Bacalhôa: Um universo de arte e vinho

E paixão, acrescente-se. A Bacalhôa Vinhos de Portugal é a maior empresa de enoturismo em Portugal. Cinco destinos em quatro pólos diferentes, mas sempre com uma filosofia comum – fazer a ponte entre os vinhos e a arte. Modernidade e património histórico, num universo que nos leva pelo mundo ao sabor dos néctares de Portugal. […]

E paixão, acrescente-se. A Bacalhôa Vinhos de Portugal é a maior empresa de enoturismo em Portugal. Cinco destinos em quatro pólos diferentes, mas sempre com uma filosofia comum – fazer a ponte entre os vinhos e a arte. Modernidade e património histórico, num universo que nos leva pelo mundo ao sabor dos néctares de Portugal. E tudo isto a preços muito simpáticos. Imperdível.

 

TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga

QUANDO foi publicamente divulgado, no ano passado, que as caves do Vinho do Porto, em Vila Nova de Gaia, tinham recebido mais de um milhão de visitantes em 2015, até os mais distraídos nestas coisas do enoturismo começaram a per­ceber a dimensão que o fenómeno já tem em Portugal. A verdadeira explosão de popularidade do país, em geral, e das cidades de Lisboa e Porto, em particular, nos roteiros turísticos, aliada à crescente notoriedade dos vinhos por­tugueses, alimenta esta indústria e abre perspectivas para um futuro ainda mais ambicioso. Mas se calhar há muito boa gente que não sabe o nome da empresa que mais aposta – e factura – neste terreno. Chama-se Bacalhôa Vi­nhos de Portugal e só à sua conta registou perto de meio milhão de visitantes em 2016.

O crescimento de 27 por cento no número de enoturis­tas de 2015 para 2016 é um número impressionante. Mas está longe de ser o único desta empresa que está presen­te em sete regiões vitícolas portuguesas, com 40 quintas, 1200 hectares de vinha própria, 40 castas diferentes, qua­tro centros vínicos e outros tantos núcleos de enoturismo (ou cinco, mas lá iremos), largas dezenas de referências no mercado e muitos milhões de garrafas produzidas anualmente. Mas os números são só a face mais visível do mundo Bacalhôa. Porque o lema da empresa – “Arte, Vi­nho, Paixão” – resume muito do que é o enoturismo hoje: um cruzamento de experiências e propostas que colocam o sector no cerne da sedução portuguesa.

A Bacalhôa é um gigante do enoturismo (ou do turismo, pura e simplesmente) nacional, mas continua a crescer e a enriquecer a sua oferta. A apresentação recente da nova “face” do Palácio da Bacalhôa, em Azeitão; a constante renovação das colecções artísticas e das propostas vínicas da empresa; a aposta que está a ser preparada nas insta­lações da Quinta do Carmo, em Estremoz. Tudo sinais de que ainda vamos ouvir falar muito desta empresa no que ao enoturismo diz respeito.

A “fúria” coleccionista de Joe Berardo, o homem forte da Bacalhôa, a sua constante preocupação com o detalhe e a vontade de fazer sempre mais e diferente permitem à empresa apresentar propostas interessantes e inovado­ras. Um museu instalado numas caves de espumante em plena laboração. Um jardim oriental com uma loja de quali­dade. Um palácio monumento nacional com vinhas dentro de portas. Sobreiros e instalações artísticas em mármore no coração do Alentejo. Uma sede de empresa em que os escritórios e as estufas de Moscatel dividem o espaço com exposições de arte. Adegas, salas de provas, espaços para eventos e vinhas belíssimas em diversos pontos do país. A Bacalhôa tem muito – e bom – para oferecer. Embarque­mos então numa viagem por este universo enoturístico.

Aliança Underground Museu
O pólo mais a norte deste roteiro é um espaço verdadei­ramente surpreendente. Para começar, porque está estru­turado como se de uma rede de Metro se tratasse, com túneis e “estações”; depois porque concilia num espaço mágico e sedutor a arte e a geologia, o vinho e a etnogra­fia, a azulejaria e a paleontologia; e, finalmente, porque consegue oferecer uma experiência intimista num local onde se trabalha. Por vezes à luz de castiçais recuperados de um hotel de luxo desactivado na Linha do Estoril, é certo, mas sempre um local de trabalho.

Quem olha de fora para o edifício das Caves Aliança, em Sangalhos, não imagina o que o espera no subsolo. Ac­tualmente, há nove colecções distintas que nos transpor­tam ao longo da história do planeta. Dos vetustos fósseis de trilobites, os artrópodes marinhos que dominavam a vida na Terra há mais de 500 milhões de anos, às escul­turas contemporâneas do Zimbabwe. Das pedras semi­-preciosas e outras amostras minerais de beleza cativante aos azulejos, aqui representados por obras cujo horizonte temporal se estende por cinco séculos. Da sedutora arte africana aos vestígios arqueológicos. Obras em estanho. Cerâmica das Caldas.

Mas também vinho. E aguardentes – estas repousam no lo­cal mais fundo das caves, uma enorme nave onde se empi­lham centenas de barricas, num cenário de Indiana Jones. Os vinhos, esses espreitam por todo o lado. Em pilhas nos corredores (como no chamado túnel do espumante), nas pipas que ocupam uma boa parte do espaço da Estação Central, na sala de provas e na loja, à saída. E tudo isto pontuado por recantos intimistas (salas pequenas onde se podem organizar reuniões ou jantares), cenários inespera­dos (como o Pink Room, onde já se celebraram casamentos sob a luz filtrada por cristais cor-de-rosa), grandes espaços (com capacidade para sentar algumas dezenas de pessoas, várias dezenas ou até centenas) e, sempre, muitos porme­nores de decoração verdadeiramente surpreendentes.

Pela (necessariamente sumária) descrição facilmente sepercebe que a visita ao Aliança Underground Museu, apresentado como o único museu subterrâneo português, não deixa ninguém indiferente. Uma equipa de acolhi­mento motivada e conhecedora enquadra a experiência e ja se tornou piada da casa apostar quantas pessoas se mostrarão surpreendidas no final quando lhes comunicam a distância percorrida ao longo das galerias…

À saída aparece sempre um espumante a jeito para brin­dar (há provas mais alargadas no menu) e, com a loja mes­mo ao lado e alguns preços bem apetecíveis, é quase im­possível não levar para casa um bocadinho deste mundo de Alice no País das Maravilhas.

Bacalhôa Buddha Eden
Se os 70.000 visitantes anuais do Aliança Underground Museu são muito respeitáveis, o que dizer dos 300.000 que em 2016 rumaram ao Bacalhôa Buddha Eden, o maior jardim oriental da Europa? Instalado na Quinta dos Loridos, no Bombarral, foi criado em protesto contra a destruição dos Budas Gigantes de Bamyan, no Afega­nistão, arrasados pelo fanatismo religioso dos taliban. Começou a receber visitantes em 2005, foi crescendo e variando a sua paisagem e hoje é um complexo de mais de 35 hectares onde se conjugam paisagem e criações humanas numa atmosfera única.

A maciça cabeça da estátua do Buda gigante que encima uma das arborizadas colunas do complexo é visível desde longe e dá o mote para o que podemos esperar assim que franqueamos as portas de entrada. Dá o mote, mas não nos prepara para a espantosa variedade de per­pectivas e pormenores que nos enchem de imediato o horizonte visual. Mais de seis mil toneladas de mármore e granito foram utilizadas para dar corpo a uma multidão de esculturas espalhadas por entre a vegetação e à volta do lago central, onde pontuam um pagode e, por estes dias de Primavera, uma família alargada de gansos.

Mas há mais, muito mais. Uma falange de 600 soldados de terracota pintados à mão, emulando o exército des­coberto na província de Shaanxi, junto ao túmulo de Qin Shi Huang, o primeiro imperador da China. Esculturas em pedra do povo Shona, do Zimbabwe, retratam pessoas e animais numa moldura composta por um milhar de pal­meiras. Mais acima, um bosque de bambu pontuado por peças de arte moderna pertencentes à colecção Berardo (e que são regularmente substituídas, proporcionando sempre um olhar diferente a quem regressa ao local). Bu­das dourados em repouso junto à escadaria em mármore, peça central do complexo.

Enquanto as carpas asiáticas se bamboleiam pelas águas do lago, há toda uma vida que decorre nas colinas em redor – e ainda com mais intensidade numa zona de bos­que propositadamente deixada em estado quase natural. Os planos de água dão o toque de frescura tão necessá­rio nos meses de maior calor, as árvores formam sombras acolhedoras, o murmúrio das cascatas serve de fundo às vocalizações da passarada. De vez em quando, lá passa o pequeno comboio das visitas, o único veículo que circula no jardim.

