É o clima, idiota!

Luís Lopes

A frase célebre da campanha eleitoral de Bill Clinton (“It’s the economy, stupid!”), presta-se a muitas adaptações, e aplica-se quando é necessário reforçar a importância ou evidência de algo que o interlocutor não percebe ou não aceita. O clima está a mudar e não é para melhor. Há quem não admita, há quem não perceba […]

A frase célebre da campanha eleitoral de Bill Clinton (“It’s the economy, stupid!”), presta-se a muitas adaptações, e aplica-se quando é necessário reforçar a importância ou evidência de algo que o interlocutor não percebe ou não aceita. O clima está a mudar e não é para melhor. Há quem não admita, há quem não perceba e há quem esteja a fazer alguma coisa acerca disso.

Tenho 57 anos. Dizem-me que ao longo da minha vida já “assisti” a mais degelo polar do que qualquer geração que me antecedeu. É um pensamento assustador. Mas, por outro lado, o Ártico fica demasiado longe para ter um impacto directo no meu dia a dia…ou não! Os conferencistas do evento Climate Change Leadership realizado no passado mês de Março no Porto (e sobre o qual publicamos um trabalho nesta edição) foram unânimes: as alterações climáticas são absolutamente evidentes nas suas vinhas, nos seus vinhos e consequentemente, nas suas vidas. Estamos a falar, em muitos casos, de empresas centenárias com registos climatéricos de muitas décadas e onde não há memória da sucessão de fenómenos extremos como os que assistimos hoje em dia: incêndios florestais devastadores no Chile e na Califórnia (que queimaram milhares de hectares de vinhedos), vinhas congeladas em Abril na Catalunha, seca em Mendoza (o degelo primaveril na montanha já não gera a água suficiente), granizo intenso e frequente em Champagne. Vagas de calor, escaldão nas uvas, deficiências de maturação e carências de acidez um pouco por todo o lado.

Portugal não escapa, como é evidente. António Graça, investigador da Sogrape, aponta casos concretos: nas últimas duas décadas, na Europa, as zonas climáticas ideais para plantar Chardonnay transferiram-se cada vez mais para norte; no mesmo período, no vale do Douro, a Tinta Roriz tem vindo a aumentar significativamente o pH e a diminuir a acidez. Para continuar com Tinta Roriz, vai ser preciso mudar de clones. “O terroir está aterrorizado”, refere.

O principal problema está nos chamados gases de efeito de estufa , e nomeadamente no CO2, dióxido de carbono. O que fazer? Travar a progressão do CO2, por um lado; e gerir a mudança, adaptando vinhas e adegas. Como aponta Pau Roca, presidente do Office International de la Vigne et du Vin, trata-se de “redefinir o terroir e os modos de produção”. Miguel Torres, enólogo e investigador, patriarca da empresa familiar espanhola, mostra o que está a fazer desde há mais de uma década: reflorestação e preservação de floresta bio diversa (1.500 ha em Espanha, 700ha no Chile); armazenamento, racionalização e reutilização de água; adaptação dos vinhedos mudando bacelos, clones, sistemas de condução, densidade de plantação, sempre com o objectivo primordial de atrasar as maturações; plantação em altitude; recuperação de castas antigas, de maturação tardia, que resistem ao calor e mantém acidez; modificação total das adegas, a caminho da autonomia energética e hídrica; recuperação e reutilização do CO2 emitido pela fermentação; redução do peso das garrafas; renegociação com fornecedores e logística obrigando-os a um caderno de encargos mais “descarbonizado”.

Isto é o que a indústria do vinho (pelo menos, a esclarecida) já tem em marcha. E nós, enquanto consumidores, o que podemos fazer? Muito, a começar por coisas tão simples no nosso dia a dia como seja, por exemplo, rejeitar o plástico, optar por materiais reutilizáveis ou recicláveis, reduzir o desperdício (de água, de alimentos), preferir os vinhos em garrafas de vidro leve, diminuir as viagens de avião, escolher consumir produtos de proximidade.

A qualidade, e mesmo a viabilidade do vinho, depende do clima. Queremos que os nossos netos possam apreciar um vinho do Douro ou do Alentejo tal como nós os apreciamos hoje? Não é uma projecção catastrófica, é uma ameaça real. Há quem não acredite, há quem não se preocupe, há quem faça alguma coisa. E você?

Edição Nº24, Abril 2019

O fumo da paixão

Envergonha qualquer jornalista o levantamento feito pelo chef Nuno Diniz do fumeiro nacional. Em década e meia de trabalho, tão discreto quanto intenso, anotou, visitou e provou mais de uma vez o que se faz de norte a sul do país. De forma simples, devolveu os louros aos produtores. TEXTO Fernando Melo Vamos tentar ser […]

Envergonha qualquer jornalista o levantamento feito pelo chef Nuno Diniz do fumeiro nacional. Em década e meia de trabalho, tão discreto quanto intenso, anotou, visitou e provou mais de uma vez o que se faz de norte a sul do país. De forma simples, devolveu os louros aos produtores.

