Cestos lavados

Diz o provérbio que até ao lavar dos cestos é vindima. Mas neste ano de 2017 os cestos foram lavados muito mais cedo do que é habitual, encerrando uma colheita precoce como não há memória.   NÃO há memória, nem registos, de uma vindima assim. No início de Agosto, praticamente todo o país estava a […]

Diz o provérbio que até ao lavar dos cestos é vindima. Mas neste ano de 2017 os cestos foram lavados muito mais cedo do que é habitual, encerrando uma colheita precoce como não há memória.

 

NÃO há memória, nem registos, de uma vindima assim. No início de Agosto, praticamente todo o país estava a colher uvas. E quem faz vinho base para espumante, em muitos casos, começou em Julho. O stress nas empresas e adegas foi tremendo. Imagine-se precisar de colher as uvas e ter os vindimadores agendados para duas semanas mais tarde; ou querer colocar a adega pronta e os enólogos e funcionários essenciais estarem a descansar bem longe…

Desde o mês de Maio que o tempo seco e quente indiciava uma vindima precoce. Mas ninguém esperava que em Julho a maturação disparasse como um comboio desgovernado. Muito boa gente deixou a família na praia e regressou às adegas. E alguns nem chegaram a ter férias. O calor, ainda que moderado em diversas regiões por noites frescas (que ajudam ao desenvolvimento da maturação) mas, sobretudo, o ano extremamente seco, foi o principal responsável por esta vindima louca. Como alguém me dizia, “parecia que as videiras, à míngua de recursos para sustentar as uvas, queriam ver-se livres delas o mais rápido possível”. Lavados os cestos, é tempo de fazer o balanço. E parece que, apesar dos sustos, os vinhos vão ser muito bons. Antes assim. Da vindima de 2017 e dos seus frutos trata o extenso trabalho realizado por João Afonso e António Falcão que publicamos nesta edição de Outubro.

Parece que, apesar dos sustos, os vinhos vão ser muito bons

Outro tema em destaque é a grande prova de vinhos Syrah, orientada e escrita por Valeria Zeferino. A uva Syrah é, sem dúvida, um fenómeno em Portugal. A seguir à Touriga Nacional, é provavelmente a uva tinta que mais adeptos reúne junto de viticultores e produtores graças, sobretudo, a uma enorme consistência de qualidade, vindima após vindima. Os vinhos que provámos mostram a versatilidade da uva, capaz de originar produtos muito interessantes em diversos segmentos de preço.

Incontornável é igualmente a figura de João Portugal Ramos. Enólogo, produtor, empreendedor, um dos principais responsáveis pelo salto da enologia portuguesa para a era moderna, comemorou agora os 25 anos de vida da empresa vitivinícola que criou em Estremoz e se estendeu depois a outras regiões. Entrevistado nesta edição, expõe a sua visão sobre o vinho português e dá-nos conta daquilo que o move.

O nosso Master of Wine Dirceu Vianna Junior continua a provar todos os meses um conjunto de vinhos escolhidos em torno de um tema específico. Desta vez, procurou tintos do Douro com preço inferior a €15 para fazer as suas recomendações.

Finalmente, de entre os muitos motivos para ler as 144 páginas da Grandes Escolhas de Outubro, permitam-me destacar as várias peças sobre a região bairradina, os seus produtores e os seus vinhos. Enquanto o vinho de 2017 repousa nas adegas, depois de uma vindima em passo de corrida, é tempo de procurarmos nós também um momento de repouso para uma boa leitura.

E viva a diferença…

Finalmente. As castas portuguesas começam a ter o lugar que merecem nas a(in)tenções vitícolas, não só por parte dos viticultores, mas, assinalavelmente, por parte das entidades oficiais, regulamentadoras e outras tais.   SE tenho algum ponto forte, esse não será certamente o de escrever “Crónicas”. Não consigo tornar interessante um texto inspirado em trivialidades ou […]

Finalmente. As castas portuguesas começam a ter o lugar
que merecem nas a(in)tenções vitícolas, não só por parte dos
viticultores, mas, assinalavelmente, por parte das entidades
oficiais, regulamentadoras e outras tais.

 

SE tenho algum ponto forte, esse não será certamente o de escrever “Crónicas”. Não consigo tornar interessante um texto inspirado em trivialidades ou fait-divers. Não tenho essa arte. Assim, quando me decido a fazê-lo, tenho de sentir que algo que considero importante deve ser partilhado com quem tem a paciência de ler as palavras que escrevo.

