Cozinhas de pescador, pastor e hortelão, sabe o que são?

Todo o prato do receituário nacional visa a partilha e a festa e nem sempre nos damos conta do que está por detrás, em termos de produto, técnica e história, tal é a alegria com que o português se senta à mesa, especialmente onde à espera está um tacho. Vale a pena ir um pouco […]

Todo o prato do receituário nacional visa a partilha e a festa e nem sempre nos damos conta do que está por detrás, em termos de produto, técnica e história, tal é a alegria com que o português se senta à mesa, especialmente onde à espera está um tacho. Vale a pena ir um pouco mais fundo, para chegar aos tempos em que a alegria era mesmo o único alimento. Mar, campo e horta, e os pequenos luxos da suave mantença.

TEXTO Fernando Melo
FOTOS Mário Cerdeira

Assunto romântico aos olhos do mundo, a cozinha de raizes e proximidade esconde em si os primórdios da vida civilizada e na verdade é a principal responsável por existirmos ainda enquanto espécie. E se é verdade que para a maioria não passa de chavão para descrever qualquer coisa que não se chega nunca a perceber, felizmente a bem povoada comunidade de gastrónomos lúcidos a que pertencemos tem prazer em viajar devagar no tempo, olhando com calma para o imenso património que a cada movimento se vai revelando. Temos muitas gastronomias locais, que interagem entre si e constroem um perfil nacional, até hoje temos felizmente resistido a distinguir umas das outras, antes integrando-as todas. A imensa linha de costa portuguesa define por si só uma influência marítima forte que quase nos explica inteiramente, tendo sido em cima dela que cresceu a que conhecemos, celebramos e veneramos como cozinha de pescador. Receituário desenvolvido a bordo, na praia, ou nas cozinhas mais modestas, partes menos nobres, peixes normalmente utilizados como isco, vísceras diversas no fundo de caldos inefáveis, consolidaram ao longo dos anos um legado único no mundo. Outro grande pilar da cozinha portuguesa está escondido em pratos simples, nascidos no campo, com o que o campo dá e que o processamento mais cândido de simples fixou como cozinha de pastor. Proximidade geográfica é a chave para a entender e praticar e é dela que nasce a utilização de ervas aromáticas e medicinais, tanto por estarem disponíveis pelos campos fora como pelo gosto e prática de mezinhas curativas com base em plantas específicas. São de pastor por isso também as infusões, tantas vezes utilizadas em pratos da grande tradição. E chegamos à figura do hortelão, não fora a horta quase tão importante como a criação, e como se não lhe devêssemos em grande parte o facto de crescer de forma nutritiva nos núcleos familiares. Batata, cenoura, couves, alfaces, frutos, tomate, pepino, o desfile é infindável e muitos deles são indispensáveis para a produção culinária quotidiana.[/vc_column_text][vc_gallery type=”nectarslider_style” images=”40399,40396,40398,40397,40394,40395″ bullet_navigation_style=”see_through” onclick=”link_no”][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/1″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][nectar_animated_title heading_tag=”h6″ style=”color-strip-reveal” color=”Accent-Color” text=”Cozinha de pescador, o hino dos hinos”][vc_column_text]O conhecimento íntimo dos peixes e as descobertas acidentais formam grande parte do património culinário a que chamamos cozinha de pescador. O bacalhau, não sendo embora pescado nas nossas águas, é assunto bem português, ai de quem diga o contrário. O fiel amigo conviveu connosco por muitas e boas gerações, na forma seca, o mesmo tipo de preparação que se dava outrora à raia, lampreia, polvo e outros, para conservar e guardar, a regeneração acontecia pela demolha. A primeira intervenção, contudo, era o corte da cabeça e a desvisceração, o que dava acesso a partes moles que são concentrados de proteína e colagénio. A lógica de produto inteiro é plenamente cumprida no tratamento do bacalhau, das línguas, e da bexiga natatória, ou sames – espécie de canal exterior que existe logo a seguir à boca e que serve para a orientação do peixe pelo mar fora – fazia-se um caldo ainda a bordo que era de comer e chorar por mais, por isso chamado chora. Na Figueira da Foz encontramos ainda a chora de línguas e feijoada de sames, e nos restaurantes de Lisboa e Porto esses pratos vão marcando presença. A mesma ideia da cozinha a bordo está subjacente nas caldeiradas monoproteína e sem água, em que é o suado da cebola que produz o caldo maravilhoso que legumes e peixe vão produzindo. As caldeiradas multiproteína, historicamente baseadas no safio ou congro, ligado com pata roxa ou caneja e tamboril ou xarroco, são tão gloriosas quanto copiosas, repletas de sabor e valor. A cozinha de pescador tem mil recursos e tudo o que dela sai tem sabores intensos e únicos. Massas secas e arroz são componentes vezeiros nas suas preparações, pimento, tomate e batata menos, mas mesmo assim vai-se encontrando, aqui e ali.

Feijoada de sames
O prato e os vinhos
A riqueza do prato em colagénios, de que os sames de bacalhau são copiosos, mereceu a interpretação do chef Vítor Sobral, da Peixaria da Esquina, em Lisboa, semelhante à de uma feijoada tradicional. Extracção no bom ponto, ligação com a leguminosa impecável, é um hino à arte de bem comer e aos antigos, que no tempo da míngua nela se apoiaram. São bem vindos os brancos com acidez pronunciada, para o corte do prato que é contundente, assim como os tintos da proximidade atlântica, pela aparente salinidade e parceria feliz.

