Editorial Dezembro: Questão de identidade

Editorial

Editorial da edição nrº 92 (Dezembro 2024) Na Grande Prova desta edição, dedicada aos tintos mais ambiciosos do Alentejo, Nuno de Oliveira Garcia levanta uma questão bem interessante que tem a ver com a identidade regional. Diz o autor que “a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre […]

Editorial da edição nrº 92 (Dezembro 2024)

Na Grande Prova desta edição, dedicada aos tintos mais ambiciosos do Alentejo, Nuno de Oliveira Garcia levanta uma questão bem interessante que tem a ver com a identidade regional. Diz o autor que “a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre si. Vinhos intensos, exuberantes e capitosos, fantásticos na sedução, mas, em vários casos, parecidos uns com os outros. Numa região com sub-regiões tão diversas, e terroirs distintos (…), seria positivo encontrar registos mais diversificados.” Acrescenta Nuno de Oliveira Garcia que o mesmo se passa com outras regiões. E dá o exemplo das recentes provas de Lisboa ou Douro, em que “os topos de gama tendem a uma uniformização no que respeita ao ponto de maturação fenólica e ao uso da barrica”.

Esta é uma daquelas questões em que, como no dito popular, se “é preso por ter cão e preso por não ter”. Por um lado, pretendemos que uma região vitivinícola tenha uma evidente identidade, que os seus vinhos obedeçam a um denominador comum. Ou seja, que os aromas e sabores de um Barolo, um Borgonha, um Douro, um Alentejo, nos remetam para a sua origem. Por outro lado, quando compramos vinhos de uma dada região não queremos que nos cheire e saiba tudo ao mesmo. Sobretudo, quando a região é, em si mesma, diversa. E o Alentejo, é, claramente, a região mais diversa de Portugal, pela dimensão e pela quase infinita combinação de solos, climas e castas que abraça. Não por acaso, o Alentejo está hoje dividido em 8 sub-regiões, um número que até poderia (e deveria) ser alargado. Se conjugarmos identidade e massa crítica, faz hoje todo o sentido que Beja obtenha igual estatuto. E, no futuro, assim adquira produtores suficientes, também o Alentejo litoral.

No que a vinhos respeita, a identidade estabelece-se em três níveis. O primeiro, mais alargado, é o regional. E aqui, o Alentejo cumpre inteiramente. Um “clássico” blend de Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira sabe a Alentejo, do mesmo modo que um “moderno” blend de Syrah, Alicante e Tinta Miúda sabe a Alentejo.
Um segundo nível de identidade está no perfil sub-regional. E aqui, concedo, são poucos os vinhos alentejanos que o manifestam. Uma das razões poderá estar na generalização do Alicante Bouschet a praticamente todos os tintos de topo produzidos na região. É difícil evitá-lo, já que esta casta alentejana de adopção, quando bem trabalhada na vinha e na adega, dá origens a vinhos esplendorosos, tornando-se a espinha dorsal dos melhores blends ou resultando em varietais de grande impacto. Mas se o propósito for expressar a sub-região (um caminho que cada produtor é livre de seguir ou não) acredito que variedades antigas e hoje minoritárias, como Castelão, Moreto, Alfrocheiro, Tinta Grossa, Tinta Caiada ou, mesmo, Trincadeira, serão bem mais eficazes. Os vinhos das vinhas velhas, que felizmente ainda existem em várias sub-regiões, dão sustento a esta tese.

O terceiro e derradeiro patamar de identidade está no estilo do produtor. Mas para se ter um estilo, reconhecido pelo consumidor, é preciso saber exactamente o que se quer, ser determinado e criativo, seguir o seu caminho, eventualmente contra modas e opiniões. Isso não é para todos, seja no Alentejo, no Douro ou em qualquer outra região de Portugal ou do mundo. No entanto, eles andam aí. Caso paradigmático: apesar de baseados na mesma casta (Alicante Bouschet, o tal “uniformizador”…), estarem ambos situados no norte do Alentejo, e terem origens históricas na mesma família, Gloria Reynolds e Mouchão têm estilos muito próprios, inconfundíveis. E termino com o exemplo do famoso Pêra-Manca, tinto de singular personalidade. Curiosamente, aqui não há Alicante Bouschet, só Trincadeira e Aragonez de parcelas especiais, balseiros para fermentação e tonéis antigos para estágio. Parece fácil, não é? L.L.

