Jornadas do Peixe Atlântico: a celebração do pescado selvagem no VINUM

TEXTO: Mariana Lopes FOTOS: VINUM A parceria do restaurante VINUM, situado nas Caves Graham’s (da Symington Family Estates), com o grupo basco SAGARDI, já nos vinha a proporcionar as Jornadas do Boi Velho de Trás-os-Montes há seis edições anuais consecutivas. Este ano, e nas palavras de Mikel de Viñaspre (director-geral do SAGARDI, à esquerda na […]

TEXTO: Mariana Lopes

FOTOS: VINUM

A parceria do restaurante VINUM, situado nas Caves Graham’s (da Symington Family Estates), com o grupo basco SAGARDI, já nos vinha a proporcionar as Jornadas do Boi Velho de Trás-os-Montes há seis edições anuais consecutivas. Este ano, e nas palavras de Mikel de Viñaspre (director-geral do SAGARDI, à esquerda na foto), “o foco transitou para o mar”.

No passado dia 28 de Novembro, durante a inauguração das I Jornadas do Peixe Atlântico, que decorrem até 15 de Dezembro no VINUM, Mikel e António José Cruz, único fornecedor de peixe deste restaurante, falaram lado a lado sobre as particularidades do peixe da costa portuguesa e de toda a cadeia que leva o pescado do mar até ao cliente final. António, mais conhecido por Tozé no Mercado Municipal de Matosinhos, conhece as lotas de todo o país como a palma das suas mãos, não tivesse chegado ao mercado com apenas 14 anos. Da compra e venda à preparação do peixe, Tozé domina todas as fases do processo e fez deste produto tão português um sólido negócio. Com a parrilla (grelha) em pano de fundo e junto a uma mesa com dois tamboris frescos, a dupla esmiuçou esta espécie e explicou como identificar um verdadeiro tamboril, o peixe escolhido para a primeira edição destas Jornadas: “O interior tem de ser completamente preto. Há algumas espécies parecidas, com interior branco, que nos são vendidas em muitos locais como tamboril, sem o ser. E tirando esta capa interior preta, tem de ter uma cor rosada.” demonstrou Tozé.

A “parrilla” do VINUM.

Com um exemplar de três quilos e meio na mão, ensinou também que “é um peixe que anda a cerca de 500 metros de profundidade e que aparece com abundância. Apenas em Janeiro e Fevereiro pode ser mais escasso”. O fornecedor, que em menos de 24 horas consegue entregar o peixe ao restaurante, manuseava o bicho com destreza. Mikel Vinãspre acrescentou, ainda, que “o fígado do tamboril é o foie gras do mar”, num apelo para que não seja desperdiçado. “Neste momento, e apesar do que se pode pensar, tanto em Portugal como no País Basco vivemos numa cultura de peixe”, afirmou o especialista da parrilla. Apontando para a grelha, adiantou que antes de lá colocar o peixe, apenas lhe coloca sal grosso. Já durante a assadura é que vai hidratando, aos poucos, com uma mistura de vinho branco, azeite e limão, acabando com um molho ligeiro muito semelhante ao da hidratação. Quando questionado sobre o tempo de confecção, Mikel riu e disse “cerca de 12 minutos, mas isto é uma actividade que tem muito pouco de racional, não há tempos certos para nada”.

Tamboril, pronto a servir.

Depois, o tema transitou para as conservas, um elemento bem presente na carta do VINUM e no menu das Jornadas do Peixe Atlântico. “É impressionante o tamanho da indústria de conservas em todo o Mundo. Mas creio que a costa portuguesa é a mais experiente e clássica nesta matéria”, elucidou Mikel.

O menu especial das Jornadas tem um custo de 100 euros, por pessoa, ou 120 euros com vinhos Symington, cuidadosamente escolhidos por Pedro Correia, enólogo-chefe da empresa. Estará disponível diariamente, até dia 15 de Dezembro, ao almoço e ao jantar, nos horários do restaurante: entre as 12h30 e as 16h00 e as 19h30 e as 24h00.

Tripas, toucinhos e outras perdições

Alguma coisa nalgum momento há-de ter troado na alma de algum antigo que o tenha levado a ver nas partes invisíveis das peças caçadas ou criadas sabor, nutrição e satisfação. No mundo carnívoro, as partes nobres são músculos, detalham-se muitas vezes com os polegares, e para todas temos destino. Ficam por cobrir as intersticiais e […]

Alguma coisa nalgum momento há-de ter troado na alma de algum antigo que o tenha levado a ver nas partes invisíveis das peças caçadas ou criadas sabor, nutrição e satisfação. No mundo carnívoro, as partes nobres são músculos, detalham-se muitas vezes com os polegares, e para todas temos destino. Ficam por cobrir as intersticiais e acumuladas gorduras e vísceras, que o génio humano puxou para a excelência e que hoje faz parte da nossa perdição.

