.

No dia de apresentação das Jornadas, os dois mentores da Sagardi partilharam o seu conhecimento com os presentes, apresentando uma masterclass interactiva sob o mote “Boi ou vaca – contrastes de sabores, contrastes de ideias”.

O boi de trabalho, antigamente usado para puxar as carroças e os arados, vê hoje a sua criação ameaçada pela mecanização da agricultura e pelo aumento das grandes explorações lácteas. Felizmente, em algumas aldeias do Minho e de Trás-os-Montes, onde a cultura tradicional se mantém como bandeira, ainda se encontram estes animais, apesar de poucos serem os exemplares. A vaca Rubia Gallega, grande e pesada, já é muito difícil de encontrar.

Com cerca de 500 quilos, a vaca velha servida no Vinum é proveniente de uma pequena aldeia montanhosa no interior da Galiza, e a sua carne é muito apreciada internacionalmente. Iñaki contou que “os bois eram companheiros de trabalho e tratados como família” e explicou que “o boi era usado para puxar por ser mais musculado e hormonal do que a vaca”. Sempre castrados, estes bois velhos são, na generalidade, criados com uma qualidade de vida considerada superior, tanto no que concerne a alimentação (pasto natural) como ao nível de stress a que estão sujeitos durante a vida, que é baixíssimo. O mesmo se aplica à vaca velha.

Vinãspre frisou que “para os bascos, a qualidade de vida do animal é muito mais importante na escolha da peça do que a raça ou o género, por exemplo” e, de seguida, desafiou-nos a acariciar a carne com a mão, para que sentíssemos a gordura a fundir-se com a temperatura da nossa pele e percebêssemos que na carne de qualidade não há maus odores. Continuou, afirmando: “Não acreditamos em longas maturações”, desenvolvendo depois que prefere a expressão “amadurecimento”, referindo-se à prática de deixar a carne no frio somente até que as gorduras se integrem o suficiente nas fibras, sob o risco de que o sabor se altere ou se desenvolvam bactérias. E, sabiamente, declarou que “o bom artista é o que olha muito para o produto e o ‘estropea’ pouco”. Por esta altura, já estávamos todos com vontade de a estropear, mas no prato…

Na hora de “atirar” as costeletas para a grelha, os mandamentos da dupla espanhola foram outros. “Não se pergunta se é bem ou mal-passada, ou como se quer a carne! Há um ponto ideal.” A temperatura deve ser extremamente alta e a carne deve ser completamente selada antes do punhado de sal marinho grosso cair sobre ela, para não desidratar – Assim a carne só agarra o sal de que necessita – disseram. Eram costeletas com cerca de dois quilos, cada.

Antes do almoço, provámos as carnes, boi e vaca lado a lado a mostrar-nos que o único resultado possível é o empate, quando lidamos com produtos desta qualidade. O boi, ostentando as suas teias brancas musculares, revelou-se mais intenso no primeiro contacto com o palato, e a vaca, mais feminina, mostrou uma elegância poderosa, ambos de sabor sublime. À refeição, acompanhou-se a carne de pimentos piquillo e nada mais. Como se fosse preciso acrescentar alguma coisa…

A festa de todas as mesas

O Natal é especial em Portugal e o que o distingue de todos os outros é a marcação religiosa forte e fundadora que lhe reconhecemos, acompanhada de inúmeros pequenos grandes rituais e costumes pagãos que sempre nos deram motivos para rir e foliar. Claro que de permeio está o que comemos e bebemos.   TEXTO […]

O Natal é especial em Portugal e o que o distingue de todos os outros é a marcação religiosa forte e fundadora que lhe reconhecemos, acompanhada de inúmeros pequenos grandes rituais e costumes pagãos que sempre nos deram motivos para rir e foliar. Claro que de permeio está o que comemos e bebemos.

 

TEXTO Fernando Melo FOTOS Ricardo Palma Veiga

O calendário litúrgico nacional chegou a ter mais dias de guarda – jejum e abstinência – do que os dias livres de constrangimentos religiosos, raiando as duas centenas por ano. Não espanta por isso que a quadra natalícia exacerbasse o bacalhau salgado seco, na luxuosa configuração de demolhado e cozido, comido na consoada. Adaptado a cada bolsa, todos tinham acesso à sua posta, complementada por couves que as geadas curtiam como nenhum outro tratamento legumeiro, batatas e um ovo cozido. O polvo conservava-se outrora seco, como o bacalhau, e ainda hoje faz parte do tratamento vespertino do Natal. Digamos que estamos em património literalmente nacional.

O peru é relativamente recente na alimentação europeia, perde para o capão em suculência e sabor, mas há que considerá-lo, pela montagem de palácio que permite, e por não enjeitar nenhum dos recheios com que se lhe enche o papo. Matéria moldável, do ponto de vista culinário, que para mais ninguém se importa de comer fria. Vezeiro e primevo é o cabrito assado, um pouco por toda a parte. Alguém determinou que fosse o animal sacrificial por excelência. Adaptámo-nos depressa, e o bicho também nunca reclamou, é notícia nacional. O Alentejo e o Algarve gostam da carne de porco assada, pelo menos em termos históricos.