[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”40388″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][divider line_type=”Full Width Line” line_thickness=”1″ divider_color=”default”][nectar_animated_title heading_tag=”h6″ style=”color-strip-reveal” color=”Accent-Color” text=”Cozinha de pastor, o processamento mais cândido”][vc_column_text]Se quisermos ser literalistas, é a pastorícia que dá origem a esta cozinha, mas trata-se de uma cozinha bem mais abrangente, que quase remonta ao tempo dos antigos gregos e romanos, a coroar a sedentarização. A vaca deixa de ser força motriz apenas, nos campos e terras lavradas e no transporte pela via terrestre, para se tornar ela própria alimento central, incluindo o maravilhoso leite de que ainda hoje fazemos mais alimento directo do que transformamos em queijo. Queijo que é, diga-se, pedra de toque para revolução grande sentir quase universal de um povo que é queijeiro, mas de leite de ovelha, a maior transumância portuguesa, os rebanhos em excursão de longa duração, assistidos pelo venerável pastor, este por sua vez a recolher o que de imediato vai tendo à sua volta. Nascem do talento e do momento os ensopados, que no tempo das favas e das ervilhas orlam vitela, borrego, cabrito e leitão. A beldroega rasteira, folha insubstituível na que pode bem ser a melhor sopa do mundo, aqui a pontificar, com a adição de um quejinho de ovelha que leva dentro e coze no caldo. É um dos muitos pratos nacionais que transforma água em ouro, e merece conferência sempre que surge numa carta do Portugal profundo. Tudo o que é à pastor tanto pode ser feito em tacho em casa, como em lume de chão ao ar livre. E quando é feito em casa, o espírito autêntico do prato é conseguido apenas quando a manipulação é mínima e quando leva cogumelos, ervas, leguminosas ou hortícolas da estação.

Jardineira de vitela
O prato e os vinhos
A cozinha do Bem-Haja, em Lisboa, é de inspiração da Beira Alta e tem o condão de atrair tanto os locais das terras altas do granito e da geada como os gourmets mais urbanos, orientados para os sabores simples. Prato de base muito simples, no processamento e na apresentação, é dos mais consensuais em toda a cozinha portuguesa.

[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”40387″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][divider line_type=”Full Width Line” line_thickness=”1″ divider_color=”default”][nectar_animated_title heading_tag=”h6″ style=”color-strip-reveal” color=”Accent-Color” text=”Cozinha de hortelão, a chave do futuro”][vc_column_text]Sabemos hoje que é quase inevitável o regresso aos primórdios da alimentação, quando a proteína animal era rara ou inexistente, frutos, legumes e sopas, normalmente ponteadas por grão de bico ou feijão, foram a base da mantença da espécie humana. Passaram milhares de anos sem que a dieta fosse sequer beliscada e sem dúvida por isso, a horta, quadradinho dourado adjacente à casa do português da província, é ainda hoje a garantia de que a fome não vai levar a melhor. Pastinaca, tomate, abóbora, cenoura, pepino e tantos outros formam a base da alquimia que vai abençoar a sopa que a fervura ligeira vai aprimorar. O gaspacho é uma preparação a frio, sem lume, que é profilático da desidratação a que na canícula estamos expostos e queremos que fique à porta. O gaspacho andaluz, de base de tomate triturado, é muito utilizado em Portugal, mas o alentejano, com os legumes migados em brunesa média e condimentados com orégãos secos, é genuinamente nosso. As sopas de legumes caem nesta categoria e por serem acompanhadas normalmente por pão são refeição completa, por isso as devemos ter a um tempo como chave do futuro e regresso ao passado. Ao contrário do que se pensa, a sopa não tem temperatura ideal de consumo e foi pensada pelos nossos antepassados para estar pronta na cozinha à nossa espera, e tanto a podemos comer gelada como a escaldar, o conforto pretendido é que dita o modo de usar. Por uma questão de pureza e salubridade, não devemos utilizar batata, pois o amido é um açúcar e altera sabor e composição em tudo o que compõe.

Gaspacho
O prato e os vinhos
Batemos à porta do Galito, em Lisboa, onde pontifica Henrique Galito, que aprendeu com sua mãe, a nossa Dona Gertrudes, que já não está entre nós, praticante indefectível da simplicidade desarmante dos sabores e processamentos directos. Estamos na época do tomate, o hortícola que tem a duplicidade vocacional de ser o fruto com mais água e o legume com mais açúcar e que tem o dom da saciedade plena no tempo do Verão. Tomate, pimento verde, pepino, alho e cebola em brunesa média, depois azeite vinagre e orégãos secos, está o gaspacho feito.

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Edição Nº26, Junho 2019

O que é que se come, confrades?

O livro Confrarias de Portugal é um retrato dos melhores produtos portugueses e de quem os defende. TEXTO Ricardo Dias Felner Tudo começou com uma reportagem na revista Sábado, em 2017. Ana Catarina André, jornalista, e Marisa Cardoso, repórter fotográfica, haviam visitado quatro confrarias, espalhadas pelo Interior do país e voltaram à redacção encantadas. Na […]

O livro Confrarias de Portugal é um retrato dos melhores produtos portugueses e de quem os defende.