TEXTO Fernando Melo

Vamos tentar ser pragmáticos e honestos para com o termo artesanal, pelo menos para admitir que continuamos a querer que tudo nos apareça feito e pronto à frente. Nesta altura do ano, grassam as feiras de queijos e enchidos nas grandes superfícies e supermercados, a oferta copiosa de uns e outros dá-nos a impressão de riqueza e qualidade e claro que nos aproximamos para ver mais de perto e cumprir o desígnio herdado dos romanos, manter uma despensa bem fornecida. Tudo certo, tirando a profusão e confusão de nomes, denominações de origem e certificações DOP ou IGP, que insistem em não significar necessariamente qualidade. Vamos a uma feira local de presuntos e enchidos e apetece-nos comprar tudo, ao passo que numa gôndola de um qualquer hipermercado a relação com cada peça é anódina e desprovida de história, remetendo-nos para o ardil do preço ou para o aspecto da marca. Está certo e compreende-se que tenha de ser assim, resulta directamente do comércio por que nós próprios puxámos e pelo quanto nos arredámos do contacto directo com os produtores. O chef Nuno Diniz, que conheci oficiante em casas de gabarito e junto de veneráveis, foi ao longo de anos – 14, diz ele – puxando o fio do fumeiro através das gastronomias regionais que temos. Movido pela função pedagógica, para que tem inegável talento, ligou-se à Escola de Hotelaria de Lisboa e ao longo dos últimos anos ancorou conhecimento precioso naquela casa, deixando nos corações dos criadores de amanhã a centelha do bom produto. E para gaúdio de alguns de nós, os normais, promoveu de tempos a tempos experiências de cozidos, espaço de experimentação da bateria de enchidos e fumeiro diverso que foi desbravando. Eu assistia à torrente com alguma circunspecção, confesso, mas como pessoa intelectualmente orientada que Nuno Diniz é, confiei que todo o comboio de informação iria um dia ter a uma estação feliz. Entre Ventos e Fumos, chama-se o livro que, com a chancela da Bertrand, dá conta de tudo. Eu vivia constrangido com a evolução da lista dos produtos DOP que mostrava, vaga e pouco esclarecedora, limitando-se a listar e relatar, em vez de descrever. Na mais recente edição do cozido, servido num almoço memorável na escola de Lisboa, rondava os 80 o número de enchidos e carnes servidos. Cada um com a sua história, cada história com a sua peça.
Mas tudo isto é ainda quase nada; importante é a criação de relações – networking no seu melhor – entre as diversas comunidades que orlam o artesanato do fumo, e aqui surgem algumas perplexidades, todas positivas. Primeiro, a comunidade da cozinha erudita comparece e responde à chamada de Nuno Diniz, que nem sempre foi devidamente considerado um dos pares. Depois, o país inteiro, continente e ilhas, está atento e segue de perto os movimentos do chef Diniz, reconhecendo-lhe, só com isso, o que até agora tem sido impossível, que é representar a classe, independentemente de estilos e estatutos. José Avillez tem o dom da liderança, sem dúvida, mas Nuno Diniz tem a neutralidade imperativa para a exercer. Espero vê-lo em funções muito em breve, precisamos muito de alguém como ele.
O assunto dos cozidos, a começar pelo famoso “à portuguesa”, que ninguém sabe bem o que é mas que todos mesmo assim o chamam ao peito, está no capítulo da cozinha de proximidade, um dos grandes redutos da cozinha portuguesa. Isso tem o imperativo imediato da geografia. Não tem sentido comprar um enchido de cada canto, atirar tudo para a panela e no fim chamar-lhe um cozido. Não é. Há por toda a Europa cozidos notáveis, destaco especialmente os do norte da Alemanha, sudoeste francês e Noruega, pela matriz forte de sabor e pela expressão de terroir e autenticidade que comunicam. E é qualquer coisa que vive nos lares e se executa em festa, com sentido de partilha. Nós também a temos, note-se, a nossa mesa é toda ela de festa, mas tenho algum medo que se perca a essência dessa mesma festa e que o registo regional desapareça de vez. Os lineares dos hipermercados a isso nos conduzem, e era tão importante que utilizassem a força comercial para nos orientar! Temos bons enchidos, muito bons até, mas não podemos perder de vista os legumes e as carnes, nem podemos desistir de chegar à transformação da água em ouro, desde que se começa a cozer as diferentes partes até ao momento derradeiro em que cozemos as couves. Vejo as pessoas muito perdidas por ali, uma farinheira da Beira Alta, um chouriço de carne de Barrancos, uma morcela de arroz de Leiria, e não devia acontecer assim. Fundador o trabalho de Nuno Diniz também por isso, põe-nos a todos mais perto dos produtores, e devolve a estes o que é deles. E nós podemos começar a dormir descansados, temos líder!