TEXTO Fernando Melo

FOTOS Mário Cerdeira

Enquanto poucos – penso que mesmo muito poucos – se ocupam da boa e genuína investigação da génese das tripas à moda do Porto, tomamo-la como assumida e partimos para a magnífica viagem que oferecem. Há muito tanto de misterioso como de admirável no quanto o génio culinário português se debruça sobre as partes moles, órgãos, glândulas e gorduras, criando pratos verdadeiramente redentores. Nas tripas, gigajoga articulada de quatro epicentros viscerais de grande actividade, é fascinante ver como o tratamento empírico conduziu a caldos, texturas e sabores que alimentaram tantas gerações, ao longo do tempo. Os músculos em si esperaram mais do que as tripas até chegar à mesa, já que o bovino era outrora força motriz de importância central na lavoura e no transporte. Suíno, caprino e ovino suplantavam-no enquanto proteína de base e assim crescemos com eles, na forma de caldos, ensopados, cozi¬dos e grelhados diversos. Grão de bico e arroz foram os grandes companheiros enquanto condutos, de resto permanecendo com lugar cativo nas nossas despensas até aos dias de hoje. Natural por isso que pontifiquem também ao lado das tripas, acrescidos de leguminosas a gosto.

O QUE SÃO ENTÃO AS TRIPAS DE QUE FALAMOS?

Nada mais do que as quatro subpeças – pança, touca, folhoso e tendão – do estômago do grande ruminante. Todas são ginasticadas energicamente, adquirindo densidades e texturas diversas por efeito da actividade gástrica nas primeiras etapas da digestão. As ervas e demais forragens vão directas para a pança, com relativa velocidade, acumulando pura e simplesmente na lisura desta espécie de bolsa o que o animal vai mordendo e engolindo. Por possuir esta vocação açambarcadora, é a maior parte do imenso órgão. Na fase seguinte, entra em acção a touca – ou barrete -, cuja textura de favos é inequívoca, ficando em batimentos ritmados de expulsão e readmissão, de novo para a pança, e da pança para a touca, o animal vai remastigando e reengolindo ciclicamente, até que a verdura fresca ingerida fermenta, por efeito dos sucos produzidos. Segue-se a etapa do folhoso, também conhecida como entrefolhos e em que há absorção dos excessos de líquido, e finalmente o tendão, ou coagulador, onde quimicamente se inicia a digestão. É na verdade um entrançado de tendões, e é onde se cria a maior parte do sabor das tripas. A diversidade de funções produz variedades de sabor e impressões texturadas de boca, e a natureza essencialmente musculada do estômago precisa de cozedura lenta e temperaturas não muito elevadas, pelo que muitas vezes se produz as tripas em pote de ferro, com lume de chão. Este território não é para estômagos sensíveis nem para quem desde criança tem repugnância por partes moles da vaca. Na cidade, nutre-se um certo asco a tudo o que é aparas, órgãos e apêndices, como se os talhos não estivessem todos sem excepção nas mãos de quem faz gala das suas raízes e das suas aldeias. Teixeira de Pascoaes fixou no seu “Arte de ser português” que não há português que não tenha a sua aldeia e ao fazê-lo explicou por que gostamos tanto de ser portugueses e seguir os preceitos e imperativos nacionais, de uma forma local.

Tendão, touca, folhoso e pança.

E AINDA BEM QUE TEMOS TALHOS

Porque a lavagem das tripas é fustigação grande quando nos toca prepará-las para a grande cozedura. E se pode ser dura a provação! Não devemos ser tão dramáticos quanto Pascoaes, mas não se salva na selva carnívora quem não tem um talho de sua confiança. E fazer tripas em casa, na forma canónica das quatro partes que acabámos de abordar, é uma glória. Instrumento extraordinário é a boca da vaca, que exercita em movimentos repetidos a ruminação, criando devagar tesouros intersticiais e duas peças que dão pelo nome de bochechas e estufam maravilhosamente.
O mesmo acontece com sua excelência o porco, produzindo cozinhados de antologia, plenos de sabor e colagénio, graças à transformação lenta pelo fogo. É inevitável entrar nos domínios do reco, mas antes a recomendação grave de não utilizar a panela de pressão para cozer as tripas. A razão mais pungente é a da concentração de sabores pelo processamento lento e sustentado, criando aliás continuidade com o ciclo normal de vida do animal feliz. Com tempo, tudo se conserta e converge, e na cozinha já sabemos: o diabo é a pressa. Em sabor, não tem comparação o que se consegue quando se coze devagar, no assunto das vísceras sobre que nos debruçamos. Agora sim, as bochechas do porco, para reforçar o quanto são dadas à lentidão no fogo ou nas brasas, que grelhadas também são requintadas.