Paz e tranquilidade. Mesmo com centenas de visitantes todos os dias, há sempre aqui um cantinho para cada um. Para meditar ou namorar, ler ou dormitar, respirar fundo e recarregar baterias. E se a passagem pelos painéis junto à vinha (onde se conta a história do vinho) lhe abriu o ape­tite, uma passagem pela moderna e muito bem organiza­da loja do grupo Bacalhôa permite resolver o problema. Opções não faltam.

A Quinta dos Loridos é, também, um sítio excelente para eventos. Há espaços que albergam desde 80 a 250 pes­soas e um extraordinário terreiro interior com relvado que permite organizar quase tudo, seja um arraial típico ou um espectáculo musical. Para carteiras mais fornecidas existe ainda a possibilidade de alugar o solar para passar uns dias entre os vinhos e a Natureza, com vista para o Oriente. Se não dispuser no momento de uns milhares de euros, fica o conselho: abra uma garrafa de vinho e sente­-se à sombra. A vida não tem de ser cara para valer a pena.

Quinta do Carmo
O Buddha Eden foi a primeira infra-estrutura turística do grupo Bacalhôa a abrir portas de forma estruturada e com entradas pagas. Encerrada a ronda a norte de Lisboa, ini­ciamos a voltinha sul com uma visita ao membro mais novo do grupo. Nos arredores de Estremoz, as vinhas à beira da estrada conduzem-nos o olhar para a esbelta silhueta branca da Quinta do Carmo, onde se situa o centro de vinificação do grupo para os vinhos alentejanos (3,5 milhões de garrafas por ano) e onde, em breve, uma bela surpresa aguardará os visitantes.

Aqui o enoturismo ainda é residual. Mas os enormes blo­cos de mármore (a pedra símbolo da região) que se em­pilham entre os sobreiros (outro ícone destas paragens) em breve poderão contar outra história. Estas torres desi­guais em pedra serão pintadas e decoradas (uma ou outra já exibe cores vibrantes) e funcionarão como elemento­-surpresa de um destino turístico bem mais “institucional” do que é regra no grupo Bacalhôa. Onde se lê “institu­cional”, não se leia, por favor, “desinteressante”. Longe disso. A Quinta do Carmo é um edifício senhorial muito bonito, com uma vista extraordinária para a serra d’Ossa (653 metros de altitude) e um enquadramento cuidado de jardins e espaços verdes. Mas é também uma enorme proriedade agrícola de quase mil hectares, 350 dos quais ocupados com montado e 150 com vinha.

A magia do silêncio (especialmente notável na ruína que se mira no espelho de água da represa e onde, comenta­-se à boca pequena, ficaria mesmo bem um restaurante…) está por todo o lado, neste Alentejo imenso e harmonio­so. Ao fundo da propriedade, a ribeira de Tera marca a di­visão entre as bacias hidrográficas do Tejo e do Guadiana. Sobreiros gigantescos esticam os braços em direcção ao céu, enquadrando lençóis de vinha – e já se faz vinho por estas paragens desde, pelo menos, os finais do século XIX.

A casa principal da quinta tem tudo para funcionar como complexo residencial – espaço, autenticidade, mobiliário e arquitectura, uma vista extraordinária – e existem planos para instalar aqui um conjunto de suítes. Mas a prioridade é mesmo terminar a decoração das instalações em pedra que prometem dar à Quinta do Carmo uma identidade única. Criada essa imagem de marca, e apostando no tra­balho nas redes sociais (área em que se sente particular­mente confortável), o grupo Bacalhôa apostará então na divulgação de um destino enoturístico que fica mesmo na rota dos espanhóis que apontam a Lisboa por estrada.

Ao ritmo das palavras e dos projectos, eis-nos já no in­terior da adega, onde se trabalha com meios modernos em grandes volumes, mas também se encontram quatro talhas reservadas a um exercício de microvinificação. Por­que, lá está, o vinho é uma arte e uma paixão.

Palácio e Sede da Bacalhôa
De Estremoz a Azeitão, a estrada é boa e a ligação faz-se bem a tempo de começar a pensar no almoço… que está prometido para o Palácio da Bacalhôa. Mas antes ainda há tempo para uma visita à sede do grupo, também ali às portas de Azeitão, na Quinta da Bassaqueira, onde 300 hectares de vinha (quase metade de Moscatel, uma das castas-bandeira da Península de Setúbal) rodeiam o edi­fício hexagonal que alberga os escritórios e a plataforma logística de expedição, mas também – e como não po­dia deixar de ser – exposições de arte e surpresas a cada passo.

Comecemos pelo exterior, onde oliveiras milenares vin­das do Alqueva nos saúdam e conduzem ao jardim japo­nês, espaço para obras de arte moderna e uma pequena árvore Kaki (um diospireiro), neta da única sobrevivente da bomba atómica lançada sobre Nagasaqui em 1945. O jardim, onde os inesperados ramos azuis de uma árvore artisticamente intervencionada (a “árvore do amor”) relu­zem por entre bambus, é de visita livre e conduz à sala de provas e à loja.

No interior do edifício, somos levados num circuito que passa sucessivamente por uma exposição de arte e etno­grafia africana (Out of Africa), uma homenagem à Rainha Ginga (a mesma do romance de José Eduardo Agualusa) onde encontramos cerca de 700 peças de 15 países; uma amostra da maior colecção privada de azulejos em Portu­gal (do século XVI até à actualidade); e o espaço What a Wonderful World, composto por mobiliário, decoração, esculturas e cerâmicas dos loucos anos 1920, uma festival de sentidos em Art Nouveau e Art Deco. Pelo meio, o vislumbre de uma das estufas de Moscatel, com centenas de barricas, e duas extravagantes portas indianas em ma­deira esculpida, separando as alas museológicas.

Azeitão constitui o quarto pólo turístico da Bacalhôa, mas este é um polo com dois epicentros: a sede e, ali a menos de dois quilómetros, o Palácio, monumento nacional. A constante e intensiva pesquisa levada a cabo pela equipa própria da empresa permitiu recuar em séculos a defini­ção das origens do edifício e a história da propriedade. Aqui encontram-se vestígios romanos, o primeiro azulejo datado em Portugal (na casa do lago, um retiro romântico sobre um espelho de água e contíguo ao jardim onde os buxos desenham arabescos de verde por entre muros seculares), vinhas e todo um ambiente de harmonia que nem vale a pena tentar descrever por palavras.

Recentemente remodelada e enriquecida, a visita ao Palácio permite ver e ouvir muito do que foi a história de Portugal nos últimos séculos (vários reis da dinastia de Avis foram proprietários do edifício e da quinta), mas também conhecer episódios mais ou menos pícaros da vida nos tempos da realeza, descobrir uma arquitectura moldada pelas influências trazidas das constantes viagens portuguesas pelo mundo e também apreciar obras de arte contemporânea.

É numa varanda panorâmica, pairando sobre séculos de história e histórias, que encerramos a viagem pelo universo turístico da Bacalhôa Vinhos. Mesmo sem contemplar ain­da a vertente alojamento, o grupo oferece um panorama variado e riquíssimo de propostas turísticas em cinco locais distintos, distribuídos por quatro regiões vinícolas. Mais do que apenas Portugal, é o mundo que se encontra aqui.

Preços muito acessíveis
Há poucos limites para o que se pode fazer e organizar nas instalações dos destinos enoturísticos da Bacalhôa Vinhos. Existe um leque vasto de opções, com preços sob consulta, e a multiplicidade de espaços disponíveis, bem como a abertura da equipa a novas ideias, são verdadeiros desafios à imaginação. Dos programas mais exclusivos às visitas mais simples, há sempre nestes cinco destinos uma resposta para todas bolsas, com preços muito acessíveis na base da pirâmide.