 

Edição Nº23, Março 2019

A Longa Marcha

Todos esperamos que esta não seja tão longa nem tão atribulada como a do Mao Tsé-Tung… TEXTO João Paulo Martins Tive, há pouco tempo, a oportunidade de provar uns vinhos franceses da zona de Bordéus. A região é muito mais conhecida pelos seus tintos do que pelos brancos mas por lá também os há e […]

Todos esperamos que esta não seja tão longa nem tão atribulada como a do Mao Tsé-Tung…

TEXTO João Paulo Martins

Tive, há pouco tempo, a oportunidade de provar uns vinhos franceses da zona de Bordéus. A região é muito mais conhecida pelos seus tintos do que pelos brancos mas por lá também os há e bem famosos. Já nem me refiro aos mais célebres de todos – os brancos de Sauternes/Barsac – vinhos feitos com uvas atacadas de podridão nobre. A zona, a sul de Bordéus, reúne condições naturais que favorecem o aparecimento do fungo, qual cogumelo microscópico que ataca a uva e provoca o seu apodrecimento. Nem sempre aparece quando deveria e nem sempre tem a mesma força mas Sauternes há todos os anos, essa é que é essa. Também a sul de Bordéus se situa a zona de Pessac-Leognan e Graves. Aqui, além de nomes ultra-famosos como Château Haut-Brion, La Mission Haut-Brion ou Smith Haut Lafitte, proliferam marcas de vinhos brancos que ganharam muito prestígio.
Na zona, abunda o Sauvignon Blanc, muitas vezes associado com Sémillon e Muscadelle. Com estas três variedades, combinadas das mais variadas formas, toda a região produz brancos que viraram estrelas, como Domaine de Chevalier ou Château de Fieuzal. Já a norte de Bordéus, na chamada rota dos châteaux, no Médoc, encontramos sobretudo vinhos tintos mas mesmo as grandes marcas desde há muito que se dedicam também a produzir brancos. O perfil dos brancos bordaleses mudou muito nas últimas décadas e também por lá se produzem hoje vinhos bem mais finos e elegantes do que outrora, quando, na década de 90, o que mais se bebia eram destilados de carvalho, vinhos pesados, carregados na cor mas…na crista da onda da moda da época: madeira nova de carvalho, fermentação total em barrica nova e com pouco saber sobre o tema (o que agora percebemos…). Por serem novidade até eram muito apreciados mas já ninguém tem hoje qualquer apreço por aquele modelo.
Voltamos então ao início. Provei há pouco tempo um desses brancos bordaleses, de que guardava uma memória não muito positiva mas, o que não espanta, o perfil estava agora bem mudado: madeira nem se notava – mas vim a saber que incorporava algum vinho fermentado em barrica nova – fruta fresca abundante e com as virtudes que o Sauvignon Blanc adquire em Bordéus e que o afastam do modelo pimento verde/espargos e também do outro modelo assente no maracujá. Aqui a casta ganha mais carácter e dá vinhos muito interessantes, de cujo modelo tenho sempre presente o Pavillon Blanc do Château Margaux. O branco provava-se bem, elegante e fino, até com boa aptidão gastronómica. Indaguei o preço PVP e foi aqui que a coisa tremeu: €40 ! Fiquei intrigado. Como é que um vinho com aquele perfil, onde não se notavam quaisquer defeitos mas também não muitas virtudes, atingia aquele valor no mercado? É claro que todos sabemos a resposta que quase passa por patética: vendem àquele preço porque podem, porque há quem compre. Mas depois vem a pergunta seguinte: porque é que alguém se dispõe a dar €40 por um vinho que, sem qualquer costela nacionalista, encontraríamos por aqui algures entre os €10 e 15? Também aqui é fácil perceber que não só as marcas bordalesas têm um trajecto já antigo e rodeado de fama e glamour como também temos de entender que temos um longo caminho pela frente, uma longa marcha que nos poderá (talvez…) levar a patamares próximos daquele. A imagem de Portugal esteve demasiado tempo colada a clichés: o país era de tintos e os brancos que se conheciam lá fora eram os Verdes, vendidos a pataco. Conseguir agora convencer os mercados que a Bairrada, o Dão, o Douro e todas as restantes regiões para sul podem produzir brancos de enorme qualidade e que os Verdes são muito mais do que uma região de vinho indiferenciado é um trabalho imenso, uma marcha longa que temos de percorrer. Mas cuidado, não serve de nada passarmos a “achar” que o nosso branco já vale €40 ou €50, sem que a ele esteja associada a história, o saber e um trajecto, pensado e progressivo. Como se disse acima: vende a €40 quem pode, não necessariamente quem quer. E, nestes temas do vinho, como do marketing, o verbo “achar” é altamente irritante.

Edição Nº23, Março 2019

 

Reserva, mas não tanto

Luís Lopes

Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente […]

Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente nada.

