Ventozelo: a jóia da Gran Cruz

Situada na margem esquerda do Douro, na freguesia de Ervedosa, sub-região de Cima Corgo, a Quinta de Ventozelo, com os seus 400 hectares de extensão, 200 dos quais de vinha, em forma de anfiteatro natural sobre o rio, é uma das mais belas propriedades da região.   TEXTO João Geirinhas NOTAS DE PROVA Luís Lopes […]

Situada na margem esquerda do Douro, na freguesia de Ervedosa, sub-região de Cima Corgo, a Quinta de Ventozelo, com os seus 400 hectares de extensão, 200 dos quais de vinha, em forma de anfiteatro natural sobre o rio, é uma das mais belas propriedades da região.

 

TEXTO João Geirinhas NOTAS DE PROVA Luís Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga

SE juntarmos a esta impressionante beleza natural uma história que se perde nos tempos, a dimensão invulgar dos seus limites e as condições naturais de solo e clima para proporcionarem uma viticultura de excelência, percebemos melhor a ambição dos seus actuais proprietários em torná-la uma quinta modelar, berço favorecido para a produção de grandes vinhos do Porto e Douro.

Foi um pouco desta magia do lugar que a Gran Cruz pretendeu trazer a Lisboa na apresentação à imprensa dos seus topos de gama de Ventozelo, pelas mãos de Jorge Dias, director geral do grupo, José Manuel Sousa Soares, chefe da equipa de enologia, e Miguel Castro Silva, chefe do Lumni, onde decorreu o jantar, e há muito regular colaborador da empresa. É muito gratificante ouvir falar Jorge Dias de Ventozelo e José Manuel Soares dos seus vinhos. Falam com o entusiasmo de uma criança que acedeu finalmente ao brinquedo há muito desejado, o brilho dos seus olhos não engana.

Trata-se de uma aquisição recente. Foi apenas em 2014 que a Gran Cruz adquiriu a quinta a um grupo galego com interesses diversificados, mas com forte presença nas pescas e que um dia sonhou ser um grande produtor de vinhos. Condicionalismos e contingências de vária ordem impediram esse desiderato e após anos de incertezas e muitas negociações falhadas com outros pretendentes, a líder mundial na venda de Vinho do Porto tomava posse desta propriedade e começava a partir daí uma revolução silenciosa. Não que Ventozelo estivesse ao abandono, mas perante o desafio que a Gran Cruz tinha em mão e o projecto que Jorge Dias e a sua equipa elaboraram para a propriedade, o trabalho era gigantesco. É que, apesar de dispor da maior marca de Vinho do Porto, o grupo Gran Cruz não tinha vinhas próprias, comprando toda a produção, em vinho ou em uvas, a mais de três mil viticultores e cooperativas da região. Por outro lado, a imagem da empresa estava em geral mais associada ao volume do que aos vinhos de topo de gama. Nas palavras de Gaspar Martins Pereira, na sua excelente monogra a “Ventozelo – Uma Quinta Milenar no Douro Vinhateiro”, recentemente publicada, “a compra da Quinta de Ventozelo integra-se nesse projecto global de viragem estratégica da Gran Cruz”. Investir na produção vitícola e obter matéria-prima de qualidade, a base fundamental para fazer vinhos de excelência, tanto Douro como Porto, é o objectivo mais imediato. Lançou-se por isso um extenso trabalho de requalificação das vinhas, que abrangeu cerca de 20% da área plantada, com a eliminação de castas exógenas e a sua substituição por variedades autóctones. Mas o desfio vai ainda mais além: para Jorge Dias, Ventozelo é uma oportunidade para revelar o que o Douro tem de melhor para oferecer: um projecto integrado, onde além da vinha e da produção dos vinhos, há lugar para outras culturas, como o azeite, e a exploração de um enoturismo de grande qualidade, sustentável e em plena harmonia com a natureza.

Os vinhos que foram agora apresentados reflectem já este compromisso. Tanto os brancos, já conhecidos, como o Viosinho 2014 num lote feito em parceria com Miguel Castro Silva ou o Branco de Ventozelo 2014, revelam-se frescos e gastronómicos, qualidades que foram potenciadas pelas harmonizações com as criações do chefe. Mas o foco estava voltado para as novidades da noite: o Essência de Ventozelo Douro 2014 e o Quinta de Ventozelo Porto Vintage 2015. José Manuel Soares apresentou-os como exemplo do caminho que quer pros- seguir. É aqui que reside a beleza da coisa. Apesar do enorme salto qualitativo que estes vinhos revelam, eles são ainda um ponto de partida. Para quem participou no jantar, a certeza é que, no Ventozelo, o melhor está ainda para vir.

O “Château” de Azeitão

Os recentes lançamentos dos Quinta da Bacalhôa e Palácio da Bacalhôa de 2014 mantêm o elevadíssimo padrão de qualidade das colheitas anteriores e reafirmam o seu estatuto de referências absolutas entre os “lotes bordaleses” produzidos em Portugal.   TEXTO Luís Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga O primeiro tinto Quinta da Bacalhôa, oriundo de uma vinha […]

Os recentes lançamentos dos Quinta da Bacalhôa e Palácio da Bacalhôa de 2014 mantêm o elevadíssimo padrão de qualidade das colheitas anteriores e reafirmam o seu estatuto de referências absolutas entre os “lotes bordaleses” produzidos em Portugal.

 

TEXTO Luís Lopes FOTOS Ricardo Palma Veiga

O primeiro tinto Quinta da Bacalhôa, oriundo de uma vinha de Cabernet e Merlot plantada em 1974 nesta história propriedade de Azeitão, nasceu na vindima de 1979. Essa primeira produção foi vendida, basicamente, entre amigos de António Francisco Avillez, criador e mentor da então chamada João Pires/J. P. Vinhos. Foi com a colheita seguinte, de 1980, que o Quinta da Bacalhôa começou a ganhar um prestígio que se solidificaria nos anos vindouros.