• Palácio da Bacalhôa (visita guiada): 4 euros
• Museu Sede (visita guiada + prova): 3 euros
• Palácio + Museu (visita guiada + prova): 6 euros
• Bacalhôa Buddha Eden (visita livre): 4 euros
• Bacalhôa Buddha Eden (bilhete do comboio): 3 euros
• Aliança Underground Museu (visita guiada + prova): 3 euros
• Quinta do Carmo (visita guiada + prova): 5 euros

Monção e Melgaço com barrica

Precisamente há três décadas, no limite-norte do país começavam ensaios de fermentação e estágio de Alvarinho em barricas, atualizando tradições vetustas. Meia década volvida e surgiu no mercado o Vinha Antiga, o primeiro vinho de Alvarinho de Monção e Melgaço com madeira. Outras marcas seguiram o exemplo e continuariam os ensaios na região (e fora […]

Precisamente há três décadas, no limite-norte do país começavam ensaios de fermentação e estágio de Alvarinho em barricas, atualizando tradições vetustas. Meia década volvida e surgiu no mercado o Vinha Antiga, o primeiro vinho de Alvarinho de Monção e Melgaço com madeira. Outras marcas seguiram o exemplo e continuariam os ensaios na região (e fora dela). Aperfeiçoaram-se as técnicas e novos produtores e vinhos trouxeram diferenças de perfil. Hoje há muito, e bom, por onde escolher!

 

TEXTO Nuno de Oliveira Garcia FOTOS Ricardo Palma Veiga e Anabela Trindade

É com um brilho nos olhos que Anselmo Mendes me relata que faz exactamente este ano 30 primaveras que começou os primeiros ensaios de fermentação e estágio em barrica da sua uva predileta, o Alvarinho. Filho da re­gião dos Vinhos Verdes, bem lá no norte do país, na atual região de Monção e Melgaço, foi com naturalidade que escolheu as uvas da família para o efeito, bem como umas barricas de 225 litros compradas em França com o “parco ordenado da altura”, palavras do próprio.

Os primeiros resultados não foram totalmente consen­suais à época (diz-me que foram “aplaudidos por uns e rejeitados por muitos”). O facto de o Alvarinho já então beneficiar de fama de melhor casta branca do norte de Portugal não ajudava, pois, como se diz coloquialmente, em equipa que ganha não se mexe. Ou seja, não havia ne­cessidade de inovar. Vivia-se em plena década de 80 do século passado, o país crescia economicamente a olhos vistos, os Alvarinhos da região vendiam-se bem, e alguns eram até verdadeiros ícones nacionais. Acresce que os vi­nhos mais conhecidos e cobiçados da região – caso do Palácio da Brejoeira, o mais famoso na altura – não viam qualquer madeira durante a vinificação. Em suma, o Alva­rinho, tido na região como um vinho de cerimónia, e cuja uva tendeu sempre a ser mais valorizada do que as castas tintas, não carecia de ver ser alterada a fórmula do seu su­cesso, que passava pela vinificação em tanques de inox.

Antes, contudo, desses anos de ‘modernidade’, era co­mum a fermentação do Alvarinho (e de tantas outras cas­tas) em depósito e vasilhames de madeira, mas não nos moldes atuais, naturalmente. Como me descreve Joana Santiago, da Quinta de Santiago, a sua avó vinificava a casta em tonéis de madeira (acima dos 500 litros), de car­valho português ou até de cerejeira, inclusivamente com o arranque da fermentação com as películas. Por isso, aliás, o atual enólogo da propriedade da família – José Domingues – encontra-se a testar várias madeiras tradi­cionais, tudo para conseguir replicar os vinhos de outro tempo.

Mas voltemos a Anselmo Mendes, e aos seus ensaios… O experiente enólogo recorda-se dos seus primeiros vinhos com fermentação em barrica de carvalho, e da sensação aromática que proporcionavam e que apelida de “exu­berância baunílica” (o primeiro Vinha Antiga da Provam, em 1995, foi um caso paradigmático). Com o passar dos anos, e já em plena década de 90, Anselmo experimen­taria barricas de diferentes origens (um pouco de tudo, entre Tronçais, Allier de França, Carvalho Americano e até Carvalho Português), tendo identificado a madeira de Nevers (a norte de Allier) como aquela que menos afec­tava o carácter varietal do Alvarinho. Depois, seguiu-se o aperfeiçoamento da battonage – agitação das borras sobre o líquido dentro da barrica – e Anselmo compreen­deu que também neste capítulo muito haveria que apren­der. Com uma uva de bago pequeno, e que proporciona mostos com intensidade, muita battonage não significava necessariamente melhor vinho, apenas proporcionando um desnecessário maior volume e, muito pior, dificultava a medição de oxigénio. E surgiu ainda uma outra variável: saber se a agitação deveria ocorrer em borras finais ou totais, sendo que ainda hoje os produtores divergem; An­selmo prefere borras totais, enquanto vários enólogos da região contactados preferem as borras finas.

Ainda no que respeita às madeiras, um dos temas centrais é a dimensão da barrica. À partida, e se negligenciarmos os efeitos da tosta e do ano de uso, a dimensão é o fator que mais influencia a marca da madeira no vinho – por regra, quanto maior for a barrica, menos marcado pela madeira sai o vinho. Por isso, Anselmo Mendes pratica­mente abandonou as meias-pipas (225 litros) e fixou-se em barricas bem maiores, de 400 litros. Segundo o pró­prio, estas barricas, de preferência novas, mas com tosta muito ligeira, são perfeitas para a fermentação de Alva­rinho proveniente dos solos graníticos porfiroides e dos terraços fluviais com pedra rolada. Já as barricas de 1.º e 2.º ano devem ser dedicadas por inteiro ao Alvarinho dos solos franco-arenosos.

Sabia que…
Nos anos 90, Anselmo Mendes experimenta madeira de diferentes origens até encontrar a que menos afecta o carácter do Alvarinho

Diferentes estilos
Outro projeto que cedo compreendeu a mais-valia da fermentação em barrica foi o produtor Quinta de Soa­lheiro. Efetivamente, este relevante produtor – que, em 1974, plantou a primeira vinha contínua de Alvarinho e, em 1982, criou a primeira marca de Alvarinho de Melga­ço (precisamente Soalheiro), há mais de uma década que destina um pequeno lote dos seus melhores vinhos, de uvas criadas em método biológico, para fermentação em carvalho francês, numa mistura de barricas novas e usa­das. Esse vinho – Quinta de Soalheiro Reserva – sempre mereceu os maiores elogios da crítica, e soube mudar o seu perfil ao longo do tempo. Se em meados da primeira década do novo milénio o estilo inicial era ainda marca­do pela madeira (sempre de excelente qualidade), apesar das nuances minerais inesquecíveis, a verdade é que a partir da colheita de 2012 o perfil foi sendo depurado, tornando-se muito delicado e quase subtil, com a madei­ra apenas a contribuir para um ambiente de sofisticação.

Caminho diferente foi o seguido por Luís Seabra, enólogo com anos de experiência no Douro, e não só, e com pro­jetos dentro e fora de Portugal. Luís optou pela utilização de tonéis austríacos com significativa capacidade, com 1.000 e 2.000 litros. O enólogo e produtor quis, desde o primeiro momento, fazer algo de diferente com a casta, e elegeu um estilo assumidamente oxidado para, segun­do o próprio, mostrar um perfil diferente da região e não apenas mais uma monocasta de Alvarinho semelhante a tantos outros. Começou na vindima de 2013 (vinho que se mantém em forma), seguindo sempre um caminho de intervenção mínima, chegando ao expoente de só usar sulfuroso na fase do engarrafamento.. É, precisamente, pela ausência da proteção que o sulfuroso proporciona­da, em conjunto com a fermentação em tonel de grande dimensão, que o seu vinho – o Granito Cru – se apresenta num perfil mais aberto.

Outra diferença vincada do vinho de Luís Seabra é a fer­mentação maloláctica por que passou, caso único em pro­va e raro região. Esta fermentação, que opera a transfor­mação do ácido málico em lático, reduz a acidez total do vinho, influencia os aromas, sabores e até texturas, dando ainda um contributo ao nível da estabilidade biológica. Luís reconhece que está a trabalhar no limite, até porque nem sempre a acidez dos mostos é excecionalmente alta, e diz saber que tudo é que tudo uma questão de equilí­brio. Por ora, tem tudo corrido bem pois os anos – 2013, 2014 e 2015 – tem proporcionado mostos ácidos na re­gião dos Vinhos Verdes, mas disse-me estar consciente que quando assim não for terá de reduzir o lote de vinho sujeito a maloláctica.

Por sua vez, na Quinta de Santiago, a regra é a de que o Alvarinho não pode ser todo fermentado e estagiado em barricas novas e, mesmo estas, têm de ser sujeitas a tra­tamentos (lavagens com água quente e não só) antes de receberem o vinho. Tudo para evitar os aromas a bauni­lha, fumados e até a café que as barricas podem propor­cionar ao néctar. Por ora, neste produtor, existem barricas de carvalho francês de 250 litros, mas muitas também de 500 litros, existindo até já um balseiro de 2.000 litros tam­bém em uso para o Alvarinho topo de gama. O desafio para o futuro passa por conseguir reproduzir o vinho da avó de Joana Santiago, sendo que para isso são precisos muitos ensaios com madeiras em desuso nas empresas de tanoaria, caso evidente da cerejeira.