TEXTO Luís Lopes

A Portaria 239/2012, do Ministério da Agricultura, define as “menções tradicionais”, entre elas os designativos Colheita Selecionada, Escolha, Reserva, Reserva Especial, Grande Reserva, Superior, etc. As diferenças entre eles são subtis, mas, basicamente, exige-se que estes vinhos tenham “características organoléticas destacadas” ou “muito destacadas”, ou seja, que a sua qualidade se demarque claramente da média. Em cima desta lei geral, cada CVR (organismo que gere a certificação em cada região) estabelece normas regionais que podendo ser mais restritivas que a lei geral, não podem nunca ser mais permissivas. Além disso, as CVR definem os critérios técnicos para aferir a “qualidade destacada”. Regra geral, passa por esses vinhos obterem mais alguns pontos na câmara de provadores que faz a certificação. Em teoria, tudo certo. O problema é a prática.
Se corrermos as prateleiras das lojas de retalho encontramos inúmeros exemplos de vinhos que ostentam orgulhosamente designativos de qualidade e que são vendidos a preços ridículos. Numa rápida pesquisa online de tintos Reserva até €3, deparei-me com vinhos que vão desde €1,99 (Dão e Tejo) a €2,99 (Alentejo), passando por valores intermédios, €2,29 (Lisboa) e €2,49 (Setúbal e Douro). Convenhamos: alguém acredita que vinhos vendidos a estes preços (IVA incluído!) possuem “qualidade destacada”? Geralmente são vinhos bem feitos, adequados ao valor que se pede por eles, mas, quase sempre, a única coisa que os diferencia de outro vinho do mesmo patamar qualitativo, é o sabor à madeira que lhes foi adicionada.
Os supermercados limitam-se a vender o que lhes é proposto, aos preços que conseguem negociar, os consumidores fazem as suas escolhas e mal nenhum viria ao mundo se tudo a isto se resumisse. Cada qual compra o vinho que quer (ou pode) e o que importa é que lhe saiba bem. O enorme problema são os efeitos colaterais destes Reservas “da treta”. O mais grave, é a banalização dos designativos de qualidade: se tudo merece “qualidade destacada”, então nada há que se destaque. Depois, a desinformação do consumidor: porquê comprar aquele vinho “colheita” por €5 se se pode comprar este “reserva” por €2,49? Acrescente-se a isto a autoviciação das câmaras de provadores: se para ser Reserva basta ter madeira, então só pode ser Grande Reserva um vinho que tiver muita (mesmo muita!) madeira. Finalmente, o descrédito internacional: um comprador que conhece o Reserva espanhol de 3 anos de idade e o Gran Reserva de 5 anos, olha para os Reserva portugueses como uma vigarice. Nos anos 80 estragámos, talvez para sempre, um excelente mercado, a Dinamarca, inundado com “Garrafeiras” miseráveis. É esta a imagem que queremos continuar a dar dos nossos vinhos?
Não há uma forma fácil de resolver isto, mas acredito não podem haver designativos de qualidade sem estágio obrigatório, que pode variar de região para região. Se um Reserva, por exemplo, só puder ser comercializado com dois ou três anos de idade, isso obriga o produtor a utilizar o designativo num vinho verdadeiramente bom, que não pode nunca ser vendido muito barato. Em paralelo, as câmaras de provadores regionais deverão melhorar e afinar o seu critério.
Nenhum produtor é obrigado a utilizar designativos de qualidade. Aliás, muitos dos mais caros e prestigiados vinhos portugueses não lhes fazem menção. Mas quando se envereda por este sistema de classificação, colocando a palavra Reserva (ou outra congénere) no rótulo, era bom que isso significasse alguma coisa.

 

 

Edição Nº22, Fevereiro 2019

A importância de ser trufa

Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca […]

Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca é mesmo um regalo e a preta não lhe fica atrás.