TEXTO Ricardo Dias Felner

Tudo começou com uma reportagem na revista Sábado, em 2017. Ana Catarina André, jornalista, e Marisa Cardoso, repórter fotográfica, haviam visitado quatro confrarias, espalhadas pelo Interior do país e voltaram à redacção encantadas. Na memória, estavam chícharos, rojões, grelos — e uma quantidade de histórias saborosas de um país que Lisboa conhece mal.
“Ainda durante a viagem começámos a perceber o potencial disto”, conta Ana Catarina André, responsável pela escrita de Confrarias de Portugal, livro lançado recentemente. Desse instante até à apresentação do projecto à Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas foi rápido. Quase 14 mil quilómetro depois, com 56 confrarias visitadas, em 47 localidades de Portugal Continental e dos Açores, ganhava forma aquele que é, hoje, o documento mais completo sobre as confrarias nacionais.
Ao folhear-se o livro percebe-se que o diagnóstico é positivo. “As confrarias estão muito activas. E tiveram um crescimento grande a partir de 2000. Estão sempre a aparecer confrarias novas”, diz Ana Catarina André que, não se assumindo como uma gourmet, descobriu verdadeiros pitéus durante as suas incursões.
“Em Vagos, por exemplo, comi um arroz doce, feito só com gemas, que destronou o da minha mãe. A senhora fê-lo à minha frente, tudo a olho, com ovos caseiros e um sabor muito intenso”, conta a jornalista. Outra surpresa foi a pescada poveira, servida num prato de barro, com legumes e batata. “Nunca tinha comido uma pescada tão boa”, admite, recordando ainda a rabanada da Póvoa do Varzim que se lhe seguiu, do restaurante Leonardo.
Os exemplos de descobertas boas, todavia, são às dezenas. Da Confraria do Butelo e da Casula, à do Melão de Casca de Carvalho até à do Caldo de Quintadona ou à brejeira — mas muito procurada — Confraria da Foda Pias-Monção, há de tudo um pouco. A nomenclatura designa ou um produto específico ou uma receita típica ou uma região gastronómica, como são as do Ribatejo ou do Alentejo.
Neste momento, o livro só está à venda através da página do Facebook Livro Confrarias de Portugal, custando 25 euros.[vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color=”rgba(221,130,138,0.66)” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/3″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_custom_heading text=”Mais Havai em Lisboa” font_container=”tag:h3|text_align:left|color:%23777777″][vc_column_text]De fininho, sem alarido, a Multifood abriu mais um restaurante em Lisboa, desta feita com outro conceito internacional. O Big Fish Poke Bar aposta no poke, um tipo de prato havaiano, onde entram peixes crus e arroz, que podem ser acompanhados de legumes, frutas e molhos. O espaço tem como bancada central o balcão, que senta 20 pessoas, e aos comandos estará Filipe Narciso (ex-Mini Bar), que contará com a assessoria e receituário de Luís Gaspar, chef residente da Sala de Corte, mas que se desdobra por outros projectos da Multifood.[/vc_column_text][/vc_column][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color=”rgba(221,130,138,0.66)” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/3″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_custom_heading text=”Ex-Noma no Erva” font_container=”tag:h3|text_align:left|color:%23777777″][vc_column_text]O restaurante Erva tem agora Artur Gomes à frente da bonita cozinha aberta. Este algarvio regressou o ano passado do Noma, o restaurante de Copenhaga, para muitos ainda o mais influente do mundo. Esta é a primeira vez que vai estar como chef executivo, mas, no Noma, Artur Gomes participou num dos departamentos mais dinâmicos e inovadores, o dos fermentados. Entre os novos pratos da carta há ouriço-do-mar, dashi e natas azedas ou caranguejo com consommé de flores e morango verde lacto-fermentado.[/vc_column_text][/vc_column][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color=”rgba(221,130,138,0.66)” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/3″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_custom_heading text=”Cantinho do Avillez em Cascais” font_container=”tag:h3|text_align:left|color:%23777777″][vc_column_text]E aí está mais um Cantinho do Avillez. Depois das delegações no Parque das Nações e no Porto, o restaurante nascido no Chiado viaja agora para a Linha, terra natal do chef José Avillez. “Nasci e cresci em Cascais. Para mim, estar em Cascais com o Cantinho — o meu primeiro restaurante — tem um significado especial: é como voltar a casa”, disse a propósito desta nova abertura do Grupo Avillez. O conceito é o mesmo, cozinha portuguesa e pratos do mundo, onde não faltam os peixinhos da horta ou a icónica vitela de comer à colher.

Edição Nº26, Junho 2019

Codornos e outras iguarias na mesa de Cabeceiras

O restaurante A Cozinha, em Guimarães, foi palco de um jantar especial onde se descobriu a gastronomia de Cabeceiras de Basto. TEXTO Ricardo Dias Felner O jantar já vai a meio e eis que o presidente da câmara de Cabeceiras de Basto tem um desabafo. “Em Cabeceiras, de facto, falta-nos uma sobremesa típica”. A declaração […]

O restaurante A Cozinha, em Guimarães, foi palco de um jantar especial onde se descobriu a gastronomia de Cabeceiras de Basto.

TEXTO Ricardo Dias Felner

O jantar já vai a meio e eis que o presidente da câmara de Cabeceiras de Basto tem um desabafo. “Em Cabeceiras, de facto, falta-nos uma sobremesa típica”. A declaração sai-lhe como uma confissão trágica, uma vergonha pública. A iniciativa serve para mostrar a força da gastronomia do concelho a personalidades da região, no âmbito da iniciativa Mesa de Cabeceiras. Mas há este entrave. “Não há doces em Cabeceiras de Basto”.
À mesa estão outras pessoas da vila, do distrito de Braga. Alguém estranha a falha. E questiona: “E fruta, não há uma fruta tradicional?” Os olhos do autarca reluzem, como se de repente lhe surgisse uma iluminação providencial. “Há, sim! Os codornos!” Toda a gente se entusiasma com a revelação. O codorno é uma fruta antiga, da família das pêras, “dura como cornos, mas muito doce”. Da conversa, renasce comida.
O relato do episódio serve apenas para mostrar como há tanto para se redescobrir a Norte (e a Sul) de Portugal; e como por vezes não se dá valor ao que está mesmo à mão ou em cima da Mesa de Cabeceiras, para usar o feliz trocadilho que dá nome à campanha de promoção da gastronomia da vila.[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”40373″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][vc_column_text]Os codornos são um fruto de Inverno, ainda presente em grande parte das mesas de Natal dos cabeceirenses e citados em documentos medievais, como um fruto da realeza. “Podem ainda ser encontrados em alguns mercados de rua, mas é raro”, diz a vereadora da cultura, Carla Lousada. As árvores, algumas centenárias, estão espalhadas por pomares caseiros — mas seria fácil recuperar sementes. O debate continua e Rafael Oliveira, especialista em marketing na área do Enoturismo, lembra a propósito o trabalho feito pelo Banco Português de Germoplasma Vegetal, em Braga, instituição que há mais de 40 anos preserva sementes portuguesas.
Por esta altura, António Loureiro está na cozinha, longe da conversa, mas fez o trabalho de casa. O chef do recém-estrelado restaurante de Guimarães, desenhou um menu com epicentro em Cabeceiras, com base em pesquisas pessoais e no levantamento feito pela investigadora Anabela Ramos, especialista em culinária conventual beneditina.
Entre os produtos mais tradicionais do concelho estão o vinhão tinto, o mel de Basto, as talhadas de presunto, mas também as carnes, da barrosã à minhota, da maronesa até à ovelha churra (com que António Loureiro fez um prato extraordinário, juntando num mesmo cubinho assado vários peças do animal, do cachaço à perna). No final, o chef repescou para sobremesa os ovos reais, aqui em forma de canudos, típicos da doçaria conventual.
A acompanhar desta vez veio bolo de laranja. Mas é possível que numa próxima edição em vez do citrino surjam… codornos.