Bochechas de porco.

O PORCO, POIS CLARO

Pelo metabolismo e estilo de vida que leva o porco ibérico genuíno, de criação ao ar livre, a alimentação a bolota dá-lhe material para ir sedimentando e entremeando gorduras com tal intensidade de sabor que somos forçados a preferi-lo. As tripas do porco, de resto como a tripa fina da vaca, são utilizadas para produzir os maravilhosos enchidos, que tantas alegrias nos dão. Na matança, que ainda corre um pouco por todo o país, extraímos o redenho logo na primeira abordagem, e transformamos o fino véu em saborosos torresmos, só pela alquimia do calor. Chamamos-lhe torresmos do riçol no Alentejo, das sainhas na Beira Litoral, e do redenho no resto do país; é petisco incrustado no ADN de qualquer português. Mas da barriga do porco esperam por nós o toucinho alto e o toucinho entremeado. Pode ser branco como a neve, rosado como o mármore, e entremeado como se de peça de joalharia se tratasse. Gordura, dirão os menos atentos e os irritantemente urbanos, mas nada de precipitações. Se há peça que é a caixa negra do porco, igual em função às dos aviões, é o toucinho. A alvura indica a qualidade da alimentação e o exercício físico que fez em vida. Colesterol espantosamente baixo, de cerca de 550 mg/kg, mais baixo que a carne de frango sem pele – 600 mg/kg -, arrasa todo e qualquer preconceito. Pegamos num naco de toucinho alto, sujeitamo-lo a marinadas sucessivas, tal como preconizado pelo gigante chef catalão Santi Santamaria, e após 3 dias temo-lo em condições para o assar lentamente e cobrir com caviar e um caldo fino de legumes. Chama candidamente a esse prato “mar e terra” e confessou toda a vida a sua paixão por toucinho. Nós temos o caldo de unto, que não lhe fica atrás e após o desbaste proteico da construção da sopa até uma criança se delicia com o que fica da peça cortada fininho. A papada do porco, extracto sublime do suíno já com alguma idade, faz-se no vapor ou seca-se em fumeiro e temos uma quintessência da história que remonta a milhares de anos nos anais da alimentação. Despertar para estas vísceras e minudências, vai fazer-nos coincidir no exercício do gosto e na perdição boa que nos propõem tripas, glândulas e toucinhos. Assim isso aconteça antes de nós estarmos perdidos.

Toucinho.

Sugestão de Harmonização

FAZER AS LOAS AO SENHOR TOUCINHO

Abreu Callado Lágrima Alentejo branco 2017 (Fundação Abreu Callado) – O toucinho entremeado fumado – o bacon, como é mais conhecido – raramente é consumido sem passar pela chapa, grelha ou for¬no. O que faz sentido, a peça ganha dimensão maior quando sujeito ao calor, libertando proteína e gordura saudável. Este branco vai direito à tonalidade salgada e exacerba o lado fumado.

Paço de Teixeiró Vinho Verde Avesso branco 2016 (Montez Champalimaud) – O tão tradicional caldo de unto, que alimentou muitas gerações de portugueses, é dos mais ricos em termos de proteína e ao mesmo tempo é finíssimo na estrutura, prestando-se à aromatização e enriquecimento. Difícil encontrar melhor casamento que com este Avesso das baias minhotas do Douro.

Quinta dos Carvalhais Dão branco 2015 (Sogrape) – O prato mar e terra de a peça fala, da lavra de Santi Santamaria, consta de uma peça alta de toucinho marmoreado, de que o hoje desaparecido chef catalão era grande apreciador, passada por três salmouras diferentes, até chegar ao ponto ideal. Pena não ter conhecido este branco, estrutura fina, acidez bem trabalhada e muito sabor.

Terra a Terra Douro Reserva tinto 2014 (Quanta Terra) – Nos cocurutos transmontanos do Douro, em solos de transição xisto-granito há vinhos de grande elegância que parecem ter nascido para a mesa. Aqui está um exemplo de companhia fiel para peças diversas de toucinho, beijadas e fortalecidas lentamente pelas brasas.

 

TRIPAS À MODA DO PORTO E OUTRAS MODAS

Aveleda Reserva da Família Minho branco 2017 (Quinta da Aveleda) – As leguminosas – feijão e grão, principalmente – gostam muito de brancos finos e com corte eficaz de acidez. Este vinho vai ainda mais além, por ser copioso na boca e nariz ao mesmo tempo que resolve o caldo forte que normalmente ensopa as tripas. Um travo de piripiri abrilhanta o conjunto.

