Estive Lá: No Rossio Gastrobar

Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de […]
Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de montras ornamentadas com melhor gosto que alguns prédios que as albergam. Nesse final, de uma sexta-feira recente, o destino foi o hotel Altis Avenida, que fica entre os Restauradores e o Rossio, para um cocktail e um repasto no restaurante/bar do seu topo.
O Rossio Gastrobar, que tem uma varanda com vista para a Baixa de Lisboa e o Castelo de S. Jorge, mais ao longe, é agradável. Nesse final de dia fresco ficámos no exterior, confortados pelas chamas dos aquecedores a gás a usufruir de um espaço que esteve sempre cheio de gente, sobretudo turistas que iam ali para estar um pouco numa das poucas esplanadas com vista sobre Lisboa e talvez também para saborear um dos cocktails de Flavi Andrade, chefe de Bar do hotel que alberga este espaço, que foi eleita a melhor barmaid do ano na edição de 2024 do Lisbon Bar Show. Foi também o que fizemos e valeu a pena.
Depois de uma pequena conversa com a autora, para perceber melhor o que a inspira a criar os seus cocktails, optei pelo seu Cacilheiro, já que estávamos tão perto do Tejo, e fiz bem. O repasto que se seguiu foi criado pelo chefe João Correia, com a entrada a ser composta por Mini tarteletes de cogumelos e pickle de limão, Crocantes de gamba da costa e maionese de coentros e Pastéis de massa tenra, vitelão e cebolinho, o primeiro e o último a fazerem muito boa companhia ao Caves S. João Pulo do Lobo Arinto de 2020. Para além de um Arroz Saboroso, regado com o suco da cabeça de camarão tigre, e feito ao estilo da paelha valenciana, em parceria de um tinto Porta de Cavaleiros Reserva 2019, muito equilibrado e elegante, também saboreámos, para terminar, uma Tarte de Noz Pecan e gelado de aguardente. Tudo isto servido, de forma eficiente, por pessoas simpáticas e agradáveis. Soube bem.
Rossio Gastrobar
Rua 1º Dezembro, 118, Lisboa
Tel.: + 351 210 440 018
Email: rossio@altishotels.com
Chocolate: Um ingrediente sedutor e romântico

Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e […]
Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e cómodo, pois bastava abrir um papo-seco a meio e colocar dentro a tablete inteira. Não tinha muito açúcar – nunca gostei de coisas muito doces – e tinha minúsculas passas de uva que tornavam a exploração mais saborosa.
Entretanto, muita água passou por debaixo da ponte e o mundo do chocolate revelou-se descoberta empolgante. Apareceram marcas e estilos diferentes, em resultado sobretudo da abertura de Portugal ao mundo, com a consequente invasão de produtos importados.
O chocolate em pó tinha um sabor amargo pronunciado. Vim a saber que resultava da extrusão por pressão da parte escura da fava de cacau. Nunca, contudo, me habituei a colocá-lo no leite e o termo de comparação que tinha era o do fabuloso chocolate quente, que bebia nas vezes em que lanchava com as minhas tias na pastelaria Suíça ou na Mexicana. Curiosamente, ambas as casas continuam a existir e a servir chocolate quente e continua delicioso. Nada a ver, contudo, com a fabulosa combinação de chocolate com churros que, nas frequentes deslocações a Madrid, me era dado provar. Espessura quase de pudim, muito sabor e a ligação com os pequenos fritos frisados sempre me fascinou.
Cada casa, em Portugal ou Espanha, tinha o seu próprio chocolate mas, no fundo, existia o denominador comum de se tratar de chocolate de leite. Foi também em Espanha que provei pela primeira vez chocolate branco, aquilo que rodeia a semente da fava e se consegue separar facilmente. Em rigor, não se devia chamar chocolate. Mas, na prática, passava por tal por conter partes derivadas da dita fava, a que se acrescentava açúcar. Exactamente nos antípodas daquilo que me atraía no chocolate e, por isso, passei a desprezar. A maioria dos trabalhos de moldagem de chocolate são contudo conseguidos graças ao chocolate branco ou manteiga de cacau, depois tingidos a gosto. Os chips de cacau, obtidos a partir da camada intermédia da fava por manipulação com pressão ou calor, cobrem um espectro vasto de aplicações em proporções variadas. É a partir de produto dessa zona que se faz o que conhecemos como chocolate de leite. Normalmente parte-se de chocolate em pó e depois tempera-se até atingir a doçura e a consistência desejadas. Até 60% de cacau, considera-se chocolate de leite na maioria das aplicações e marcas. Acima disso, começamos a atingir o chamado chocolate negro, rico em antioxidantes. Acima de 70%, podemos considerar que estamos perante chocolate negro, a que muitos erradamente chamam chocolate amargo.
Os frutos do cacaueiro reconhecem-se facilmente, pois são pendentes coloridos com o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau.
Vinho e chocolate
A bondade da ligação de vinho com chocolate tem origem nas muitas pontes de sabor que facilmente se estabelecem entre ambos. No vinho temos álcool, acidez, polifenóis e açúcar como base de degustação e diferenciação. No chocolate temos açúcar, acidez e amargos. Nas inúmeras provas que tive o privilégio de orientar, criei uma espécie de regra de três simples, estritamente extraída da experiência. Com chocolate branco, moscatel de Setúbal; com chocolate de leite, vinho Madeira Malvasia; com chocolate negro, vinho do Porto ruby. Nos tempos idos do evento Chocolate em Lisboa, assisti a autênticas epifanias no lado do consumidor, quando as pessoas passaram a ter o comando sobre o racional da prova. Perceberam sobretudo que os flavonóides do chocolate têm correspondência directa com os taninos do vinho. Uns e outros correspondem aos elementos antioxidantes, e podem ser, além disso e a propósito, os elementos saudáveis de que precisamos para uma alimentação equilibrada. Como em tudo, os excessos são de evitar. Mas se soubermos seleccionar o que nos faz bem, as nossas vidas correm melhor.