TEXTO Fernando Melo

Uma trufa não é um fungo, mas o fruto de um fungo. Melhor ainda, é uma excrescência da raíz de algumas árvores. Encolhem os ombros os que acham que se trata de um preciosismo de linguagem e escandalizam-se quando se lhes pergunta se uma maçã é uma árvore. Claro que não. Temos o caviar e o foie gras em boa conta e pagamos valores chorudos por ambos mas também pouco sabemos sobre eles, menos ainda o que queremos saber. O luxo tem essa ambivalência em quase todas as frentes, deseja-se mas abandona-se depois da estaca da conquista. A fina e delicada rede de microfilamentos que vive no mundo subterrâneo das raízes alimenta vagarosamente e de forma sustentada alguns fungos e a esmagadora maioria frutifica à superfície, na forma de cogumelos. Alguns – muito poucos – frutificam debaixo de terra e é aí que temos as trufas. Pretas – tuber melanosporum – ou brancas – tuber magnatum pico -, os antigos reconheciam-lhes poderes sobrenaturais e inebriantes, para os romanos eram um afrodisíaco, depois da introdução da batata na alimentação chegaram a ser conhecidas como batatas malcheirosas e de há um século para cá são alimento muito desejado e apreciado pela élite gourmet. O conhecido cheiro a gás enlouquece os animais, outrora as porcas hoje os cães treinados dão com elas só pelo aroma. Onde apontam, escava-se um pouco e lá estão os pequenos ou grandes frutos, em jeito de recompensa. Em Alba, no Piemonte, Itália, há no final de Outubro um festival que o país elevou a símbolo universal da trufa branca, com honras de estado e leilão global. Isso não quer, contudo, dizer que só naquele pedaço de território há trufas brancas, na verdade existem em todo o mundo. Os aborígenes australianos, por exemplo, consumiam-nas avidamente e eram extraídas das raízes dos eucaliptos. Sérvia e Croácia são palco tanto ou mais importante da trufa branca do que Itália, de resto muitas trufas que entram no mercado pela porta grande provêm dali, o receituário desses países nos capítulos da caça e fundos de cozinha não deixa margem para dúvidas; há séculos que a trufa existe e é apreciada. As razões de mercado naturalmente asfixiam outras denominações que não Alba, mas nalgum ponto o assunto há-de passar a público. Para já a DO Alba permite a certificação de trufas brancas oriundas da Croácia e não são melhores nem piores, são apenas diferentes.
Para nós a trufa preta já faz maravilhas e devemos-lhe glórias diversas, a que só não acrescentamos porque o torpor intelectual não permite. E se temos boa trufa preta! Sei que estou sempre a marrar na mesma tábua, mas a trufa preta laminada introduzida entre a pele e a carne de um capão põe-nos em estado de graça e faz do galaró mudo um rei. A preparação da polémica perdiz à convento de Alcântara assenta na trufa preta e no foie gras logo desde o início da marinada de dois dias em vinho do Porto. Ovos mexidos com trufa preta são mais saborosos do que o clássico ovo escalfado com trufa branca, que de qualquer forma adoro. E um consomé de aves e trufa preta é o melhor amigo de um Madeira sercial. O assunto da trufa branca é eminentemente aromático, é inútil utilizá-la para cozeduras longas. É por isso que compramos azeites ou óleos vegetais trufados, directa ou indirectamente, já que um risoto anunciado por um restaurante com trufas não tem mais do que umas gotas desses concentrados de aromas, mas isso é outra conversa. A luta pela autenticidade não tem tréguas, mas nem sempre temos a arma da informação para a combater. Vamo-nos regalando com o que vai acontecendo pela mão de alguns chefs e vamos fazendo as nossas próprias descobertas. Troou recentemente a notícia da trufa branca de mais de um quilo comprada pelo chef e empresário Tanka Sapkota, no Come Prima, em Lisboa. Fui vê-la e prová-la, nos pratos standard do ovo estrelado e linguini, laminada na hora. Dimensão impressionante, tinha de se segurar com as duas mãos. Uma boa trufa branca pesa algumas dezenas de gramas apenas e custa entre 4 e 7 mil euros o quilo. Daquele fruto gigante não chegou a ser revelado o preço, mas barato não foi. A minha primeira refeição formal de trufas brancas em Portugal aconteceu pela mão do chef Franco Luise no Cipriani, restaurante do Lapa Palace em Lisboa, em meados dos anos 90. A primeira experiência em termos absolutos foi em Florença, no triestrelado Enoteca Pinchiorri, não deixou grande memória, ao passo que a experiência com Franco Luise foi a melhor de todas até hoje. Ficou-nos a 25 contos – 25 mil escudos, lembram-se? – a cada um, um valor elevado, especialmente naquela altura, mas que nunca lamentei. Achei na altura (o que se veio a confirmar) uma experiência irrepetível. No JNcQUOI, em Lisboa, o chef António Bóia subiu a fasquia no jantar de trufas brancas da sua lavra, talante culinário de enorme nível. Senti particular conforto por um homem do produto português que sabemos que ele é dar trono por uns dias a um clássico mundial e universal da alimentação. Trufa é trufa!

Nos 30 anos de uma aventura

Escrevo esta crónica em Janeiro para ser publicada no mês seguinte. O normal, portanto. Mas em Janeiro comemoro uma data especial. Faz este mês 30 anos que escrevi a minha primeira crónica sobre temas de vinhos no O Jornal/Vinhos, suplemento mensal do semanário O Jornal. Foi então um começo tímido de um trajecto que, felizmente, […]

Escrevo esta crónica em Janeiro para ser publicada no mês seguinte. O normal, portanto. Mas em Janeiro comemoro uma data especial. Faz este mês 30 anos que escrevi a minha primeira crónica sobre temas de vinhos no O Jornal/Vinhos, suplemento mensal do semanário O Jornal. Foi então um começo tímido de um trajecto que, felizmente, não teve interrupção e que continua “até que a mão me doa de tanto escrever”.