A crónica que assinava na Revista de Vinhos, que construímos passo a passo, mês a mês, ano a ano, chamava-se “Contra Corrente”. Em várias destas crónicas quis chamar a atenção para a importância das castas portuguesas, e de nelas fazermos âncora para navegarmos seguros em busca no mundo. Sempre me indignei com quem bajula vinhos estrangeiros e despreza vinhos portugueses, sempre me inconformei com quem nega este fantástico Portugal e aquilo de que é feito. Sempre me entristeci com a facilidade da “cópia” e volatilidade das “modas” e sempre me revoltei com a falta de interacção, respeito pela tradição e sentido de “rumo sólido”.

Continuo a não compreender porque muitos enólogos usam a mesma receita nas várias consultorias para que trabalham, continuo sem entender porque é que um vinho de Trás-os-Montes tem de saber a Douro, ou porque a Touriga Nacional tem de ser plantada no Alentejo, ou porque o Vinhão tem de substituir o Sousão no Douro. E pergunto: porque razão continuamos a querer desarrumar aquilo que estava tão bem arrumado? Ou porque razão fazemos tudo igual quando podemos fazer tudo diferente?

A nova crónica chama-se Unplugged, porque sempre preferi a discrição. E se tenho de ter a coragem de chamar atenções quero fazê-lo desligado, para que o ruído seja o “quanto baste”.

Esta primeira crónica para a VINHO Grandes Escolhas não é para dizer “reparem…”, mas sim para saudar a recente mudança das opções vitícolas tomadas não só pelo programa VITIS como também pelo IVV, pelo INIAV e pela PORVID. Ainda não é o “óptimo”, mas já é um grande passo.

O VITIS (programa de apoio comunitário à reestruturação ou plantação de vinha) privilegia a partir deste ano de 2017 todos os projectos que tenham a intenção de plantar apenas castas de origem nacional. Com a limitação que existe hoje ao crescimento de área de vinha, é de aceitar que as castas francesas, italianas ou outras tais que não as nossas serão afastadas das novas plantações. Nada mau, já só plantamos (à partida) o que tem cunho nacional.

No INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária) várias reuniões têm sido feitas para recuperar as castas minoritárias nacionais, ou seja, todas aquelas que não têm clones, nem material com garantia sanitária e garantia de casta, que possa ser multiplicado. Das mais de 250 castas para vinho que possuímos, cerca de 60 já têm clones certificados e mais 12 juntaram-se-lhes recentemente como material vegetativo garantido que pode vir a ser (caso haja pedidos) multiplicado em viveiristas certificados. O viticultor pode hoje requerer a marcação de videira de castas minoritárias na sua propriedade, para que o seu material vegetativo venha a ter possibilidades de multiplicação certificada.

Do Instituto da Vinha e do Vinho, outro projecto. Este bastante ambicioso. Objectivo: estudar cultural e enologicamente castas raras (na ordem de algumas dezenas) num período curto de tempo. Existe para já uma lista de 100 destas castas raras, das quais serão plantadas vinhas com material cedido pela PORVID, e num futuro muito próximo será feito vinho destas castas e destas vinhas. O projecto vai arrancar este mesmo ano e tem a participação de várias instituições e empresas (Instituto Superior de Agronomia, Real Companhia Velha, Sogrape, Esporão…).

Na PORVID, o cofre forte de toda diversidade genética das videiras (castas) portuguesas, os trabalhos não se limitam a guardar o que existe e decorre um programa de prospecção de novas castas. Ou seja, acontece que por vezes castas com o mesmo nome são completamente diferentes, como é o caso da casta Amaral. Muito em breve, serão efectuados cerca de 100 testes para obter resultados moleculares que definirão o DNA de muitas videiras em estudo, com a certeza de que algumas novas castas surgirão destes testes. Em perspectiva a aprovação de financiamento para prosseguir e alargar substancialmente estes testes moleculares, que poderão mostrar que o nosso Portugal tem bastante mais castas para vinho do que à partida se pensava.

Pequenino, velhinho e muito rico em diversidade. Saibamos nós aproveitá-lo. Tenho dito!