Psique Dão tinto 2014 (Amora Brava) – Dos solos de granitos velhos e da altitude conjugada muitas vezes com geada, saem vinho que só as mãos mais sábias conseguem produzir. Elegância a toda a prova, e força que se agiganta no contacto com pratos de tacho como as tripas, toques salinos, vinho e prato caem nos braços um do outro.

Falua Unoaked Tejo tinto 2015 (Falua) – Estreme de Touriga Nacional e, como o nome indica, não teve contacto com madeira. A expressão vigorosa que faz da casta de que todos gostamos é particularmente eficaz em preparações como as tripas aos molhos, ladeadas de grão-de-bico ou feijão branco.

Pacheca Douro Tinta Roriz Grande Reserva tinto 2015 (Quinta da Pacheca) – Harmonização feita no céu, esta que amansa por um lado a pujança tânica do vinho, por outro eleva as tripas mais rústicas a iguaria dos deuses. Trata-se de um vinho capaz das empreitadas mais difíceis à mesa, graças à boa enologia praticada.

Edição Nº25, Maio 2019

A terceira vida do Barrocal

O hotel rural de luxo perto de Reguengos de Monsaraz está a produzir carne, legumes, ervas, compotas — e tudo o que o Alentejo der. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS São Lourenço do Barrocal/Filipe Lucas Frazão Manuel Calado não é um homem qualquer. Tem a pele dura, um chapéu que lhe ensombra os olhos, beata […]

O hotel rural de luxo perto de Reguengos de Monsaraz está a produzir carne, legumes, ervas, compotas — e tudo o que o Alentejo der.

TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS São Lourenço do Barrocal/Filipe Lucas Frazão

Manuel Calado não é um homem qualquer. Tem a pele dura, um chapéu que lhe ensombra os olhos, beata na boca, a pose de quem é capaz de sacar de uma pistola e acertar numa lebre atrás de uma oliveira enquanto fala sobre a origem do enorme menir nas suas costas. Manuel Calado, arqueólogo, o Indiana Jones de Borba, está ali para explicar porque é que o Barrocal é uma terra predestinada.
Os montes da herdade foram a terra escolhida por diversas tribos sedentárias do Neolítico, nela se fixando os primeiros agricultores. A selecção terá obedecido a vários critérios de sobrevivência, segurança e alimentação — razões idênticas às que terão estado na origem, sete mil anos depois, do nascimento de São Lourenço do Barrocal.
O arqueólogo do Barrocal conta ainda, no âmbito das caminhadas pela propriedade organizadas pelo hotel do Barrocal, que no século XIX, nos mesmos afloramentos graníticos com vista para Monsaraz, ergueu-se uma pequena aldeia agrícola, detida pela família de que o actual proprietário, José António Uva, é descendente em oitava geração.
Aqui chegaram a produzir-se cereais, vinho, legumes, gado, bem como centros de produção como padaria e matadouro — actividade que obrigava ao alojamento de 50 famílias dentro da herdade. Mas duzentos anos passaram e a propriedade foi definhando, acabou nacionalizada com o 25 de Abril e, lentamente, foi sendo abandonada.

TEMPO DE REABILITAR

Quando José António Uva decidiu reabilitá-la, em 2002, já só a casa do hortelão estava habitável. A ideia era recuperar os tempos gloriosos de antigamente, primeiro como hotel rural de charme, com todos os requintes de um cinco estrelas e o dedo de Eduardo Souto Moura na reabilitação, depois como centro produtor de bens gastronómicos.
É esta faceta que agora se refina — para a terceira vida do Barrocal. Primeiro, apareceu o restaurante a cargo de José Júlio Vintém, o cozinheiro alentejano do Tomba Lobos, em Portalegre. Depois, estenderam-se mesas junto à piscina, com uma carta apropriada ao veraneio, também da autoria de Vintém. Ao mesmo tempo, a enóloga Susana Esteban começou a trabalhar nas vinhas da propriedade e a cultivar outras. E o olival, essencialmente de galega, passou a ser tratado, com as azeitonas a serem espremidas no lagar do vizinho — “e amigo” — Esporão. Decidiu-se que tudo o que ali florescia devia ser aproveitado — das ervas aromáticas aos limoeiros —, que se haveria de voltar a semear a terra, e que os bovinos de raça alentejana cruzados com saler francesa continuariam a pastar por ali, acabando às mãos de José Júlio Vintém, para assados e pratos de tacho.
Neste momento, a produção ainda se faz por tentativa e erro, mas tem o entusiasmo das primeiras coisas, de uma vontade de fazer único e fazer bem.