Um pouco de história
A chamada árvore de cacau existe sobretudo na América Central e o fruto reconhece-se facilmente, pois trata-se de pendentes coloridos que têm o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material abundante e esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau. As ditas sementes só se obtêm nos territórios de que falamos, numa história notável que nos faz recuar até dois mil anos antes de Cristo. As civilizações maia e asteca criaram um filão que encantou o descobridor espanhol Hernan Cortés no séc. XVI, a ponto de chegar a ver nele uma riqueza infindável.
Do que nos foi até hoje revelado, o chocolate era essencialmente consumido na forma líquida. As quantidades diárias ingeridas eram estratosféricas e apenas sacerdotes e governantes tinham acesso à bebida, talvez por isso mesmo. O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia. Terá sido por isso que a bebida foi rapidamente levada para Espanha, passando a ter honras até então reservadas ao chá e ao café. A Europa do final do séc. XVII, início do séc. XVIII. estava totalmente rendida ao grande novo valor do chocolate. As pessoas lotavam todas as salas disponíveis para beber uma chávena de chocolate quente. No final do séc. XVIII, o chocolate não podia estar mais na moda e a tablete ou barra impuseram-se enquanto forma individualizada de o consumir.
A grande revolução acontecia a olhos vistos, e o truque, da autoria do suíço Rodolphe Lindt, foi adicionar manteiga de cacau ao chocolate líquido. O procedimento industrial foi baptizado de conchagem (conching) e, no dealbar do séc. XIX, estabelecia-se toda uma nova ordem, coroando de glória a grande invenção. Nascia o chocolate da era moderna. Além de mais sólido, era também mais durável. Podia conservar-se facilmente num armário doméstico ou na despensa. O fascínio, esse, permanece vivo na mente e no coração dos actuais criadores. A marca Lindt é a que ainda hoje conhecemos e deve-se ao grande inventor e chocolateiro suíço. Muitos outros se lhe seguiram, diluindo bastante o seu protagonismo.
O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia.
Compliquemos um pouco
O assunto chocolate cobre bastante mais do que a simples enumeração de ingredientes e técnicas de produção. O estado actual das coisas aponta para a proveniência da fava como factor determinante para conseguir chegar ao pináculo do conhecimento. Percorremos o catálogo da Michel Cluizel, um dos melhores fabricantes de chocolate do mundo, e abismamos perante o triunfo da diversidade que este grande produtor oferece. Vahlrona, Callebaut – provavelmente a maior de todas as marcas -, Neuhaus e muitas outras marcas povoam densamente o universo superior da arte do chocolate. Todas têm o seu manifesto próprio quanto a origens das suas plantas de cacau e, por isso mesmo, todas também fazem marcação cerrada à concorrência. Por cá temos grandes intérpretes do chocolate, chefs que se distinguiram pela originalidade das suas criações. Rui Costa, da pastelaria Marbela, em Esposende, é um grande exemplo. Francisco Siopa, do Hotel Penha Longa, em Sintra, apresenta sistematicamente novas criações que nos fazem vibrar e enternecer. Francisco Melgão e seu irmão Serafim desenvolveram marca própria e dominam todas as técnicas industriais. No seu reduto, em Montemor-o-Novo, vão-nos brindando com as suas inovações. Pode visitar-se e comprar no local, ou encomendar e receber em casa. Cito apenas três, dos vários que poderia citar, com um critério de elencagem estritamente geográfico. Portugal está cheio de talentos por descobrir, que fazem trabalho notável. Eventos aqui e ali vão-nos dando pistas para novas descobertas, mas o país tem massa crítica para ir mais longe na ambição. Fica o modesto repto.
Fama com (muito) proveito
Todo o português leva ao peito os produtos da sua preferência mas, na doçaria, somos ainda tímidos. O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns. Aquele que me prendeu mais a alma até hoje provei-o na Suécia e é muito popular por lá. É baseado em chocolate negro, parco no açúcar e muito denso. É desafiante do ponto de vista da harmonização, mas resulta bem com um Pinot Noir novo e sem madeira. É fantástica a torta caprese, que me ficou na memória quando, em 1993, visitei a ilha italiana de Capri. Não leva qualquer tipo de farinha mas leva amêndoa, que lhe dá uma tonalidade com algum corpo, mas pede leveza no vinho. Um Porto branco com mais de vinte anos faz-lhe bem as honras.
O truque mais famoso do mundo pasteleiro é cozer pouco o bolo de chocolate e quando isso é feito intencionalmente o impacte é sempre grande. Os americanos chamam-lhe lava cake, pelo efeito do chocolate a escorrer, evocativo da lava de um vulcão em erupção. Nós chamamos-lhe coração de chocolate quente, ou fondant de chocolate. Um vinhão sem madeira da região dos vinhos verdes, desde que servido a temperatura inferior a 16ºC faz-lhe bem as loas. Pode parecer demasiado arriscado mas o sucesso é garantido, até pelo contraste de temperaturas.
Só fui duas vezes a Viena, e a primeira incursão tinha de ser coroada com a visita ao célebre café Sacher. Mas confesso desde já a minha desilusão. Foi criada na primeira metade do séc. XIX por Franz Sacher, que na altura tinha apenas 16 anos, para o então príncipe chanceler da Áustria. Leva doce de alperce e tem uma espessa camada de chocolate. Até hoje ainda não consegui acertar na maridagem certa. A que funcionou melhor foi com licor de tangerina. A Sacher-Tarte foi, desde aquele dia de 2002, um projecto aberto que vou tentando fechar em beleza. Para contrabalançar a experiência menos feliz, entrego-me facilmente e sem hesitações a um bolo brigadeiro. É um autêntico festival de chocolate e a sua estrutura húmida ajuda a gula a cumprir o seu desígnio. Apesar da estrutura baseada em chocolate negro, a minha opção vínica vai invariavelmente para Porto Tawny 40 anos. A cremosidade é preservada e o vinho sustenta com frescura e eficácia o brigadeiro gigante.
O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns.