Cozinha e género, parar para pensar

A franca visibilidade dos chamados chefs Michelin não exprime a realidade nem da história nem da prática da cozinha. É verdade que no imaginário popular uma mulher na cozinha é afecto e um homem organização, mas pelos chavões não vamos a parte alguma.   NO passado, Mère Brazier, Marie Bourgeois, Marguerite Bise e, neste momento, […]

A franca visibilidade dos chamados chefs Michelin não exprime a
realidade nem da história nem da prática da cozinha. É verdade que
no imaginário popular uma mulher na cozinha é afecto e um homem
organização, mas pelos chavões não vamos a parte alguma.

 

NO passado, Mère Brazier, Marie Bourgeois, Marguerite Bise e, neste momento, Anne-Sophie Pic apenas, são as únicas mulheres cozinheiras que atingiram em França o escalão supremo da complexa escala Michelin no guia vermelho. As únicas mulheres que tiveram em França três estrelas Michelin. O espaço para a especulação e suspeita de misoginia por parte dos inspectores e directores do guia francês é mais que muito, de resto é o que tem acontecido.

São mais exigentes com as francesas do que com as outras. Em Itália, Nadia Santini e Annie Feolde têm três estrelas. Em Espanha, Carme Ruscalleda e de certa forma Elena Arzak conseguiram igual proeza. Por outro lado, não há grande cozinheiro – Michelin ou não – que não confesse a sua ligação aos sabores da infância, campo essencial e profundamente maternal. Os livros clássicos de receitas que o mundo inteiro lavrou são na maioria de pena feminina, as homólogas de Maria de Lourdes Modesto, Felipa Vacondeus, Berta Rosa-Limpo desbravaram as mesas populares, entraram nas casas pobres com o mesmo fulgor que nas mais nobres e acondicionaram o inefável receituário de que hoje dispomos. Nem o bolo de prata foi esquecido nem a caça maior, que já quase não se oferece em restaurante, ficou de lado.

Faz-me pensar se não há afinal mais de feminino que masculino nos projectos a longo prazo, em que é forçoso que inclua os muitos legados do vinho e seus territórios. Maria Odete Cortes Valente, Graça Castelo Lopes, Maria Emília Cancella de Abreu e tantas outras mulheres povoam o imaginário de quem está há muito tempo no ofício de cozinheiro em Portugal. A esses, note-se, nunca ninguém lhes ouviu um comentário negativo sobre cozinha no feminino.

Talvez a ideia de esforço físico, de arcar com panelas de mais de 15 quilos de caldo e meias carcaças de novilho, tenha sido a certa altura argumento. Mas a irascibilidade de um chef intempestivo é bem mais avassaladora do que a hipotética quebra de resistência de uma chef perante os desafios físicos que hoje estão reduzidos ao mínimo. E os homens são os primeiros a dizer que nas suas brigadas a função suplanta o género e que hoje não há qualquer diferença. As cozinhas já foram espaços de muitas batalhas e confrontos físicos, hoje são espaços de trabalho como outros quaisquer.

Os tempos que vivemos nada têm a ver com os tempos em que uma mulher ser eficaz e distinguir-se lhe dava má reputação. Oficiou no Hotel Cavendish, em Londres, uma das mais prodigiosas cozinheiras do seu tempo, Rosa Lewis (1867-1952). Num livro delicioso e de leitura obrigatória para quem quer perceber o que relaciona ou não cozinha e género, Mary Lawton relata algumas das vicissitudes da que era para ela “a rainha dos cozinheiros e de alguns reis”. Criou, absorveu e adaptou milhares de grandes receitas, mas foi sempre perseguida pelo rumor de que era amante de Eduardo VII, e o próprio hotel onde trabalhava tornou-se num ponto de encontro amoroso da alta aristocracia londrina. Enorme injustiça, daquela de que os homens de hoje infelizmente ainda são capazes. De qualquer forma, foi escola importante para muitos e sistematizou conhecimento que estava disperso pelas muitas cozinhas inglesas.

No outro lado do oceano a liberdade de movimentos não era muito maior mas as mulheres iam conseguindo notabilizar-se através de iniciativas de grande fôlego. Fannie Farmer (1857-1915) revolucionou o ensino da cozinha, detendo ao mesmo tempo várias “primeiras” no palmarés. Foi, por exemplo, a primeira a especificar medidas rigorosas de ingredientes nas suas receitas, o que deu brado. Claro que hoje ainda temos expressões como “q.b.” nas receitas com que trabalhamos e transmitimos, mas ninguém aceitaria voltar a guiar-se por medidas qualitativas como um “sopro” ou um “bom gole” de determinando ingrediente.

