Ser sustentável

Luís Lopes

Vivemos numa sociedade de consumo o que implica, por um lado, delapidação de recursos naturais e, por outro, desperdício. A produção de bens alimentares (vinho incluído) não foge a esta regra. O que mudou, sobretudo na última década, foi a consciência ambiental, e hoje em dia a preocupação de muitos consumidores e produtores esclarecidos passa […]

Vivemos numa sociedade de consumo o que implica, por um lado, delapidação de recursos naturais e, por outro, desperdício. A produção de bens alimentares (vinho incluído) não foge a esta regra. O que mudou, sobretudo na última década, foi a consciência ambiental, e hoje em dia a preocupação de muitos consumidores e produtores esclarecidos passa por minimizar os efeitos da nossa pegada no planeta.

TEXTO Luís Lopes

 

Convenhamos, o conceito de sustentabilidade não é algo inteiramente claro aos olhos do apreciador de vinho. Para muitos, a sustentabilidade junta-se no mesmo saco a um vasto conjunto de sub-categorias, muitas das quais pouco ou nada têm a ver com sustentabilidade. O mais recente trabalho da Wine Intelligence (empresa de referência que realiza estudos de mercado um pouco por todo o mundo) define nada menos do que 13 categorias naquilo que baptizou de índice SOLA (acrónimo de “sustainable, organic and lower alcohol”). Listadas por ordem de interesse e oportunidade em 15 diferentes mercados (incluindo o português), são elas: vinho orgânico, vinho produzido de modo sustentável, vinho de comércio justo, vinho amigo do ambiente, vinho sem conservantes, vinho sem sulfitos, vinho de adega com neutralidade carbónica, vinho de baixo teor alcoólico, vinho “laranja”/curtimenta, vinho biodinâmico, vinho sem álcool, vinho vegan, vinho vegetariano. Por aqui se vê que pegada de carbono, orgânico, sulfitos, vegan (e ainda podíamos juntar aqui os chamados “vinhos naturais”, que ninguém sabe bem o que são) se misturam num caldeirão de conceitos que traduzem algo bastante vago e indefinido, mas que poderíamos resumir como “vinhos alternativos”.

Na verdade, é óptimo que as pessoas procurem coisas diferentes, que fujam do chamado “mainstream”. Mas seria ainda melhor que não se confundissem gostos, modas, ou tendências, com algo tão fundamental para a vida de todos nós quanto a sustentabilidade.

A começar, desde logo, pelos dois conceitos mais atractivos para os novos consumidores: sustentável e orgânico são coisas distintas. É possível ser-se orgânico sem se ser mais sustentável (sobretudo ao nível da pegada de carbono, além da polémica questão do cobre) e é possível ser-se mais sustentável sem aderir ao orgânico. O orgânico é um dos vários caminhos para a sustentabilidade e, tal como todos os outros, um caminho com desafios difíceis e buracos escondidos. Não existe um modelo perfeito, isento de danos colaterais. A sustentabilidade é, antes de mais, equilíbrio. E esse equilíbrio deve atravessar toda a fileira do vinho, desde a uva até ao copo do consumidor. Uma viticultura sustentável tem de estar associada a uma adega sustentável, a uma embalagem sustentável, a uma logística sustentável, a um comércio sustentável, no fundo, se quisermos, a um modo de vida sustentável.

Os vinhos “amigos do ambiente” são negócio de presente e de futuro. Mas mais do que estampar no rótulo da garrafa uma certificação ambiental que ajude a comunicar um produto diferente, é a consciência ambiental, ao nível do individuo, das empresas, da sociedade, que é realmente importante. Um cada vez maior número de produtores de vinho acredita, verdadeiramente, que não pode e não deve desenvolver o seu negócio prejudicando o meio ambiente, a sua sustentabilidade e, em última análise, o futuro das gerações vindouras. Ou seja, opta pela protecção ambiental por convicção, e não por ser “trendy” ou por ser um mercado em crescimento. Da mesma forma que cada vez mais consumidores optam por vinhos produzidos por empresas amigas do ambiente, não porque sejam melhores vinhos mas, sobretudo, porque se preocupam.