A quinta, propriamente dita, não é uma propriedade qualquer. Classificada como monumento nacional em 1910, é considerada a mais bela quinta da primeira metade do século XV ainda existente em Portugal e pertence à Fundação Berardo. Integrando um magnífico palácio, a Quinta da Bacalhôa é uma antiga propriedade da Casa Real Portuguesa, tendo pertencido ao príncipe João, filho do Rei D. João I. Dessa época, chegaram até aos nossos dias os edifícios, os muros com torreões de cúpulas aos gomos e também o grande tanque situado no jardim.

A propriedade passou mais tarde para os herdeiros de D. Afonso de Albuquerque e em 1936 o Palácio da Bacalhôa foi comprado e restaurado pela norte-americana Orlena Scoville, cujo neto Thomas resolveu em 1970 dar-lhe o “toque” bordalês através da plantação de uma vinha com as castas daquela região francesa. Para atingir esse objectivo, o vizinho visionário António Francisco Avillez constituiu o parceiro ideal. As uvas eram produzidas pelos Scoville, com acompanhamento da J.P. Vinhos (hoje Bacalhôa Vinhos), e vendidas a esta empresa, onde o enólogo australiano Peter Bright se encarregava de as transformar no mais emblemático “lote bordalês” feito em Portugal.

O Quinta da Bacalhôa era um vinho completamente revolucionário no panorama nacional. Desde o início que o vinho utilizava barricas novas (primeiro, uma mistura de barricas de castanho e carvalho português e francês; a partir de meados dos anos 80, exclusivamente carvalho francês importado e transformado em barricas na tanoaria da empresa) o que era bastante invulgar para a época. Mais invulgar ainda era a forma de comercialização, exclusivamente em primor e em leilão. Lembro-me bem de assistir a alguns desses leilões e registar o afã com que distribuidores, lojas de vinhos e restaurantes se “combatiam” para levar o maior número de caixas possível do famoso Bacalhôa.

Desde então sucederam-se 36 colheitas de Quinta da Bacalhôa, a maior parte das quais já sob orientação da enóloga Filipa Tomaz da Costa, que sucedeu a Peter Bright. Para além da sua qualidade intrínseca, o Quinta da Bacalhôa é um vinho com notável capacidade de envelhecimento, como diversas provas verticais feitas nos últimos anos têm confirmado. Essas qualidades são exponenciadas no Palácio da Bacalhôa, o topo de gama da casa, que nasceu na vindima de 2000, e foi produzido nas colheitas de 2001, 2003, 2004, 2005, 2007, 2008, 2009, 2013 e 2014.

Enquanto o Quinta da Bacalhôa é feito quase exclusivamente com Cabernet Sauvignon (o 2014 tem 90%) com um pouco de Merlot, o Palácio da Bacalhôa tem as castas bordalesas mais distribuídas, com predominância de Cabernet (cerca de 60%) complementado com Merlot e deixando ainda espaço para 3 ou 4% de Petit Verdot. Um e outro são do melhor que se faz entre nós neste perfil de vinho e constituem um belíssimo exemplo de “lote bordalês” em qualquer parte do mundo.

BLANDY’S: novo fôlego na Madeira

Já se sabe que a ilha da Madeira produz alguns dos melhores néctares nacionais. E já se sabe também que a casa Madeira Wine Company é um dos principais players da região. Não satisfeita, a empresa reforça a sua posição com investimentos, principalmente na aquisição de vinhas.   TEXTO Nuno de Oliveira Garcia FOTOS Ricardo […]

Já se sabe que a ilha da Madeira produz alguns dos melhores néctares nacionais. E já se sabe também que a casa Madeira Wine Company é um dos principais players da região. Não satisfeita, a empresa reforça a sua posição com investimentos, principalmente na aquisição de vinhas.

 

TEXTO Nuno de Oliveira Garcia FOTOS Ricardo Palma Veiga

A produção de Vinho da Madeira tem várias especificidades. Uma delas é o facto de as principais casas produtoras não serem proprietárias de vinhas, mantendo contratos de aluguer com centenas de pequenos agricultores por toda a ilha, o que implica um inegável esforço de gestão de toda a produção. Todos os anos, a partir de Março, a equipa de viticultura da empresa efetua controlos regulares das vinhas, aconselhando e apoiando os produtores com o intuito de garantir a melhor qualidade da produção.

Com uma crescente procura por vinhos de categorias superior, em especial no mercado nacional (fenómeno recente), a Madeira Wine Company, liderada por Chris Blandy e que agrega várias marcas, enceta uma revolução e aposta num marketing mais agressivo que o habitual, o que se justifica pelo facto de o Madeira ser ainda um tipo de vinho com pouca divulgação. A par do marketing – que implica também uma nova imagem dos vinhos –, houve um processo de aquisição de vinhas, de renovação de adegas, e uma maior aposta no turismo (só nas instalações do Funchal, a empresa recebe cerca de 150 mil pessoas por ano). No total, são mais de 7 milhões de euros de investimento.

O que não baixou foi a qualidade dos néctares, que se mantém muito alta. Já no que respeita ao estilo dos vinhos, sente-se uma ligeira alteração, privilegiando-se um estilo mais no e fresco, e em alguns casos mais seco. A responsabilidade enológica está a cargo do técnico Francisco Albuquerque.

Os três vinhos agora lançados são todos, à sua maneira, imperdíveis, diferentes entre si no estilo e na casta (o Vinho da Madeira é tipicamente um vinho mono-varietal), desde o seco Sercial (conhecida no Continente por Esgana Cão) ao mais doce Bual, passando pelo Verdelho no seu característico estilo meio-seco.

Culinary Extravaganza 2.0: estrelas na cozinha e luxo no prato

No primeiro fim-de-semana de Novembro voltámos ao Conrad Algarve para uma experiência gastronómica à medida do seu nome. Durante três dias, quinze chefs de renome internacional, oito deles com uma ou mais estrelas Michelin, levaram à mesa composições sem igual.   TEXTO Mariana Lopes FOTOS Vasco Célio A segunda edição do Culinary Extravaganza não ficou, […]

No primeiro fim-de-semana de Novembro voltámos ao Conrad Algarve para uma experiência gastronómica à medida do seu nome. Durante três dias, quinze chefs de renome internacional, oito deles com uma ou mais estrelas Michelin, levaram à mesa composições sem igual.