 

Edição Nº26, Junho 2019

O novo miúdo do Esporão

O restaurante da herdade alentejana mudou de conceito, mas está em boas mãos. Carlos Teixeira é o chef que se segue. TEXTO Ricardo Dias Felner O almoço acabou e o jovem chef da herdade guia-nos pelas escadas até ao piso de baixo, onde ficam os bastidores do restaurante, espécie de parque infantil para foodies. Num […]

O restaurante da herdade alentejana mudou de conceito, mas está em boas mãos. Carlos Teixeira é o chef que se segue.

TEXTO Ricardo Dias Felner

O almoço acabou e o jovem chef da herdade guia-nos pelas escadas até ao piso de baixo, onde ficam os bastidores do restaurante, espécie de parque infantil para foodies. Num frigorífico, mais de uma dúzia de kombuchas — cereja, laranja, alperce. Na prateleira ao lado, aparece um boião de molho picante fermentado, outro de kimchi caseiro, logo seguido da secção de especiarias, meia centena delas arrumadas em pequenas caixinhas transparentes devidamente etiquetadas: “garam masala caseiro”, “pó de iogurte”, “lima persa pó fino”, “levístico”, “katsoboshi”, “karela”.
Carlos Teixeira faz a visita guiada com o entusiasmo de um hacker a entrar na área restrita da CIA. Tem apenas 26 anos, mas já anda em cozinhas profissionais desde os 15, idade com que se estreou no SANA Lisboa. Nessa altura, podia ter optado pelo hóquei em patins, mas virou-se antes para a culinária, onde era já hábil “em bifes e arrozes”, arte que aperfeiçoou desde os oito anos. “Eu vivia só com o meu pai, que chegava do banco tarde, e tinha de preparar o jantar”, diz.
Muito depois disso, haveria de estagiar no The Clove Club, em Londres, eleito o 33º melhor restaurante do mundo, na lista dos 50’s Best de 2018, para depois de se juntar à equipa do Esporão em 2015. Aqui, iniciou-se como braço direito de Pedro Pena Bastos, assumindo a liderança em 2018.
A passagem de testemunho não terá sido fácil. Na altura, entre a comunidade gastronómica, muita gente olhou para esse processo como uma desistência da estrela Michelin por parte do Esporão. Não se querendo alongar sobre o assunto, António Roquette, responsável pelo enoturismo da herdade, admite a ideia de se fazer “uma cozinha mais informal”, “com outro conceito”; mas recusa que isso tenha significado baixar a fasquia. Em todo o caso, nessa altura, aos olhos de alguns, Carlos Teixeira surgiu como uma espécie de solução caseira e barata.[/vc_column_text][vc_gallery type=”nectarslider_style” images=”40365,40366″ bullet_navigation_style=”see_through” onclick=”link_no”][vc_column_text]Juventude com disciplina e rigor
Hoje, todavia, não se tem essa sensação quando o conhecemos ou quando comemos da sua cozinha. Apesar de muito novo, tem uma energia pura, domada por disciplina e rigor.
À nossa frente, abre-se agora a porta de uma câmara frigorífica e surgem vários lúcios-perca enganchados à maneira da pescada arrepiada. “Primeiro secamo-los um pouco e depois maturamo-los por dez dias”, conta o chef. O resultado é extraordinário, como tínhamos podido comprovar minutos antes. O prato de lúcio-perca, pescado no Alqueva, é um lombo grelhado, magnífico de lascas, banhado numa espécie de piso alentejano, feito do caldo das espinhas com poejos, coentros, alho e azeite. A acompanhar, migas de alho e cebola, no topo pele de porco insuflada e crocante — um prodígio de produto, técnica e sabor, tridente estrutural da filosofia Esporão, seja na adega, no lagar de azeite ou na cozinha.
Este foi, no entanto, apenas um dos destaques num almoço de grande nível. Começou no pão, feito na casa com massa mãe, e nas manteigas: de cabra com pó de louro e de banha de porco temperada; ao lado, um pratinho de azeite dos Arrifes, topo de gama da casa, vivíssimo, feito da varietal Cobrançosa, produzida em modo biológico, apanhada a escassas centenas de metros e espremida ainda mais perto, no moderno lagar da herdade. Houve ainda umas ervilhas com silarcas laminadas e gema de ovo, depois o borrego da Quinta das Dúvidas (vizinhos e “amigos” do Esporão), e por fim a laranja da Torre (apanhada na zona dos laranjais da torre, também da herdade) com iogurte de cabra.
Do que se pode ver, com ou sem Michelin no horizonte, usa-se cada vez mais o que vem da horta da quinta (65 por cento do valor total dos hortícolas usados na carta, diz Carlos Teixeira) e parece haver uma aproximação à culinária tradicional portuguesa, com a introdução semanal de pratos resultantes do projecto A Cozinha Portuguesa a Gostar dela Próprio. Tudo sempre refinado pelos sabores que Carlos Teixeira vai produzindo na sua cave de experiências misteriosas.[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”40364″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][vc_column_text css=”.vc_custom_1576234412378{background-color: #ddadb1 !important;}”]Como se prova um azeite?
A experiência gastronómica no Esporão só fica completa com uma visita guiada à adega, remodelada pelo ateliê Skrei, mas também com a experiência do azeite. Ana Carrilho, oleóloga residente, leva-nos primeiro ao olival da quinta, onde se produz já em modo sustentável e orgânico, seja em formato intensivo ou tradicional. Na antiga pista de avião, perto do olival dos Arrifes, avistam-se grandes pilhas de compostagem, feita com os desperdícios da quinta, adubo precioso para as árvores de cobrançosa que hão-de frutificar em breve. Enquanto isso não acontece, pode-se sempre beber o sumo de azeitona da colheita anterior, na sala de provas.
É isso que faz quem entra nas visitas guiadas da quinta, depois de ir ao lagar onde a extracção acontece. Numa sala lateral, está uma mesa comprida à nossa espera, com vários copos, todos tapados com um vidro de relógio, todos da mesma cor. “O azul cobalto é a cor usada oficialmente nas provas”, explica Ana Carrilho. A cor do azeite, ao contrário do que sucede com os vinhos, “não deve influenciar o julgamento do provador”.
Começa tudo no nariz. A ideia é rodar suavemente os copos tapados, depois tirar o vidro de relógio e inspirar profundamente. Como se faz com o vinho. O nariz dá-nos coisas fantásticas, como aromas da água da salada de tomate ou de relva verde. Na boca, devemos deixar que o líquido chegue a todos os cantinhos. Na garganta, sentimos notas mais picantes e intensas (Azeite Virgem Extra Bio, do Olival dos Arrifes) ou mais doces e verdes (como nos monovarietais de Galega e nos blends do Norte Alentejano). Importante é ir intercalando cada golo no azeite com lâminas de maçã verde, dispostas no pratinho ao seu lado, para limpar o palato. Beba sem moderação.[/vc_column_text][vc_column_text]