Editorial Novembro: O Douro, por quem o fez

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Editorial da edição nrº 91 (Novembro 2024) A Grande Prova de tintos do Douro que publicamos nesta edição, levou-me a pesquisar os resultados das provas similares que esta equipa de provadores realiza com periodicidade anual desde há quase três décadas. O resultado foi um autêntico mergulho na história do Douro pela mão dos seus principais […]

Editorial da edição nrº 91 (Novembro 2024)

A Grande Prova de tintos do Douro que publicamos nesta edição, levou-me a pesquisar os resultados das provas similares que esta equipa de provadores realiza com periodicidade anual desde há quase três décadas. O resultado foi um autêntico mergulho na história do Douro pela mão dos seus principais protagonistas.
Os alicerces do Douro moderno começaram a ser construídos na vindima de 1990 através do tinto Duas Quintas, (o Reserva nasceu em 1991), seguido do Quinta da Gaivosa em 1992, Quinta do Crasto em 1994, Vale D. Maria em 1996, Quinta da Leda em 1997. Quando a estas se juntaram, em 1999, três outras marcas de topo – Batuta, Quinta do Vallado e Quinta do Vale Meão – o “Douro além do Porto” ficou lançado.

Comecei, precisamente, pela prova realizada em novembro de 1999. Naturalmente, as marcas nascidas nessa vindima estavam ainda fora da equação. Mas resulta curioso verificar que os tintos melhor classificados nesse embate espelham ainda um mix entre o Douro do “antes” e do “depois”: Barca Velha 1991 (quando o Barca Velha ainda se “atrevia” nestas provas comparativas), Confradeiro 1994 e Quinta do Côtto Grande Escolha 1995, de um lado; Vinha do Fojo 1996, Quinta da Gaivosa 1995 e Duas Quintas Reserva 1994, do outro. Interessante também constatar o tempo de estágio a que os melhores vinhos, mesmo os das marcas “novas”, eram submetidos antes de chegarem ao mercado. Progressivamente, esse ónus iria passar para o consumidor.
Nos vencedores de 2003 assistimos já ao surgir de uma constelação e ao esmorecer de algumas das estrelas antigas: Batuta 1999, Chryseia 2001, Quinta do Vale Meão 1999, Quinta da Leda 1999, Quinta do Vallado Reserva 1999, Duas Quintas Reserva 1999 e Quinta da Gaivosa 1999. Nas provas de 2004 e 2005 juntaram-se a estes, outros campeões: Lavradores de Feitoria Grande Escolha 2001, Quinta do Crasto Maria Teresa 2001, Pintas 2003, Poeira 2003, Quinta de la Rosa Reserva 2003.

Ao longo dos anos seguintes, diversas marcas se intrometeram no topo das classificações: Quinta das Tecedeiras, Quinta de Macedos, Quinta do Infantado, Ázeo, Quinta da Gricha, Passadouro, Quinta dos Frades Vinhas Velhas, Conceito, Kopke Vinhas Velhas, Quinta da Casa Amarela Grande Reserva, Maritávora Reserva, Quinta de S. José Reserva, CV, Quinta da Touriga-Chã, Quinta do Noval, Quinta do Monte Xisto, Carvalhas, Duorum Reserva, Xisto, Quinta da Manoella Vinhas Velhas. Algumas, nunca mais abandonaram os lugares cimeiros.