TEXTO João Paulo Martins

Essa crónica, que publiquei no meu primeiro volume das Histórias com vinho e outros condimentos, inseria-se numa coluna com um nome um pouco pomposo, colocado na altura pelo José Salvador – Tribuna do Enófilo -, espécie de púlpito onde se dava voz a quem quisesse escrever, fosse consumidor, enólogo ou outro. Eu ainda a escrevi em máquina antiga que herdei do meu pai (e que conservo em perfeito estado), com teclado HCESA, informação que pouco ou nada diz às novas gerações. Os enólogos também teriam direito à Tribuna do Enólogo mas poucos eram dados à escrita. Eram profissionais que estavam então a mostrar-se ao público; deixaram de ser apenas os “técnicos”, nome que habitualmente se ouvia nas empresas e cooperativas, passaram a ter nome e rosto e, mais importante, passaram a assinar os vinhos. Pode-se questionar se se justifica mesmo saber quem está por trás do vinho quando pensamos que, em relação a grandes marcas, tal nome nos é desconhecido. Alguém tem na ponta da língua o nome do enólogo do Château Latour ou Palmer? Será que o nome é mesmo o mais importante? Na altura, e estávamos em 1989, era mesmo, porque o sector estava a iniciar uma grande renovação, para não dizer mesmo revolução e as novas ideias e técnicas, os novos equipamentos, os novos plantios e as novas castas estavam a marcar o compasso e, nesta nova orquestra, o maestro era figura fundamental, alguém com sólida formação técnica e académica, com viagens e “mundo” suficientes e, assim, capaz de enfrentar os novos tempos. Foi então que o público se familiarizou com a figura até então desconhecida (ainda que não fosse propriamente uma novidade) do “enólogo consultor” que apoiava tecnicamente vários produtores, que assinava os vinhos e dava a cara por eles. Já tinham existido figuras de enólogos consultores, como o Engº Manuel Vieira que, de Carcavelos a Setúbal e de Bucelas até Reguengos dava apoio a produtores muito diferenciados. Mas agora falava-se de João Portugal Ramos, António Ventura, João Melícias, entre outros.
Começavam também, desde meados dos anos 80, a surgir os novos produtores-engarrafadores e muitos traziam consigo a marca da modernidade; nos primeiros podemos apontar o bairradino Luis Pato e, nos Verdes, Casa de Sezim, Paço d’Anha e da Tapada. Luis Pato – sempre atento ao que se fazia lá fora – terá sido o primeiro produtor a promover um encontro com a comunicação social para mostrar as novidades e, como o sector específico dos vinhos era muito limitado, encontrávamos nesses jantares jornalistas generalistas da rádio e televisão que assim se foram entusiasmando com o tema. A modernidade, essa, chegou quase sempre pelo génio criativo de António Francisco Avillez, então dono da J.P. Vinhos. Ali estavam já a trabalhar Filipa Tomaz da Costa e Peter Bright e daquela empresa saíram verdadeiras pérolas que foram espantosos fenómenos de marketing. Foi o caso do vinho João Pires, um branco de moscatel, seco – algo inédito até então – e que, beneficiando de uma magnífica apresentação, se tornou um enorme sucesso, nomeadamente em Inglaterra. Os portugueses nunca lhe deram o crédito que merecia porque se dizia que era “vinho para senhoras” porque era doce e tal e coisa. Na verdade não era e era vinho de muito maior longevidade do que se poderia imaginar, como constatei 20 anos mais tarde, quando uma garrafa mal conservada e que trouxe dos fundos da cave, me deixou boquiaberto. A fazer companhia ao João Pires estavam o Cova da Ursa, o primeiro branco fermentado em barrica, o Quinta da Bacalhôa, o primeiro Claret a sério que tivemos, o Má Partilha, o primeiro imitador de Pomerol que conhecemos cá. De Azeitão não paravam de sair novidades, numa época em que do Douro poucas notícias havia, para além dos clássicos e do Alentejo eram também muito poucos os novos projectos, começando então a ter algum destaque os vinhos Cartuxa, sobretudo os tintos.

 

O IVV e as classificações
À época ainda permanecia uma prática que, com o surgimento das Comissões Vitivinícolas, acabou por se perder. Refiro-me à classificação das colheitas das várias regiões, dadas pela Câmara de Provadores do IVV, entidade que até então tinha a obrigação da prova e certificação dos vinhos. Estava assim habilitada a aquilatar da qualidade das diversas colheitas. Anualmente surgiam essas classificações da colheita – creio que numa escala de 1 a 10 – e a bronca estoirou quando se tratou de classificar a colheita de 1988. O ano tinha corrido mal, tinha havido acidentes climáticos, com muito desavinho, e a produção foi muito, mas mesmo muito baixa. Este é o ponto interessante porque, ao invés da quantidade, a qualidade foi extraordinária, nomeadamente numa região que tinha então grande fama e aceitação juntos dos consumidores – a Bairrada. O IVV resolveu não atribuir classificação ao ano de 1988, como que a dizer (numa leitura possível por parte do consumidor) que tinha sido mau de mais para ser classificado. Escusado será dizer que a bronca estoirou e o José Salvador, sempre adepto de uma boa razão para se pegar com as instituições, desancou o IVV de todas as formas, escreveu o que ninguém queria ler sobre a incompetência e a falta de critério da Câmara de Provadores, então liderada por Ponte Fernandes. Aquele tipo de classificação de colheitas era, e é, ainda vulgar em França mas entre nós, com a variação de qualidade de trabalho dos produtores de cada região – e convém não esquecer o peso esmagador que então tinham as adegas cooperativas – a classificação de uma região como um todo pecava sempre por incorrecta e desfasada da realidade.
À época ainda se realizavam os concursos de vinho na produção, promovidos exactamente pelo IVV. Não tinham qualquer interesse para o consumidor porque saber que o vinho do produtor José da Silva de Palmela ou o António Marques de Almeirim ou o Manel Baixinho do Cartaxo tinham ficado bem classificados não servia para nada porque o mais habitual era esses vinhos (ainda não engarrafados) acabarem em lotes de empresas armazenistas (e havia muitas) que compravam aqui e ali e depois comercializavam com marca própria. Na lista dos premiados surgiam muitos produtores da região de Setúbal mas os nomes eram, e continuaram a ser, desconhecidos. O concurso era assim como que inútil, apenas servindo para sugerir opções de compra aos armazenistas.
Imprensa da especialidade era algo novo. O Jornal/Vinhos tinha sido criado por António Lopes Vieira que posteriormente ingressou na Vinalda e ainda na José Maria da Fonseca e tinha estado mais de um ano em lume brando, sem orientação ou colaboradores. Foi precisamente em Janeiro de 1989 que ressurgiu. O Expresso tinha tido uma coluna de opinião assinada pelo José Salvador e no Diário de Notícias escrevia José Estevão. Assunto encerrado. Lá para o fim do ano de 89, Luis Lopes teve uma epifania e criou uma revista mensal de tema vínico, a Revista de Vinhos. Em época pré-Internet em que as opiniões não escritas não tinham onde se expressar era tudo o que se conseguia arranjar. E para falarmos uns com os outros tinha de ser pelo telefone fixo que os primeiros móveis só surgiram bem dentro da década de 90. E não é que se conseguia viver?