Os ganhos ao nível da sustentabilidade conseguem-se através da educação, promovendo uma consciencialização e uma cultura ambiental individual e colectiva. Nesse sentido, o sector do vinho, tendo embora muito para melhorar, tem também boas razões para se orgulhar do muito que já foi feito. Cabe-nos a nós, consumidores, fazer a nossa parte.

Edição n.º28, Agosto 2019

Superior

Luís Lopes

A parte mais a montante do Douro português desde há muito demonstra ser berço de vinhos brancos e tintos de grande nível, vinhos que unem qualidade e carácter de forma singular e entusiasmante, como agora se viu mais uma vez em Vila Nova de Foz Côa, no Festival do Vinho do Douro Superior. Ainda assim, […]

A parte mais a montante do Douro português desde há muito demonstra ser berço de vinhos brancos e tintos de grande nível, vinhos que unem qualidade e carácter de forma singular e entusiasmante, como agora se viu mais uma vez em Vila Nova de Foz Côa, no Festival do Vinho do Douro Superior. Ainda assim, a regionalite (doença mais comum do que possamos pensar) teima em não reconhecer essa grandeza.

TEXTO Luís Lopes

As regiões vinícolas não são todas iguais, nem têm igual potencial para produzir, de forma recorrente e consistente, grandes vinhos. É por isso que, quando pensamos nos maiores vinhos de França, surgem na nossa mente os nomes de Bordeaux, Bourgogne ou Champagne e não os de Corbières, Cahors ou Saumur; do mesmo modo, em Espanha, pensamos em Rioja ou Ribera del Duero, não nas denominações de origem Ribera del Guadiana, Madrid ou Jumilla; e, já agora, em Itália, a notoriedade de Chianti, Barolo ou Brunello di Montalcino nada tem a ver com a de Sagrantino, Valtellina ou Montepulciano d’Abruzzo. Curiosamente, algumas destas regiões menos conhecidas do enófilo português, são extremamente bem-sucedidas enquanto exportadoras de vinho para todo o mundo. O que evidencia, mais uma vez, que o negócio do vinho é multifacetado, há muitos modelos para chegar ao sucesso e o vinho, enquanto produto, é, felizmente, democrático. Mas isso é outra estória, o tema, hoje, é a capacidade natural de uma região para produzir grandes vinhos.

É sabido que, na mesma zona e, frequentemente, até na mesma vinha, temos parcelas que originam vinhos excelentes e outras, vinhos vulgares. Mais óbvio se torna que, em regiões distintas essas diferenças de consistência qualitativa se avolumem. Isto é natural e não devia ser motivo de disputa regional. O que verdadeiramente me espanta é que, em regiões com várias décadas de provas dadas, com marcas de prestígio mundial e evidente notoriedade junto dos consumidores e opinion makers mais exigentes, a sua capacidade para atingir a grandeza seja constantemente questionada por profissionais do mesmo ofício.

Chamando as coisas pelos nomes. Que diversos enólogos e produtores do Douro manifestem publicamente o seu desprezo global e globalizante pelos vinhos do Alentejo (“são todos iguais”, “são vinhos fáceis”, “é a Austrália de Portugal”, etc.) é algo a que tenho, infelizmente, de me habituar, embora me custe aceitar que alguém avalie dessa forma uma região que, manifestamente, não conhece nem quer conhecer. Mas que profissionais durienses sedeados no Cima Corgo, experientes e de créditos firmados, continuem a afirmar que a sub-região do Douro Superior não está naturalmente vocacionada para produzir vinhos brancos e tintos de primeira grandeza, é algo que só posso atribuir a regionalite aguda (talvez a mesma que em tempos ostracizou o Baixo Corgo e agora já nele vê qualidades e vantagens). Como é que uma zona vitivinícola que viu nascer Barca Velha, Vale Meão, Touriga-Chã, Monte Xisto, Conceito, Vesúvio, Vargellas, Duorum, entre muitas outras marcas de referência, não tem consistência para produzir grandeza? Como é que uma sub-região tão diversa em termos de solos (do xisto ao granito), altitude (do nível do rio aos 750 metros), castas (já viram bem o que a Rabigato está ali a fazer?) pode ser uniformizada desta forma?