A prova de 2014 tinha um título sugestivo – “Rumo à elegância” – assinalando uma tendência que ainda hoje se mantém. O espaço limitado nesta página obriga-me, a contragosto, a saltar mais uns anos, para 2020, o ano do covid-19. Movidos pela conjuntura, estabelecemos um limite de preço (€30) à prova anual. As casas emblemáticas impuseram-se: Monte Meão Vinha dos Novos 2017, Vallado Reserva 2017, Pintas Character 2017 e Quinta do Crasto Vinhas Velhas 2017. E termino esta breve viagem com as provas de 2022 e 2023, e com o advento dos vinhos de parcela, vários deles a inscrever o seu nome entre os vencedores: Vallado Vinha da Granja 2018, Quinta da Boavista Vinha do Oratório 2018, Quinta Nova Centenária 2019, Quinta Vale D. Maria Vinha do Rio 2020, Pala Pinta 2020 (dos irmãos Maçanita), Quinta da Romaneira Carrapata 2021, Quinta de São Luiz Vinha Rumilã 2018.

Esta é, muitíssimo resumida, a história do Douro moderno, região de vinhos grandiosos nascidos numa viticultura de montanha, de baixas produções e elevado custo. Apontar como solução para a crise fazer vinhos para destilar e aguardentar o Porto, e assim competir com regiões destiladoras que produzem 25 toneladas por hectare e fazem vinhos que para mais nada servem, não é apenas estúpido. É também um atestado de incompetência e um desrespeito pelo Douro e pelas suas gentes. (LL)

Editorial Outubro: Lisboa é um mundo

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Editorial da edição nrº 90 (Outubro 2024) Tenho uma relação ambivalente com a cidade de Lisboa, de onde saí há quase 30 anos, rumando a norte para me instalar numa pacata vila no coração da Bairrada. Na altura queria muito deixar a capital, fugir do trânsito da A5 e do bulício da Baixa, buscando uma […]

Editorial da edição nrº 90 (Outubro 2024)

Tenho uma relação ambivalente com a cidade de Lisboa, de onde saí há quase 30 anos, rumando a norte para me instalar numa pacata vila no coração da Bairrada. Na altura queria muito deixar a capital, fugir do trânsito da A5 e do bulício da Baixa, buscando uma certa ruralidade que associava a qualidade de vida. Para trás deixei muitas coisas boas: a baía de Cascais, a rua Direita, o Guincho, a marginal ao sábado de manhã, o sol de inverno no Terreiro do Paço, a oferta gastronómica da cidade grande. Nunca me arrependi, porém, e hoje cada fugidia visita a Lisboa reforça – e de que maneira! – a certeza da decisão.

Fazendo da escrita de vinhos profissão, queria habitar numa região vitivinícola. Curiosamente, o destino bairradino foi um acaso, uma oportunidade, não a primeira escolha. Essa, estava há muito fixada em Alenquer e seus arredores. Relativamente perto da urbe, para não cortar de vez todos os laços, mas suficientemente longe para poder usufruir da paz rural. Viver entre colinas, vinhedos e moinhos, com a serra e o mar, casas de traça antiga recuperadas com bom gosto. Infelizmente, não era o único lisboeta a pensar assim e logo percebi que as bonitas casas de Alenquer estavam fora do meu alcance. Mas o gosto pela então chamada Estremadura, e pelos vinhos ali produzidos, nunca se perdeu.

Os vinhos de Lisboa, hoje, pouco têm a ver com os de há 30 anos, quando marcas como Quinta da Abrigada, Quinta de Pancas, Quinta das Cerejeiras ou Casa das Gaeiras brilhavam nos restaurantes da capital, entre uma imensidão de vinho indiferenciado que a região produzia e vendia a granel. A faixa litoral a que hoje chamamos região dos vinhos de Lisboa (ex Oeste, ex Estremadura), sempre foi terra de produtores de vinho com larga visão empresarial, gente capaz de rapidamente converter vinhas e adegas para oferecer ao mercado aquilo que, num dado momento, o mercado precisa. E historicamente assim foi com África, com as tabernas lisboetas, com os supermercados do Reino Unido, com os exigentes consumidores do norte da Europa ou dos EUA. Nos primeiros oito meses de 2024, os números de Lisboa estão em contraciclo: crescimento de 4% face o mesmo período de 2023 e 80% do vinho exportado.