Quem igualmente privilegia barricas antigas para fermen­tar o seu Alvarinho topo de gama é a Provam, sendo que o seu vinho de nicho – o Contradição – nelas estagia por cerca de 7 meses, antes de um estágio em garrafa por mais um ano.

Sabia que…
À excepção de casos muito especiais, as uvas de Alvarinho são as mais bem pagas do país, alcançando facilmente o euro por quilo

Naturalmente, outra forma de evitar os excessos da bar­rica é submeter a fermentação e estágio apenas uma pe­quena parte do lote final, opção que proporciona muita versatilidade e que garante a manutenção de um estilo colheita após colheita, sendo disso bons exemplos o Soa­lheiro Primeiras Vinhas e o Alvarinho produzido por João Portugal Ramos, que, em 2016, teve 10% do mosto fer­mentado em barricas novas de carvalho francês. A opção por carvalho americano, ainda que apenas parcialmente, por ora está resumida à Adega de Monção, com o seu Deu-La-Deu Premium a fermentar em meias barricas e a estagiar nelas por 4 meses.

Em suma, o Alvarinho agradece a fermentação, e até o estágio, em barrica, mas dúvidas não restam que dessa forma o trabalho é muito mais exigente do que a fermen­tação em inox. As opções são muitas, e os cuidados para evitar que a madeira se sobreponha à variedade – mais a mais numa região onde o granito, sobretudo em meia en­costa, contribui para alguma subtileza aromática – nunca são poucos. E não nos podemos esquecer que estamos a referirmo-nos à região – Monção e Melgaço – que viu nascer a casta e que mantém um registo de autenticidade da mesma, com vários produtores de excelência.

Os perfis dos vinhos em prova são diferentes, mas pron­tos a agradar a todos. Existem vinhos muito frescos, com a madeira discreta, como são os casos do João Portugal Ramos e do Regueiro Barricas. Na situação oposta, temos vinhos onde a presença da madeira é mais assumida, caso do Deu-La-Deu e do QM Homenagem. Entre ambos os estilos, encontramos os Parcela Única e Quinta de Soa­lheiro Reserva, ambos a revelar integração e equilíbrio ex­traordinários com a barrica. Outros vinhos ainda revelam evolução e uma maior oxidação, como o Contradição e o extremado Granito Cru, que contudo proporcionam mui­to prazer. É só escolher.

Herdade do Sobroso: África Minha à beira do Guadiana

Entre o rio e a serra, rodeada de vinhas, enquadrada por espaços naturais onde abunda a caça de grande porte e com um pezinho na maior barragem do país. A Herdade do Sobroso fica no Alentejo, mas escapa a todos os estereótipos. Aqui, encontramos belos vinhos e todas as mordomias do luxo. Mas sempre com […]

Entre o rio e a serra, rodeada de vinhas, enquadrada por espaços naturais onde abunda a caça de grande porte e com um pezinho na maior barragem do país. A Herdade do Sobroso fica no Alentejo, mas escapa a todos os estereótipos. Aqui, encontramos belos vinhos e todas as mordomias do luxo. Mas sempre com os pés muito assentes na terra.

 

TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga

ANDAMOS há cerca de dez minutos aos sola­vancos pelos trilhos de terra batida da serra do Mendro, mas é tal o encantamento com a en­volvência e as panorâmicas sobre o Guadiana e a interminável planície do Baixo Alentejo que até nos es­quecemos que estava prometido um “safari fotográfico”. Tirando algumas perdizes, de bichos, nada… E então, à saída de uma curva, encaramos com um enorme veado, que depressa se lança em galope estrada fora. Na Herda­de do Sobroso é mesmo assim: há surpresas e recompen­sas ao virar de cada esquina.

Encostado à vertente sul da serra do Mendro, o núcleo urbano desta enorme (1.600 hectares) propriedade pon­tua o centro do quadrilátero verde formado por 65ha de vinha. Visto de cima, do alto da serra ou a bordo de um balão de ar quente (sim, sim, já lá vamos!), o contraste é gritante: o verde vivo das videiras destaca-se sobre o fundo amarelado das searas ou pastagens circundantes. Mas há também a mancha branca do casario, as sombras cinzentas das escarpas mais rochosas, o espelho azul-es­verdeado do Guadiana, um céu azul e os tons pastel do mato rasteiro que cobre as encostas. Uma paleta de cores verdadeiramente mágica.

Sofia Machado sente que tudo isto lhe estava na alma, mesmo sem se dar conta. A sua avó paterna é de Portel e ela, uma menina do Porto, passou belas temporadas no Alentejo quando era criança. Mas nada a tinha prepara­do para a sensação de pertença que a arrebatou quando chegou pela primeira vez à Herdade do Sobroso. Para quem cumpre os 9km de estrada que ligam a aldeia de Alqueva a esta unidade vitivinícola, cinegética e de alo­jamento, talvez possa parecer fácil apaixonarmo-nos por um local tão belo, harmonioso e pacífico. Mas isto não era nada assim em 2000…

Ruínas. Mato. Lixo. “Costumo dizer que não começámos do zero, começámos abaixo do erro…”, desabafa Sofia, perante o sorriso cúmplice de Filipe Teixeira Pinto, mari­do e enólogo residente (com consultoria de Luís Duarte). E também ele com as raízes no Porto. “Tive a sorte de o meu marido também se ter apaixonado por este sítio!” Talvez tenha sido amor à primeira vista, mas não foi fá­cil. A história, que começa com as visitas cinegéticas do pai de Sofia à região, continuou com a aquisição de três herdades, o que permitiu estender a propriedade desde o Alto Alentejo (Alqueva, ali muito perto do paredão do maior lago artificial da Europa) até às primeiras vagas das planuras do baixo Alentejo, abrangendo de caminho uma porção significativa da serra do Mendro (412 metros de altitude).

Dormir num monte alentejano
A tarefa inicial foi plantar os primeiros 50 hectares de vi­nha, logo em 2001, a que se seguiu uma intervenção ra­dical de limpeza de matos na serra, complementada com a vedação da propriedade e a plantação de sobreiros (vão em 660.000 e ainda não terminaram). Mais tarde, tam­bém os pinheiros mansos vieram enriquecer a paisagem, aproveitando os socalcos na serra antes ocupados por eucaliptos. O casal virou-se então para a recuperação das ruínas, mas, apesar da aposta assumida pelos materiais, estéticas e, até, mão-de-obra locais, o processo não foi fácil. O hotel acabou por abrir apenas em finais de 2008.

Hoje, o Sobroso é um mimo de autenticidade e qualidade de vida. As construções são rústicas, mas os quartos (há cinco na casa principal e outros seis – dois deles contí­guos em apartamento T2 – numa edificação secundária, junto à piscina de horizonte infinito sobre as vinhas e a serra) estão dotados de todos os confortos modernos. O restaurante, onde brilha a mão afinada da D. Josefa, ser­ve almoços e jantares a hóspedes e visitantes mediante marcação. Há bar, salas de estar, alpendres com redes e cadeiras, biblioteca, canil. Este é um hotel onde experi­mentamos, verdadeiramente, a sensação de dormir num monte alentejano.

A fileira de casinhas geminadas onde se situam os quartos exteriores, o bloco que inclui a adega, a loja e os escritó­rios, as instalações do pessoal e a casa principal enqua­dram um enorme terreiro ajardinado e relvado que, no seu extremo Leste, termina num muro branco debruçado sobre um braço lateral do Guadiana, proporcionando ex­traordinárias vistas sobre a paisagem de vinhas, água e serra. Há muitos Alentejos e, ao que parece, todos eles se encontram aqui ao alcance da vista…

Apesar de algumas das parcelas se encontrarem já nas primeiras inclinações da serra, um pormenor curioso, para quem gosta destas coisas, é perceber que há muita pedra rolada nos solos argilosos da propriedade. A explicação está nos humores dos grandes rios: ao longo de milénios, o Guadiana terá corrido por aqui e por ali, deixando a sua marca nos terrenos circundantes. E esta componente rochosa explica também a mineralidade dos vinhos que aqui se fazem.