Paris acabou por ser onde, por acidente, nasceu uma das mais bem sucedidas iniciativas de sempre no mundo da cozinha e alta cozinha. No final do séc. XIX, Marthe Distel, jornalista parisiense, lança uma revista chamada “La cusinière Cordon Bleu”, que queria dizer mais ou menos a cozinheira perfeita. Publicava receitas e proporcionava experiências ao vivo com os chefs mais famosos. A popularidade foi tanta que fundou a escola Cordon Bleu, hoje uma referência mundial do ensino culinário, em todas as frentes. Popularidade esmagadora, foi talvez a primeira a expor o labor dos chefs na comunicação social, atingindo assim o grande público amador.

Havia um lado humanitário grande em tudo o que Distel concebia, tanto que à sua morte todo o legado reverte a favor de uma associação de orfanatos sua protegida. A guerra força o interlúdio e quis o destino que a escola Cordon Bleu fosse parar às mãos de um homem, grande cozinheiro por sinal, co-fundador da cadeia Ritz de hotéis, de seu nome Auguste Escoffier. Trabalho bem continuado, há que dizer. Resta saber quanta da inspiração do grand chef e empresário não vem afinal da gigante Marthe Distel. Mas isso, como muitas outras coisas, nunca saberemos.

A viragem do século e a guerra mexeram, sabemos, em tudo e em todos. E aprendemos que ser redutores não nos leva a nada, antes queremos que as cozinhas sejam palcos de cultura e realização pessoal. E que o género seja… o da cozinha. Espero que não seja pedir muito.

A fermentação maloláctica

A fermentação maloláctica diminui o teor de acidez nos vinhos. Nos vinhos tintos é imprescindível; na maioria dos vinhos brancos é dispensável.   TEXTO João Afonso A maloláctica A fermentação maloláctica é uma desacidificação biológica e consiste na degradação em anaerobiose (ausência de oxigénio), por bactérias lácticas, do ácido málico do vinho em ácido láctico, […]

A fermentação maloláctica diminui o teor de acidez nos vinhos. Nos vinhos tintos é imprescindível; na maioria dos vinhos brancos é dispensável.

 

TEXTO João Afonso

A maloláctica
A fermentação maloláctica é uma desacidificação biológica e consiste na degradação em anaerobiose (ausência de oxigénio), por bactérias lácticas, do ácido málico do vinho em ácido láctico, com a libertação de dióxido de carbono.

De málico para láctico
O ácido málico encontra-se de um modo geral em todas as frutas. Tem dupla função ácida, ou seja, é um ácido muito mais “ácido e verde” do que o ácido láctico, que, tal como o nome indica (láctico de leite), é muito mais macio e suave.

As bactérias lácticas
Existem vários tipos de bactérias lácticas. Devido à presença do antioxidante dióxido de enxofre na maioria dos mostos e vinhos, e à alta sensibilidade destas bactérias a este antioxidante, nem todas conseguem multiplicar-se e degradar o ácido málico.

Onde vivem
A maioria das bactérias lácticas está presente nos mostos e nos vinhos, encontra-se nas folhas, nos bagos, nos equipamentos e nos utensílios de vinificação.

A maloláctica e a acidez volátil
A maloláctica provoca um ligeiro aumento da acidez volátil (0,1 a 0,2 gr/l) no vinho. É consequência da degradação dos resíduos de açúcar e de ácido cítrico feito pelas bactérias, ao mesmo tempo que degradam o ácido málico.

As sensibilidades das bactérias lácticas
Os pH baixos (<3,2) e o dióxido de enxofre limitam fortemente a multiplicação das bactérias, o álcool acima dos 14% não as deixa trabalhar convenientemente e preferem sempre uma temperatura entre os 18º e os 20ºC.

O ciclo das bactérias lácticas
Final de maturação com população de bactérias muito reduzida, aumento ligeiro após entrada das uvas na adega, declínio durante a fermentação alcoólica, aumento exponencial depois de esta terminar.

O vinho e a maloláctica
A maloláctica baixa a acidez e aumenta a complexidade dos vinhos. O vinho tinto, sem a maloláctica concluída, é “verde” e “cru”. Já o vinho branco sem maloláctica ganha nervo e frescura; com maloláctica perde acidez, embora possa ganhar opulência, corpo e complexidade. Por estas razões, a generalidade dos vinhos tintos faz naturalmente a fermentação maloláctica. Na generalidade dos vinhos brancos impede-se que ela aconteça.