 

TEXTO Mariana Lopes FOTOS Vasco Célio

A segunda edição do Culinary Extravaganza não ficou, de maneira nenhuma, atrás da primeira. A Grandes Escolhas assistiu aos dois últimos dias desta jornada, no Conrad, em Almancil, uma referência hoteleira de luxo na região do Algarve. Quando da sua abertura, em 2012, o aclamado chef Heinz Beck assumiu a consultoria do Gusto, o restaurante do hotel da cadeia Hilton, e, juntamente com uma equipa muito bem formada, encetou a viagem que levou o espaço à sua primeira estrela (do Guia Michelin Espanha e Portugal 2018, anunciado no final de Novembro). Mas foi Daniele Pirillo, seu discípulo e seguidor por outras andanças, que recebeu a condecoração do Gusto, na qualidade de chef residente.

Beck, que conta já com sete restaurantes, tem ele próprio as suas três estrelas no La Pergola, em Roma. O seu espírito alegre e sempre incansável fez dele o maestro ideal para conduzir a orquestra de cozinheiros e chefs que trabalhou para servir tudo do bom e do melhor, a par dos som-meliers Miguel Martins (director de vinhos do Conrad) e António Coelho (convidado, responsável pela garrafeira do triplamente estrelado Lasarte, em Espanha). Os vinhos servidos durante todo o Extravaganza foram exclusivamente referências da Ideal Drinks, abrangendo as três regiões com que a empresa trabalha – Vinhos Verdes, Dão e Bairrada.

A turma de sonho contou, além dos já referidos, com Jacob Jan Boerma*** (De Leest, Grand Café Krasnapolsky, Holanda); Ricardo Costa** (The Yeatman Hotel, Porto, Portugal); Maurizio Serva** (La Trota, Itália); Juan Amador** (Amador’s Wirthaus, Austria); Sidney Schutte** (Librije’s Zusje Waldorf Astoria, Amesterdão); Chris Galvin* e Joo Won* (Hilton on Park Lane London, Reino Unido); Osvalde Silva (Conrad Algarve); Christoph Jefferson (Hilton London Heathrow T4, Reino Unido); Franco Luise (Hilton Prague, República Che- ca); Shota Goderzishvili (Hilton Kiev, Ucrânia); Joe Barza (Oak Grill Conrad Cairo, Egipto) e os chefs pasteleiros Roberto Horta (Conrad Algarve) e Idan Hada (Hilton Tel Aviv, Israel).

O primeiro momento, após a chegada ao festival, foi uma masterclass dada por Heinz Beck. O chef, inspirado num pequeno-almoço tradicional com leite, café e pão, criou uma sobremesa chamada Caffè Latte. Ao transformar natas em espuma cremosa, com um sifão algo problemático na mão (instrumento de cozinha para transformar cremes em espumosos), explicou a receita num inglês com sotaque italiano e pausado, para que todos compreendêssemos. No entanto, é seguro dizer que o fascínio foi tanto que poucos de nós fixaram passos suficientes para reproduzir o Caffè Latte. Ah, e o sifão. Também nos falta isso.

De seguida, uma conferência de imprensa com todos os chefs. Sobre o evento, o anfitrião Heinz Beck tocou no ponto essencial: “Gastronomia e entretenimento, uma mistura muito bonita!” E quando questionados sobre o facto de estarem a trabalhar lado a lado com a concorrência, Jacob-Jan Boerma respondeu, com sapiência e sensatez, que “o sabor não é uma competição”. “Somos todos amigos”, reforçou. E Joe Barza acrescentou: “A comida une as pessoas, traz uma mensagem de paz.” Tudo em Barza nos indicou que foi sincero, desde a sua já conhecida bonomia até ao tomate vermelho tatuado na mão direita, por amor à cozinha. E o tempo para a família? Com uma, duas ou três estrelas Michelin, será que existe? “Sou casado com a minha esposa, mas vivo com chefs…”, brincou Jacob-Jan Boerma.

À MESA

Mais tarde, nesse dia, o jantar “Michelin Dining Experience” no Gusto. Oh, Heinz. Já estava a suspirar e ainda íamos no amuse bouche, um salmão marinado com maionese de yuzu (citrino do Leste asiático), gel de marisco e alga desidratada, um dos melhores da noite. A seguir, Boerma trouxe-nos lagostim com black salsify (uma planta da família do girassol, cujas raízes são comestíveis e conhecidas pelo sabor a ostra quando cozinhadas), clementina, especiarias, Tandoori e vegetais da época. Juan Amador, por sua vez, presenteou-nos um carabineiro com salsa, lardo (camada de gordura por baixo da pele de determinadas partes do porco) e uma espuma dos famosos “escargots” de Vienna. De volta a Beck, uma maravilhosa composição de fois gras com castanhas e figos, um prato muito bonito, ainda mais no palato. Ainda do mesmo chef, tortellini de pato com puré de abóbora, fondue de queijo Grana Padano e trufa branca (daquelas de seis mil euros por quilo…). Jacob-Jan regressou com molejas de vitelo acompanhadas de limão e yuzu, cenoura texturizada e jus de erva-príncipe com combava (citrino do sudoeste asiático). Quase no final, Juan Amador ripostou com pombo Miéral (criador francês de aves de qualidade excelsa), com caril roxo, crumble de coco e gel de manga e gengibre. Para rematar, Heinz Beck fez a sobremesa, cannolo siciliano.

Miguel Martins é um óptimo som-melier, isso já sabíamos, e conta já com considerável experiência. O que não sabíamos era que, com uma selecção limitada à sua disposição, de vinhos de uma só empresa, o director de vinhos do Conrad conseguiria dar a volta tão bem dada à questão. Conhecer milhares de vinhos não é su ciente para ser sommelier, mas passar nestes testes difíceis de harmonização, sim.

IGUARIAS AO SOL
No último dia, o almoço foi na Roof Garden Suite, com os chefs do grupo Hilton. Esta é a melhor suite do hotel e, bem, tem espaço para muita gente almoçar, na sua grande varanda com uma vista bonita para lá de Almancil. Aqui, os próprios chefs cozinharam e serviram os seus pratos em bancadas montadas “on site”, debaixo de um sol que nos pôs a todos de bom humor.