O Douro é demasiado complexo, vasto, diverso, para ser amarrado, enquadrado, classificado num estereotipo. Permitam-me um conselho: deixem de lado os preconceitos, mostrem-se superiores a isso, e partam de mente aberta a conhecer os muitos Douro que há por aí. Vão apreciar as surpresas que vos esperam.

Edição Nº26, Junho 2019

Tourigando

Luís Lopes

É a estrela mais brilhante na constelação das castas tintas portuguesas, impondo-se pela sua qualidade, versatilidade e personalidade. Há, porém, quem veja nela uma uva demasiado impositiva, excessivamente dominadora, podendo mascarar a identidade de uma região. Na verdade, a Touriga Nacional é tudo isso e mais ainda. Se fosse criada uma competição para escolher a […]

É a estrela mais brilhante na constelação das castas tintas portuguesas, impondo-se pela sua qualidade, versatilidade e personalidade. Há, porém, quem veja nela uma uva demasiado impositiva, excessivamente dominadora, podendo mascarar a identidade de uma região. Na verdade, a Touriga Nacional é tudo isso e mais ainda.

Se fosse criada uma competição para escolher a casta tinta autóctone que melhor representasse o Portugal do vinho, a Touriga Nacional nem precisaria de ir a jogo: ganharia, desde logo, por falta de comparência ou desqualificação dos potenciais concorrentes. Que variedades se perfilariam? Bom, as estatísticas iriam impor Aragonez/Tinta Roriz, já que é a uva tinta mais plantada entre nós. Mas quem se atreveria a eleger uma casta espanhola, que o mundo conhece como Tempranillo, para porta bandeira dos vinhos de Portugal? Além de que o escasso número de tintos 100% Aragonez existentes no mercado não dava para constituir uma equipa. Touriga Franca? Grande casta, sem dúvida alguma, para mim a que melhor representa o Douro, mas também não existem assim tantos exemplares estremes, além de que a Franca embirra com as correntes de ar, a altitude, a humidade, em suma, tem as suas exigências quando se trata de viajar. Castelão e Baga, as rainhas, respectivamente, das areias de Palmela e dos argilo-calcários da Bairrada? Não gostam de sair do sofá lá de casa. E a Trincadeira/Tinta Amarela menos ainda. Claro, não devemos esquecer a Alicante Bouschet, e até seria divertido espicaçar o orgulho dos franceses com esta casta que adoptámos, mostrando-lhes que fazemos com ela vinhos que eles, que a criaram, nem em sonhos realizam. Mas, na verdade, não poderíamos ir pelo mundo fora apresentá-la como “nossa”. Das portuguesas mais representativas, resta, portanto, a Touriga Nacional. E, convenhamos, não é pouco.

A uva a que damos a capa e o tema principal da Grandes Escolhas de Maio possui muitos e variados atributos. Em primeiro lugar, a sua óbvia qualidade. A consistência qualitativa desta variedade, na vinha e na adega, é muito grande. Tem as suas fragilidades, como todas (não há castas perfeitas), mas o resultado final é, geralmente, bom. Mais do que ser bom, é bom numa grande diversidade de solos, climas e exposições solares. Casta nascida no Dão, onde revela tudo o que tem, a Touriga adapta-se às múltiplas condições oferecidas pelo Portugal vitícola, mostrando-se tão confortável na atlântica Lisboa como no interior alentejano. A polivalência é outro ponto a seu favor: faz belos tintos, rosés e bases brancas para espumante. E, consoante a forma como a tratamos na vinha, faz vinhos orientados para distintos segmentos de preço, dos €5 aos €50.

Deixei propositadamente para o fim aquele que é o seu principal factor diferenciador, positiva e negativamente: a forte identidade. A Touriga Nacional, quando bem trabalhada (sem extrações excessivas), origina vinhos imediatamente reconhecíveis nos seus aromas e sabores. Discreta, é coisa que ela não é. E frequentemente, mesmo em minoria no lote, domina o resultado final, sobrepondo-se às outras castas, por vezes mascarando o perfil regional com a sua intensidade frutada e floral. Já em tempos o escrevi nestas páginas e não me importo de repetir: prefiro ter 20% de Cabernet num lote de Alentejo “clássico” (com Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonez) do que a mesma percentagem de Touriga a abafar as outras variedades.