No Médoc foi assim

Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros. TEXTO João Paulo Martins No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua […]

Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros.

TEXTO João Paulo Martins

No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua ida à VINEXPO de Bordéus, feira que se realiza de dois em dois anos. Corria o ano de 1989 e como estava há tão pouco tempo no ambiente dos vinhos e sem grandes fundos de maneio, entendi que não era ainda altura de ir “mergulhar” naquele mundo alucinante.
Quando digo alucinante não estou a exagerar e comprovei em 1991, na primeira visita: o pavilhão tem 900 metros de comprido e lá dentro – quase sempre sem ar condicionado decente a trabalhar – tínhamos cinco corredores com stands de todas as partes do mundo. Assim sendo, só para uma primeira visita de prospecção, havia que contar com quase 5 quilómetros a pé, em andamento de passeio, o que demorava umas duas horas. Depois, se calhávamos a ficar interessados em dois ou três stands, podíamos ter o azar de cada um deles ficar “fora de mão” e lá andávamos nós para trás e para a frente. À hora de almoço já estávamos de rastos.
Mas voltemos à tal de 1989 a que não fui. Quando regressou, o Salvador vinha empolgado e muitíssimo entusiasmado com o que tinha visto e provado. Ele, sempre muito dado a tiradas radicais e sem papas na língua, confessou-me que ficou deslumbrado com a visita ao Château Pichon-Longueville Comtesse de Lalande e com o vinho tinto que lá tinha provado. Não foi de modas e disse: “Os nossos melhores tintos comparados com aquilo são água de lavar pratos!” É evidente que não escreveu isto nem nunca o afirmou em público, mas disse-me na redacção de “O Jornal”.
Fiquei chocado. É verdade que não conhecia aquele château nem os seus vinhos, mas conhecia os bons vinhos portugueses – na época em número muito reduzido – e não me parecia que tal comparação fosse possível e que os nossos fossem assim tão maus. É claro que não eram e eu acho que a reacção dele foi aquilo que se pode chamar a “tentação irresistível do Cabernet Sauvignon”, sobretudo se originário do Médoc, onde se mostra bem melhor do que noutras regiões. As feiras tinham, à época, um efeito desmoralizador para os portugueses: provavam-se coisas tão boas, tão bem feitas e tão sedutoras que nos ficava a ideia de que nunca lá chegaríamos. É nesse sentido que se pode perceber a reacção do Salvador.
Estávamos então em Portugal no período de renovação dos vinhedos e adegas, dos novos plantios, da chegada às adegas de técnicos com formação académica. Tudo no princípio, portanto. Mas ele não vinha só entusiasmado com os vinhos do Médoc, tinha ficado maravilhado com alguns brancos italianos de Friuli e a Malvasia de Lipari, só para registar alguns de que me lembro. Fiquei preocupado, mas cheio de vontade de lá ir ver com os meus olhos.

 

]Um banho de vinho
A minha vez chegou em 1991. Fui com ele e com o produtor Luís Pato e preparámos bem a nossa viagem: visitas marcadas em châteaux, para as quais reservávamos as tardes, recepções, jantares, tudo acertado, programa completo. No pavilhão, como era de esperar, foi uma estafadeira: para lá e para cá, anda ver isto que não podes perder, prova aquele vinho ali que é espectacular, encontrei um tipo porreiro que devias conhecer, etc, etc. Diga-se que o dia começava muito bem, no stand outdoor da Roederer, onde João Nicolau de Almeida nos recebia com champagne Cristal, logo pelas 9 da manhã. Não estou bem a ver melhor maneira de começar um dia em que se perspectivavam muitas provas em stands de vinho, confesso.
Os passeios começaram no Médoc e incluíram, entre outros, o château Mouton Rothschild. Com visita marcada e com cartão profissional de imprensa tínhamos portas abertas e acesso a provas mais alargadas do que os habituais visitantes. Fiz então a minha estreia de “barrel tasting” num château que integrava os 5 magníficos, onde se incluíam Latour, Margaux, Lafite e Haut-Brion – todos, a seu tempo, também visitados. Provei vinho da colheita anterior – por sorte a magnífica safra de 1990 – e fiquei desarmado por duas razões: a primeira porque não percebi porque é que aquele vinho – para mim perfeito e pronto a beber – ainda tinha que ter mais um ano de estágio em barrica antes de ser engarrafado; a segunda, alguma incredulidade quanto à tão propalada longevidade daqueles vinhos. Engano de principiante, erro que a história e o futuro sempre desmentiram, uma vez que estes são vinhos para meio século, não são vinhos de uma década. Mas num assunto não houve engano: foi tudo cuspido para dentro, com mandam as regras de boa educação quando se prova Mouton Rothschild!
O fascínio continuou com um almoço e prova vertical em Cos d’Estournel, com Bruno Prats ainda à frente dos destinos do château, prolongou-se por Saint-Émilion e os momentos de descoberta não pararam, alguns deles dentro do pavilhão, como os Alsácia de Paul Banck ou os moscatéis de Rivesaltes, do Domaine Cazes.
No final percebi melhor o que o Salvador dizia a propósito dos tintos do Médoc. Não subscrevi a tirada radical, mas fiquei a saber que o polimento, a elegância, a estrutura e a longevidade não são obra do acaso. Ali há muita história, muito saber, muita experiência e muita experimentação. Fundamentalmente era por isso que não podíamos então concorrer. À época estávamos a descobrir os tintos estagiados em madeira, os brancos fermentados em barrica e as novas castas que hoje são o espelho do país estavam ainda dar os primeiros passos.
Aprendi então uma máxima que procuro sempre lembrar: quanto mais vinhos de fora pudermos provar, melhor. Para valorizar os nossos, para ter balizas, para saber do que falamos quando dizemos que “este” é um vinho do outro mundo. É verdade que o “outro mundo” é muito, muito grande, mas há que não desanimar.