CRIAR UMA REDE DE PRODUTOS AUTÓCTONES

Para além deste esforço de auto-suficiência, sempre em regime biológico, José António Uva está ainda a criar uma rede de fornecedores locais. Parte dos produtos que ainda é preciso comprar fora, para servir no Barrocal — seja ao pequeno-almoço, ao almoço ou ao jantar — vem de pequenos produtores das redondezas. Há peixes de rio do Alqueva, como o lúcio perca que Vintém aproveita para ceviche, há queijos de ove-lha e cabra, mel, pão do Baldio, enchidos da Montanheira, tudo produtores parceiros do Barrocal.
José António Uva vê assim prestes a concretizar-se a segunda fase do seu sonho. Voltar a tornar a propriedade, não apenas num hotel, mas num lugar de parti¬lha e de produção de comida boa. A história do Barrocal contada por Manuel Calado começou há 7.000 anos. Mas não acaba aqui.

NA FOTO: José Júlio Vintém assegura a restauração do Barrocal.

Edição Nº25, Maio 2019

Le Monument – Qualidade genuína no Porto

O Le Monument fica em plena Avenida dos Aliados e foi criado a pensar no estrelato do fine dining. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Le Monument Palace No final de um jantar recente, o chef Julien Montbabut veio à mesa dizer aquilo que muitos chefs dizem. “Se a estrela Michelin vier, tanto melhor, mas o […]

O Le Monument fica em plena Avenida dos Aliados e foi criado a pensar no estrelato do fine dining.

TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Le Monument Palace

Chef Julien Montbabut.

No final de um jantar recente, o chef Julien Montbabut veio à mesa dizer aquilo que muitos chefs dizem. “Se a estrela Michelin vier, tanto melhor, mas o que nós queremos mesmo é que os clientes gostem e voltem”. A declaração pareceu sincera, mas revendo o que se passara nas últimas duas horas, dir-se-ia que a estrela já tem carta de requisição.
Da amesentação (talheres Cutipol, copos Schott Zwiesel), à decoração (com toques sumptuosos de Art Déco), do serviço protocolar aos empratamentos, estamos sempre perante alta cozinha de estilo francês, a mais apreciada pelos ‘senhores Michelin’. No caso, essa origem é natural. O Le Monument, é um restaurante francófono dentro de um hotel de luxo francófono, o novíssimo Le Monument Palace, na Avenida dos Aliados. Inaugurado em Novembro de 2018, tem donos franceses, chef francês, pasteleira idem.
Olhando para o passado do chef, a sua formação também não deixa dúvidas sobre o tipo de escola de cozinha. Andou sempre por restaurantes de fine dining em Paris, incluindo o Christian Le Squer ao Pavillon Ledoyen, um três estrelas Michelin. Daqui trouxe o rigor nos cortes e nos empratamentos, mas uma outra obsessão, que está a tentar levar para a mesa do Le Monument: a qualidade do produto.
Esta biografia já se nota nas degustações do seu Le Monument. O foie gras convive com mexilhões e ostras de Aveiro; as reduções de molhos de carne, os famosos jus franceses, intercalam com vinagretas cítricas; o lúcio perca do Douro coabita com os valiosos — e saborosíssimos — cogumelos morchella. De resto, vêem-se outros pormenores importantes num restaurante deste nível, como o facto de haver vários tipos de pão feitos na casa ou de serem servi¬dos três azeites portugueses de topo.
Julien admite que ainda falta conhecer melhor a realidade portuguesa, nomeadamente no que respeita a carnes, sector onde ainda recorre à velha Gália. Mas a intenção é comprar o mais local possível.
Os preços no Le Monument são condizentes com o nível do restaurante. O menu de quatro pratos (com várias prendinhas pelo meio) custa 85€; o menu do chef, com seis pratos, vale 105€. Há duas harmonizações de vinhos possíveis, uma de 45€ outra de 60€. Para quem quiser uma refeição mais barata e informal, pode escolher antes o Café Monumental, o outro restaurante do hotel, ao estilo brasserie, com carta também da responsabilidade de Julien Montbabut.

MONUMENTAL PALACE HOTEL
AV. DOS ALIADOS, 151, PORTO. TEL. 22 766 2410. TER-SÁB 19.30-23.30

Edição Nº25, Maio 2019

DO MERCADO – Alperce

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTO D.R. É um dos frutos mais fugazes dos nossos mercados. O alperce aparece nas bancas em Maio, Junho, e logo acaba. Também por isso tem um interesse acrescido. A família é a mesma de outras prunóideas, onde entram frutos de caroço como pêssegos e ameixas, e a origem — adivinhem […]

TEXTO Ricardo Dias Felner

FOTO D.R.

É um dos frutos mais fugazes dos nossos mercados. O alperce aparece nas bancas em Maio, Junho, e logo acaba. Também por isso tem um interesse acrescido. A família é a mesma de outras prunóideas, onde entram frutos de caroço como pêssegos e ameixas, e a origem — adivinhem — é apontada à China, com referências a 2000 anos a.C.