Edição Nº26, Junho 2019

Jornadas do Peixe Atlântico: a celebração do pescado selvagem no VINUM

TEXTO: Mariana Lopes FOTOS: VINUM A parceria do restaurante VINUM, situado nas Caves Graham’s (da Symington Family Estates), com o grupo basco SAGARDI, já nos vinha a proporcionar as Jornadas do Boi Velho de Trás-os-Montes há seis edições anuais consecutivas. Este ano, e nas palavras de Mikel de Viñaspre (director-geral do SAGARDI, à esquerda na […]

TEXTO: Mariana Lopes

FOTOS: VINUM

A parceria do restaurante VINUM, situado nas Caves Graham’s (da Symington Family Estates), com o grupo basco SAGARDI, já nos vinha a proporcionar as Jornadas do Boi Velho de Trás-os-Montes há seis edições anuais consecutivas. Este ano, e nas palavras de Mikel de Viñaspre (director-geral do SAGARDI, à esquerda na foto), “o foco transitou para o mar”.

No passado dia 28 de Novembro, durante a inauguração das I Jornadas do Peixe Atlântico, que decorrem até 15 de Dezembro no VINUM, Mikel e António José Cruz, único fornecedor de peixe deste restaurante, falaram lado a lado sobre as particularidades do peixe da costa portuguesa e de toda a cadeia que leva o pescado do mar até ao cliente final. António, mais conhecido por Tozé no Mercado Municipal de Matosinhos, conhece as lotas de todo o país como a palma das suas mãos, não tivesse chegado ao mercado com apenas 14 anos. Da compra e venda à preparação do peixe, Tozé domina todas as fases do processo e fez deste produto tão português um sólido negócio. Com a parrilla (grelha) em pano de fundo e junto a uma mesa com dois tamboris frescos, a dupla esmiuçou esta espécie e explicou como identificar um verdadeiro tamboril, o peixe escolhido para a primeira edição destas Jornadas: “O interior tem de ser completamente preto. Há algumas espécies parecidas, com interior branco, que nos são vendidas em muitos locais como tamboril, sem o ser. E tirando esta capa interior preta, tem de ter uma cor rosada.” demonstrou Tozé.

A “parrilla” do VINUM.

Com um exemplar de três quilos e meio na mão, ensinou também que “é um peixe que anda a cerca de 500 metros de profundidade e que aparece com abundância. Apenas em Janeiro e Fevereiro pode ser mais escasso”. O fornecedor, que em menos de 24 horas consegue entregar o peixe ao restaurante, manuseava o bicho com destreza. Mikel Vinãspre acrescentou, ainda, que “o fígado do tamboril é o foie gras do mar”, num apelo para que não seja desperdiçado. “Neste momento, e apesar do que se pode pensar, tanto em Portugal como no País Basco vivemos numa cultura de peixe”, afirmou o especialista da parrilla. Apontando para a grelha, adiantou que antes de lá colocar o peixe, apenas lhe coloca sal grosso. Já durante a assadura é que vai hidratando, aos poucos, com uma mistura de vinho branco, azeite e limão, acabando com um molho ligeiro muito semelhante ao da hidratação. Quando questionado sobre o tempo de confecção, Mikel riu e disse “cerca de 12 minutos, mas isto é uma actividade que tem muito pouco de racional, não há tempos certos para nada”.

Tamboril, pronto a servir.

Depois, o tema transitou para as conservas, um elemento bem presente na carta do VINUM e no menu das Jornadas do Peixe Atlântico. “É impressionante o tamanho da indústria de conservas em todo o Mundo. Mas creio que a costa portuguesa é a mais experiente e clássica nesta matéria”, elucidou Mikel.

O menu especial das Jornadas tem um custo de 100 euros, por pessoa, ou 120 euros com vinhos Symington, cuidadosamente escolhidos por Pedro Correia, enólogo-chefe da empresa. Estará disponível diariamente, até dia 15 de Dezembro, ao almoço e ao jantar, nos horários do restaurante: entre as 12h30 e as 16h00 e as 19h30 e as 24h00.