 

 

Edição Nº 19, Novembro 2018

 

O nome das uvas

Luís Lopes

Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria… TEXTO Luís Lopes Com frequência, ao longo dos últimos 15 […]

Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria…

TEXTO Luís Lopes

Com frequência, ao longo dos últimos 15 anos, tenho-me visto perante uma plateia de enófilos ou profissionais estrangeiros, incumbido de lhes apresentar e dar a provar um conjunto de vinhos portugueses. Confesso que é um trabalho que aprecio bastante. É entusiasmante poder transmitir a outros a minha paixão pelos vinhos de Portugal, revelando um território onde qualidade, diversidade e personalidade se conjugam de forma notável. E é com um certo “orgulho nacional” que assisto à surpresa deliciada daqueles que, pela primeira vez, se deparam com a grandeza vinícola escondida neste pequeno país.
Em todas estas sessões, há um momento que tenho como certo: quando alguém me pede, meio envergonhado pelo seu desconhecimento, que lhe explique melhor porque é que a casta X também se chama Y e por vezes (mas nem sempre) se escreve com Z. Regra geral, safo-me dizendo que os portugueses são um povo tão extraordinário e seguro de si que, se puderem fazer uma coisa de forma complicada, não vão fazer simples. Depois da risada geral, acrescento que os espanhóis ainda são mais tortuosos, dando como exemplo a ubíqua Tempranillo, que, consoante o local onde está plantada, se pode chamar Ull de Llebre, Tinta del Pais, Cencibel, Tinto Fino, Tinta de Toro, Vid de Aranda, Escobera e Chinchillana, para além de algumas variações sobre estes nomes. Ao pé disto, nós portugueses, com a Aragonez e a Tinta Roriz, somos uns meninos de coro…
Se o problema estivesse apenas nas sinonímias não seria um problema. Torna mais difícil de explicar a quem quer conhecer (seja estrangeiro ou português) mas é ultrapassável e até reforça as identidades regionais. Mas as confusões não estão apenas nas sinonímias. Na verdade, neste país de 250 castas conseguimos o assinalável feito de estabelecer quatro patamares de confusão, qual deles o mais rebuscado:
1. Temos nomes diferentes para a mesma casta. Citando apenas alguns dos mais de 50 sinónimos oficialmente admitidos: Arinto/Pedernã, Arinto dos Açores/Terrantez da Terceira, Bical/Borrado das Moscas, Fernão Pires/Maria Gomes, Malvasia Fina/Boal, Síria/Roupeiro/Códega, Alvarelhão/Brancelho, Aragonez/Tinta Roriz, Rufete/Tinta Pinheira, Trincadeira/Trincadeira Preta/Tinta Amarela.
2. Temos o mesmo nome para castas diferentes. Algo que é (ou deveria ser) ilegal, pois induz em erro o consumidor. Mas nem produtores nem organismos de controlo (CVR’s/IVV) se preocupam em repor a verdade, através do correcto cadastro do que efectivamente existe na vinha. Quando se sabe que muito do vinho vendido como Verdelho é, na realidade, Gouveio ou Verdejo, e se encolhe os ombros como se nada fosse…
3. Temos a mesma fonética para grafias diferentes e castas distintas. É o caso do Sercial (casta típica da Madeira – que também se chama Esgana-Cão no continente, já agora…), do Cercial (da Bairrada) e do Cerceal Branco (do Dão e do Douro), tudo uvas distintas que se pronunciam da mesma forma mas se escrevem de maneira diferente.
4. Temos grafias distintas para a mesma casta. Algumas reconhecidas oficialmente (Boal/Bual, Malvasia/Malvazia) outras nem tanto, como o Aragonez/Aragonês que, segundo a legislação, deveria ser sempre Aragonez mas cada qual escreve como lhe apetece.

Agora imaginem-me perante um grupo de sommeliers de Taiwan a tentar explicar tudo isto. É um pouco embaraçoso. Mas, acreditem, tremendamente divertido.