De todas as iguarias à disposição, tenho de destacar o risotto de trufa branca sobre carpaccio de vaca, do chef Franco Luise; a açorda de carabineiros do chef Osvalde Silva, e a sobremesa a que Roberto Horta chamou Café e Pastel de Nata. Esta não era um café e um pastel de nata, mas sim um creme de nata com discos de massa folhada no topo, pau de canela e molho de café. Sublime, aparentemente óbvio, mas genial na sua essência. Julguem-me à vontade, mas depois de provar os dez pratos disponíveis ainda voltei ao risotto e à açorda. No que toca a sustento alimentar, sou de alta manutenção, e não há nada que possamos fazer contra isso.

O jantar de encerramento é sempre grandioso. Heinz Beck, sempre titular, começou com tártaro de lírio, “chips” com caviar lio lizado, maçã e pepino com molho de yuzu. Em segundo lugar, Chris Galvin, com escabeche de atum-amarelo, creme de beringela e ervas aromáticas. Com Heinz a voltar, literalmente, em grande, surge um prato com 18 ingredientes: uma autêntica sinfonia de sabores com abóbora, trufa branca, cogumelos e infusão dos mesmos com brócolos e avelã, e por aí fora… A fazer a sua grande chegada, Sidney Schutte ofereceu-nos lagosta azul (espécie muito rara) com língua e fígado de pato, líchias e gerânio-limão, que antecedeu o tortellini de Beck (o chef parece ter uma preferência especial por este tipo de pasta), desta vez de tom magenta escuro porque era de beterraba, com couve roxa, creme de queijo parmesão e Katsuobushi (uma conserva seca japonesa, da carne de atum-bonito). Joo Won apresentou-se mais tradicional, com um borrego com ravioli de queijo de cabra e “piperade” (em França, ou “piperrada”, no País Basco, uma fritada com pimentos de várias cores, tomate, cebola e alho). Antes das coisas doces, veio Sidney Schutte com pombo, iogurte de sésamo, sementes de abóbora, daikon (rabanete branco oriental) e um molho mexicano de nome Mole, que o próprio veio derramar nos pratos, já na mesa. Para – finalizar, de novo Heinz Beck, com Café Montblanc, uma sobremesa de creme de castanha e rum com semi-frio de caramelo salgado, biscoito e gelado de café, com “topping” de molho de dióspiro e trufa branca.

É tudo verdade. Eu vi, ninguém me contou.

Comida, vinho e amigos na pradaria

Fica mesmo junto à Sé de Lisboa e tem à frente um jovem talentoso de 27 anos. O Prado promete marcar a restauração em 2018.   TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga A ideia de António Galapito parece um sonho gourmand moderno. Fazer um restaurante com comida criativa, produtos portugueses de excelência, vinhos […]

Fica mesmo junto à Sé de Lisboa e tem à frente um jovem talentoso de 27 anos. O Prado promete marcar a restauração em 2018.

 

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga

A ideia de António Galapito parece um sonho gourmand moderno. Fazer um restaurante com comida criativa, produtos portugueses de excelência, vinhos naturais e amigos, muitos amigos. “Em vez de ires para o Lux vais para um restaurante. Em vez de ires para uma discoteca vais conviver para um restaurante com boa comida e ambiente festivo”, diz.

Sucede que esse sítio existe desde o mês passado. O Prado abriu na Sé, em Lisboa, e promete marcar a restauração da capital em 2018. António Galapito, à frente da cozinha, é ainda muito novo, mas tem sete anos de experiência ao mais alto nível, ao serviço do chef Nuno Mendes.

Começou com ele no restaurante Bacchus e depois partiu para a estreia do Viajante, em Londres. Esse restaurante haveria de fechar mas lançou Nuno Mendes na primeira divisão da cozinha mundial. Foi todavia no seu restaurante mais recente, a Taberna do Mercado, também em Londres, que António Galapito comandou pela primeira vez a cozinha, já depois de uma experiência breve no Lyle’s, com uma estrela Michelin.

O conceito do Taberna do Mercado era fazer “cozinha portuguesa pelos olhos de quem está de fora”, uma ideia que não será prolongada no Prado, diz Galapito. “No Prado, a minha preocupação é usar produtos portugueses sazonais, não fazer uma cozinha portuguesa.” Pode acontecer, mas não é esse o seu foco. O foco está nos bois de Barrosã que quer desmanchar inteiros ou nos legumes bio que o Hortelão do Oeste vai produzindo.

Como é que isso se reflecte na carta? Na primeira semana, a VINHO Grandes Escolhas almoçou lá e deliciou-se com o berbigão com espinafres, o suco do bivalve reduzido com manteiga. Antes, já houvera oportunidade de limpar o couvert, que incluirá sempre o magnífico pão da Gleba (feito de trigo barbela) e uma manteiga de cabra ou ovelha. Seguiu-se um tártaro de carne barrosã, com cogumelos shitake fermentados, dentro de uma folha de couve e a couve-coração, com soro e nozes tostadas. Tudo de grande nível, mas com uma existência precária. “Talvez o berbigão e o tártaro se mantenham mais umas semanas, mas queremos que a carta tenha uma grande rotação. Mesmo os preferidos dos clientes haverão de desaparecer”, diz António Galapito.

Os preços andam pelos 20 euros ao almoço, e mais uns 10 euros ao jantar. Aconselha-se que vá em grupo, para poder correr a carta toda e para fazer deste Prado uma festa.

Em busca da ostra perfeita

Viajámos de Norte a Sul de Portugal para saber onde se produzem as melhores ostras. E descobrimos porque é que os franceses as levam (quase) todas.   TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga MARGARIDA Simões aponta para uma língua de mar cheia de sedimentos, ladeada por muros de argila, que vem desembocar nos […]

Viajámos de Norte a Sul de Portugal para saber onde se produzem as melhores ostras. E descobrimos porque é que os franceses as levam (quase) todas.

 

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga

MARGARIDA Simões aponta para uma língua de mar cheia de sedimentos, ladeada por muros de argila, que vem desembocar nos tanques piscícolas. “Na maré vazia este canal fica seco e a exposição ao sol mata tudo o que é e.colis. É um processo depurador natural e é isso que faz com que as nossas ostras sejam únicas”.