A Touriga Nacional é a minha casta favorita? Não, de todo. Mas é a melhor que temos e a mais bem colocada para representar a grandeza vinícola de Portugal. É exuberante, vaidosa, impositiva, egocêntrica? Sim, claro. O Cristiano Ronaldo também.

Edição Nº25, Maio 2019

É o clima, idiota!

Luís Lopes

A frase célebre da campanha eleitoral de Bill Clinton (“It’s the economy, stupid!”), presta-se a muitas adaptações, e aplica-se quando é necessário reforçar a importância ou evidência de algo que o interlocutor não percebe ou não aceita. O clima está a mudar e não é para melhor. Há quem não admita, há quem não perceba […]

A frase célebre da campanha eleitoral de Bill Clinton (“It’s the economy, stupid!”), presta-se a muitas adaptações, e aplica-se quando é necessário reforçar a importância ou evidência de algo que o interlocutor não percebe ou não aceita. O clima está a mudar e não é para melhor. Há quem não admita, há quem não perceba e há quem esteja a fazer alguma coisa acerca disso.

Tenho 57 anos. Dizem-me que ao longo da minha vida já “assisti” a mais degelo polar do que qualquer geração que me antecedeu. É um pensamento assustador. Mas, por outro lado, o Ártico fica demasiado longe para ter um impacto directo no meu dia a dia…ou não! Os conferencistas do evento Climate Change Leadership realizado no passado mês de Março no Porto (e sobre o qual publicamos um trabalho nesta edição) foram unânimes: as alterações climáticas são absolutamente evidentes nas suas vinhas, nos seus vinhos e consequentemente, nas suas vidas. Estamos a falar, em muitos casos, de empresas centenárias com registos climatéricos de muitas décadas e onde não há memória da sucessão de fenómenos extremos como os que assistimos hoje em dia: incêndios florestais devastadores no Chile e na Califórnia (que queimaram milhares de hectares de vinhedos), vinhas congeladas em Abril na Catalunha, seca em Mendoza (o degelo primaveril na montanha já não gera a água suficiente), granizo intenso e frequente em Champagne. Vagas de calor, escaldão nas uvas, deficiências de maturação e carências de acidez um pouco por todo o lado.

Portugal não escapa, como é evidente. António Graça, investigador da Sogrape, aponta casos concretos: nas últimas duas décadas, na Europa, as zonas climáticas ideais para plantar Chardonnay transferiram-se cada vez mais para norte; no mesmo período, no vale do Douro, a Tinta Roriz tem vindo a aumentar significativamente o pH e a diminuir a acidez. Para continuar com Tinta Roriz, vai ser preciso mudar de clones. “O terroir está aterrorizado”, refere.

O principal problema está nos chamados gases de efeito de estufa , e nomeadamente no CO2, dióxido de carbono. O que fazer? Travar a progressão do CO2, por um lado; e gerir a mudança, adaptando vinhas e adegas. Como aponta Pau Roca, presidente do Office International de la Vigne et du Vin, trata-se de “redefinir o terroir e os modos de produção”. Miguel Torres, enólogo e investigador, patriarca da empresa familiar espanhola, mostra o que está a fazer desde há mais de uma década: reflorestação e preservação de floresta bio diversa (1.500 ha em Espanha, 700ha no Chile); armazenamento, racionalização e reutilização de água; adaptação dos vinhedos mudando bacelos, clones, sistemas de condução, densidade de plantação, sempre com o objectivo primordial de atrasar as maturações; plantação em altitude; recuperação de castas antigas, de maturação tardia, que resistem ao calor e mantém acidez; modificação total das adegas, a caminho da autonomia energética e hídrica; recuperação e reutilização do CO2 emitido pela fermentação; redução do peso das garrafas; renegociação com fornecedores e logística obrigando-os a um caderno de encargos mais “descarbonizado”.