A Grande Prova que publicamos nesta edição mostra a enorme diversidade da oferta, assente num verdadeiro caleidoscópio de castas e perfis de vinho, que a dinâmica região de Lisboa disponibiliza. Basicamente, os produtores de Lisboa estudam as condições do seu território em termos de solos e clima – sendo a proximidade do mar e a maior ou menor protecção da serra de Montejunto determinantes – e definem as variedades que querem plantar em função do seu modelo de negócio ou do perfil de vinho que ambicionam. Não existe uma receita infalível para o sucesso: é possível desenvolver um projecto recompensador com base em 20 ton/ha de Caladoc ou 6 ton/ha de Castelão. Tudo depende da dimensão da exploração e do mercado alvo. E o produtor da região está sempre pronto a experimentar coisas novas. Veja-se o notável desempenho da casta Viosinho, a caminho de se tornar mais famosa em Lisboa do que na região de origem…

Quer isto dizer que a heterogeneidade dos vinhos de Lisboa apaga a sua identidade regional? Não, de modo algum. E não é preciso ir buscar as DOC históricas de Colares, Bucelas ou Carcavelos para o atestar. A dimensão atlântica dos vinhos de Lisboa, a sua frescura, é um fio condutor que nos guia entre os múltiplos aromas e sabores. E, com o tempo, aprendemos a distinguir e a apreciar as nuances próprias de cada origem: Alenquer, Óbidos, Torres Vedras, Arruda, Encostas d’Aire… Afinal de contas, Lisboa é um mundo. LL

 

 

 

Editorial Setembro: Sentido de origem

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Editorial da edição nrº 89 (Setembro 2024) Gosto de vinhos com forte identidade regional, com aquela particular combinação de aromas e sabores que toca as nossas memórias sensoriais e nos remete de imediato para um local, um território, uma origem. Esses denominadores comuns que sentimos no copo são, sobretudo, construídos com base em clima, solo […]

Editorial da edição nrº 89 (Setembro 2024)

Gosto de vinhos com forte identidade regional, com aquela particular combinação de aromas e sabores que toca as nossas memórias sensoriais e nos remete de imediato para um local, um território, uma origem.

Esses denominadores comuns que sentimos no copo são, sobretudo, construídos com base em clima, solo e casta (ou castas). O peso da variedade de uva nesta conjugação é muito importante e o único factor de construção identitária – além do trabalho na vinha e na adega, claro – que depende mais do Homem do que da Natureza. Tão importante é a casta na definição de uma Denominação de Origem que, na tradição vitivinícola europeia, nunca é deixada ao livre-arbítrio do produtor. Ou seja, na prática, quem quiser ser amparado pela protecção e estatuto DOC de Bordeaux, Barolo, Rioja, Bourgogne, Chianti, Champagne, Rueda, etc., tem de se cingir a um conjunto de variedades “tradicionais” previstas na lei, em alguns casos com percentagens mínimas obrigatórias para as mais relevantes. Mas quem quiser usar as castas em que mais confia, não deixa de poder fazer grandes vinhos: terá sempre ao dispor as muito menos restritivas IG (Vinho Regional). No meio de tudo isto, claro, há regiões mais “fechadas” e regiões mais “abertas” quanto à introdução (sempre progressiva e muito escalonada no tempo), de castas externas, sendo que as DOC mais antigas tendem a estar no campo das primeiras e as mais recentes nas segundas.

Sendo a mais antiga do mundo, o Douro é um bom exemplo. Na prova de rosés que publicamos nesta edição, dos 15 vinhos provados, 14 combinam as variedades Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinto Cão (esta última cada vez mais usada para rosés ambiciosos), em conjunto ou em separado. O único (por sinal, belíssimo) que sai fora do “alinhamento” utiliza Pinot Noir e não pode por isso ser Douro, sendo certificado como IG/Regional Duriense. No Douro, o Pinot Noir é apenas admissível para espumante.

Regra geral, nas regiões clássicas, apesar de haver muitas “castas históricas” disponíveis, os produtores utilizam um número reduzido, reforçando assim, mais ainda, a identidade regional. É o caso da Bourgogne onde, com mais de dúzia e meia de uvas brancas e tintas legalmente admissíveis, 90% do encepamento se divide entre Chardonnay e Pinot Noir. Já nos tintos de topo do Douro temos vindo a assistir a um processo de concentração semelhante, com uma nuance, focada em dois modelos distintos: um, maioritário, assenta no blend Touriga Franca/Touriga Nacional, com ou sem tempero residual de outras castas; outro, minoritário, recorre ao field blend de vinhas velhas, onde a localização é, quase sempre, mais importante do que o encepamento.