A dona do Moinho dos Ilhéus fala com o entusiasmo de um encenador, gestos largos, pose de artista. E não esconde o orgulho no seu produto. O Moinho dos Ilhéus, no Livramento, entre Olhão e Tavira, é apontado por chefs e gastrónomos como tendo das melhores ostras da Ria Formosa e do país. “São diferentes de todas as outras. Disso não tenha dúvidas.”

Tradutora ligada à literatura científica, sexagenária, Margarida só entrou tarde no negócio. A propriedade pertencia à família, que a teve arrendada a uma multinacional norueguesa de aquicultura. Durante duas décadas os tanques serviram para produzir robalos e douradas em regime intensivo. “Fizeram-se aqui muitas maldades. Mas a Ria tem um poder regenerador fantástico”, prossegue. A reabilitação começou em 2013, altura em que se iniciou a sementeira das ostras. Semear é mesmo a palavra. Margarida estudou tudo do zero e aconselhou-se com John Bayse, um especialista inglês, dono de uma maternidade de ostras, que lhe vendeu as melhores sementes de ostra japonesa (crassostrea gigas), a espécie mais popular em todo o mundo, no caso triplóide, ou seja, que não se reproduz.

Em 2014, o guru mundial do comércio de ostras, Thierry Gillardeau, agora aos comandos da empresa familiar fundada em 1898, esteve no Moinho e quis levar logo toda a produção. As ostras de Margarida atingiam o calibre ideal ao m de um ano (em França demoram três), com um peso por unidade entre as 60 e as 100 gramas. Eram lisas e roliças e tinham uma salinidade extraordinária, compensadas com um final adocicado. “É o terroir. O meu terroir é único”, justifica Margarida, apontando para um bando de corvos marinhos.

Este parecia o cenário ideal para Margarida, e na verdade é aquilo que todos os produtores querem. De Aveiro a Tavira, toda a gente procura um comprador que lhe leve toda a produção. Na altura, a Gillardeau, com sede perto de La Rochelle, na costa ocidental francesa, fez com as ostras do Moinho o que faz com muitas outras da Ria Formosa: pagou bem e pagou rápido, agarrou nelas, pôs-lhe o carimbo “Spéciale Gillardeau” e exportou-as para todo o mundo, de Moscovo ao Dubai.

Hoje, o Moinho está focado sobretudo no mercado nacional, mas a maioria dos produtores nacionais continuam a olhar para o estrangeiro. Em Aveiro, por exemplo, mais de 90 por cento da produção vai para fora, sobretudo para França e para a Holanda. A ostra aveirense é da mesma família da do Algarve. O que as distingue é a qualidade das sementes, as características do ambiente aquático (as ostras filtram cerca de 30 litros de água por hora) e o método de produção.

A segundos da mesa
Sandro Sousa, um dos produtores mais experientes de Aveiro, tem a sua propriedade já perto da cidade. Na Ostraveiro, usam-se dois métodos. Para além da técnica mais comum das sacas, parte das ostras está submersa dentro de cilindros. A diferença com as ostras de saco de Sandro é evidente na forma das conchas, polidas pelo movimento de rotação dentro dos cilindros e, por isso, mais atraentes. Há também quem ache, como Sandro, que isso favorece a sua alimentação, tornando-as mais carnudas.

A carne é, aliás, o que toda a gente procura. Uma ostra magra vale pouco. O que se quer é um músculo adutor grande, a encher a concha. Todos os órgãos, e são muitos, devem aparecer bem definidos, com o rebordo preto bem delineado em volta da membrana exterior. O que por vezes parece uma pastilha gelatinosa é, afinal, um bicho com estômago, guelras, ventrículo, intestinos, fígado. Na Ostraveiro, a viagem da ostra da água para a mesa pode demorar segundos. Mesmo junto aos tanques, num ilhéu rodeado de água, está o restaurante (tem de reservar e tem de ir de barco) onde Sandro faz degustações. Apesar de ter uma depuradora, às vezes a tentação de as levar logo à boca é mais forte. “Faço análises regularmente e sei o que estou a comer”, garante. Para além de ostras, serve-se também berbigão dentro de um pão rústico, com molho à Bulhão Pato.

O turismo ligado aos bivalves da Ria pode ser uma solução para um negócio que está longe de ser seguro, devido quer à mão-de-obra que implica, quer ao facto de muitos portugueses ainda desconfiarem de um bicho que se come vivo.

Mesmo os mais insuspeitos temem comê-lo. Margarida Simões, por exemplo, admite. “Antigamente, não as comia. Fui obrigada. A engenheira da Gillardeau que cá veio, logo no início, passou-me um atestado de incompetência e então eu experimentei-as. Mas só gosto das minhas, que não são gelatinosas. E só como das pequeninas. E mastigo. A ostra tem de ser mastigada para ser saboreada. Fico furiosa quando vejo alguém a deglutir as minhas ostras.”

As ostras maiores do Moinho podem chegar às 400 gramas. A intensidade é maior quanto maior a dimensão, trazendo notas mais amargas. Há no entanto mercado para elas, sobretudo entre os chefs. O Moinho vende as pequenas para restaurantes Michelin, do Ocean ao Vista, mas há quem aproveite as grandes — e bem. “A Noélia [do restaurante Noélia & Jerónimo, em Cabanas de Tavira], que é a nossa madrinha, faz com elas um arroz com espumante maravilhoso”, garante Margarida.

A ostra-portuguesa
Outros chefs, contudo, preferem as ostras do Sado. São os casos de André Magalhães, do restaurante Taberna das Flores (Lisboa), e de Tiago Emanuel Santos, do Anna’s (Aveiro), ambos conhecidos pela importância que dão ao produto. Na sua opinião, as ostras de Setúbal, ainda que menos salgadas, são firmes e têm um músculo grande. Tiago enaltece o seu sabor iodado, André a sua complexidade. Os dois preferem as da Neptunpearl, empresa estabelecida na Gâmbia, zona do Estuário do Sado que não está contaminada.