Isto é o que a indústria do vinho (pelo menos, a esclarecida) já tem em marcha. E nós, enquanto consumidores, o que podemos fazer? Muito, a começar por coisas tão simples no nosso dia a dia como seja, por exemplo, rejeitar o plástico, optar por materiais reutilizáveis ou recicláveis, reduzir o desperdício (de água, de alimentos), preferir os vinhos em garrafas de vidro leve, diminuir as viagens de avião, escolher consumir produtos de proximidade.

A qualidade, e mesmo a viabilidade do vinho, depende do clima. Queremos que os nossos netos possam apreciar um vinho do Douro ou do Alentejo tal como nós os apreciamos hoje? Não é uma projecção catastrófica, é uma ameaça real. Há quem não acredite, há quem não se preocupe, há quem faça alguma coisa. E você?

Edição Nº24, Abril 2019

Reserva, mas não tanto

Luís Lopes

Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente […]

Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente nada.

TEXTO Luís Lopes

A Portaria 239/2012, do Ministério da Agricultura, define as “menções tradicionais”, entre elas os designativos Colheita Selecionada, Escolha, Reserva, Reserva Especial, Grande Reserva, Superior, etc. As diferenças entre eles são subtis, mas, basicamente, exige-se que estes vinhos tenham “características organoléticas destacadas” ou “muito destacadas”, ou seja, que a sua qualidade se demarque claramente da média. Em cima desta lei geral, cada CVR (organismo que gere a certificação em cada região) estabelece normas regionais que podendo ser mais restritivas que a lei geral, não podem nunca ser mais permissivas. Além disso, as CVR definem os critérios técnicos para aferir a “qualidade destacada”. Regra geral, passa por esses vinhos obterem mais alguns pontos na câmara de provadores que faz a certificação. Em teoria, tudo certo. O problema é a prática.
Se corrermos as prateleiras das lojas de retalho encontramos inúmeros exemplos de vinhos que ostentam orgulhosamente designativos de qualidade e que são vendidos a preços ridículos. Numa rápida pesquisa online de tintos Reserva até €3, deparei-me com vinhos que vão desde €1,99 (Dão e Tejo) a €2,99 (Alentejo), passando por valores intermédios, €2,29 (Lisboa) e €2,49 (Setúbal e Douro). Convenhamos: alguém acredita que vinhos vendidos a estes preços (IVA incluído!) possuem “qualidade destacada”? Geralmente são vinhos bem feitos, adequados ao valor que se pede por eles, mas, quase sempre, a única coisa que os diferencia de outro vinho do mesmo patamar qualitativo, é o sabor à madeira que lhes foi adicionada.
Os supermercados limitam-se a vender o que lhes é proposto, aos preços que conseguem negociar, os consumidores fazem as suas escolhas e mal nenhum viria ao mundo se tudo a isto se resumisse. Cada qual compra o vinho que quer (ou pode) e o que importa é que lhe saiba bem. O enorme problema são os efeitos colaterais destes Reservas “da treta”. O mais grave, é a banalização dos designativos de qualidade: se tudo merece “qualidade destacada”, então nada há que se destaque. Depois, a desinformação do consumidor: porquê comprar aquele vinho “colheita” por €5 se se pode comprar este “reserva” por €2,49? Acrescente-se a isto a autoviciação das câmaras de provadores: se para ser Reserva basta ter madeira, então só pode ser Grande Reserva um vinho que tiver muita (mesmo muita!) madeira. Finalmente, o descrédito internacional: um comprador que conhece o Reserva espanhol de 3 anos de idade e o Gran Reserva de 5 anos, olha para os Reserva portugueses como uma vigarice. Nos anos 80 estragámos, talvez para sempre, um excelente mercado, a Dinamarca, inundado com “Garrafeiras” miseráveis. É esta a imagem que queremos continuar a dar dos nossos vinhos?
Não há uma forma fácil de resolver isto, mas acredito não podem haver designativos de qualidade sem estágio obrigatório, que pode variar de região para região. Se um Reserva, por exemplo, só puder ser comercializado com dois ou três anos de idade, isso obriga o produtor a utilizar o designativo num vinho verdadeiramente bom, que não pode nunca ser vendido muito barato. Em paralelo, as câmaras de provadores regionais deverão melhorar e afinar o seu critério.
Nenhum produtor é obrigado a utilizar designativos de qualidade. Aliás, muitos dos mais caros e prestigiados vinhos portugueses não lhes fazem menção. Mas quando se envereda por este sistema de classificação, colocando a palavra Reserva (ou outra congénere) no rótulo, era bom que isso significasse alguma coisa.