A Bairrada seguiu um caminho totalmente oposto ao do Douro. Em 2003 abraçou um vastíssimo catálogo de variedades nacionais e estrangeiras – praticamente todas as de que se lembraram – ao invés de as relegar para o IG (convenhamos, o nome – Beira Atlântico – não ajuda nada), tornando-se assim a DOC mais “aberta” de Portugal. Um passo, a meu ver, disparatado e contra o qual me insurgi por diversas vezes. Sem questionar a qualidade das “novas”, temia que a vontade declarada de substituir as uvas clássicas por Cabernet, Viognier, Sauvignon, Merlot, Syrah, Petit Verdot, diluísse completamente a identidade regional. Hoje, a minha indignação de há duas décadas dá-me vontade de rir. Devia ter tido mais fé na região, na resiliência dos poucos produtores que não embarcaram no canto da sereia e no seu exemplo mobilizador. Vinte anos volvidos, a Grande Prova deste mês espelha a Bairrada de hoje: entre 26 tintos, apenas 3 incluem castas provenientes do descontrolo varietal de 2003…. Podia ter poupado o meu latim. LL

 

Editorial Agosto: A crise, outra vez

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Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024) “Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o […]

Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024)

“Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o sector do vinho atravessa?

Estou convencido que a crise veio apenas avolumar os efeitos de um vasto conjunto de deficiências crónicas que o sector possui. O sector do vinho em Portugal é pesado, pouco criativo, pouco atento ao mercado e ao consumidor e (ainda) pouco profissional.

Apesar de não existirem estatísticas sobre essa matéria, certamente não irei errar se disser que bem mais de metade dos agentes económicos ligados à produção de vinho não são profissionais. Ou seja, não fazem do vinho a sua actividade principal e não possuem escala para criar e manter uma estrutura profissional. Uma situação confrangedora quando se compara com a realidade espanhola ou francesa, para já não dizer americana ou australiana, onde o vinho é encarado como uma indústria, um negócio, e não como a “concretização de um sonho”.

Na verdade, uma parte considerável dos novos produtores surgidos em Portugal na última década é constituída por profissionais liberais, industriais, comerciantes, que herdaram ou compraram vinhas, que durante algum tempo venderam uvas e que a dada altura quiseram ver o seu nome ou da sua quinta numa garrafa. A sobrinha que tem jeito para o desenho deu uma ajuda no rótulo, o restaurante onde come todos os dias prometeu vender umas caixas, os amigos que dizem que o vinho é uma maravilha vão ficar com algum e, portanto, não haverá dificuldade alguma em vendê-lo, até porque são só 50 mil garrafas. Pois é… O mercado nacional acabou inundado de produtores que têm 50 mil garrafas para vender. Mas o mercado não é infinito e, naturalmente, quando há menos dinheiro disponível, retrai-se. Resultado: está (quase) toda a gente a vender menos do que esperava.

A solução, dirá qualquer profissional, está em procurar novos mercados. Mas quantos destes produtores “amadores” têm disponibilidade para passar meses viajando pelo mundo, fazendo contactos, procurando distribuidores, promovendo o seu vinho? Se nem em Portugal têm tempo ou vontade para abordar pessoalmente ou acompanhar vendedores a garrafeiras e restaurantes, preferindo esperar que o vinho se venda por si! Está difícil vender? Mas porque é que havia de ser fácil? Se até para os que vivem disto dá muito trabalho…

Não há mal nenhum em satisfazer uma paixão, mesmo uma paixão cara como é a produção de vinho. Aliás, alguns dos grandes vinhos do mundo são propriedade de pessoas que ganharam dinheiro noutras áreas e chegaram ao vinho movidos pela simples paixão. Mas que só foram bem-sucedidos porque tiveram dimensão ou meios para criar uma estrutura profissional capaz de levar o negócio avante. Os outros ficaram pelo caminho, fartos de perder dinheiro todos os anos num negócio que tem exigências a que não conseguiam corresponder. Algo que, inevitavelmente, virá a acontecer a muitos produtores portugueses.