Tripas, toucinhos e outras perdições

Alguma coisa nalgum momento há-de ter troado na alma de algum antigo que o tenha levado a ver nas partes invisíveis das peças caçadas ou criadas sabor, nutrição e satisfação. No mundo carnívoro, as partes nobres são músculos, detalham-se muitas vezes com os polegares, e para todas temos destino. Ficam por cobrir as intersticiais e […]

Alguma coisa nalgum momento há-de ter troado na alma de algum antigo que o tenha levado a ver nas partes invisíveis das peças caçadas ou criadas sabor, nutrição e satisfação. No mundo carnívoro, as partes nobres são músculos, detalham-se muitas vezes com os polegares, e para todas temos destino. Ficam por cobrir as intersticiais e acumuladas gorduras e vísceras, que o génio humano puxou para a excelência e que hoje faz parte da nossa perdição.

TEXTO Fernando Melo

FOTOS Mário Cerdeira

Enquanto poucos – penso que mesmo muito poucos – se ocupam da boa e genuína investigação da génese das tripas à moda do Porto, tomamo-la como assumida e partimos para a magnífica viagem que oferecem. Há muito tanto de misterioso como de admirável no quanto o génio culinário português se debruça sobre as partes moles, órgãos, glândulas e gorduras, criando pratos verdadeiramente redentores. Nas tripas, gigajoga articulada de quatro epicentros viscerais de grande actividade, é fascinante ver como o tratamento empírico conduziu a caldos, texturas e sabores que alimentaram tantas gerações, ao longo do tempo. Os músculos em si esperaram mais do que as tripas até chegar à mesa, já que o bovino era outrora força motriz de importância central na lavoura e no transporte. Suíno, caprino e ovino suplantavam-no enquanto proteína de base e assim crescemos com eles, na forma de caldos, ensopados, cozi¬dos e grelhados diversos. Grão de bico e arroz foram os grandes companheiros enquanto condutos, de resto permanecendo com lugar cativo nas nossas despensas até aos dias de hoje. Natural por isso que pontifiquem também ao lado das tripas, acrescidos de leguminosas a gosto.

O QUE SÃO ENTÃO AS TRIPAS DE QUE FALAMOS?

Nada mais do que as quatro subpeças – pança, touca, folhoso e tendão – do estômago do grande ruminante. Todas são ginasticadas energicamente, adquirindo densidades e texturas diversas por efeito da actividade gástrica nas primeiras etapas da digestão. As ervas e demais forragens vão directas para a pança, com relativa velocidade, acumulando pura e simplesmente na lisura desta espécie de bolsa o que o animal vai mordendo e engolindo. Por possuir esta vocação açambarcadora, é a maior parte do imenso órgão. Na fase seguinte, entra em acção a touca – ou barrete -, cuja textura de favos é inequívoca, ficando em batimentos ritmados de expulsão e readmissão, de novo para a pança, e da pança para a touca, o animal vai remastigando e reengolindo ciclicamente, até que a verdura fresca ingerida fermenta, por efeito dos sucos produzidos. Segue-se a etapa do folhoso, também conhecida como entrefolhos e em que há absorção dos excessos de líquido, e finalmente o tendão, ou coagulador, onde quimicamente se inicia a digestão. É na verdade um entrançado de tendões, e é onde se cria a maior parte do sabor das tripas. A diversidade de funções produz variedades de sabor e impressões texturadas de boca, e a natureza essencialmente musculada do estômago precisa de cozedura lenta e temperaturas não muito elevadas, pelo que muitas vezes se produz as tripas em pote de ferro, com lume de chão. Este território não é para estômagos sensíveis nem para quem desde criança tem repugnância por partes moles da vaca. Na cidade, nutre-se um certo asco a tudo o que é aparas, órgãos e apêndices, como se os talhos não estivessem todos sem excepção nas mãos de quem faz gala das suas raízes e das suas aldeias. Teixeira de Pascoaes fixou no seu “Arte de ser português” que não há português que não tenha a sua aldeia e ao fazê-lo explicou por que gostamos tanto de ser portugueses e seguir os preceitos e imperativos nacionais, de uma forma local.

Tendão, touca, folhoso e pança.

E AINDA BEM QUE TEMOS TALHOS

Porque a lavagem das tripas é fustigação grande quando nos toca prepará-las para a grande cozedura. E se pode ser dura a provação! Não devemos ser tão dramáticos quanto Pascoaes, mas não se salva na selva carnívora quem não tem um talho de sua confiança. E fazer tripas em casa, na forma canónica das quatro partes que acabámos de abordar, é uma glória. Instrumento extraordinário é a boca da vaca, que exercita em movimentos repetidos a ruminação, criando devagar tesouros intersticiais e duas peças que dão pelo nome de bochechas e estufam maravilhosamente.
O mesmo acontece com sua excelência o porco, produzindo cozinhados de antologia, plenos de sabor e colagénio, graças à transformação lenta pelo fogo. É inevitável entrar nos domínios do reco, mas antes a recomendação grave de não utilizar a panela de pressão para cozer as tripas. A razão mais pungente é a da concentração de sabores pelo processamento lento e sustentado, criando aliás continuidade com o ciclo normal de vida do animal feliz. Com tempo, tudo se conserta e converge, e na cozinha já sabemos: o diabo é a pressa. Em sabor, não tem comparação o que se consegue quando se coze devagar, no assunto das vísceras sobre que nos debruçamos. Agora sim, as bochechas do porco, para reforçar o quanto são dadas à lentidão no fogo ou nas brasas, que grelhadas também são requintadas.

Bochechas de porco.