As pequenas coisas
O gengibre revestido com chocolate é grande amigo do vinho, especialmente se for servido em pequenas tiras, ou fingers. Nesta harmonização, contudo, o ingrediente mais importante é o gengibre e não o chocolate que o reveste. A melhor experiência nesta abordagem aconteceu, sem surpresa, com um Arinto de Lisboa com mais de dez anos. Se o revestimento exterior for feito com chocolate de leite, opte por um aragonês alentejano novo e sem madeira. A reacção da casta ao gengibre é inesquecível. O celebrado bombom After Eight cabe nesta categoria e pede assessoria vínica certeira, e irá bem com um Alicante Bouschet de talha, também de terroir alentejano. Estamos no domínio da guloseima e o caso da laranja e chocolate é namoro antigo. Faz crescer água na boca a lasca de casca de laranja passada por chocolate negro. Se for acompanhada de um Gewurztraminer, é o céu. Aconselho esta mesma configuração, com pimento vermelho passado por chocolate negro. A explosão de sensações é fantástica, neste caso.
Passando ao domínio dos frutos secos, o simples revestimento de um pistáchio torrado com chocolate branco é toda uma emoção. E se lhe acrescentar piripiri ainda melhor. Maridagem mais delicada, mas proveitosa, é a que se consegue com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Um fruto seco que há que expor ao chocolate é a noz. Faça a experiência com chocolate de leite e depois harmonize com um bom malvasia da Madeira. Também gosto muito de maridar tâmaras passadas por chocolate negro e com vinho do Porto branco seco, sem madeira. Se tem experiência e confiança para entrar nos bombons, não deixe de experimentar foie gras ligado com chocolate negro. Abra um bom Porto Vintage e regozije com a experiência. Faça vários, porque vai ter muita audiência na família ou no grupo de amigos. Boas provas!
(Artigo publicado na edição de Março de 2025)
Proximidades: Bacalhau, jeitos e preceitos

Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de […]
Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de ser consensual na forma entre os portugueses, o bacalhau é o nosso totem culinário e merece sempre que nos detenhamos sobre ele.
No maravilhoso livro “Receitas escolhidas”, a eterna Maria de Lurdes Modesto apresenta a seguinte receita do Bacalhau à Gomes de Sá:
“Coloca-se o bacalhau num tacho e escalda-se com água a ferver. Tapa-se e abafa-se o recipiente com um cobertor e deixa-se ficar assim durante 20 minutos. Depois escorregue-se o bacalhau, retiram-se-lhe as peles e desfaz-se em lascas. Põem-se estas num recipiente fundo, cobrem-se com leite bem quente e deixam-se ficar de infusão 1h30 a 3 horas. Entretanto, cortam-se as cebolas e o dente de alho às rodelas e levam-se a alourar ligeiramente com o azeite. Juntam-se as batatas, que se cozeram com a pele, se pelaram e se cortaram às rodelas. Junta-se ainda o bacalhau escorrido. Mexe-se tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar. Tempera-se com sal e pimenta. Deita-se imediatamente num tabuleiro de barro e leva-se a forno bem quente durante 10 minutos. Serve-se no prato em que foi ao forno, polvilhado com salsa picada, e enfeita-se com rodelas de ovo cozido e azeitona preta.”
Resumindo, são três cozeduras para chegar ao excepcional resultado final do fabuloso bacalhau à Gomes de Sá, que, para mim, é a mais perfeita das formas de cozinhar o fiel amigo. É, segundo o que se sabe, atribuída a José Luís Gomes de Sá, estabelecido no Porto há cerca cem anos no negócio do bacalhau e é de facto de grande talante culinário. É também a receita mais aviltada de todas. Não há quem não lhe altere um aspecto ou outro. Mas isso é a vida e é facto inalienável. Além disso, só acrescenta à sua popularidade. Mesmo assim, está longe de ser a mais praticada em restaurante. Mas já lá vamos.
O prodígio está no peixe
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível. E deve evitar-se o excesso de cozedura. Acontecendo, seca o peixe, a posta ou a parte e lá se vão a utilidade e a textura mágicas. A riqueza é tal que do simples escaldar conseguimos já um caldo cheio de umami, que depois podemos congelar para utilizações futuras. As vulgares cuvetes que utilizamos para o gelo são óptimas para preservar o valor dos caldos, de bacalhau e não só. O caldo do cozido à portuguesa e o fundo de tomate são ambos belíssimas ilustrações do poder culinário que podemos e devemos conservar. Numa utilização quotidiana, rapidamente produz um molho excelente para um bife grelhado, por exemplo. Do bacalhau propriamente dito é que há que dizer que sem boa matéria-prima não há fórmula que resulte.
Temos várias declinações e atalhos sobretudo na forma congelada ao nosso dispor e, em rigor, devemos experimentá-las todas antes de escolher a nossa, que é, em princípio, a que mais se adequa à forma de cozinhar de cada um. Não tenhamos dúvidas de que estamos muito bem servidos, tanto em diversidade quanto em qualidade.
Se estamos empenhados na abordagem clássica, que é da demolha aturada por dois ou três dias com mudança periódica da água, estamos no caminho certo. É a forma de conseguir a regeneração plena do peixe, a partir do qual partimos com total segurança em direcção à receita que pretendemos executar. Não há nada de intrinsecamente errado na utilização de bacalhau demolhado e congelado, pronto a utilizar, note-se bem. É bem melhor do que deixar uma posta a boiar em água na bancada da cozinha por um par de dias. Além do cheiro nauseabundo, o peixe fica apodrecido e não serve mais para cozinhar, apesar de em muitos lares isso acontecer.