Os jornalistas não trabalham

Está na hora de alguém assumir que os jornalistas não trabalham. Principalmente os da imprensa especializada em vinho e gastronomia, que não fazem mais do que comer e beber. Uma vida folgada, está-se mesmo a ver.   JORNALISMO não é trabalho. Escrever não é medicina nem engenharia nem advocacia, muito menos hotelaria, agricultura, construção ou […]

Está na hora de alguém assumir que os jornalistas não trabalham. Principalmente os da imprensa especializada em vinho e gastronomia, que não fazem mais do que comer e beber. Uma vida folgada, está-se mesmo a ver.

 

JORNALISMO não é trabalho. Escrever não é medicina nem engenharia nem advocacia, muito menos hotelaria, agricultura, construção ou qualquer outra coisa que obrigue a puxar pela cabeça ou pelo corpo. Os jornalistas são preguiçosos e só se mexem quando querem, não ficam acordados até tarde com o peso da responsabilidade, das preocupações e dos prazos. Quando acham que precisam descansar, podem fazê-lo à vontade porque o mundo pára e deixa de haver novidades e acontecimentos para noticiar, principalmente na área do vinho e da gastronomia, com o ritmo lento a que saem novos vinhos e se fazem eventos gastronómicos em Portugal.

Tempo para escrever e para pensar? Porquê? Como qualquer ser humano, os jornalistas estão constantemente no pico da sua criatividade e, se não conseguem escrever as suas dezenas de textos de segunda a sexta-feira, das oito da manhã às seis da tarde, é porque são todos uns langões. Que diabo, é só isso que têm para fazer! E não é difícil.

De entre os profissionais da escrita, os jornalistas e críticos de vinho e gastronomia são os que levam a melhor vida. É só viagens, passeios, festas, almoçaradas e jantaradas, muitas e longas, um constante forró. Ninguém à volta dos jornalistas sofre com isso porque, apesar das múltiplas ausências e de todas as refeições que não passam em casa, toda a gente sabe que os jornalistas nunca conseguem manter uma família por muito tempo. E os que a têm não são exemplo para este caso, porque é sabido que os jornalistas ganham tanto dinheiro que as suas mulheres, os seus maridos e os seus filhos são encaminhados de férias para a Polinésia Francesa enquanto eles se divertem à conversa com produtores, enólogos, cozinheiros, comendo e bebendo do melhor nos intervalos.

Os críticos, esses, entretêm-se a dizer mal de tudo, até do próprio trabalho. Nos seus muitos momentos de ócio, críticos de vinho e de gastronomia divertem-se a deitar abaixo o trabalho dos produtores e chefes de cozinha que se esfalfaram para fazer um vinho ou conceber um prato. Provas de vinho? Deixem-me rir. Como é que alguém pode considerar isso trabalho? Os vinhos são todos iguais e provar, classificar e descrever cinco, vinte ou cinquenta vinhos de seguida é coisa que qualquer um faz. Cheira-se, prova-se, escrevem-se umas notinhas sobre isso e já está. Não requer esforço ou talento e não exige responsabilidade. Chamar trabalho a isso? Os jornalistas não trabalham.

Encruzado

A casta Encruzado é um verdadeiro fenómeno. Num espaço temporal muito curto passou de quase desconhecida para indisputada líder entre as variedades brancas do Dão. Para o apreciador de vinhos de qualidade, Dão branco e Encruzado são quase sinónimos. E existem certamente boas razões para isso.   QUEM está atento às tendências no mercado de […]

A casta Encruzado é um verdadeiro fenómeno. Num espaço temporal muito curto passou de quase desconhecida para indisputada líder entre as variedades brancas do Dão. Para o apreciador de vinhos de qualidade, Dão branco e Encruzado são quase sinónimos. E existem certamente boas razões para isso.