Os frutos secos e o fumeiro estão no pico do sabor e frescura, tudo se aprimora e dá ao aconchego das brasas e dos fornos, nos acondicionamentos mais diversos. São campeões os pinhões e as amêndoas, acompanham muito bem os frutos cristalizados, especialmente figos, ameixas e passas de uva. Os sonhos, rabanadas, filhós e seus semelhantes configuram tentação sistemática e a doçaria conventual, o trabalho dos ovos, pudins, quase derrotam o bolo-rei. Mas rei é rei e há assuntos que não têm discussão. Vale a pena fazer um pequeno périplo pelo país, todos os lugares são igualmente importantes, mas todos também têm as suas especificidades.

Sempre o bacalhau
Em Aveiro, respira-se a maresia como se de oxigénio vital se tratasse, e a pescaria ainda puxa a lágrima às suas gentes, independentemente da condição social, fortuna ou credo. Quando digo que as mãos de um português deviam cheirar sempre uma a peixe outra a marisco, é nesta mancha de mar, ria e salga que estou a pensar. Polvo, raia e bacalhau de antologia, na consoada são fundamentais, nas variantes mais requintadas verdadeiro luxo. Não esquecer que se transpira ovos moles – que pena as barriquinhas de madeira terem sido declaradas perigosas para a saúde! E claro que pontificam na mesa festiva da quadra.

Em Beja e Évora, a proximidade geográfica e familiar com Lisboa atesta e recomenda variações como bacalhaus, perú assado e fritos diversos, Aterra na mesa copiosa doçaria, rica em apontamentos conventuais e doce de ovos. Braga é rica e farta à mesa, está servida de receitas de bacalhau que se aprimoram a gosto, sai a doçaria frita da grande tradição e nem os mais novos se fazem rogados para deitar a mão às guloseimas.

Em Bragança, e de certa forma em toda a província transmontana, na consoada é obrigatório o bacalhau cozido com couve penca curtida pela geada, pico de sabor na altura do frio. O polvo cozido também tem licença para ficar. No dia seguinte, o almoço de Natal pode apresentar canja de galinha, seguindo-se uma carne assada, que pode ser peru, leitão, porco ou borrego. Um dia inteiro de convívio familiar com a mesa a ser renovada ao longo do dia, migas doces, bolinhos de jerimú e muitos frutos secos para ir debicando. A porta é franca e acontece muito a visita recíproca neste dia, o importante da festa já foi na noite de 24. Entre o Douro e Minho está frio, sabe bem o vinho quente a seguir ao jantar e antes de dormir, além de ajudar a digerir a poderosa couvada, com o melhor bacalhau. No próprio dia, a toada é de descanso em família, faz-se roupa velha de bacalhau e o prato central é o peru assado no forno com castanhas e batatas assadas. Cabrito sai mais a contento e também se pratica. E as gloriosas travessas de aletria fazem-nos entrar em órbita, custa a crer o simples que é de fazer face ao que bem sabe. Rabanadas em calda de açúcar, mexidos de leite e vinho e frutos secos completam o estágio delicioso.

A doçaria alentejana
Viseu, Castelo Branco, Coimbra e Guarda querem ver o bacalhau cozido com couve no meio da mesa na véspera, haja missa do galo ou não a família toca a reunir e com isso não se brinca. O almoço do dia seguinte é de quase desforra, há cabrito assado no forno de lenha, criando simpatia de sensações com a lareira da sala, doçaria diversa mas não pode faltar o arroz doce. Só nas Beiras se fazem as filhós do joelho, tendidas com as mãos ou no joelho, ganhando formas divertidas e diversas.

Pelo Ribatejo e Estremadura, coze-se bacalhau com grão e cenoura para servir na véspera, no próprio dia bate o cabrito à porta e é de o deixar entrar, que há broas castelar para ajudar a entrar na digestão. Do Alentejo já se falou acima, mas cabe aqui frisar o extenso e copioso capítulo doceiro, começando nos coscorões e terminando nas azevias de grão ou de batata-doce, de comer e chorar por mais. Em terras algarvias o galo assado canta na ceia de Natal das famílias, mas o bacalhau já o ultrapassou, de certa forma. E o peru conquistou terreno, mesmo face à incrível diversidade e orientação para o prazer dos pratos do barrocal, onde começou a juntar-se mar e terra à mesa. A Madeira permanece fiel a si própria e na consoada come-se espetada de carne em pau de loureiro. No próprio dia, valoriza-se uma boa carne de porco assada, temperada em vinha de alhos, com migas. Bolo de mel, bolo de noz e filhós abrilhantam a festa. Nos Açores é maior a proximidade em relação aos costumes do continente, entrando-se pelo bacalhau na consoada e saindo-se pelo perú no almoço do dia de Natal.

Um país que respira em uníssono mas reluz e brilha com cores muito próprias em cada região ou recanto. Natal é mesmo todos os dias.