Também aqui é uma mulher quem está à frente do projecto. Célia Rodrigues é uma apaixonada pelo mar e uma defensora fervorosa de uma espécie autóctone: a crassostrea angulata, popularizada em todo o mundo como ostra-portuguesa e, hoje, ameaçada pela introdução da ostra japonesa diplóide.

Célia também tem da japonesa e da plana, mas não entra em competições. O segredo — diz — está na técnica. A NeptunPearl tem sacos mas é das poucas empresas a produzir em regime de fine de claire, uma técnica francesa em que as ostras são trabalhadas fora dos sacos, uma a uma. “É isso que faz com que todas tenham um índice de carne superior a 15 por cento, relativamente ao peso total, tornando-as especiais”, garante.

Daqui decorre que, seja em Aveiro, seja na Ria Formosa, seja em Setúbal, cada produtor tem ostras especiais. O problema, muitas vezes, é conseguir comprá-las antes de um importador deitar-lhes a mão e levá-las além-fronteiras.

Margarida está agora a provar umas de tamanho 3, com umas 80 gramas, numa casa de apoio à exploração. Foram apanhadas de manhã. Olha para ela e vira-a. “A ostra é fantástica. Parece um pedregulho, mas é um ser extraordinário, até limpa a casa. Olhe para esta, tão bonita.”

A história acaba como deve acabar uma história de ostras. Sem concha, o bivalve está agora na mão de Margarida, que o mete na boca. Mastiga ligeiramente, passa a ostra de uma bochecha para a outra, fecha os olhos. “Hummmmm.”

O Porto que (não) queremos

O Porto é, entre todos os vinhos de Portugal, o mais apreciado e prestigiado internacionalmente. No entanto, os portugueses continuam a olhar para o Vinho do Porto de forma algo ambivalente, reconhecendo a sua categoria, mas fugindo do seu consumo. Algo como: “É muito bom, mas não o bebo”.   HÁ POUCO mais de um […]

O Porto é, entre todos os vinhos de Portugal, o mais apreciado e prestigiado internacionalmente. No entanto, os portugueses continuam a olhar para o Vinho do Porto de forma algo ambivalente, reconhecendo a sua categoria, mas fugindo do seu consumo. Algo como: “É muito bom, mas não o bebo”.

 

HÁ POUCO mais de um mês estive num jantar organizado pela Sogrape, para a apresentação dos seus Vintages de 2015. A refeição foi exclusivamente acompanhada por Vinho do Porto, uma opção arriscada mas que, graças ao elevado nível dos vinhos e ao cuidado do chef Marco Gomes na sua harmonização, resultou plenamente. O enólogo Luís Sottomayor justificou a opção pouco comum como uma forma de chamar a atenção para o Vinho do Porto, injustamente relegado para segundo plano pelos consumidores nacionais. Se olharmos para os números, a preocupação com o baixo consumo de Vinho do Porto entre os portugueses pode parecer descabida. As estatísticas até são positivas, revelando o Porto em crescimento no mercado nacional. Não esqueçamos, porém, que os números também nos dizem que Portugal é, desde 2015, o país do mundo com maior consumo de vinho per capita. Como é que toda a gente desatou a beber vinho desenfreadamente e ninguém deu por isso? A resposta está no turismo. O salto no consumo coincide com o boom do turismo e Portugal recebe hoje, anualmente, o equivalente ao dobro da sua população em turistas. Que, felizmente, também bebem (muito) e apreciam (muito) os vinhos portugueses.

Não é possível tirar os turistas das estatísticas de consumo e, assim, para avaliar o comportamento dos portugueses perante o Vinho do Porto, só nos podemos guiar por aquilo que nos transmitem as pessoas, começando por quem vende (restaurantes e lojistas) e terminando no mais importante, quem bebe. E aquilo que as pessoas nos dizem não é animador. Regra geral, o consumidor português, mesmo o mais esclarecido e exigente, tem uma relação distante com o Vinho do Porto.

Não é preciso um momento especial para abrir uma garrafa de Porto

Eu vejo isso no meu próprio círculo de relações. Há 10 anos era constantemente solicitado para dar dicas sobre os melhores Vintage para comprar. Nos últimos tempos, as solicitações já não passam pelo Porto. E porquê? Porque cada vez bebem menos Porto e os vinhos em stock nas garrafeiras domésticas são mais do que su cientes para o baixo ritmo de consumo. Estarei a exagerar? Aqueles que fazem o favor de me ler que respondam: em média, quantas garrafas de Porto abrem por mês? Duas? Uma? Menos do que isso?

E aqui, coloco a questão: o que fazer para mudar estes padrões de consumo? Não tenho respostas concretas, mas acredito que a solução passará por dois níveis de intervenção. As organizações do sector (IVDP, associações de produtores e exportadores, empresas) deverão simplificar e comunicar muito mais e melhor um vinho que é bastante complexo em termos de categorias, tipos, designações, difícil de explicar e de entender. Mas a verdadeira mudança deverá começar no comportamento de cada um de nós, enquanto consumidores exigentes e líderes de opinião (pelo menos na nossa roda de amigos). O Porto de qualidade está cada vez melhor e mais acessível, como mostram os excelentes LBV que provámos nesta edição da Grandes Escolhas. Não há que inventar desculpas para não abrir uma garrafa de Porto. E não são precisos pretextos ou momentos especiais para o fazer. Vamos a isso?

Do silêncio e do tempo e da falta de ambos

Há lugares que nos adoptam sem condições e que numa certa altura da vida parecem moldar-se de tal forma a nós que nos dão a impressão de existirem para nosso exclusivo usufruto. O mundo mágico dos cafés e do prazer de estar.   PASTELARIA Mimo, na Avenida Duque de Ávila, ao pé do Instituto Superior […]

Há lugares que nos adoptam sem condições e que numa certa altura da vida parecem moldar-se de tal forma a nós que nos dão a impressão de existirem para nosso exclusivo usufruto. O mundo mágico dos cafés e do prazer de estar.

 

PASTELARIA Mimo, na Avenida Duque de Ávila, ao pé do Instituto Superior Técnico, onde passei grande parte do meu tempo no segundo ano a estudar, quando não estava no Núcleo de Arte Fotográfica quando não estava a fazer trabalhos de revelação para fora. Apanhei uma vez dois alunos a conversar um com o outro sobre teoria da relatividade por mais de uma hora, até perceber que nenhum dos dois sabia do que falava, eram apenas dois tolos na mesma jangada, a usar a asneira como força motriz.