É que, no vinho, a paixão e o negócio são coisas diferentes, ainda que complementares. E se é verdade que o negócio do vinho precisa de paixão para se desenvolver, a paixão, só por si, não garante nada. Na maior parte dos casos, aliás, só garante dissabores…

 

Nota: Fiz uma pesquisa nos mais de 400 editoriais mensais que escrevi desde 1989 e a “Crise” foi tema 7 vezes, com vários anos de intervalo. O texto que em cima reproduzo foi publicado em Agosto de 2003, faz precisamente agora 21 anos. É assustador perceber que continua actual e que em mais de duas décadas não aprendemos nada.

Editorial Julho: Ouro dos Tolos

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Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)   Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.   Desde os primórdios da humanidade que os bens mais […]

Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)

 

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.

 

Desde os primórdios da humanidade que os bens mais raros, difíceis de encontrar ou conseguir, são os mais valorizados. No fundo, faz parte da natureza humana tudo fazer para possuir o que os outros não têm. Veja-se o ouro, por exemplo, matéria-valor por excelência. Enquanto metal, tem muito pouca utilidade prática. E, no entanto, travaram-se guerras por ele (ainda hoje se travam guerras por petróleo, um bem, apesar de tudo, mais disponível e muito mais útil…)

O mesmo princípio se aplica a todos os bens de consumo, das roupas aos automóveis, passando pela comida e, claro, pelo vinho. No que respeita a este último, existe, até certo ponto, uma relação directa entre a qualidade e a quantidade disponibilizada. A razão é simples: nem todos os territórios (regiões) têm o mesmo potencial para alcançar excelência; mesmo nas melhores zonas das melhores regiões, nem todas as vinhas possuem a mesma aptidão qualitativa; e mesmo as melhores videiras, plantadas nos melhores locais, necessitam ter a sua produção limitada (natural ou artificialmente) para originar as melhores uvas. Os grandes vinhos não existem em grandes quantidades.

Ainda assim, podemos encontrar marcas de excelência mundial a produzir volumes apreciáveis em cada vindima. Alguns exemplos: Château Mouton Rotschild, 240 mil garrafas, sensivelmente a mesma quantidade do Lafite Rothschild; Château Latour, 200 mil; Château Margaux, 120 mil; Vega Sicilia Único, 100 mil; Sassicaia, 100 mil; Cheval Blanc, 72 mil. Tenha-se igualmente em conta que várias das melhores marcas do mundo podiam perfeitamente produzir mais garrafas com a mesma qualidade. Mas há um limite para o que o mercado pode absorver a um determinado preço num determinado momento. E é preciso gerir a escassez para que o preço não caia. O Porto Vintage é um bom exemplo: apesar de haver todas as condições qualitativas (vinha, adega e conhecimento) para se produzir bastante mais, a verdade é que a produção global é muito inferior à registada há 30 ou 40 anos.

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão, pela sua própria cultura empresarial, não consegue atingir o patamar máximo da excelência, ficando esse privilégio reservado aos pequenos produtores. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma. A Sogrape é mesmo um caso de estudo, já que produz, ao mesmo tempo, a referência mais vendida (Mateus) e a de maior notoriedade (Barca Velha).

Mas parece evidente que, em Portugal e no mundo, existe uma tendência para sobrevalorizar a raridade vínica. Os restaurantes mais exclusivos procuram oferecer aos seus clientes vinhos igualmente exclusivos, produzidos em pequeníssimas quantidades, por vezes algumas centenas de garrafas, associadas a uma boa estória que o sommelier transmite ao cliente.

Nada de errado nisto, um vinho vale aquilo que se está disposto a pagar por ele. Mas é importante que quem compra saiba, pelo menos, duas coisas. Primeiro, poucas garrafas produzidas não significam, necessariamente, qualidade acrescida. Segundo, pequeno produtor não implica maior atenção ao produto ou maior proximidade à origem – aliás, vários desses vinhos “exclusivos” foram comprados já feitos em grandes adegas e quem assina o rótulo nunca viu as vinhas onde nasceram.