 

 

Edição Nº22, Fevereiro 2019

O nome das uvas

Luís Lopes

Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria… TEXTO Luís Lopes Com frequência, ao longo dos últimos 15 […]

Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria…

TEXTO Luís Lopes

Com frequência, ao longo dos últimos 15 anos, tenho-me visto perante uma plateia de enófilos ou profissionais estrangeiros, incumbido de lhes apresentar e dar a provar um conjunto de vinhos portugueses. Confesso que é um trabalho que aprecio bastante. É entusiasmante poder transmitir a outros a minha paixão pelos vinhos de Portugal, revelando um território onde qualidade, diversidade e personalidade se conjugam de forma notável. E é com um certo “orgulho nacional” que assisto à surpresa deliciada daqueles que, pela primeira vez, se deparam com a grandeza vinícola escondida neste pequeno país.
Em todas estas sessões, há um momento que tenho como certo: quando alguém me pede, meio envergonhado pelo seu desconhecimento, que lhe explique melhor porque é que a casta X também se chama Y e por vezes (mas nem sempre) se escreve com Z. Regra geral, safo-me dizendo que os portugueses são um povo tão extraordinário e seguro de si que, se puderem fazer uma coisa de forma complicada, não vão fazer simples. Depois da risada geral, acrescento que os espanhóis ainda são mais tortuosos, dando como exemplo a ubíqua Tempranillo, que, consoante o local onde está plantada, se pode chamar Ull de Llebre, Tinta del Pais, Cencibel, Tinto Fino, Tinta de Toro, Vid de Aranda, Escobera e Chinchillana, para além de algumas variações sobre estes nomes. Ao pé disto, nós portugueses, com a Aragonez e a Tinta Roriz, somos uns meninos de coro…
Se o problema estivesse apenas nas sinonímias não seria um problema. Torna mais difícil de explicar a quem quer conhecer (seja estrangeiro ou português) mas é ultrapassável e até reforça as identidades regionais. Mas as confusões não estão apenas nas sinonímias. Na verdade, neste país de 250 castas conseguimos o assinalável feito de estabelecer quatro patamares de confusão, qual deles o mais rebuscado:
1. Temos nomes diferentes para a mesma casta. Citando apenas alguns dos mais de 50 sinónimos oficialmente admitidos: Arinto/Pedernã, Arinto dos Açores/Terrantez da Terceira, Bical/Borrado das Moscas, Fernão Pires/Maria Gomes, Malvasia Fina/Boal, Síria/Roupeiro/Códega, Alvarelhão/Brancelho, Aragonez/Tinta Roriz, Rufete/Tinta Pinheira, Trincadeira/Trincadeira Preta/Tinta Amarela.
2. Temos o mesmo nome para castas diferentes. Algo que é (ou deveria ser) ilegal, pois induz em erro o consumidor. Mas nem produtores nem organismos de controlo (CVR’s/IVV) se preocupam em repor a verdade, através do correcto cadastro do que efectivamente existe na vinha. Quando se sabe que muito do vinho vendido como Verdelho é, na realidade, Gouveio ou Verdejo, e se encolhe os ombros como se nada fosse…
3. Temos a mesma fonética para grafias diferentes e castas distintas. É o caso do Sercial (casta típica da Madeira – que também se chama Esgana-Cão no continente, já agora…), do Cercial (da Bairrada) e do Cerceal Branco (do Dão e do Douro), tudo uvas distintas que se pronunciam da mesma forma mas se escrevem de maneira diferente.
4. Temos grafias distintas para a mesma casta. Algumas reconhecidas oficialmente (Boal/Bual, Malvasia/Malvazia) outras nem tanto, como o Aragonez/Aragonês que, segundo a legislação, deveria ser sempre Aragonez mas cada qual escreve como lhe apetece.