O nome científico, contudo, remete para a Arménia (Prunus armeniaca), país onde existem centenas de cultivares, boa parte plantadas na mítica cordilheira de Ararat. A historiadora da gastronomia Ana Marques Pereira explica que o nome se justifica pelo facto de, durante muito tempo, se pensar que o alperce “era natural da Arménia”, de onde teria sido “trazido pelos romanos para o sul da Europa, em 70-60 a.C., através da Grécia e da Itália, razão porque no século XIX também foi designado albaricoque romano”.

A questão da designação, aliás, continua a ser uma questão. No Algarve, ainda há quem lhe chame albaricoque. Em algumas regiões do Norte do país, por sua vez, usa-se damasco, numa alusão à cidade do mesmo nome, na Síria.

Hoje, não é fácil encontrar alperces dos bons. Como tantos outros frutos valiosos, a produção é difícil, implicando a apanha à mão. Algumas variedades, como a californiana Blenheim, estiveram mesmo em risco de desaparecer. A Turquia é o maior produtor mundial, de Espanha chega a maioria do stock que se encontra no comércio português, mas por ser um produto que amadurece mal fora de árvore procure os portugueses, com menos tempo de viagem.

Fora de época tem também a possibilidade de comprar alperce seco, que dá uma acidez e uma textura interessantes a saladas ou tártaros. Os de cor laranja vibrante são secos com dióxido de enxofre, pelo que procure antes os de produção biológica, mais escuros.

Edição Nº25, Maio 2019

O que é que o Wolfgat tem?

Um pequeno restaurante na África do Sul está a chamar a atenção da comunidade foodie mundial. Falámos com um chef português que teve a sorte de já lá ter almoçado. TEXTO Ricardo Dias Felner O exercício de tentar marcar uma mesa no Wolfgat dá uma ideia do que aconteceu a este pequeno restaurante da vila […]

Um pequeno restaurante na África do Sul está a chamar a atenção da comunidade foodie mundial. Falámos com um chef português que teve a sorte de já lá ter almoçado.

TEXTO Ricardo Dias Felner

O exercício de tentar marcar uma mesa no Wolfgat dá uma ideia do que aconteceu a este pequeno restaurante da vila de Posternoster, na costa ocidental da África do Sul. Nos próximos três meses não resta uma única vaga, nem ao almoço, nem ao jantar. E nem sempre foi assim. Em Janeiro, muitos dos 20 lugares desta casinha sobre o mar ficaram vazios.

O que mudou de então para cá? No passado dia 21 de Fevereiro, numa cerimónia realizada em Paris, Kobus van der Merwe foi chamado ao palco dos The World Restaurant Awards. Um júri de 12 especialistas — entre chefs, jornalistas e gastronómos — elegeram-no o Restaurante do Ano, fazendo deslocar a atenção de foodies e gastrónomos de todo o mundo para o continente africano, sempre esquecido neste tipo de galardões.
A escolha não terá sido meramente culinária, mas o marcar de uma posição, um statement ideológico. Os The World Restau¬rant Awards apareceram este ano como concorrentes dos The World’s 50 Best Restaurants, que ganharam notoriedade nos últimos anos, batendo-se com as estrelas do Guia Michelin.

Tendo por trás a IMG, responsável por eventos como New York Fashion Week, os TWRA querem representar uma for¬ma mais “progressista” de olhar para a gastronomia. Dos 100 elementos do júri, metade são homens, a outra metade mulheres. E há — segundo os próprios criadores dos prémios — uma “tentativa de reflectir a verdadeira diversidade do mundo da restauração: desde os inovadores do fine dining a restaurantes mais simples e acessíveis; das maiores capitais da culinária a destinos mais remotos”.

Embora não tenha sido pública a forma como os vencedores foram escolhidos, o Wolfgat encaixava perfeitamente nestes princípios orientadores.

Bernardo Agrela, ex-chef do Cave 23, teve a sorte de lá almoçar semanas antes do anúncio do prémio e confirmou à Grandes Escolhas tudo o que foi anunciado. “Adorei”, disse, sublinhando que o restaurante fica em cima de uma praia magnífica. “O sítio é absurdo”, disse. “Tem no máximo umas seis mesas e é pouco mais do que uma espécie de barracão”.

Este despojamento é propositado, uma forma de fazer sobressair não apenas a paisagem, como o produto. “O chef Kobus van der Merwe é o típico hipster autodidata que vive isolado do mundo. Apenas utiliza produto existente na terra e no mar à volta do restaurante, que o próprio se encarrega de encontrar”, afirma o chef português.