São vinhos que vale muito a pena descobrir, ou redescobrir. Porque a aposta comercial do Sobroso foi feita no canal horeca e, portanto, não será nos supermercados que vamos encontrar estes brancos, tintos e rosés que integram a região DOC Vidigueira. Presentes no merca­do nacional e em mais 21 países, os vinhos do Sobroso apostam muito nas variedades locais: as castas brancas mais relevantes são Antão Vaz, Arinto e Perrum; nas tin­tas pontificam Alfrocheiro, Alicante Bouschet, Aragonez, Cabernet Sauvignon, Syrah e Trincadeira. Por ano, saem daqui cerca de 550.000 garrafas.

Actividades… e estar quieto
Mas “sair” não é um verbo que apeteça conjugar… O silêncio, a vastidão da paisagem, a simpatia e genuíno prazer de quem recebe, as mordomias, os cozinhados da D. Josefa, os vinhos. Não espanta que a vertente hote­leira seja, também ela, uma história de sucesso. Famílias com filhos, casais em busca de uma pausa a dois, apaixo­nados dos vinhos, caçadores, fanáticos do bird-watching, toda a gente encontra aqui o que procura. Podemos pas­sear a pé, de bicicleta ou em caiaque; pescar num dos vários planos de água; fazer um safari fotográfico pela serra (para além da bicharada menor, há veados, gamos, muflões, javalis, raposas, texugos); agendar um passeio de balão (uma experiência única, de uma suavidade de­sarmante) ou de barco no Alqueva; visitar a adega e as vinhas com prova de vinhos; observar aves.

Ou, simplesmente, pegar num copo de vinho e deixar-se ficar por uma das muitas sombras, deixando o tempo cor­rer devagar e mirando o ninho das cegonhas, mesmo jun­to às casas. A visão do majestoso animal, imóvel poucos metros acima das nossas cabeças, é tão inesperada que um dia uma hóspede desabafou: “Parece mesmo verda­deira!” Não teria dúvidas se assistisse a este momento em que se faz ouvir um ruído semelhante ao bater de ripas de madeira e as duas cegonhas adultas se saúdam com os bicos. Pai e mãe trocam de turno e um deles fica a vigiar as duas crias espigadotas que miram lá de cima com curiosi­dade os humanos maravilhados, enquanto o outro abre as asas e plana majestosamente em busca de comida.

Daqui a algumas horas, de madrugada, embarcaremos num balão de ar quente para, envolvidos por suaves bri­sas e um silêncio mágico, pairarmos sobre o rio e os cam­pos, as estradas e as casas. Na serra, durante o safari, tínhamos vistos veados, gamos, muflões e javalis. Desta vez, as correntes de ar levam-nos na direcção oposta, para Sul. Mas o cenário é idêntico. Há animais de grande porte por todo o lado. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. E, acreditem, o vinho por aqui é muito melhor! Quem nunca saboreou um copo de branco bem fresquinho às sete da manhã, a bordo de um balão de ar quente, não sabe o que perde.

 

Debaixo de terra: A singularidade das Caves da Bairrada

A Bairrada é uma região com grandes tradições vinícolas. A partir dos anos 20, surgiram muitas das mais conhecidas Caves, concebidas, sobretudo, para a produção de espumantes. Algumas alargaram os seus horizontes e vingaram até hoje; outras ficaram pelo caminho. António Dias Cardoso, enólogo e profundo conhecedor da Bairrada, acaba de publicar um livro sobre […]

A Bairrada é uma região com grandes tradições vinícolas. A partir dos anos 20, surgiram muitas das mais conhecidas Caves, concebidas, sobretudo, para a produção de espumantes. Algumas alargaram os seus horizontes e vingaram até hoje; outras ficaram pelo caminho. António Dias Cardoso, enólogo e profundo conhecedor da Bairrada, acaba de publicar um livro sobre a história e o dinamismo empresarial da região.

 

TEXTO Mariana Lopes FOTOS Anabela Trindade e Ricardo Palma Veiga

A história das empresas de vinho bairradinas co­meçou em 1893, com a Associação Vinícola da Bairrada a encetar a produção de espumantes na região. O pontapé de saída tinha sido já dado, três anos antes, pela Escola Prática de Viticultura e Pomologia da Bairrada, sob a direcção de José Tavares da Silva, engenheiro agrónomo. Tendo a AVB laborado até 1905 com este nome, sucederam-lhe outros, culminando em Caves Monte Crasto, as quais, nos anos 90, caíram por insolvência. Apesar do nascimento “prematuro” des­ta Vinícola, foi depois de 1920 que se deu o “boom” das empresas mais emblemáticas: S. João (1920), Barrocão (1924), Aliança (1926), Messias (1926), Valdarcos (1926), Borlido (1930), Neto Costa (1931), Vice-Rei (1941), Impé­rio (1942), Montanha (1943), S. Domingos (1944), Caves Primavera (1947), Pontão (1949), Altoviso (1952), Funda­ção (1970) e outras mais.

António Dias Cardoso acaba de lançar um livro sobre o tema, “Caves da Bairrada, Elementos da Sua História”. Agora aposentado, é engenheiro agrónomo, foi director da Estação Vitivinícola da Bairrada, director de Serviços de Vitivinicultura na Direcção Regional (Bairrada, Dão e áreas limítrofes) e enólogo das Caves São João e Messias, tendo escrito vários livros técnicos, de enologia. Com mo­déstia na voz, revela: “Conheci muitas empresas e tive acesso a informação que nem toda a gente teve, então senti-me na obrigação de escrever este livro.” Foram dois anos de estudo, investigação e entrevistas a gente ligada às empresas e membros das suas famílias.

O “Champagne Português”
“A maior parte destes agentes económicos começaram a sua actividade sob o nome ‘Vinícola de qualquer coisa’ e não ‘Caves’”, conta Dias Cardoso. Aqueles adoptaram esta última designação porque eram, efectivamente, es­truturas subterrâneas de engarrafamento e armazena­mento. Mas Caves há em todo o lado. O que torna a Bair­rada sui generis no panorama vitivinícola é o aglomerado deste tipo de adegas subterrâneas, construídas numa mesma época, numa mesma região.

E porquê só de engarrafamento e armazenamento? Na verdade, estas empresas não vinificavam, numa fase ini­cial. Era prática comum a compra de vinho a pequenos produtores e agricultores (mais tarde, nos anos 60, a ade­gas cooperativas), para engarrafamento e comercializa­ção de brancos e tintos com o selo da marca.

Só muitas décadas depois é que a maioria das Caves so­breviventes, as que se renovaram e adaptaram, começa­ram a vinificar o seu próprio vinho tranquilo e a fazer os vinhos bases para espumantizar.

O impulso para a criação das Caves bairradinas foi dado maioritariamente, ainda no início do século, por visioná­rios portugueses regressados da sua emigração no Brasil, que, por terem alargado horizontes, se prestaram a ges­tos ousados para a época. Em muitos casos eram pessoas sem qualquer formação académica, mas com sede de modernização e desenvolvimento.

Na verdade, o que motivou a produção de espumante na Bairrada foi a vontade de fazer o “champagne por­tuguês”. Inicialmente, os produtores introduziram castas de Champagne na região, nomeadamente Pinot Noir e Chardonnay, mas tal revelou-se infrutífero a médio prazo. Assim, variedades regionais como Maria Gomes e Bical começaram a ser as mais utilizadas para o espumante da Bairrada.

É de notar, como absolutamente surpreendente, o volu­me de negócios e de emprego que estas Caves criaram nos seus tempos áureos, os anos 60. Mesmo numa fase de “vacas magras” (década de 90) já sem o contributo dos mercados das ex-colónias, as Caves Aliança empre­gavam 291 pessoas e geravam vendas de 26 milhões de euros anuais. Já na Messias laboravam 133 pessoas e ven­diam-se cerca de 12 milhões de euros, por ano. As Caves Barrocão, com 52 trabalhadores, atingiam os 5 milhões anuais. No conjunto, só as empresas que nasceram na pri­meira metade do século XX vendiam no final dos anos 90 algo como 73 milhões de euros por ano e detinham um valor menor, mas muito parecido, de activos fixos.