A Catalunha e o País Basco, servem desde, sempre as peças mais ricas em goma e colagénio do bacalhau. Kokotxas – papadas -, línguas e bochechas extraídas do peixe fresco fazem as delícias de todos, normalmente em ensopados ou outras soluções caldosas de massa ou arroz. Outrora, por cá essas partes estavam incrustadas nas caras de bacalhau que, com o restante peixe, se secavam e salgavam. Actualmente, graças ao extraordinário labor de produtores e transformadores de bacalhau dos nossos dias, temos acesso não só às ditas caras salgadas e secas, mas também a línguas e bochechas disponibilizadas em salmouras fortes. Feita a competente demolha, estão regeneradas e prontas a utilizar. E ainda temos os sames, que são as bexigas natatórias do bacalhau, de que herdámos importante receituário. Fazem parte do sistema de orientação do peixe pelas águas frias do norte e, por isso, são proteína rica e muito saborosa. A cozinha de pescador fez-lhes sempre as honras e hoje temos um prato ao nosso dispor, a feijoada de sames, que explora bem a riqueza destas pequenas bolsas, colocando-a ao lado de leguminosas diversas.
Igualmente valiosas são as línguas, de que os antigos percebiam bem as mais-valias culinárias. As choras de línguas vêm do tempo dos bravos dos bacalhoeiros na Terra Nova e após o necessários corte das cabeças preparava-se o maravilhoso caldo que era – e ainda é – de comer e chorar por mais. Nesta categoria caldosa, quando há tomate no fundo abra um bom Bical novo da Bairrada, com alguma madeira. Quando não há precisa desse fruto/legume, utilize um Arinto de Lisboa com madeira.
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível.
Os bacalhaus que amamos
Depois de tornar a variante Gomes de Sá como favorita, podemos e devemos acrescentar a lista de grandes pratos de bacalhau que representam condignamente o nosso grande totem. Como maridagem do Gomes de Sá, pode escolher entre um tinto alentejano sem madeira e um Loureiro dos vinhos verdes com madeira. Ambos brilharão junto do grande prato que é o bacalhau à Gomes de Sá. Eis os outros:
À Brás – A fascinante figura do galego Brás, da tasca montada, em tempos idos, na baixa lisboeta, continua a povoar fortemente o meu imaginário culinário. Bacalhau esfiapado fininho em seco e reservado, o sal sai naturalmente. Batatas palito de corte apertado, esmorecidas no azeite sem chegar à crocância da fritura plena, também reservadas. Chegava o cliente e o amigo Brás batia dois ovos, que, depois dos outros dois ingredientes a estalados na frigideira e com esta fora do lume, deitava por cima enquanto mexia. Há um bacalhau à Brás por cada casa, e a todos se pode assim chamar pela popularidade e facilidade da execução. O ovo macio e cremoso, aplicado com o preparado já fora do forno, vai determinar a eternidade do prato que ainda hoje gostamos de processar nas nossas casas. Um bom Alvarinho da região dos vinhos verdes vai fazer-lhe bem as loas.
À Narcisa – A receita é originária de um restaurante em Braga, chamado Narcisa, e era confecionado por uma cozinheira chamada Eusébia, entretanto falecida em 1972. Dada a sua origem, pode também ser chamado de bacalhau à Braga. Mas apesar da dor da perda irreparável da maravilhosa Narcisa, fixemo-nos na essência da receita. Dez postas altas de bacalhau que, após demolha, são abertas ao meio e em cada uma colocada uma fatia de presunto. É muito importante o tomate que faz o fundo do assado subsequente e que vai fazer a cama de cebola salteada em azeite. O presunto é parte interessada e, ao mesmo tempo, o único tempero do prato. O acabamento em forno quente vai decretar a natureza do prato, que apaladado com maionese vai gratinar na perfeição. Far-lhe-á boa justiça um tinto de castelão com menos de cinco anos de estágio em madeira, da região do Tejo.
À Zé do Pipo – O que faz a diferença neste prato é a utilização intensa e copiosa de maionese. As postas de bacalhau são cozidas em leite, parte do qual vai avivar o puré de batata que vai a gratinar em batatas duchesse, aplicadas com o saco de pasteleiro. Idealmente, o apaladar do Zé do Pipo consegue-se através da colocação de uma posta por frigideira de barro, orlada pelo puré de batata e depois coberta de maionese. Seguidamente vai ao forno gratinar e é servido assim, em dose individual. É brilhante e sofisticado o acompanhamento vínico com um bom Vinhão do Minho.
À Moda de Braga – É uma das mais vezeiras formas de processar bacalhau e, curiosamente, é a que mais frequentemente encontramos em Lisboa e no Porto. A posta é frita após demolha e é sempre acompanhada de cebolada forte e batatas fritas às rodelas. É porventura a preparação que mais abundantemente povoa o imaginário dos portugueses, variando no aspecto do pimento e do alho, o que sempre altera o sabor e a força do prato. Não posso deixar de referir a perfeição da confecção do chef José Dias, em Braga, no seu restaurante Bem me Quer, no Campo das Hortas. O vinho verde branco é o que é mais dado para acompanhar este prato ancestral da nossa tradição, sobretudo da casta Alvarinho, por permitir uma leitura ampla e tolerante do prato em todas as suas cambiantes.
Bolinhos/pastéis de Bacalhau – São emblema nacional e homenagem aprimorada ao bacalhau. Levam tanto de bacalhau como de batata e meia porção de cebola. Muito do segredo culinário está na correcção da fritura, da qual não deve haver excessos de gordura. Um bom pastel de bacalhau nem sequer deixa rasto de gordura nos dedos quando é comido à mão. E deve ser tão saboroso tanto quente como frio, pois tal como o ovo cozido, deve ser encarado como nibble, ou seja, para comer aos pedacinhos, para combater a fome súbita de qualquer português.
Cozido com todos – Por muitas voltas que demos, é a forma a um tempo mais clássica e mais sublime de comer bacalhau. Na quadra natalícia, é muito importante a cama de couve portuguesa curtida pela geada, a que se junta cenoura e nabo, além da óbvia rica e sápida posta de bacalhau, nunca demasiado cozida e servida com abundância de azeite e alho. É por excelência o manjar da consoada no país inteiro, excepção feita talvez ao Algarve e ao Alentejo, onde a carne de porco é imperativo familiar por excelência. Nos lares portugueses, tem assento real ao longo de todo o ano e é dos prazeres da mesa maiores que há, mais que não seja por evitar o peso nefasto da obrigação. A partir de um bom bacalhau cozido, tudo se pode fazer.