 

QUEM está atento às tendências no mercado de vinhos e tem idade suficiente para as acompanhar desde há quase três décadas lembra-se certamente do “big bang” dos chamados monovarietais. Estávamos em meados dos anos 90 e muitos consumidores portugueses ouviam pela primeira vez falar em castas e descobriam os vinhos feitos de uma só variedade. A coisa atingiu tal dimensão que até as marcas próprias de alguns supermercados os tinham em quantidade. Das dezenas de castas diferentes que então mereciam honras de engarrafamento a solo, sobreviveram até aos dias de hoje, com sucesso comercial capaz de criar uma categoria de produto, relativamente poucas. Curiosamente, mais brancas do que tintas. Algumas transversais a todo o país, como a omnipresente Touriga Nacional ou as cada vez mais difundidas Arinto, Syrah, Alicante Bouschet ou Alvarinho; outras de âmbito mais regional, como Loureiro, Avesso, Baga, Síria, Antão Vaz e, é claro, Encruzado.

A Grande Prova publicada nesta edição de Setembro é um bom exemplo do peso que a casta hoje tem nos vinhos mais ambiciosos do Dão. Apesar de ser apenas a 5ª variedade branca mais plantada na região, está presente em todos os 47 vinhos provados. E desses, a maioria é feita exclusivamente de Encruzado.

Sabemos ainda pouco da uva branca mais famosa do Dão

Para os consumidores actuais, pode parecer que a uva Encruzado foi desde sempre rainha dos brancos do Dão. Mas quando eu comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, ninguém ninguém falava nela. O primeiro vinho comercializado como Encruzado foi o Quinta dos Carvalhais da colheita de 1992. A vida de uma casta, a sua adaptação natural às condições especificas de cada região, a aquisição de conhecimentos sobre o seu comportamento na vinha e na adega, é algo que se mede, normalmente, em séculos. Nesta perspectiva, a Encruzado é das variedades menos conhecidas em Portugal. Segundo o Grande Livro das Castas, coordenado por Jorge Bohm e para o qual contribuíram diversos investigadores nacionais, a primeira menção escrita a uma casta identificada como Encruzado ocorreu apenas em 1942. Em termos de comparação com outras castas regionais, a Malvasia Fina (a uva branca mais plantada no Dão, oriunda da grande família das Malvasias) está identificada desde 1515; a Gouveio (Godello na Galiza), desde 1531; e António Augusto de Aguiar catalogava as uvas Bical e Cerceal-Branco em 1866/1867.

Já agora, noutra parte do mundo, em França, os monges de Cister referiam em 1330 uma uva chamada Chardonnay… Em pouco mais de duas décadas de “utilização consciente”, na vinha, na adega, no mercado, a Encruzado mostrou ser uva de enorme categoria, capaz de originar alguns dos melhores brancos portugueses, com elegância, classe, longevidade. No entanto, comparada com outras castas, não tivemos ainda vindimas suficientes para experimentar/explorar todas as suas capacidades. O que me leva a pensar que o melhor do Encruzado ainda está para vir…

O Chefe não estava

O que nos faz decidir na hora de escolher o sitio onde vamos jantar? Localização, orçamento disponível, tipo de cozinha, gosto pessoal são factores usualmente determinantes que condicionam a opção do cliente que quer fazer daquela noite um momento especial. Com a recente (e fulgurante) mediatização dos chefes, a imagem destes começou a ter uma […]

O que nos faz decidir na hora de escolher o sitio onde vamos jantar? Localização, orçamento disponível, tipo de cozinha, gosto pessoal são factores usualmente determinantes que condicionam a opção do cliente que quer fazer daquela noite um momento especial. Com a recente (e fulgurante) mediatização dos chefes, a imagem destes começou a ter uma importância crescente nessa escolha e hoje são muitos os clientes que escolhem o restaurante pela única razão ser o de fulano ou de beltrano. Em bom português, isso pode ser um pau de dois bicos.

UM amigo meu contava-me noutro dia que tinha ido pela primeira vez a um restaurante estrelado numa cidade onde estava de visita. Fiquei curioso para saber como tinha corrido a experiência até porque é um espaço relativamente novo que eu também não conheço e para o qual tinha bastantes expectativas. Esse meu amigo, verdadeiro gourmand e grande conhecedor do meio, confessou-me que as coisas não correram nada bem e que a impressão final foi no geral decepcionante. Como eu já conhecia algum do trabalho anterior do chefe em questão e tenho dele uma boa impressão, estranhei o veredicto. A menos que… Ouve lá, o chefe estava presente? Não, não estava nesse dia, respondeu. Se calhar isso explica muita coisa, rematou

Pois, lá explicar, explica mas não deveria justificar. Mas esta é uma pecha que tenho encontrado muitas vezes em restaurantes portugueses com pretensões que ficam com a imagem afectada por uma sucessão de pequenas coisas que, não sendo cada uma delas especialmente grave, fazem no conjunto passar uma imagem não consentânea com o estatuto alcançado.