Além de um mercado nacional sólido, com picos sazo­nais muito interessantes, a mina de ouro destas empresas era África, com destaque para os mercados de Angola e Moçambique. António Dias Cardoso lembra: “As Caves Primavera, a Imperial Vinícola [Caves Império] e as Caves S. João eram casos típicos de dependência do mercado africano.” De 1963 a 1967, este trio vendeu quase 69 mi­lhões de litros para aqueles dois países, já para não falar das demais empresas. “Quase 50% do mercado de An­gola era abastecido pelas empresas da Bairrada!”, lembra o agrónomo. No entanto, e invertendo o conhecido pro­vérbio português, depois da bonança veio a tempestade. Mas isso já é outra história…

Mais de três dezenas de estrangeiros passaram pelo concurso, entre wine critics e/ou wine educators e sommeliers. Os presidentes do júri eram constituídos por enólogos por­tugueses com comprovada experiência e histórico. To­das as provas eram cegas e nos jurados estava presente uma boa parte dos técnicos de vinhos de qualidade des­te país. Para eles, esta é também uma excelente opor­tunidade de entrarem em contacto com outros aromas e sabores e sempre uma oportunidade para acumular experiências e conhecimentos. Paulo Nunes dizia-nos exactamente isso: “acho que o grande salto de qualida­de em Portugal aconteceu depois da crise (2008 e anos seguintes), quando os produtores portugueses tiveram de ir lá para fora, absorvendo conhecimentos e enfren­tando a concorrência de todo o mundo. Tivemos de abrir os olhos…” Curiosamente, dois dias depois destas de­clarações em Santarém, Paulo subia ao palco em Arraio­los para receber o maior galardão do concurso. É ele o enólogo do Villa Oliveira Touriga Nacional de 2011 (da Casa da Passarella), um vinho nascido e criado no sopé da Serra da Estrela e que venceu dois dos sete maiores pré­mios: o Melhor Vinho do Ano e o Melhor Varietal tinto.

As Caves perdidas
Muitas das caves nascidas nos anos 20 mantiveram um crescente desenvolvimento ao longo dos tem­pos, mas outras acabaram por se afundar. Dias Car­doso apresenta três razões fundamentais para esse desfecho. Primeiramente, a forte dependência do mercado africano. Quando este se perdeu (depois da revolução de 1974), trazendo enormes dificuldades às transacções financeiras entre as ex-colónias e Por­tugal, algumas das Caves entraram em colapso por não conseguirem redireccionar o negócio para ou­tros mercados. Outro motivo prendeu-se com dificul­dades financeiras, devido ao crédito bancário prati­cado de forma excessiva e aos elevados juros. Como os administradores destas empresas eram, em geral, pessoas bastante conhecidas, os bancos conferiam­-lhes crédito mesmo que não o pudessem suportar.

Em terceiro lugar, nas últimas duas décadas do sécu­lo XX, o mercado nacional e internacional transfor­mou-se e tornou-se muito mais exigente. A qualida­de e perfil dos vinhos não se adequava aos requisitos dos novos tempos e as empresas que apenas engar­rafavam (sem vinificar) não conseguiam controlar o produto dos fornecedores. Algumas Caves adapta­ram-se e começaram a investir em adegas (e até vi­nhas); outras não o souberam ou puderam fazer e, inevitavelmente, definharam…

A renovação e o legado
Gradualmente, com o avançar das décadas, os produ­tores bairradinos foram alargando a gama de produtos (inicialmente centrada nos espumantes e aguardentes) e investindo no engarrafamento de vinhos tranquilos de denominações de origem, sobretudo Dão (logo nos anos 60), mas também Vinho Verde e, mais recentemen­te, Douro e Alentejo. Este conceito manteve-se até aos dias de hoje, sendo prática de empresas como Messias, S. João, Aliança, São Domingos, Primavera ou Montanha.

No entanto, a partir dos anos 90, os pequenos produtores bairradinos “de quinta”, como Luís Pato, Casa de Saima, Quinta da Dona ou Quinta das Bágeiras, começaram a ganhar clara vantagem perante o consumidor mais exi­gente, pois a qualidade dos seus vinhos era superior e tinham uma imagem mais forte e personalizada. Assim, estávamos perante uma clara mudança estratégica que, como Dias Cardoso conclui no seu livro, “implicou uma ligação à viticultura, assegurando uma produção própria controlada pelos seus técnicos e contribuindo decisiva­mente para a personalização dos seus vinhos”.

Apesar do peso que os vinhos tranquilos tiveram (e ainda têm) no negócio das Caves, a sua imagem, com algumas excepções, continuou a ser construída em torno dos es­pumantes. Estas singularidades das Caves bairradinas, e todo este dinamismo pioneiro em torno da produção de espumante, deixaram um legado impagável para a re­gião: o desenvolvimento desta indústria como bandeira da Bairrada. Hoje, sabemos que cerca de 65% do espu­mante português é da Bairrada e 20% é certificado com a sua denominação de origem ou indicação geográfica.

Revolução na Terceira

A ilha Terceira está a começar uma pequena revolução na sua vitivinicultura. A “culpa” é da Adega Cooperativa dos Biscoitos, com o auxílio da Anselmo Mendes Vinhos. Os primeiros vinhos já aí estão…   TEXTO António Falcão NOTAS DE PROVA Nuno de Oliveira Garcia FOTOS Paulo Mendonça e António Falcão QUANDO se fala de vinhos […]

A ilha Terceira está a começar uma pequena revolução na sua vitivinicultura. A “culpa” é da Adega Cooperativa dos Biscoitos, com o auxílio da Anselmo Mendes Vinhos. Os primeiros vinhos já aí estão…

 

TEXTO António Falcão NOTAS DE PROVA Nuno de Oliveira Garcia FOTOS Paulo Mendonça e António Falcão

QUANDO se fala de vinhos dos Açores, vem logo à memória a ilha do Pico, de longe a mais vitivinícola do arquipélago. Mas, 150 quilómetros a noroeste, na ilha Terceira, existe uma mancha de vinha que é região demarcada. Trata-se dos Biscoitos, e o único operador – com algum tamanho – é a Adega Cooperativa local. O “algum tamanho” tem que ser tomado com uma pitada de sal. No total estamos a falar de uma área com cerca de 20 hectares, muito pro­vavelmente a Denominação de Origem mais pequena de Portugal (salvo Carcavelos, para licorosos) e certamente uma das mais pequenas da Europa.

Afastada dos centros de conhecimento da moderna vi­tivinicultura e dos circuitos de comercialização, a adega precisava de um novo impulso. Recorreu então a Anselmo Mendes para dar uma ajuda e o enólogo (e sua equipa) estiveram por lá no inicio desta década. Por uma ou ou­tra razão só saiu um vinho com orientação de Anselmo (colheita de 2011) e depois a ligação esmoreceu. No ano passado foi mais do que revitalizada: Anselmo e o enólo­go Diogo Lopes (da sua equipa) assinaram uma parceria com a Adega dos Biscoitos e ficaram com a toda a res­ponsabilidade dos vinhos da empresa, incluindo a comer­cialização.

O maior problema era combater o abandono da vinha, estimulado por razões económicas: sem recursos finan­ceiros, a adega pagava muito pouco e tarde. Por isso, uma das primeiras medidas da nova equipa foi a de esta­belecer o preço de €1,85 por quilo de uva, um dos me­lhores preços a nível nacional. A uva mais cobiçada é da casta Verdelho, a mais nobre. Dos 20 hectares da região, existem apenas quase 4 ha de Verdelho. O restante em produção fica-se por algumas cepas de Arinto e uma mul­tiplicidade de outras castas, quase residuais, e ainda uns bons 5 hectares de castas tintas, para o chamado ‘vinho de cheiro’, enologicamente pouco interessante e que a Anselmo Mendes Vinhos nem comercializa. O aumento do preço da uva vai fomentar a conversão de algumas destas vinhas em Verdelho.

Um terceiro objectivo a alcançar é o de recuperar a área perdida (cerca de 11 hectares) para o matagal que cresceu onde estava a vinha. Em poucos anos as “faias” (como aqui se chama), tomam conta da área de vinha abandona­da. Nuno Costa, da Direcção Geral do Desenvolvimento Rural, explica que, por baixo da pedra vulcânica, o solo é fértil. E o clima sub-tropical fez o resto…

Viticultura heróica
Com o Atlântico a escassas centenas de metros, o am­biente extremamente húmido obriga a cuidados extre­mos. Primeiro na protecção às videiras, que estão coloca­das nas chamadas curraletas (ou currais). São, no fundo, minúsculas parcelas geminadas, cada uma com alguns pés de videira, protegidas por muros de pedra vulcânica. Esta ‘paisagem protegida’ tem outra vantagem: os muros de pedra funcionam quase como uma estufa, acumulan­do o calor durante o dia, e dissipando esse calor lenta­mente ao longo da noite. O presidente da Adega dos Biscoitos, Paulo Mendonça, disse-nos que a diferença de temperatura é enorme para a terra circundante às currale­tas. O que se ganha? Sobretudo maturação, que é acele­rada. As vindimas costumam ocorrer durante Setembro. Se a vinha estivesse fora deste ambiente protegido, a uva nem amadurecia o suficiente para ser enologicamente re­levante (existem estudos que o comprovam). E as chuvas de Setembro encarregavam-se de destruir o que restasse do Verdelho, que vai ficando com a película tão fina que é quase transparente…

Historicamente, esta disposição do terreno tem centenas de anos e os antigos sabiam o que faziam. Só as terras com maior densidade de pedra vulcânica à superfície eram destinadas à vinha. Por outro lado, esta zona dos Biscoitos é das menos húmidas da Terceira. Existe, con­tudo, muita água no subsolo, proveniente do escorrimen­to das montanhas adjacentes. As restantes terras, mais férteis e fáceis de trabalhar, eram destinadas aos cereais. Hoje, por questões económicas, estão sobretudo em pastagem para as vacas leiteiras, provocando uma quase monocultura do leite e seus derivados. Mas todas estão também separadas por muros de pedra – afinal, havia que dar destino à pedra de lava que as montanhas tinham lan­çado milénios atrás.