Na cabeça de Agrela estão por exemplo os “mechilhoew”, enormes mexilhões apanhados mesmo ali e fumados com ervas das dunas. Na nossa, agora, também.

Edição Nº24, Abril 2019

Os novos ventos do Levante

A cozinha do Mediterrâneo Oriental apareceu de mansinho e foi-se instalando em Lisboa. Nos últimos tempos, apareceram vários restaurantes dessa região, com o Líbano a liderar a tendência. TEXTO Ricardo Dias Felner Quando se fala em dieta mediterrânica, é da dieta do Médio Oriente que devíamos estar a falar. Portugal costuma entrar nesse gru­po, mas […]

A cozinha do Mediterrâneo Oriental apareceu de mansinho e foi-se instalando em Lisboa. Nos últimos tempos, apareceram vários restaurantes dessa região, com o Líbano a liderar a tendência.

TEXTO Ricardo Dias Felner

Quando se fala em dieta mediterrânica, é da dieta do Médio Oriente que devíamos estar a falar. Portugal costuma entrar nesse gru­po, mas Portugal está cheio de carnes ver­melhas e fumeiro e gorduras poliinsaturadas. Portugal é muito bom. Mas não é o Levante. Não tem a leveza saborosa e completa de uma refeição libanesa, síria, israelita, jordana, palestina. Uma mesa de mezze — os petiscos levanti­nos — parece ter sido criada por uma nutricionista com bom senso e bom gosto, esse ser humano raro.

Está lá tudo e tudo parece complementar-se. Quando se pensa numa mesa libanesa, por exemplo, pensa-se em grãos, azeite cru e azeitonas, limão, ervas frescas e pós inventados por perfu­mistas, como o novo elixir dos chefs europeus, o za’atar, feito de especiarias várias, entre elas o extraordinário sumagre. Pensa-se em frutos secos, com o pinhão e o pistáchio à cabeça. Em tâma­ras. E, claro, acidez, limões e romãs. Há também depois as tex­turas, várias: têm de haver pastas, como o hummus, feito de grão e pasta de tahini (pasta de sésamo torrado); ou o baba gha­noush, cheio de fumados da beringela assada e do tahini; tem de haver saladas vibrantes como o tabbouleh: tomate, salsa e hortelã, claro. E têm de estar lá os pastelinhos: fritos, delicados, como o kibbeh, recheado de carne magras, borrego ou vaca magra, bulgur e especiarias; e o célebre falafel, prato de street food do mundo.

Infelizmente, Portugal demorou tempo a acolher esta culinária. Quando as capitais da Europa tinham já vários libaneses por onde escolher, em Lisboa, durante muito tempo, praticamente só o Fenício’s era um representante digno. Nos últimos anos, contudo, os mezze instalaram-se na capital, com proveniências diversas. Eis alguns dos nossos poisos preferidos, em Lisboa.

ZA’ATAR

Zaatar. Crédito: Grupo José Avillez

A fórmula já tinha sido usada por José Avillez, com sucesso, na Cantina Peruana. A ideia foi chamar um chef autóctone, pedir-lhe consulta­doria, afinar a ementa de acordo com o mercado e o paladar português, e dar-lhe um espaço boni­to. Aconteceu assim com o chef peruano Diego Muñoz, para a Cantina Peruana e, agora, com o libanês Joe Barza para este Za’atar, nome inspi­rado na célebre mistura de especiarias. Curiosa­mente, ambos os restaurantes, situados no Cais do Sodré, partilham a cozinha com as salas em zonas separadas e com decoração própria. A não perder o tajin arnabit, couve-flor marinada em curcuma e limão, depois assada e polvilhada de nozes; o frikeh bil lahmeh, cuscos de trigo ver­de, com perna de borrego e moleja, a glândula do timo do borrego; e a sopa de lentilhas com frutos secos.

SUMAYA

O Sumaya é da mesma família do Za’atar, no sentido em que é um restaurante sofisticado e cosmopolita, sem folclore, mas com comida au­têntica. Abriu pouco antes, em Setembro do ano passado, no Príncipe Real. O dono não precisou

Sumaya.

de um chef libanês de renome porque é libanês e tem na cabeça a cozinha de família, embora já viva em Portugal há alguns anos e se dedique a outras comidas, como carnes e hambúrgueres, presentes nos seus restaurantes do grupo Ata­lho. O Sumaya procura ter só produtos autênticos e tem praticamente todos os mezze clássicos da carta levantina. Um dos pontos altos é o muhallabiyeh, um pudim de leite, com pistáchio e amêndoa no topo.