Agora imaginem-me perante um grupo de sommeliers de Taiwan a tentar explicar tudo isto. É um pouco embaraçoso. Mas, acreditem, tremendamente divertido.

Setembro com Dirk

Luís Lopes

Para os profissionais do vinho, Setembro não é apenas mais um mês do calendário. É, acima de tudo, o início de um novo ciclo, marcado pela vindima enquanto apogeu de um ano vitícola (e bem difícil este, por sinal). A edição de Setembro da Grandes Escolhas assinala a “rentrée” com o destaque de capa para […]

Para os profissionais do vinho, Setembro não é apenas mais um mês do calendário. É, acima de tudo, o início de um novo ciclo, marcado pela vindima enquanto apogeu de um ano vitícola (e bem difícil este, por sinal). A edição de Setembro da Grandes Escolhas assinala a “rentrée” com o destaque de capa para Dirk Niepoort, figura incontornável do vinho português.

TEXTO Luís Lopes

 

A vindima já está aí e a equipa da Grandes Escolhas prepara-se para correr o país de norte a sul, acompanhando todo o bulício que a colheita dos tão aguardados frutos gera. Até ao lavar dos cestos, diz o ditado, muito poderá ainda acontecer, mas não restam dúvidas que este tem sido um ano de sofrimento para as videiras e para quem delas cuida. O granizo afectou diversas propriedades, os ataques de míldio foram devastadores em várias regiões, e o escaldão daquela primeira semana de Agosto marcou a ferro e fogo vinhas um pouco por todo o lado. São de esperar quantidades mais reduzidas na generalidade do território e muitos produtores de referência, sobretudo entre os mais pequenos e os que apostam tudo na viticultura orgânica (com menos opções preventivas e curativas), ficaram praticamente sem uvas para colher. Como um viticultor atingido por estes fenómenos da Natureza me dizia há poucos dias, “por mais vindimas que tenhamos no lombo, os anos nunca são iguais e este vai ficar na memória como o ano do míldio e do escaldão, ou então o ano dos mentirosos, aqueles a quem por milagre ou microclima nada acontece e as uvas e vinhos aparecem sempre…”
Mas deixemos, por enquanto, as vindimas, que mal começaram ainda, e passemos ao tema de capa que, desta vez, é uma pessoa, Dirk Niepoort, porventura a figura do vinho português mais conhecida e com mais influência junto dos líderes de opinião internacionais. Antes de prosseguir, porém, uma declaração de interesse: o Dirk é um dos meus mais antigos amigos no mundo do vinho. É por isso que, na entrevista que publicamos nestas páginas, uso a segunda pessoa do singular, o “tu”, repudiando o que tradicionalmente os jornalistas fazem nas entrevistas para esconder a sua intimidade com o entrevistado. Eu não tenho nada a esconder. Sou amigo do Dirk, e admiro-o enquanto amigo e enquanto profissional. Isso não me impede de discordar dele em muitas coisas. Aliás, ao longo da entrevista tive por diversas vezes a enorme tentação de questionar e rebater os seus conceitos e teorias, de contra-argumentar, de iniciar uma das intermináveis discussões que sempre fizeram parte das nossas conversas. Mas uma entrevista não é um debate, enquanto jornalista cabe-me expor a sua visão do vinho, não apresentar a minha. E foi isso que procurei colocar nas páginas: o vinho, segundo Dirk.
Dirk Niepoort é único e arrebatador, complexo, polémico, desafiante, criativo, mentor de vinhos grandiosos e de (alguns) vinhos falhados, um pouco incoerente também (e isso em nada o preocupa) como acontece com muitos visionários e descobridores de novos caminhos. Ao longo das últimas três décadas, revolucionou uma empresa familiar e antecipou modas e tendências. A sua casa no Porto, autêntico viveiro de talentos (uma espécie de The Factory de Andy Warhol) acolheu, incentivou e impulsionou muitos produtores e projectos de sucesso. Dirk teve (e tem) um papel determinante na transformação da região do Douro e, com o tempo, tornou-se uma bandeira do Portugal do vinho, do Portugal da diferença, do Portugal capaz de surpreender aqueles que, lá fora, pensam que sabem e conhecem tudo. Acho que já merecia uma capa, não acham?