O vinho (ou a aguardente) era fundamental há séculos porque, ao contrário da água, não transmitia doenças nas longas viagens marítimas. Os marinheiros bebiam vinho porque tinham medo de adoecer a beber água putrefac­ta. Isto tudo nos foi explicado por Francisco Maduro Dias, da Confraria Verdelho dos Biscoitos. Que acrescentou: “Tudo aqui tem que ser historicamente interpretado pela relação com o mar.” E recorda que a Terceira (à semelhan­ça do que sucede com todo o arquipélago dos Açores, de resto) funcionou durante séculos como uma espécie de estação de serviço para a navegação no Atlântico.

Os vinhos
Muito haveria ainda a dizer, mas vamos aos vinhos. Quem nos guiou na vinha e adega (construção de 2008) foi Dio­go Lopes, sócio e colaborador da Anselmo Mendes Vi­nhos nesta aventura. A primeira vindima da parceria ocor­reu em 2015 e daí surgiram dois vinhos: Magma e Mu­ros de Magma. A diferença está na composição do lote e pelo estágio em madeira de carvalho francês (usada) do Muros. A intervenção enológica foi mínima: segundo Diogo Lopes, “estes vinhos são um perfeito exemplo de terroir”. Em ambos se destaca a mineralidade (água filtra­da pelas montanhas?) e uma salinidade gostosa na boca (o mar, claro). Ambos são muito gastronómicos e com um belo potencial de envelhecimento.

Os “Magmas” só agora estão a ir para o mercado e o “atraso” foi propositado. Pela sua frescura, são vinhos que agradecem o estágio em garrafa. As quantidades são exíguas (2.300 e 1.700 garrafas, respectivamente) e já estão todas com destino: metade fica nos Açores e o restante é divido por Portugal continental e pelo mercado americano. Os preços não são baratos mas, como Diogo Lopes indica, “temos que compensar os viticultores pela produção das uvas para estes vinhos de um terroir com séculos de história”.

Rio Abaixo, Rio Acima

Com o crescimento e florescimento dos vinhos do Douro, mais se torna evidente que a região é composta de múltiplos terroirs. Rio abaixo e rio acima já não se dá aos remos no rabelo, mas é importante explorar e conhecer as semelhanças, as diferenças e as especificidades.   TEXTO Luis Antunes FOTOS Cortesia dos produtores […]

Com o crescimento e florescimento dos vinhos do Douro, mais se torna evidente que a região é composta de múltiplos terroirs. Rio abaixo e rio acima já não se dá aos remos no rabelo, mas é importante explorar e conhecer as semelhanças, as diferenças e as especificidades.

 

TEXTO Luis Antunes FOTOS Cortesia dos produtores

NO princípio, havia o Porto. E o Porto tinha tantas categorias que cada um dos milhentos micro­-terroirs da região demarcada do Douro con­tribuía para o vinho com qualidades diferentes. Mas, nas últimas décadas, ao Porto juntou-se o vinho cha­mado “de consumo”, não fortificado, e pedindo do seu chão e sítio qualidades diferentes daquelas que anterior­mente o Porto precisava. À medida que os vinhos Douro DOC vão construindo a sua aura, vai-se percebendo que a região se redefine, e procura em cada um desses sítios um contributo que pode ser decisivo para o crescimento e a sustentabilidade dos vinhos, não só económica, mas também em termos de estilo. Neste artigo, procurei fa­lar com as empresas que fazem vinhos tanto rio abaixo (Cima e Baixo Corgo) como rio acima (Douro Superior), para perceber como gerem as vinhas, as uvas, como de­senham os vinhos, os portefólios, como encontram nos diversos terroirs os projectos que definem o Douro de hoje e do amanhã.

Lobo
Comecei por falar com Manuel Lobo de Vasconcelos, o enólogo principal da Quinta do Crasto, que me explicou que no Cima Corgo (CC) têm a herança histórica de vi­nhas como a Maria Teresa, a Vinha da Ponte ou os Carde­nhos, a que se juntam algumas mais recentes que incluem plantações separadas por casta. Esta pressão histórica não existe no Douro Superior (DS), onde acima de tudo procuram a consistência, que é conseguida graças a va­riedades muito adaptadas, como a Touriga Franca.

O DS fica, no entanto, aquém de atingir os níveis de diver­sificação e, portanto, de complexidade do CC, onde têm vinhas com 100 anos e cerca de 50 variedades. No DS os vinhos são fabulosos em estrutura e dimensão, e Manuel tenta no binómio viticultura-enologia encontrar o respeito p ela elegância, frescura e respeito pelo terroir, evitando a sobre-maturação e o desequilíbrio dos taninos. O CC tem mais diversidade, enquanto o DS tem mais consis­tência, principalmente usando viticultura de precisão e gestão cirúrgica da rega. Nas vinhas velhas do CC, tudo é mais fácil, já que a vinha se auto-regula, o factor ano tem menor influência. Por exemplo, na Touriga Nacional basta um pouco de chuva na altura da floração, algum excesso de nutrição e vem o desavinho. Nas vinhas velhas isso não acontece, até porque têm pouquíssima Touriga Nacional.

Em cada ano, é preciso resolver um puzzle do Douro, para o Reserva Vinhas Velhas, feito no CC, mas também para o Crasto Superior, proveniente do DS. No CC, são 42 mini-blocos de vinhas velhas espalhadas, todos com vinificações independentes, de onde podem sair os topos de gama Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa, mas pro­curando acima de tudo o equilíbrio, a frescura de taninos. No Douro Superior, o puzzle é diferente, mas a procura também é de equilíbrio, em particular a maturação dos taninos, mas também a frescura – mas frescura não é só acidez, a frescura aromática também é fundamental.

Enquanto no Reserva Vinhas Velhas há um histórico e um perfil a manter, no Crasto Superior o projecto foi criado a partir do zero, com espaço para definir o perfil de um vi­nho novo, apelativo para o consumidor moderno, com in­tensidade aromática, dimensão, estrutura, boa evolução em garrafa. Mas é também muito interessante perceber que o Crasto colheita pode ir buscar o melhor dos dois mundos. Para Manuel Lobo, um vinho para ter expressão e sucesso mundial tem de ter consistência e volume. Ao trabalhar com as duas sub-regiões, e visto que o Cras­to não é um vinho de quinta, consegue consistência ano após ano num vinho que conquista o consumidor pela fruta definida e boca redonda, para o qual é fundamental que as duas regiões se completem.

Sottomayor 
Luís Sottomayor, enólogo da Sogrape, focou-se em dois vinhos da Casa Ferreirinha: o Esteva e o Papa-Figos. Am­bos são vinhos despretensiosos e fáceis de beber todos os dias, vinhos desenhados para as pessoas gostarem à primeira. O Esteva existe desde a colheita de 1974, e é feito com algumas uvas do Cima Corgo, de produção própria, das quintas do Seixo e do Porto, e outras com­pradas a lavradores em zonas mais altas, para ir buscar frescura e acidez. Este vinho não tem qualquer estágio em madeira. O Papa-Figos posiciona-se entre o Esteva e o Vinha Grande, e procura reproduzir o modelo do Esteva mas com uvas do Douro Superior, que, sendo mais quen­te e com maturações mais fortes, vai ter componentes aromáticas diferentes.