Quando da corrida ao ouro em vários estados dos EUA, ao longo do século XIX, ficou famoso o “fool’s gold”, o ouro dos tolos. Basicamente, pirite de ferro que os garimpeiros menos experientes tomavam por ouro, acreditando ter ficado ricos. Muitos enlouqueciam quando descobriam a crua verdade: nem tudo o que luz é ouro.

 

Editorial Junho: Barrel Haters

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Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024) Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. […]

Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024)

Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. É assim na arquitectura, na cultura, na indústria automóvel, no vestuário, na música, até na medicina.

A ligação entre o vinho e a madeira é multisecular, primeiro como vasilha para o transportar e guardar, mais tarde como processo de afinamento. A primeira vez que o enófilo nacional contactou, de forma generalizada, com o efeito da barrica nova de carvalho terá sido com os vinhos da antiga JP Vinhos (hoje Bacalhôa), em tintos como Quinta da Bacalhôa, Má Partilha, Meia Pipa ou o branco Catarina. Na altura, final dos anos 80, era a escola australiana que ditava as regras e lembro-me bem do enorme frenesim que toda aquela baunilha e tosta causou junto de apreciadores ávidos de coisas novas. Rapidamente, a barrica tornou-se símbolo de estatuto, luxo, sinal exterior de riqueza. E ainda hoje, queiramos ou não, mantém esses atributos. Em Portugal ou no mundo, raro é o vinho com ambição que não passa por barrica nova, no todo ou em parte. De tal forma o poder aspiracional da barrica foi abraçado pelo consumidor que o “efeito madeira” se estendeu aos vinhos mais humildes, que não gerando valor que permita ter a coisa verdadeira, utilizam eficazmente os seus sucedâneos. Quem compra um Reserva tinto por €3,49 também tem direito a saborear a baunilha, pois então! Como bem sabemos, quando muita gente gosta da mesma coisa, surgem os ódios de estimação, com o único objectivo de vincar uma diferença e uma suposta superioridade. Quantas vezes assisti, em sessões de prova, ao arrasar de um vinho com o singular argumento de que se “sente a madeira”…

A barrica de madeira é uma ferramenta enológica como qualquer outra, como o lagar, como o ovo de cimento (hoje na moda, mas o ódio virá um dia), como a ânfora de barro. E como toda a ferramenta, é preciso saber usá-la. A diversidade (e qualidade!) das barricas disponíveis no mercado é gigante. Uma barrica de inferior qualidade, de tipo não adequado ao fim em causa (origem, tosta, grão) ou mal empregue, origina um vinho desequilibrado, onde a ferramenta usada se sobrepõe ao produto criado. Como pode acontecer com um lagar ou uma ânfora de barro.

Curiosamente, quem diaboliza a mais leve sugestão de fumado ou especiaria da barrica, é capaz de acolher embevecido e lacrimejante de prazer o aroma a pez da talha ou o sabor taninoso do engaço verde no lagar. Mais espantoso ainda: esses “haters” inchados de conhecimento, para quem qualquer reminiscência de barrica num vinho português é sinal de vulgaridade, são precisamente os mesmos que idolatram os Gran Reserva clássicos de Rioja, como Murrieta Castillo Ygay, Viña Ardanza, Viña Tondonia, Muga Prado, Contino ou Cvne Imperial. Vinhos que passaram três, quatro ou mais anos em barricas novas de carvalho. E carvalho americano, sobretudo!

No que a vinhos respeita, gosto de ser eclético. Aprecio tudo o que cheira e sabe bem. Se tiver forte personalidade, melhor ainda. Ygay ou Quinta do Crasto, por exemplo, usam a barrica nova para exprimir a sua identidade. Outros fazem-no através do lagar de granito, da talha pesgada, do tonel centenário, do ovo de cimento ou até (sim!), do inox. Quem nunca provou Encruzado ou Alvarinho largos anos estagiados em inox não sabe o que é bom.