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)
Estive lá: Cícero, Um restaurante em forma de arte

No cosmopolita e multicultural bairro lisboeta de Campo de Ourique, o restaurante é um espaço deveras singular. Primeiro, porque se apresenta como um restaurante que é também uma galeria de arte, com muitos quadros e esculturas expostos de artistas do país irmão. Depois, porque se assume como um representante da cultura brasileira, unindo cores, formas […]
No cosmopolita e multicultural bairro lisboeta de Campo de Ourique, o restaurante é um espaço deveras singular. Primeiro, porque se apresenta como um restaurante que é também uma galeria de arte, com muitos quadros e esculturas expostos de artistas do país irmão. Depois, porque se assume como um representante da cultura brasileira, unindo cores, formas e sabores onde abundam as referências tropicais. Mais ainda, porque o espaço é dividido em três pequenas salas, Modernista, Contemporâneo e Origem, uma no rés do chão e outras duas na cave, cada uma delas com a decoração e ambiente distintivos, marcados pela cores fortes das pinturas expostas, assegurando, em qualquer delas, uma atmosfera acolhedora e intimista.
Por último, na proposta gastronómica que é, afinal, o mais relevante quando falamos sobre um restaurante. Pois é aqui que Paulo Dalla Nora Macedo, um dos co-fundadores do espaço, arriscou nesta nova versão do Cícero e foi buscar a Chef brasileira Alessandra Montagne, há 25 anos sediada em Paris, onde tem dois restaurantes e uma reputação já bem firmada. Num jantar de apresentação à imprensa, onde estivemos, foi visível como a Chef Alessandra, em conjugação com a Chef executiva residente, Ana Carolina, procuraram unir a técnica francesa, a inspiração de Cícero Dias na composição cromática das apresentações e uma fusão de ingredientes brasileiros e apontamentos portugueses.
Visando nitidamente o fine dinning e com preços condizentes a essa ambição, Alessandra desenhou um menu rico e em alguns momentos surpreendente. Logo no amuse-bouche encantou com a crocância do dadinho de tapioca. Nas duas entradas servidas gostei do contraste entre a suavidade do creme de cenoura e a salinidade da bottarga e sabores terrosos do velouté de cogumelos. Nos pratos principais, o carabineiro, irrepreensível com o risoto de cevada, cremoso como se impunha, pediu meças com o bacalhau fresco, couve e arroz negro. O prato de carne foi poitrine de porco, aipo e beterraba, e talvez porque a refeição já ia farta e longa terá sido o que menos me entusiasmou. Mas o desenho cromático da sobremesa, que a Chef Alessandra assumiu ter sido inspirada numa pintura de Cícero Dias, rematou com brilho o jantar.
Destaque ainda para uma carta de vinhos bem pensada, da responsabilidade do sommelier Rodolfo Tristão, com sugestões interessantes para além do óbvio, mas com preços que não são meigos. Requintado restaurante, galeria multifacetada, tertúlia animada, o Cícero, na sua nova encarnação, tem muito para seduzir. Assim a bolsa o permita.
Cícero
Morada: Rua Saraiva de Carvalho, 171, Lisboa
Tel.: + 351 966 913 699
Site: https://cicerobistrot.pt/pt/home-pt/
Horário: De Domingo a Quinta das 19h15 às 23h45. Sextas e Sábados das 19h15 às 00h00
Preço médio: 90€
Estive Lá: Voraz – Cozinha com identidade

Ē, desde há largos anos, que venho acompanhando o trajecto do Chefe Tiago Emanuel Santos, ex-professor de geografia que se apaixonou um dia pela cozinha e nunca a mais a largou. Os seus antecedentes académicos pesam bastante naquilo que nos chega à mesa quando provamos a sua comida fortemente identitária, com respeito absoluto pelo produto […]
Ē, desde há largos anos, que venho acompanhando o trajecto do Chefe Tiago Emanuel Santos, ex-professor de geografia que se apaixonou um dia pela cozinha e nunca a mais a largou. Os seus antecedentes académicos pesam bastante naquilo que nos chega à mesa quando provamos a sua comida fortemente identitária, com respeito absoluto pelo produto e pela relação com os seus fornecedores. E sente-se na forma como privilegia o local em detrimento do exótico e permanece fiel às suas raízes e às tradições em que cresceu.
A boa notícia, para os seus muitos admiradores, entre os quais me incluo, é que o Tiago, que já andou um pouco pelas sete partidas do mundo, se estabeleceu, há cerca de um ano, de armas e bagagens no Barreiro, e faz uma cozinha acessível, convivial, plena de sabores, cores e perfumes que nos remetem para recantos esquecidos da nossa memória, mas com um toque que nos baralha e desafia.
No mercado municipal do Barreiro, renovado e arejado, o Voraz ocupa quatro bonitos “corners”, estendidos em outros tantos balcões por entre as frutas legumes, os talhantes e as peixeiras do 1.º de Maio. Um dos espaços é dedicado ao sushi e à cozinha asiática, com Chefe próprio, onde se privilegia o peixe português sempre que possível, mas estava fechado no dia da nossa visita.
Sobrou-nos, afinal, aquilo que nos motivou a nossa ida: provar a “cozinha de território” do Tiago e do seu jovem Chefe, Bruno Xavier, que nos fez a honras da casa. A ementa está dividida em duas partes: uma dita “para partilhar” e outra “para devorar”. Mas isso é um eufemismo, porque afinal todas se podem partilhar (e nós fizémos isso) e todas são para devorar (oh se são!).