Os brancos vão à luta

Num país supostamente dominado pelos tintos, as uvas brancas autóctones não se rendem. E são cada vez mais as batalhas que ganham neste saboroso confronto de cores. Basta ver o crescente número de brancos monocasta lançados no mercado, oriundos de todas as regiões. TEXTO Luís Lopes Os países e regiões vinícolas do sul europeu são […]

Num país supostamente dominado pelos tintos, as uvas brancas autóctones não se rendem. E são cada vez mais as batalhas que ganham neste saboroso confronto de cores. Basta ver o crescente número de brancos monocasta lançados no mercado, oriundos de todas as regiões.

TEXTO Luís Lopes

Os países e regiões vinícolas do sul europeu são tradicionalmente considerados território de tintos, com alguns pequenos “enclaves” de vinhos brancos a desafiar a regra. Zonas quentes para tintos, zonas frias para brancos, manda a lei. O Portugal do vinho tem vivido há largas décadas sob esse preconceito, evidente sobretudo nos mercados de exportação. Encontro com frequência sommeliers, jornalistas especializados e compradores estrangeiros que, apesar de saberem que se fazem vinhos brancos em Portugal, julgam que são meras curiosidades ou produtos simples e sem grande ambição. Quando colocados perante alguns dos brancos de excelência que se produzem entre nós, ficam atónitos e muitas vezes envergonhados ao admitir o seu desconhecimento.
É certo que, também em Portugal, só há relativamente pouco tempo o branco deixou de ser considerado um produto inferior. E, ainda hoje, as referências mais prestigiadas e de preço mais elevado correspondem a vinhos tintos, tal como a produção de tintos supera largamente a de brancos.
Porém, as variedades brancas autóctones estão a sair dos esconderijos e a dar luta às tintas, não raras vezes ganhando no confronto. Já repararam que, num país de tintos, são cada vez mais as castas brancas nacionais que merecem a honra de engarrafamento “a solo”?
A omnipresente Touriga Nacional, transversal a todo o território português, é de longe a uva indígena que dá origem a mais vinhos varietais, constituindo em si mesma uma categoria para o consumidor. Mas quantas mais uvas tintas poderão dizer o mesmo? Baga, enquanto uva identitária da Bairrada, e com algumas dezenas de referências no mercado, talvez. Mas muitos destes Baga correspondem a espumantes vinificados… em branco! Castelão, embora tradicional da Península de Setúbal, origina poucos vinhos estremes, tal como a Aragonez/Tinta Roriz, apesar desta ser a casta mais plantada em Portugal. Alicante Bouschet, a francesa que adoptámos, ainda conta com vários representantes, sobretudo na metade sul do país, e o mesmo se passa com Vinhão/Sousão a norte.
Mas Trincadeira, Touriga Franca, Alfrocheiro, Rufete, Jaen, Tinto Cão, enquanto varietais, são quase nada. Por junto, e se exceptuarmos a já referida “Touriga cada vez mais Nacional”, os varietais tintos não conseguem competir com a quantidade de referências disponíveis de Alvarinho, Loureiro, Avesso, Encruzado, Arinto, Antão Vaz e Verdelho (ainda que muitos supostos Verdelho sejam, na verdade, Gouveio, mas para o caso não importa). E, para além destes verdadeiros ponta-de-lança do exército branco, há uma segunda vaga em crescendo composta por Azal, Síria, Bical, Malvasia Fina, Fernão Pires/Maria Gomes, Moscatel Galego ou Viosinho.
É claro que, em Portugal, a tradição são os blends, não os varietais. Mas sabendo-se o poder que uma casta tem na comunicação identitária de uma região e de um país, as variedades brancas estão a lançar um grito de afirmação que é impossível não ouvir. E que pode ajudar a mudar a forma como o mundo olha para os vinhos portugueses.