Há tanta intolerância e imbecilidade no mundo. Deixem lá a madeira em paz.

Editorial Maio: Bolhas

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Editorial da edição nrº 85 (Maio 2024) A capa desta edição da Grandes Escolhas é dedicada à Raposeira, notável casa de espumantes. Para quem cresceu nos anos 80, espumante era Raposeira. Na época, os vinhos nem seriam grande coisa, (a compra pela Seagram levou ao desinvestimento no produto e foco na distribuição, ciclo negativo que […]

Editorial da edição nrº 85 (Maio 2024)

A capa desta edição da Grandes Escolhas é dedicada à Raposeira, notável casa de espumantes. Para quem cresceu nos anos 80, espumante era Raposeira. Na época, os vinhos nem seriam grande coisa, (a compra pela Seagram levou ao desinvestimento no produto e foco na distribuição, ciclo negativo que durou duas décadas, até à entrada da Murganheira) mas estavam em todo o lado. Eu que o diga, já que, na adolescência, cabia-me ir à pastelaria buscar o bolo e a garrafa de Raposeira meio-seco para comemorar aniversários e festividades familiares.

O espumante, no Portugal urbano nas décadas de 80 e 90, era isto. Doce e meio-seco, bebido a acompanhar sobremesas (a Bairrada e o leitão eram caso à parte) e reservado para eventos e momentos especiais. Esses tempos já lá vão, felizmente. Hoje, nos principais mercados vínicos do mundo, o espumante é a categoria que mais cresce. E apesar desse crescimento ser feito, sobretudo, à conta de Champagne, Prosecco e Cava, outras regiões e países produtores surfam velozes a onda das bolhinhas. Portugal não é excepção. A tendência não passa despercebida aos produtores nacionais e sinal disso é encontrarmos espumante no portefólio de tantas marcas, mesmo em regiões onde nunca houve tradição desta bebida.
A “democratização” da produção de espumante, evidentemente positiva, esconde uma vertente menos boa. É que, para muitos produtores, produzir espumante parece ser coisa fácil. Ainda mais facilitada, nos dias de hoje, pelas leveduras encapsuladas, que simplificam (não oferecendo, embora, os mesmos resultados que as leveduras livres) o moroso trabalho de removimento das garrafas. Mas se produzir um bom vinho com gás é algo aparentemente simples, criar um grande espumante não está ao alcance de todos.

Acontece que o espumante é a bebida vínica mais especializada que existe. Produzir um espumante de nível superior requer não apenas um profundo conhecimento (feito de experiência e ciência) como também condições e equipamentos muito específicos, que vão desde a prensagem da uva para o vinho base até ao degorgement da garrafa espumantizada. Não é certamente por acaso que a quase totalidade das mais famosas marcas de espumante do mundo têm origem em casas totalmente focadas neste tipo de vinho.
Poderia dar muitos exemplos, mas um bastará para percebermos o que quero dizer. Absolutamente crucial na definição da qualidade e complexidade de um espumante é a fermentação na garrafa e o estágio em cave a uma temperatura constante (idealmente 13/14ºC) ao longo de todo o ano. O tempo passado nesse ambiente faz toda a diferença. Sabendo isso, os empresários portugueses que, nas primeiras décadas do século XX, se dedicaram à produção de espumante, construíram laboriosamente túneis debaixo do chão, para ali colocar as preciosas garrafas. Apropriadamente, chamamos Caves a estas empresas.

Como é então possível que, quase 100 anos depois, e quando temos ao dispor tecnologia de climatização que os antigos nem sonhavam, tantos produtores nacionais acreditem que é possível fazer um espumante de qualidade superior deixando as garrafas empilhadas em locais que atingem 7ºC no inverno e 35ºC no verão?
É por isso que os vinhos elaborados pela Raposeira (e pelos produtores que, em diversas regiões, encaram o espumante como produto principal) têm algo de diferente. Quem quiser fazer tão bem quanto eles, só tem um caminho a seguir: pensar o espumante não como um simples complemento de gama, mas como um vinho de topo, digno da máxima atenção e de particulares cuidados. O espumante e os seus apreciadores merecem.