O livro a que me entregava naquele instante era de física, as “Aulas de Física de Feynman”, um trabalho colossal de divulgação e generosidade por parte do Nobel americano da Física que inventou a cromodinâmica quântica. Tinha conhecido o professor Mariano Gago, naquela altura tinha criado uma turma especial de física de partículas e, apesar de o meu assunto favorito ser acústica, vim a mudar para engenharia física no terceiro ano, logo que o curso foi criado. Foi um conselho sábio, o de viver intensamente a academia, e que segui à risca. De cada cadeira que começava, lia o livro como se fosse um romance, de fio a pavio, só depois o utilizava como manual. E aproximei-me sempre dos melhores, para os ouvir de viva voz e frequentava as aulas deles como se estivesse num retiro espiritual. Dava-me muito trabalho e tirava-me muito tempo, mas nunca consegui fazer doutra forma.

Nos três anos de física tecnológica o Técnico transformou-se para mim num prazer indizível de encontro diário e convívio científico vivo. Os cafés eram a grande plataforma de sustentação da aventura que era um novo assunto, uma nova cadeira, um novo trabalho. Não sei como a pastelaria Capri, na Avenida de Roma, me deixou usar tantas horas seguidas uma mesa, não tenho forma de agradecer a simpatia com que os funcionários da biblioteca da Gulbenkian sempre me ajudavam a encontrar um lugar onde o ar condicionado não fosse demasiado forte para a brutal sinusite de que então sofria. Assim como não consegui nunca perceber por que nunca consegui sequer ler uma página de um livro na biblioteca do Técnico nem por que nunca entrei na Biblioteca Nacional.

Mas é tudo o mesmo e um só fenómeno, o silêncio. Não o de emudecer tudo e todos, mas o de estar em sintonia com o meio e o meio comigo. Em tudo o que faço no vinho e na comida tenho chegado à conclusão de que continuo a aplicar o método. As conversas de café são tanto ou mais importantes do que então eram. Os empregados que neles o ciam é que já não são daqueles que gostavam de nos ver ali todos os dias. Entrar com um livro para ler pode hoje ser decepcionante e não tenho como explicar que preciso absolutamente de o fazer, como preparação para um trabalho ou nova área que esteja a abordar.

Faz-me falta o caos e frenesim dos cafés onde se entra e sai sem ser notado, há um silêncio interior que de certa forma me embala. E sempre um ou dois acontecimentos inesperados desencadeiam novas descobertas, assim como sempre um ou dois encontros inesperados ajudam a criar o desejado caos e que acaba por ter o inefável efeito de ajudar à concentração. O conhecimento não vive mais em torres de marfim, e encerrados em quatro paredes dificilmente crescemos, quando esse é o maior, se não único, imperativo de consciência. As listas, as pontuações, os guias, as provas, as visitas, todas terão sido em vão se não tiverem tido na base o sentido do novo e da descoberta.

Partilhar a mesa com personalidades do mundo do vinho e gastronomia deu-me ao longo dos anos as maiores alegrias. Não tenho ainda a idade su ciente para ter direito a escrever sobre elas, chegará o tempo em breve e logo poderei reviver esses momentos memoráveis. Ainda estou imerso no exercício da actividade e sei que não chegarei onde queria chegar, implicaria sair muitas vezes, ir longe e voltar de terras distantes, experimentar os sabores, tocar nas texturas e sentar-me a mesas de muitas lógicas diferentes para que eventualmente me desse por satisfeito.

A lucidez e as mesas de café ajudam-me a perceber o muito que está ainda por fazer. Tenho os meus episódios felizes com os mais sábios dentre os sábios, mas não é coisa que se coleccione nem acumule, é importante a transformação que se dá em nós. Numa visita recente a uma escola de hotelaria, surgiu a pergunta inevitável sobre o que é preciso estudar para ser crítico de vinhos e comida. Acontece a todos com certeza não ter palavras por vezes para responder cabalmente ao que se pergunta, mas a verdade é que não tenho a resposta. A experiência da academia não está mais confinada hoje a um espaço físico apenas e a informação ui por toda a parte, cobrindo temas e mil assuntos derivados. Disse àquele aluno o que passarei sempre a dizer. Uma crítica é uma peça literária, ela própria sujeita ao crivo da crítica. O domínio da língua é, não tenho dúvida, o grande activo de quem escreve, pensa e fala. Logo a seguir, procurar provar e experimentar tudo o que a proximidade nos permite e estudar os assuntos que a nossa curiosidade nos mostra. O café ainda existe e tem muitas mesas. É preciso prosseguir e permanecer. Que o método é infalível.

Casa Santa Vitória: topos de gama em cima da mesa

De uma assentada, a Casa Santa Vitória lança os seus topos de gama branco e tinto. São vinhos sólidos, de um projecto que já cimentou a sua imagem no âmbito do grupo Vila Galé.   TEXTO Luís Francisco NOTAS DE PROVA João Paulo Martins FOTOS Cortesia do produtor A Casa Santa Vitória foi criada no […]

De uma assentada, a Casa Santa Vitória lança os seus topos de gama branco e tinto. São vinhos sólidos, de um projecto que já cimentou a sua imagem no âmbito do grupo Vila Galé.

 

TEXTO Luís Francisco NOTAS DE PROVA João Paulo Martins FOTOS Cortesia do produtor

A Casa Santa Vitória foi criada no início deste século e tem como actividade a produção e comercialização de vinhos e azeites do Alentejo. Em pouco mais de década e meia, afirmou-se pela qualidade dos seus produtos, pelo sucesso empresarial (2,7 milhões de euros de facturação em 2016) e pela capacidade para afirmar uma personalidade própria, apesar de estar englobada no hoteleiro Grupo Vila Galé. Com 127 hectares de vinha, a empresa divide o seu portefólio por três gamas: Versátil, Santa Vitória e Inevitável.