Seja pela desatenção de esquecer um ingrediente, ou às vezes até um prato na sucessão do menu, seja por deixar passar um ponto de cozedura, por encontrar uma espinha ou um osso onde eles não deveriam estar, por ter sal ou pimenta em excesso, pelo molho que estava deslaçado, ou a pele do bicho que não estava com o crocante que devia, seja ainda por uma falha grave no serviço, a verdade é que são já demasiadas vezes em que se notam diferenças sensíveis entre uma e outra noites que não eram suposto haver.

Muitos serão levados a pensar que o estatuto mediático que os chefes hoje em dia alcançaram faz deles muitas vezes estrelas incontornáveis e que assim a sua presença – ou ausência – nos restaurantes em que dão a cara se faça devidamente notar. E é compreensível que assim seja. O que seria um concerto dos U2 se o Bono não estivesse em palco? Por outro lado, somos humanos e até certo ponto podemos perceber que há dias e dias, certo?

Não penso assim. Primeiro, há que notar que o preço final que o cliente paga não varia de dia para dia em função do chefe estar ou não presente. Depois se se atinge um estatuto de excepção, se até lhe foi atribuída uma estrela, isso quer dizer que estamos perante um estabelecimento de altíssimo nível, que se faz pagar muito bem e que por isso não admite falhas de profissionalismo tão elementares.

Temos chefes muito bons, criativos e tecnicamente bem apetrechados. Temos uma cozinha de base deliciosa e com personalidade, assente em tradições ancestrais. Temos alimentos e ingredientes de qualidade irrepreensível que são disputados a peso de ouro por alguns dos grandes cozinheiros do mundo.

O que nos falta, então? Coisa pouca, apenas três itens, na minha opinião: consistência, consistência, consistência. Isto é, basicamente fazer o trabalho diário como se estivéssemos a jogar a final dos campeões. E claro, formar e manter uma equipa que não viva ofuscada pelo brilhantismo do chefe mas se sinta ela própria uma estrela que tem que provar todos os dias o seu virtuosismo.

Revoadas de gafanhotos

Dedicamos geralmente pouco tempo a certos assuntos. Não é por falta de vontade, até porque saber mais é um imperativo de consciência e ser sério e grave é obrigatório, se queremos ter uma opinião fundamentada. Mas é tão atraente a ideia de ter o google à mão e ser especialista instantâneo!   FOI no Verão […]

Dedicamos geralmente pouco tempo a certos assuntos. Não é por falta de vontade, até porque saber mais é um imperativo de consciência e ser sério e grave é obrigatório, se queremos ter uma opinião fundamentada. Mas é tão atraente a ideia de ter o google à mão e ser especialista instantâneo!

 

FOI no Verão de há muitos anos, no carro dos tios que me ensinaram a viajar e incutiram em mim o gosto e o gozo de ir daqui para ali. Estávamos a chegar a Toulouse, seriam talvez sete da tarde, o céu limpo, as ruas tranquilas, as indicações do nosso hotel a aparecer, paramos num sinal vermelho. Só nós, o sinal vermelho e a rua larga à nossa espera. Chuva grossa, como granizo forte no tejadilho, depois no pára-brisas mas não era chuva, afinal. Ainda a tentar perceber o que era, de repente foi-se a luz e o barulho era ensurdecedor. Gafanhotos, disse o meu tio. Estava a passar por nós uma praga bíblica de gafanhotos, em pleno centro de Toulouse.

Há quarenta anos não havia internet nem forma alguma de comunicar para perceber o que se estava a passar, mais tarde no hotel fomos esclarecidos. Era normal, para a altura do ano, e tinham prevenido na televisão que aquilo ia acontecer. Explicados tanto os gafanhotos como sermos os únicos na rua quando a coisa se deu. Foram dois minutos intermináveis e como chegou partiu, sem mais. Na TV, imagens da devastação que os saltitões alados provocaram até dispersarem. Comentava-se que só os caracóis eram mais terríveis do que os gafanhotos. Devo ter entrado em choque, tinha doze anos e para mim os caracóis eram os bicharocos simpáticos que ia apanhar ao campo nas férias em Óbidos.