Começámos logo bem, com um couvert de primeira, com pão de centeio, manteiga dos Açores (uma das paixões não dissimuladas do Tiago) e azeitonas marinadas. Aqui o desafio é conter-nos, para não perdermos o apetite para o que vem a seguir. Aconselhados pelo Xavier, fomos para o talharim de choco com creme de castanha e barriga de porco crocante, uma das novidades recentemente introduzidas na carta. Como o nome indica, o choco vem cortado em fatias finas e o creme de castanha, cozido em caldo de frango, envolve, de forma harmoniosa, o conjunto a que os apontamentos da barriga de porco dão a graça ao conjunto. Brilhante foi prato seguinte, as vieiras com cogumelos shitake e molho wafu. Foi uma explosão de sabores na boca que nos deixou rendidos. A seguir veio a chora de bacalhau em arroz carolino cremoso de caras do dito, pleno de untuosidade e delicadeza. Quisemos provar ainda a língua de vaca corada em caril com tomate seco e maçã verde, outro prato que nos surpreende e desafia. Já cheios com tanta voracidade, a vontade era saltar as sobremesas. Mas o Tiago insistiu que provasse o pudim Abade de Priscos e confirmasse que também, nos doces, o Voraz pede meças aos melhores.
Não seria justo terminar sem falar dos vinhos, outra das paixões do Tiago Emanuel Santos, que já se aventurou a fazer um vinho nos Açores em parceria com um produtor local. Aqui a lista assenta sobretudo nos vinhos da Península de Setúbal (pensar local, mais uma vez), com propostas que fogem ao óbvio e ao dejá vu, mas fazem sentido em matéria de harmonização com esta cozinha, ao mesmo tempo simples no conceito e complexa em sabores e texturas. E tudo isto por preços que já não se usam.
Voraz
Mercado Municipal 1.º de Maio, Barreiro
Tel.: 961 838 235
Encerrado ao Domingo e Segunda- feira
Horários: 12:30 – 15:00; 19:30 – 23:00
Harmonias: O fabuloso mundo dos azeites

Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. […]
Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. O tempo e o modo pedem azeite novo e em troca obtemos as maiores alegrias.
Das gorduras utilizadas pelo mundo na cozinha, o azeite é porventura a mais sofisticada, pelo simples facto de que intervém, com toda a sua personalidade, tanto no gosto como no aroma.
Não é uma gordura neutra e altera as suas características com o tempo, dois factores a ter em conta em qualquer utilização que se faça. Mas há mais. A cor do azeite não tem qualquer significado quanto a origem, qualidade ou acidez. Isto vale para os que vêem virtude nos azeites de uma certa cor, preterindo uns em relação a outros. É tanto assim quanto a prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer.
Outra falácia bastante comum é a presunção da acidez a partir da prova em boca. Um erro que se encontra muitas vezes entre os provadores de vinhos, referindo-se à acidez titulada em ácido tartárico ou sulfúrico. Acontece que a acidez do azeite se refere ao teor de ácido oleico, que o nosso sistema gustativo não consegue julgar. Há que não confundir com os amargos de certo azeite, que comunicam informação semelhante mas sem qualquer relação possível entre uma coisa e outra. Já o mesmo não se pode dizer dos aromas, que podemos e devemos julgar livremente com os receptores que utilizamos no quotidiano. É de resto nesta etapa da degustação que avaliamos defeitos nos azeites, caso por exemplo da tulha, ranço e mofo. A tulha tem origem no armazenamento precário e amontoado das azeitonas, que fermentaram por isso mesmo. Já o ranço é devido à oxidação da matéria-prima, e o mofo tem a ver com humidade residual, contaminando e condenando o estado da fruta antes do processo extractivo que origina o azeite. Um azeite defeituoso nunca melhora e vai arruinar todo e qualquer cozinhado que se faça com ele.
A prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer
Pelas virtudes é que vamos
A prova de azeites é completamente diferente da prova de vinhos e exige prática recorrente. Recomendo um caminho na exploração dos aspectos positivos, mais do que dos negativos de cada azeite. Tal como no vinho, detemo-nos nos aromas primeiro, e procuramos destrinçar as notas de fruta verde, como noz e maçã, das sensações mais maduras como ameixa e dióspiro. Depois temos de colocar no tabuleiro variáveis como especiarias, flores e notas balsâmicas, tal como fazemos com o vinho numa prova. Talvez não seja de imediato, mas em três tempos vai tornar-se especialista e aprender a explorar sem ajuda o fabuloso mundo dos azeites. Desde que seja virgem extra, o sentido de descoberta instala-se rapidamente, para nunca mais nos deixar.
Como tempero de saladas, utilizamos abundantemente um bom azeite e logo os componentes individualizados se manifestam como um instrumento musical numa orquestra. O mesmo acontece com o vinagre, e não é à toa que azeite e vinagre entram juntos à mesa, quase com o mesmo valor de sabor, pois no equilíbrio é que está o ganho. A fritura é manifestação feliz dos pontos positivos de uma gordura na cozinha, ajudando a conservar os alimentos e, ao mesmo tempo, conferindo-lhes a crocância que tanto apreciamos numa boa tempura. O azeite pode, neste caso, ser uma boa influência. Mas, na maioria das situações, um óleo alimentar de origem vegetal consegue melhores resultados. Face aos alimentos crus que estamos a trabalhar, adornados por gorduras abundantes, o conselho de harmonização recai inevitavelmente sobre um Loureiro sem madeira, da região dos Vinhos Verdes. A acidez fixa elevada resolve, o sabor consola. Se acrescentar frutos secos como amêndoas ou nozes, o acréscimo na textura vai encontrar contraponto de luxo no vinho da casta rainha de Ponte de Lima.
A variante lagareiro
A primeira declinação culinária que nos vem à mente, no tocante a azeite e proteína, é a posta de bacalhau assada no forno, bem regada e orlada com bastante alho. Sabores que estão incrustados na nossa alma desde que nascemos, com os quais crescemos bem nutridos e felizes, passando o testemunho para as gerações seguintes. Seja bacalhau, polvo, lulas ou outro ingrediente principal, encontramos esta solução culinária sob a designação “lagareiro”, justamente por ter o azeite como condutor do calor para o cozinhado. Em casa, dizemos apenas que é assado em azeite, mas, de facto, justifica-se alguma reflexão, porque não é exactamente assim.