Em ambos os vinhos as variedades são as mesmas: Tou­riga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz e Tinta Barroca. O Papa-Figos é mais carregado de cor, com uma compo­nente aromática de cacau, chocolate e fruta madura dife­rente da do Esteva. As uvas, em grande maioria, vêm de zonas altas. O Douro Superior tem aptidão para produzir um vinho fácil para beber todos os dias. Como o vinho tem mais estrutura e volume, passa 20% por madeira du­rante 2 a 3 meses, para ganhar em intensidade, harmonia e amaciar um pouco. Já os vinhos do Cima Corgo são mais especiados, balsâmicos, mentolados. O Esteva faz pouco mais de 2 milhões de garrafas, enquanto o Papa­-Figos está a chegar ao milhão.

Sabia que…
As três sub-regiões do Douro podem ter como referência geográfica mais urbana as vilas e cidades de Peso da Régua (Baixo Corgo), Pinhão (Cima Corgo) e Vila Nova de Foz Côa (Douro Superior).

Ferreira
Francisco Ferreira puxa aqui a brasa para a sardinha da região em falta nesta equação, o Baixo Corgo (BC). A sua Quinta do Vallado está acima da foz do rio Corgo, mas a quinta está ainda no BC, no seu limite superior. Em todas as regiões há coisas muito boas, e outras muito más, vá­rios factores, como castas, altitudes, exposições solares, solos. Na Quinta do Orgal, no DS, a exposição é sul, logo os vinhos são muito concentrados, bem maduros, com menos acidez. No BC as vinhas expostas a sul dão vinhos melhores.

Segundo Francisco, não se pode falar numa “pior região” entre BC e DS, todas conseguem fazer vinhos com con­sistência, mas a vantagem de ter vinhas nas duas é que, em especial em anos extremados, consegue-se ter sem­pre um lote final de vinho equilibrado. No DS, nos anos quentes com ondas de calor prolongadas pode haver vinhos mais sobre-maduros, licorados, compotados, tal como em anos muito chuvosos e frios há vinhas que no BC não atingem o seu potencial, e as uvas não amadu­recem bem. Nos anos normais, que são 80%, há vinhos excelentes nas duas sub-regiões, basta colher na altura certa para conseguir equilíbrio. No BC os vinhos são mais frescos e elegantes, com mais fruta vermelha, mais lon­gos. No DS os vinhos são mais concentrados, com mais fruta preta, são mais gulosos. As castas que se adaptam melhor são o Sousão no BC e a Touriga Franca no DS. A Touriga Nacional é fantástica nos dois sítios, embora origine vinhos bem diferentes. As melhores exposições no DS são a Norte, enquanto no BC são a Poente ou Sul.

À medida que os vinhos Douro DOC vão construindo a sua aura, vai-se percebendo que a região se redefine

O Quinta do Vallado Reserva Field Blend tem origem em vinhas muito velhas, com cerca de 100 anos, e muitas castas diferentes, onde predominam a Tinta Roriz, a Tinta Amarela, a Touriga Franca e a Tinta Barroca. O vinho es­tagia em barrica nova (60%) e usada (40%) e procura um estilo não muito fácil e óbvio, com a fruta menos eviden­te, com mais complexidade e mistério. É importante que possa ser bebido jovem, mas que tenha ainda assim boa capacidade de envelhecimento, tal como é importante o seu equilíbrio, tem que ter potência e estrutura, mas com frescura e leveza. Já o Vallado Quinta do Orgal apresenta um estilo mais guloso, potente mas acessível desde cedo. O 2014 é o primeiro e leva 55% de Touriga Nacional, 40% de Touriga Franca e 5% de Sousão, de uma vinha nova. Vai a barricas de terceiro ano de uso. No futuro, Francisco vai tentar um estilo mais concentrado, para guarda.

Madureira
Luciano Madureira descreveu-me os projectos da Rozès no CC e DS. Douro Superior aqui é rio acima mesmo, já que os DS da Rozès vêm de Freixo de Espada à Cinta, já junto à fronteira espanhola. Na sua Quinta do Grifo o clima é mais rigoroso, há muito calor, uma altitude inferior a 250m, as videiras têm que fazer um grande esforço para cumprir a sua missão, apesar de haver rega disponível. Esta quinta tem 140ha, foi comprada cerca de 2003, e vê­-se uma grande melhoria do potencial das vinhas desde há 5 ou 6 anos. Há vinhas velhas e talhões com Touriga Nacional, Touriga Franca, Sousão e Tinto Cão. O Sousão é fundamental para corrigir a acidez do lote final.

Já a Quinta do Pégo, com 30ha, fica junto ao Pinhão, onde o clima é mais fresco, e os vinhos têm pH mais baixo. Há vinhas velhas com ênfase na Tinta Amarela e Rufete, e também muita Touriga Nacional já com idade. O Quinta do Pégo é um vinho maduro, intenso e encorpado, mas com boa leveza. Em relação ao Grifo, é mais leve e fres­co, muito equilibrado e apelativo. Mas como ambos são aprovados como Grande Reserva, têm também que ter extracto, matéria. O lote é feito a partir das vendas, numa filosofia de crescimento sustentável. O Pégo GR faz assim 10 mil litros, enquanto o Grifo GR faz 5 mil. Um e outro são feitos 75% em lagar, e passam por barricas de 300l de carvalho francês, 50% novas, durante 12 a 18 meses.

Moreira
Jorge Moreira espalha a sua actividade por várias empre­sas, com vinhas em vários locais, rio abaixo e rio acima. Focamo-nos para já nos vinhos brancos. O La Rosa Reser­va vem de uvas da zona de Pombal do Norte e de zonas altas (500m) junto ao Pinhão. É, assim, um Cima Corgo. A base do vinho é Rabigato e Síria (antiga Códega), fer­mentado em madeira (30% nova), e Arinto e Gouveio em madeira usada. As uvas têm características diferentes, é preciso avançar com prudência. São prensadas, macera­das, com uma extracção que permita a maior complexi­dade possível, mas também o maior equilíbrio possível ao mesmo tempo.

O ano de 2015 mostrou um vinho muito atraente e boni­to, fácil de gostar. Usualmente as vinhas têm muito pouca produção, dando mostos muito concentrados, com gran­de carga fenólica, difíceis em jovens. Não houve stress hídrico e os vinhos resultaram macios, com boa acidez, florais. Ou seja, com a mesma acidez, em 2015 os vinhos têm um ponto acima de maturação, o que lhes dá esse apelo imediato. Para Jorge esta é a característica do ano, mas foi a primeira vez que lhe aconteceu, o que não lhe permite prever a evolução dos vinhos. Este La Rosa tem expressão e beleza, pode ser bebido desde já, mas pre­vê-se que melhore durante 10 anos.

Já o Passagem é feito com uvas do Douro Superior, Quin­ta das Bandeiras, a 400m de altitude. As uvas vêm de vinhas velhas, de onde as brancas são separadas, e ainda Códega, Malvasia Fina, Viosinho e Rabigato. Aconteceu o mesmo fenómeno em 2015, pelo que as uvas foram de­sengaçadas e fermentadas como um tinto, dois dias com as películas. Depois foram prensadas e terminam a fer­mentação em madeira usada. A ideia é trabalhar a parte fenólica, extrair fenóis durante a fermentação, usar mui­ta bâtonnage, focar na estrutura para ultrapassar a vinha “pouco interessante”. 2015 deu um vinho onde a beleza aromática se sobrepõe ao resto.

Em suma, no La Rosa temos expressão, complexidade, um vinho impositivo, enquanto no Passagem temos aus­teridade, estrutura, componentes fenólicas, pensando numa maior evolução em garrafa. Nos tintos, a ideia é ter no DS intensidade, concentração, densidade, sedu­ção, expressão de beleza, enquanto no CC Jorge procura maior complexidade e estrutura, mais comprimento, uma boa componente aromática e de sabores, é mais pensado para crescer em garrafa. Como enólogo, Jorge procura sempre a frescura, mas não à custa do carácter do Douro.

Dar aos remos
Fecho esta pequena viagem, onde tentei entender o que une e o que divide as sub-regiões mais emblemáticas do Douro. Se no Cima Corgo a tradição era de Porto, foi no Douro Superior que muitos grandes tintos nasceram. O Douro Superior talvez tenha uma ligeira vantagem de não ter o Porto a fazer tanta pressão para levar as melhores uvas. Por outro lado, o Cima Corgo tem vinhas mais ve­lhas, maiores tradições vitícolas, talvez um pouco mais de diversidade de terroirs. Mas o Douro Superior tem tam­bém muitos terroirs diversos, incluindo altitudes maiores e climas mais extremados. Este é um sistema de equa­ções que se explora e resolve com muito agrado.