Aquela revoada em Toulouse deixou marca e desde esse dia passou a metáfora de tudo o que de novo aparece para logo a seguir se ir embora. Ajudou-me muitas vezes a perceber as gritarias momentâneas e as pessoas pouco razoáveis, além de uma sensação de efémero em muito do que surge do nada. O vinho natural, a comida sem glúten, os menus de degustação e os incêndios florestais têm sido campos recorrentes de aplicação.

Começo por este último para dar o melhor exemplo do que são os especialistas instantâneos. De manhãzinha atacam e resolvem um assunto grave – com base na informação que vai saindo de forma mais ou menos sensacionalista – e de tarde estão prontos e feitos para a política. No fundo, nenhum assunto é para eles grave. Odeiam eucaliptos mas não sabem o que são, nem que idade têm nem porque são importantes no nosso país. E vão ver a lei, a mesma que todos vemos, lemos e googlamos, para nos explicar que as distâncias das estradas não são respeitadas e que foi por isso que morreram as pessoas. Lamentável de redutora e desrespeitadora, esta forma de explorar a ignorância alheia e a ignorância que revela. Lembro-me de 2003, estava ligado a actividades e especialistas dos verdadeiros quando Portugal literalmente pegou fogo. Todos ouvimos sempre pessoas cheias de certezas absolutas, mas mais não é do que uma revoada daquelas de Toulouse.

Nos vinhos estou a assistir ao fenómeno curioso que pressenti quando vi o “Mondovino” e entrevistei Jonathan Nossiter, o autor, que me pôs triste quando me disse que gostava de vinhos oxidados. Interrompi a gravação para lhe dizer o que aprendi, que havia que fazer a distinção entre evoluído e oxidado, porque para mim – e para quem mexe na área – um vinho oxidado é um vinho estragado.

Acho glorioso o que está a acontecer, estamos a desenterrar património importante revisitando os velhos valores, mas só podemos ficar contentes se os vinhos estiverem bons e vivos.

A enologia é uma profissão de base científica que se ocupa de fazer vinhos aptos para o consumo humano, de acordo com princípios e objectivos estabelecidos pelo produtor. Na toada – e tantas revoadas – dos vinhos naturais em que estamos imersos, há os que sabem o que estão a fazer e os que não têm a mínima ideia. Vamos ver onde nos leva e quanto dura. O glúten tem batido com força no meu pára-brisas e em vez de a praga se afastar insiste em voltar, fica tudo escuro de novo. O que é o glúten, afinal, e o que é comida sem glúten? Se uma pessoa com sensibilidade ao glúten comer um pão com glúten cai para o chão com asfixia e morre? Sabem o que significa para um restaurante ser forçado a ter pão sem glúten só porque sim? As explicações supostamente científicas a que tenho tido acesso são cuidadosos encadeamentos de disparates que não esclarecem ninguém. E se o assunto é grave e há riscos severos para a saúde, por que não há um cartão que identifique a pessoa, para mostrar no restaurante ou loja que não pode mesmo ingerir glúten?

Finalmente, duas pessoas notáveis que felizmente se juntaram para fazer um livro que mantenho à mão e que ainda há pouco folheei, ao arrumar os meus livros. Minnie Freudenthal e o chef Aimé Barroyer. Este último oficiava ainda na cozinha do Pestana Palace quando tive acesso às fichas técnicas dos seus pratos e à importância que dava à digeribilidade, tanto de cada prato como das sequências de vários pratos; os menus de degustação. O seu rigor e o arsenal técnico de que dispõe fez aproximar a médica e juntos produziram “Uma paixão feita de sabores lusitanos”, livro que deve estar presente na biblioteca de quem se interessa pelo assunto da gastronomia.

Tive o enorme privilégio de privar com o chef Barroyer nesses tempos, bem como de me sentar várias vezes à sua mesa. Constatei que mesmo o menu mais longo nunca pesava a ninguém, em vez disso mantinha-se uma boa disposição em toda a gente, à medida que se ia desenrolando a refeição. No final, era um regalo perceber que bem tínhamos todos sido tratados. Regra geral, e com o maior respeito por todos os cozinheiros, sinto que há mais preocupação em mostrar pratos, proteínas e temperos do que tratar uma degustação como uma refeição. A revoada aqui pode significar uma noite em claro e isso podia ser evitado, ouvindo quem sabe; aprendendo com os verdadeiros mestres.

Sabemos no caso dos gafanhotos que o segredo pode estar em não parar, seguir sempre em frente. Mas também sabemos todos quanto isso é impossível.