Aproveito para introduzir alguma entropia – leia-se agitação – no assunto, indo aos postulados que reconhecemos como fundadores do processamento lagareiro. Um Vinhão do Minho ou um Cabernet Sauvignon do Tejo fazem as loas ao assado magistral, conferindo-lhe realeza e novos matizes de sabor. Ultimamente tenho feito experiências com vinhos Chardonnay do Tejo com madeira, exactamente com esta preparação de bacalhau com azeite, e quase sempre resultou. Há que experimentar e provar com persistência. Por muito que se evoque a tradição, sabemos que é coisa incriada e sempre aberta a novos processamentos.
Em tempos idos, enquanto se extraía o azeite novo nos lagares, aproveitava-se para ir lascando, respeitando o colagénio existente em abundância na posta. Em termos de temperatura, estava-se longe da fervura, que, como todos sabemos, é prejudicial à saúde do bacalhau, correndo o risco de secar e encortiçar. Era como se a posta soltasse pétalas de extremo sabor e tenrura. Entretanto, sobre as brasas mortiças repousavam batatas rachadas que, no momento de consumir, se juntava e regavam com o azeite novo e morno. Esta história ficcionada tem um fundo autêntico e situa-se nas Beiras, onde tem raízes a epopeia do bacalhau na mesa portuguesa. Fica maravilhosamente bem com um branco de Fonte Cal da Beira Interior, aliás como qualquer perfil de bacalhau. Gosto de fazer o paralelo com o torricado do Ribatejo. As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses. Talvez nestas circunstâncias devamos orientar-nos para um Fernão Pires de Almeirim, copioso e não muito frio, para que a alquimia de boca se cumpra. Não se deixe intimidar pela eventual desconfiança no bacalhau congelado, em pratos que queremos executar rapidamente pode mesmo ser a solução indicada. Eu tenho, por hábito, demolhar bacalhau seco para depois demolhar a preceito e congelar. Para mim o sal deve pronunciar-se sobre a goma e a única forma de o conseguir é com esta abordagem. Mas há produtos cortados e corrigidos que vão ao encontro dos nossos gostos e bolsas, que dão rendimento muito apreciável em termos de sabor e integração em pratos de forno. Importante é que se cumpra o desígnio inicial, que é ter sempre bom bacalhau na mesa.
As variantes da variante
Em tempos que já lá vão reinou entre nós uma das sérias figuras da alta cozinha, chamado Aimé Barroyer. A cozinha do Pestana Palace, em Lisboa, vibrou e ficou ao rubro diversas vezes, com as criações do grande chef francês. Inesquecível a forma cândida com que Barroyer assumiu a sua perplexidade ante jóias da nossa cozinha, como a massa de pastel de bacalhau. Provei mais de uma dúzia de pratos feitos com a dita massa, a que confesso que nunca havia dado a atenção que o genial chef deu. Talvez a mais incrível de todas tenha sido a sua bola de massa de pastel de bacalhau em cama de percebes. No fundo, tratava-se de uma bola de massa próxima da brandade, que ia a fritar com batata palha à laia de raios de sol e vinha servida em cama de percebes. A experiência vínica mais fascinante que fiz com esta maravilha aconteceu com um Sauvignon Blanc do Douro, talvez mesmo a mais notável das experiências que me foi dado fazer com a casta.
Cebola, azeite e bacalhau são capazes de nos surpreender quando menos esperamos. A preparação dita à moda de Braga é exemplar. Posta de bacalhau frita com cebolada em azeite, batata frita às rodelas, tudo levado ao forno quente por pouco tempo, é uma das formas de perceber as mais valias que a cebola pode ter junto de bom azeite. O Bacalhau à Narcisa preenche praticamente os mesmos requisitos e, na verdade, muitos outros bacalhaus tradicionais bebem todos da mesma fonte sábia e ancestral. A cebola adora vinho branco, se lho soubermos dar, e a maravilha do bacalhau à minhota – outra designação possível do prato – acontece com um Arinto velho. Se for da Bairrada, tanto melhor, pois temos mineralidade forte e desempenho genial com azeite fervido em termos de sabor.
As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses.
E não esqueçamos o galego Brás, que oficiava outrora na sóbola empena que vinha do Tejo e ia até ao céu sempre que houvesse interessados na jornada. Das muitas figuras do meu relicário gastronómico, é de longe aquele a quem mais impus a minha própria fantasia. Nos parcos e tíbios cursos que ministrei, o bacalhau à Brás pontifica, é eterno em nós e é do povo, não admitindo qualquer tipo de discriminação. Peguemos então numa aba fina de bacalhau seco. Esfiapamo-la com pressão da unha do polegar contra a do indicador. Fibra a fibra, vamos libertando os fios do fiel e vamos reparando que o sal vai saindo também. Terminada a empreitada, temos um montinho de sal, que deitamos fora. O passo seguinte é o corte de batatas em juliana fina, que reservamos após passadas por várias águas. Finalmente cortamos cebolas segundo o veio em bitola semelhante à da juliana de batata, que colocamos em sertã grande, mais larga que funda, em azeite virgem extra, lume no mínimo. Quando a cebola amolece, juntamos-lhe a batata, devidamente escorrida. Com a colher de pau, envolvemos ambos os legumes. Entretanto passamos por água corrente abundante, no fio da torneira, o bacalhau esfiapado da etapa inicial. Enxaguamos, e secamos com um pano. Levantamos um pouco o lume, até atingir fervura ligeira, às batatas e à cebola, que nesta altura devem estar chochas e mortiças. Integramos então o bacalhau, envolvendo sempre. Logo que volta a atingir fervura, apaga-se o lume. Deita-se uma gema batida por pessoa, mexendo sempre, deita-se coentros picados e azeitonas pretas e está pronto a servir. Há muitos caminhos para chegar ao objectivo final na cozinha portuguesa. Acompanhe com Bical do Dão com alguma madeira.
Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024
Estive Lá: Amassa – Um toque de Itália na velha Santarém

O objectivo de repasto era visitar, de novo, o restaurante Amassa, espaço de cozinha de inspiração e bons produtos italianos, com um toque internacional inspirador que origina pratos bem mais apelativos, e saborosos, do que a maior parte dos restaurantes de cozinha transalpina que abundam em Portugal. Foi no final do dia de um fim […]
O objectivo de repasto era visitar, de novo, o restaurante Amassa, espaço de cozinha de inspiração e bons produtos italianos, com um toque internacional inspirador que origina pratos bem mais apelativos, e saborosos, do que a maior parte dos restaurantes de cozinha transalpina que abundam em Portugal.
Foi no final do dia de um fim de semana qualquer, em que me apeteceu, de novo, fazer a rota de miradouros de Santarém sobre o rio Tejo e a Lezíria. Primeiro o de S. Bento, por detrás da Escola Secundária Sá da Bandeira, e depois, já na zona velha da cidade, o das Portas do Sol, onde nunca me canso de olhar a paisagem que se espraia à volta. Não sei porquê, relembra-me, por vezes, a história de Gaibéus, de Alves Redol, escritor neorrealista que tão bem contou a vida das gentes ribatejanas e beirãs que trabalhavam nas mondas e ceifas da lezíria durante o verão e partiam por vezes para África, ou Brasil, em busca de uma vida melhor. Mas lembra-me, quase sempre, que o futuro tem probabilidades tão infinitas como as que estão para lá da linha do horizonte.
Depois de espreitar as vistas, foi hora de dar uma volta à zona velha de Santarém, que continua sedutora e vetusta como sempre, apesar de algum do seu casario mais antigo precisar de obras de recuperação. E o tempo foi passando durante um percurso feito bem devagar e entrecortado por boa conversa, enquanto esperávamos pela abertura de portas do restaurante para o jantar.
Um toque exótico
Como a temperatura estava amena, escolhemos uma mesa do lado de fora, na esplanada do Amassa, espaço bem decorado e iluminado por luzes quentes. Já ia lá com vontade de repetir o Rabo de boi desfiado com papardelle e legumes, prato bem apelativo para o meu gosto, e escolhemos também, para saborear antes, o Brioche de atum picado com wasabi fresco e sementes de kimchi, para dar um toque mais exótico ao repasto e a Burrata com compota de tomate e pesto, mais o Risotto de pêra bêbeda em vinho tinto, com queijo gorgonzola e nozes. Um serviço atencioso, simpático e profissional ajudou a uma refeição comida devagar, na companhia de um Lagoalva Reserva Arinto/Chardonnay branco ribatejano, um branco com volume, frescura e textura, escolhido numa carta alargada, com muitas referências da região, que fez boa companhia aos sabores e aromas muito variados dos pratos.
Restaurante Amassa
Morada: R. Elias Garcia 6B, 2000-054 Santarém
Tel.: 910 485 558
Estive Lá: Deambulando pela Serra da Estrela e petiscando

Se há coisa que gosto de ver e ouvir é água límpida de montanha a correr entre pedras. Como há muito tempo não íamos à Serra da Estrela, aproveitei um fim de semana de verão para lá dar um pulo, para rever Louriga e calcorrear um pouco nas suas ruas, mas sobretudo para descobrir as […]
Se há coisa que gosto de ver e ouvir é água límpida de montanha a correr entre pedras. Como há muito tempo não íamos à Serra da Estrela, aproveitei um fim de semana de verão para lá dar um pulo, para rever Louriga e calcorrear um pouco nas suas ruas, mas sobretudo para descobrir as suas piscinas fluviais de montanha, de águas bem límpidas e enquadramento estético em pleno vale glaciar. Em volta, várias matizes de verde da paisagem, das grandes pedras de granito e montanhas quase a tocar no céu de um azul português, parcialmente encoberto de nuvens muito brancas naquele dia.
Soube mesmo bem estar ali um pouco, naquela paz, a escutar o som das águas antes de partirmos montanha acima até à Torre, para mais uma subida, nesse dia muito mais sossegada do que as de dias em que a neve e o frio levam milhares de pessoas à serra. Depois, uma descida até ao Covão da Ametade para relembrar passeios que não fazia há mais de 20 anos. Feito tudo isto, e sempre de forma muito calma e serena, fizemo-nos à estrada, primeiro em direcção a Seia, e depois para Nelas, o nosso destino de jantar nesse sábado, a Taberna da Adega da Lusovini, onde uma boa amiga nos esperava para um repasto, calmo e sereno, de boa conversa animada por petiscos que gosto de comer nesta casa.
Pelo caminho, e com muita sorte porque só acontece uma vez por ano, apanhámos o dia de transumância na estrada em direcção a Seia, ou seja, a mudança de alguns milhares de ovelhas e cabras das zonas baixas da Serra da Estrela para as altas, conduzidas pelos seus pastores, trazendo, a reboque, algumas dezenas de curiosos, muitos deles carregados com as suas máquinas fotográficas para captar um momento realmente único e muito interessante.
Depois foi hora de continuarmos o caminho para o repasto que nos esperava em Nelas. Começámos com os inevitáveis, pelo menos para mim, Folhados de Queijo da Serra, Mel e Nozes, Cogumelos Shitake em Azeite e Alecrim e Croquetes de Alheira com molho de mostarda, na companhia de um Pedra Cancela Vinha da Fidalga Uva Cão 2022. Também escolhi Truta de escabeche com cebola rocha, pela curiosidade e porque gosto de escabeches, que não estava nada má. Por fim, porque sou adepto incondicional de carnes grelhadas, saboreámos, bem devagar, uma Posta à Taberna. Este tipo de carne grelhada sabe sempre melhor assim, fatiada e comida com tempo, à medida que a conversa flui e se vai saboreando, sobretudo porque o prazer que tive foi acrescentado pela a boa companhia do tinto da casta Monvedro da colheita de 2022. Para terminar, enquanto os outros iam saboreando coisas doces, fui apreciando queijo da serra com um Porto Andresen White 20 Anos.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)