MEZZE

Este restaurante do Mercado de Arroios, em Lisboa, foi dos primeiros a pôr a comida do Médio Oriente na moda. O arranque fez-se em jantares isolados, nomeadamente com pop ups no Mercado de Santa Clara, e teve como objectivo inicial ajudar na integração de refugiados sírios. O sucesso foi tal que os responsáveis pela associação Pão a Pão decidi­ram abrir um espaço permanente no Mercado de Arroios, ainda em 2017, mesmo que ninguém tivesse grande expe­riência em restauração, valendo-se de cidadãos dessa região para tratar da cozinha. O sucesso foi imediato e permanece. O pão árabe, achatado, é do melhor que vai encontrar e os mezze são todos fresquíssimos. Se ficar fã, pode sempre ten­tar reproduzir em casa os pratos que comeu, abastecendo-se na mercearia com produtos do Médio Oriente que entretan­to abriu mesmo ao lado.

Mezze.
Tantura.

TANTURA

Falham restaurantes bons no Bairro Alto, hoje mais do que nunca, mas este Tantura é desde 2017 um porto seguro numa zona cheia de barretes para turista enfiar. A metáfora do porto aqui é só meia metáfora, porque de facto Tantura é uma cidade portuária de Israel, precisamente o sítio de onde este casal partiu quando decidiu vir passar a lua-de-mel a Portugal — e não voltar à casa de partida. Há vários tipos de hummus, várias derivações do clássico shakshuka, com ovos estrelados em mo­lho de tomate e pimentos e outros clássicos com twist de chef. Uma das últimas criações a entrar na carta foi o malawach, um prato iemenita com camadas de massa, entremeadas de manteiga, fritas. O espaço é muito arty e luminoso.

THE SAJ BAKERY

The Saj Bakery.

Não é um restaurante, antes uma padaria liba­nesa que usa o saj, uma chapa aquecida de uma forma convexa, como uma crepeira que engravi­dou. Fica na Rua do Arsenal, também ao Cais do Sodré, e não tem lugares sentados, é pegar e largar. A dona é uma brasileira dona de uma co­nhecida padaria no Uruguai, casada com um li­banês. Um empregado português que nos aten­deu, recentemente, garantiu que este é o único saj em Portugal. Mas o que importa é que aos comandos está quem sabe do assunto, uma síria com anos a amassar o famoso pão árabe, sem fermentos artificiais nem outros aditivos. Os re­cheios podem ir dos mais simples, como Nutella ou za’atar, aos mais complexos, como o Libanês, recheado com labré, uma coalhada seca, tomate, hortelã e za’atar.

 

Edição Nº24, Abril 2019

Favas

DO MERCADO TEXTO Ricardo Dias Felner                       FOTO D.R. A fava é o bicho mau das leguminosas. E não devia ser. Antes das transacções proporcionadas pelas conquistas do Novo Mundo, a fava era o único “feijão” que conhecíamos. Nada mais existia para portugueses e europeus. A […]

DO MERCADO

TEXTO Ricardo Dias Felner                       FOTO D.R.

A fava é o bicho mau das leguminosas. E não devia ser.
Antes das transacções proporcionadas pelas conquistas do Novo Mundo,
a fava era o único “feijão” que conhecíamos. Nada mais existia para portugueses e europeus. A fava andava por cá desde 3.000 anos a.C.
Já devíamos estar habituados a ela e no entanto muita gente torce-lhe o nariz, seja porque é difícil de cozinhar, seja porque é amargosa. A principal culpada disto é a película que protege a fava, grossa e fibrosa, difícil de amaciar.
Uma forma de se atenuar o amargor é retirar a pele e comprar as favas novas, ainda pequenas. Isso acontece em Abril e Maio, normalmente. A fava fresca pequena coze mais facilmente e não precisa de ser demolhada em água. A sua doçura, quando lhe tiramos a casca, pede só um azeite elegante, um dente de alho, eventualmente limão, à maneira do Egipto, onde também entra nos icónicos pastéis falafel, misturada com grão. No Norte de África e em Itália, as favas são por vezes vendidas já sem pele e cortadas pela metade.
Em Portugal, o receituário é muito substancial, desde a desaparecida sopa de fava rica (feita com fava seca, hoje uma raridade), anunciada em pregões pelas ruas de Lisboa até às decadentes favas com entrecosto e enchidos — uma bomba de proteína. Lá em casa, sempre acompanhámos o prato com uma salada de alfaces e coentros, bem regada de vinagre.
A minha receita preferida é contudo a de favas com bacalhau.
Foi-me passada por um amigo beirão e é só isto. Assar o bacalhau
(pode ser no grelhador do forno, sem o deixar secar…), lascá-lo e juntá-lo
às favas previamente cozidas (com rama de alho, se houver). À parte, frigir alhos laminados em azeite abundante e juntar ao tacho. Mexer tudo novamente. No fim, mandar os detractores… à fava.

 

Edição Nº24, Abril 2019