Por enquanto, apenas existe Inevitável tinto – e este topo de gama só sai em anos considerados excepcionais. O branco mais ambicioso da casa é, assim, o Santa Vitória Grande Reserva, também apresentado em Dezembro, num almoço no Hotel dos Arcos, em Paço d’Arcos. Temos, assim, sobre a mesa o melhor que a Casa Santa Vitória produz (incluindo azeites, mas isso é outro tema…).

O Santa Vitória Grande Reserva branco 2016 é um varietal de Arinto, quebrando a tradição do lote com Chardonnay. “Achámos que o Chardonnay este ano não estava à altura”, assume Patrícia Peixoto, a enóloga residente, que trabalha com consultoria de Bernardo Cabral. É um vinho que passou entre seis e sete meses em barrica nova, com ‘battonage’, e foram feitas apenas 1.200 garrafas. Já o Inevitável tem nesta edição 2015 uma “tiragem” maior: 10.000 garrafas. Tradicionalmente feito com as duas melhores castas do ano (das 10 tintas plantadas na herdade, a sul de Beja), desta vez tem Touriga Nacional e Syrah e estagiou maioritariamente em barrica nova – “No 2016 já haverá uma parte de barrica com dois anos”, promete Patrícia Peixoto. Das cerca de 300 barricas guardadas, foram escolhidas as melhores, umas 20, para engarrafar.

AdegaMãe, em boa forma

O projecto deu os seus primeiros frutos em 2010, numa altura em que o mercado já dava sinais claros de saturação. Mas cedo mostrou querer singrar, fruto de uma boa estrutura financeira e de uma cuidada estrutura agrícola-enológica. Hoje, oito anos depois, a Adega Mãe já dá lucros e continua a lançar belíssimos vinhos.   […]

O projecto deu os seus primeiros frutos em 2010, numa altura em que o mercado já dava sinais claros de saturação. Mas cedo mostrou querer singrar, fruto de uma boa estrutura financeira e de uma cuidada estrutura agrícola-enológica. Hoje, oito anos depois, a Adega Mãe já dá lucros e continua a lançar belíssimos vinhos.

 

TEXTO António Falcão NOTAS DE PROVA Valeria Zeferino e Dirceu Vianna FOTOS Cortesia Adega Mãe

FOI com indisfarçável orgulho que Bernardo Alves, o CEO da Adega Mãe, se dirigiu a uma plateia de jornalistas da especialidade, reunida na caprichada sala de provas da adega, localizada a uma boa meia dúzia de quilómetros a sul de Torres Vedras. E tem razões para isso: a empresa, com oito vindimas de existência, registou “um percurso sempre ascendente, a nível nacional e internacional, e está a atingir a maturidade”. Em 2017, a empresa superou o milhão de garrafas e superou os 2,5 milhões de euros de facturação. Melhor ainda, as finanças não só entraram em equilíbrio como já se ganha dinheiro. Isto apesar dos vultuosos investimentos efectuados, incluindo a bonita e espaçosa adega, uma das mais visitadas do país. Uma parte dos visitantes vem da restauração lisboeta e não é por acaso. A equipa comercial da Adega Mãe tem apostado no segmento da restauração da capital, convidando proprietários e equipas de sala e cozinha para visitas à adega. O intuito é sensibilizá-los para o vinho de Lisboa e, depois, passar esse sentimento aos turistas que passam pela capital. A estratégia parece ter resultado, porque o crescimento de vendas na capital foi de 30% em 2017 (cerca de 200 mil garrafas). O turismo deve ter ajudado muito ao crescimento, como nos disse Bernardo Alves: “o turista não tem preconceitos quanto às regiões e, por outro lado, gosta de provar monocastas”. A Adega Mãe tem onze, seis brancos e cinco tintos. Os brancos têm recebido uma atenção especial, até porque, diz o gestor da Adega Mãe, “a região é de excelência para este tipo de vinho”. Ainda assim, a produção actual contempla apenas 35% de brancos, contra 65% de tintos.

O maior mercado, contudo, é a exportação. Cerca de 60% das garrafas vão para o mercado externo e o Brasil é o maior cliente, recebendo tantas garrafas como Portugal inteiro. Ásia e Estados Unidos estão logo a seguir. Bernardo é um fiel apaixonado da região onde opera e vive, e acredita que o sucesso da empresa não é apenas bom para a Adega Mãe: a região de Lisboa também usufrui.

A estratégia para o futuro mais próximo é a de conseguir fazer subir o preço médio de venda, tarefa que vai ser alicerçada na constante melhoria da qualidade dos vinhos.

A opinião dos técnicos
Terminada a parte do negócio em si, foi a vez do enólogo consultor, Anselmo Mendes, falar do projecto e dos vinhos. Presente desde o início, Anselmo começou por estudar o planeamento da adega, tarefa que durou dois anos: “Foi a adega mais bem pensada onde estive”.

A enologia veio a seguir, em parceria com Diogo Lopes, enólogo residente. Esta dupla, e o resto da equipa, ainda não pararam de fazer experiências. Havia pouco ou nenhum histórico na região e por isso a equipa optou por plantar uma multiplicidade de castas. Alvarinho, Arinto e Viosinho, por exemplo, já deram provas da sua excelente adaptação ao terroir da quinta, com clima relativamente fresco e com marcada influência atlântica. Nas tintas destacou-se a Touriga Nacional e, de certa maneira, o Pinot Noir. Mas existem ainda opções em aberto, até porque Anselmo considera que “os taninos aqui são completamente diferentes [leia-se, aguerridos] e por vezes temos que os corrigir na adega”.

A experimentação não ficou só pela vinha. O branco Terroir 2014, por exemplo, estagia 12 meses em barrica de 400 litros. Mas escolher a barrica certa – o tipo de carvalho e inclusive a floresta de onde veio – levou sete anos a afinar! Enologicamente, este vinho (e outros brancos) estão a sofrer experiências de vinificação, especialmente sobre a relação entre borras finas e o oxigénio: “há ainda muito para descobrir”, salienta o técnico.

Muitas experiências e histórias correram por estas paredes e vinhas, a grande maioria de cariz feliz. O futuro deverá continuar assim e apostamos que a casa dos Alves vai continuar a brindar os enófilos com vinhos cada vez melhores.