O PORCO, POIS CLARO

Pelo metabolismo e estilo de vida que leva o porco ibérico genuíno, de criação ao ar livre, a alimentação a bolota dá-lhe material para ir sedimentando e entremeando gorduras com tal intensidade de sabor que somos forçados a preferi-lo. As tripas do porco, de resto como a tripa fina da vaca, são utilizadas para produzir os maravilhosos enchidos, que tantas alegrias nos dão. Na matança, que ainda corre um pouco por todo o país, extraímos o redenho logo na primeira abordagem, e transformamos o fino véu em saborosos torresmos, só pela alquimia do calor. Chamamos-lhe torresmos do riçol no Alentejo, das sainhas na Beira Litoral, e do redenho no resto do país; é petisco incrustado no ADN de qualquer português. Mas da barriga do porco esperam por nós o toucinho alto e o toucinho entremeado. Pode ser branco como a neve, rosado como o mármore, e entremeado como se de peça de joalharia se tratasse. Gordura, dirão os menos atentos e os irritantemente urbanos, mas nada de precipitações. Se há peça que é a caixa negra do porco, igual em função às dos aviões, é o toucinho. A alvura indica a qualidade da alimentação e o exercício físico que fez em vida. Colesterol espantosamente baixo, de cerca de 550 mg/kg, mais baixo que a carne de frango sem pele – 600 mg/kg -, arrasa todo e qualquer preconceito. Pegamos num naco de toucinho alto, sujeitamo-lo a marinadas sucessivas, tal como preconizado pelo gigante chef catalão Santi Santamaria, e após 3 dias temo-lo em condições para o assar lentamente e cobrir com caviar e um caldo fino de legumes. Chama candidamente a esse prato “mar e terra” e confessou toda a vida a sua paixão por toucinho. Nós temos o caldo de unto, que não lhe fica atrás e após o desbaste proteico da construção da sopa até uma criança se delicia com o que fica da peça cortada fininho. A papada do porco, extracto sublime do suíno já com alguma idade, faz-se no vapor ou seca-se em fumeiro e temos uma quintessência da história que remonta a milhares de anos nos anais da alimentação. Despertar para estas vísceras e minudências, vai fazer-nos coincidir no exercício do gosto e na perdição boa que nos propõem tripas, glândulas e toucinhos. Assim isso aconteça antes de nós estarmos perdidos.

Toucinho.

Sugestão de Harmonização

FAZER AS LOAS AO SENHOR TOUCINHO

Abreu Callado Lágrima Alentejo branco 2017 (Fundação Abreu Callado) – O toucinho entremeado fumado – o bacon, como é mais conhecido – raramente é consumido sem passar pela chapa, grelha ou for¬no. O que faz sentido, a peça ganha dimensão maior quando sujeito ao calor, libertando proteína e gordura saudável. Este branco vai direito à tonalidade salgada e exacerba o lado fumado.

Paço de Teixeiró Vinho Verde Avesso branco 2016 (Montez Champalimaud) – O tão tradicional caldo de unto, que alimentou muitas gerações de portugueses, é dos mais ricos em termos de proteína e ao mesmo tempo é finíssimo na estrutura, prestando-se à aromatização e enriquecimento. Difícil encontrar melhor casamento que com este Avesso das baias minhotas do Douro.

Quinta dos Carvalhais Dão branco 2015 (Sogrape) – O prato mar e terra de a peça fala, da lavra de Santi Santamaria, consta de uma peça alta de toucinho marmoreado, de que o hoje desaparecido chef catalão era grande apreciador, passada por três salmouras diferentes, até chegar ao ponto ideal. Pena não ter conhecido este branco, estrutura fina, acidez bem trabalhada e muito sabor.

Terra a Terra Douro Reserva tinto 2014 (Quanta Terra) – Nos cocurutos transmontanos do Douro, em solos de transição xisto-granito há vinhos de grande elegância que parecem ter nascido para a mesa. Aqui está um exemplo de companhia fiel para peças diversas de toucinho, beijadas e fortalecidas lentamente pelas brasas.

 

TRIPAS À MODA DO PORTO E OUTRAS MODAS

Aveleda Reserva da Família Minho branco 2017 (Quinta da Aveleda) – As leguminosas – feijão e grão, principalmente – gostam muito de brancos finos e com corte eficaz de acidez. Este vinho vai ainda mais além, por ser copioso na boca e nariz ao mesmo tempo que resolve o caldo forte que normalmente ensopa as tripas. Um travo de piripiri abrilhanta o conjunto.

Psique Dão tinto 2014 (Amora Brava) – Dos solos de granitos velhos e da altitude conjugada muitas vezes com geada, saem vinho que só as mãos mais sábias conseguem produzir. Elegância a toda a prova, e força que se agiganta no contacto com pratos de tacho como as tripas, toques salinos, vinho e prato caem nos braços um do outro.

Falua Unoaked Tejo tinto 2015 (Falua) – Estreme de Touriga Nacional e, como o nome indica, não teve contacto com madeira. A expressão vigorosa que faz da casta de que todos gostamos é particularmente eficaz em preparações como as tripas aos molhos, ladeadas de grão-de-bico ou feijão branco.

Pacheca Douro Tinta Roriz Grande Reserva tinto 2015 (Quinta da Pacheca) – Harmonização feita no céu, esta que amansa por um lado a pujança tânica do vinho, por outro eleva as tripas mais rústicas a iguaria dos deuses. Trata-se de um vinho capaz das empreitadas mais difíceis à mesa, graças à boa enologia praticada.

Edição Nº25, Maio 2019

A terceira vida do Barrocal

O hotel rural de luxo perto de Reguengos de Monsaraz está a produzir carne, legumes, ervas, compotas — e tudo o que o Alentejo der. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS São Lourenço do Barrocal/Filipe Lucas Frazão Manuel Calado não é um homem qualquer. Tem a pele dura, um chapéu que lhe ensombra os olhos, beata […]

O hotel rural de luxo perto de Reguengos de Monsaraz está a produzir carne, legumes, ervas, compotas — e tudo o que o Alentejo der.

TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS São Lourenço do Barrocal/Filipe Lucas Frazão

Manuel Calado não é um homem qualquer. Tem a pele dura, um chapéu que lhe ensombra os olhos, beata na boca, a pose de quem é capaz de sacar de uma pistola e acertar numa lebre atrás de uma oliveira enquanto fala sobre a origem do enorme menir nas suas costas. Manuel Calado, arqueólogo, o Indiana Jones de Borba, está ali para explicar porque é que o Barrocal é uma terra predestinada.
Os montes da herdade foram a terra escolhida por diversas tribos sedentárias do Neolítico, nela se fixando os primeiros agricultores. A selecção terá obedecido a vários critérios de sobrevivência, segurança e alimentação — razões idênticas às que terão estado na origem, sete mil anos depois, do nascimento de São Lourenço do Barrocal.
O arqueólogo do Barrocal conta ainda, no âmbito das caminhadas pela propriedade organizadas pelo hotel do Barrocal, que no século XIX, nos mesmos afloramentos graníticos com vista para Monsaraz, ergueu-se uma pequena aldeia agrícola, detida pela família de que o actual proprietário, José António Uva, é descendente em oitava geração.
Aqui chegaram a produzir-se cereais, vinho, legumes, gado, bem como centros de produção como padaria e matadouro — actividade que obrigava ao alojamento de 50 famílias dentro da herdade. Mas duzentos anos passaram e a propriedade foi definhando, acabou nacionalizada com o 25 de Abril e, lentamente, foi sendo abandonada.

TEMPO DE REABILITAR

Quando José António Uva decidiu reabilitá-la, em 2002, já só a casa do hortelão estava habitável. A ideia era recuperar os tempos gloriosos de antigamente, primeiro como hotel rural de charme, com todos os requintes de um cinco estrelas e o dedo de Eduardo Souto Moura na reabilitação, depois como centro produtor de bens gastronómicos.
É esta faceta que agora se refina — para a terceira vida do Barrocal. Primeiro, apareceu o restaurante a cargo de José Júlio Vintém, o cozinheiro alentejano do Tomba Lobos, em Portalegre. Depois, estenderam-se mesas junto à piscina, com uma carta apropriada ao veraneio, também da autoria de Vintém. Ao mesmo tempo, a enóloga Susana Esteban começou a trabalhar nas vinhas da propriedade e a cultivar outras. E o olival, essencialmente de galega, passou a ser tratado, com as azeitonas a serem espremidas no lagar do vizinho — “e amigo” — Esporão. Decidiu-se que tudo o que ali florescia devia ser aproveitado — das ervas aromáticas aos limoeiros —, que se haveria de voltar a semear a terra, e que os bovinos de raça alentejana cruzados com saler francesa continuariam a pastar por ali, acabando às mãos de José Júlio Vintém, para assados e pratos de tacho.
Neste momento, a produção ainda se faz por tentativa e erro, mas tem o entusiasmo das primeiras coisas, de uma vontade de fazer único e fazer bem.

CRIAR UMA REDE DE PRODUTOS AUTÓCTONES

Para além deste esforço de auto-suficiência, sempre em regime biológico, José António Uva está ainda a criar uma rede de fornecedores locais. Parte dos produtos que ainda é preciso comprar fora, para servir no Barrocal — seja ao pequeno-almoço, ao almoço ou ao jantar — vem de pequenos produtores das redondezas. Há peixes de rio do Alqueva, como o lúcio perca que Vintém aproveita para ceviche, há queijos de ove-lha e cabra, mel, pão do Baldio, enchidos da Montanheira, tudo produtores parceiros do Barrocal.
José António Uva vê assim prestes a concretizar-se a segunda fase do seu sonho. Voltar a tornar a propriedade, não apenas num hotel, mas num lugar de parti¬lha e de produção de comida boa. A história do Barrocal contada por Manuel Calado começou há 7.000 anos. Mas não acaba aqui.

NA FOTO: José Júlio Vintém assegura a restauração do Barrocal.

Edição Nº25, Maio 2019

Le Monument – Qualidade genuína no Porto

O Le Monument fica em plena Avenida dos Aliados e foi criado a pensar no estrelato do fine dining. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Le Monument Palace No final de um jantar recente, o chef Julien Montbabut veio à mesa dizer aquilo que muitos chefs dizem. “Se a estrela Michelin vier, tanto melhor, mas o […]

O Le Monument fica em plena Avenida dos Aliados e foi criado a pensar no estrelato do fine dining.

TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Le Monument Palace

Chef Julien Montbabut.

No final de um jantar recente, o chef Julien Montbabut veio à mesa dizer aquilo que muitos chefs dizem. “Se a estrela Michelin vier, tanto melhor, mas o que nós queremos mesmo é que os clientes gostem e voltem”. A declaração pareceu sincera, mas revendo o que se passara nas últimas duas horas, dir-se-ia que a estrela já tem carta de requisição.
Da amesentação (talheres Cutipol, copos Schott Zwiesel), à decoração (com toques sumptuosos de Art Déco), do serviço protocolar aos empratamentos, estamos sempre perante alta cozinha de estilo francês, a mais apreciada pelos ‘senhores Michelin’. No caso, essa origem é natural. O Le Monument, é um restaurante francófono dentro de um hotel de luxo francófono, o novíssimo Le Monument Palace, na Avenida dos Aliados. Inaugurado em Novembro de 2018, tem donos franceses, chef francês, pasteleira idem.
Olhando para o passado do chef, a sua formação também não deixa dúvidas sobre o tipo de escola de cozinha. Andou sempre por restaurantes de fine dining em Paris, incluindo o Christian Le Squer ao Pavillon Ledoyen, um três estrelas Michelin. Daqui trouxe o rigor nos cortes e nos empratamentos, mas uma outra obsessão, que está a tentar levar para a mesa do Le Monument: a qualidade do produto.
Esta biografia já se nota nas degustações do seu Le Monument. O foie gras convive com mexilhões e ostras de Aveiro; as reduções de molhos de carne, os famosos jus franceses, intercalam com vinagretas cítricas; o lúcio perca do Douro coabita com os valiosos — e saborosíssimos — cogumelos morchella. De resto, vêem-se outros pormenores importantes num restaurante deste nível, como o facto de haver vários tipos de pão feitos na casa ou de serem servi¬dos três azeites portugueses de topo.
Julien admite que ainda falta conhecer melhor a realidade portuguesa, nomeadamente no que respeita a carnes, sector onde ainda recorre à velha Gália. Mas a intenção é comprar o mais local possível.
Os preços no Le Monument são condizentes com o nível do restaurante. O menu de quatro pratos (com várias prendinhas pelo meio) custa 85€; o menu do chef, com seis pratos, vale 105€. Há duas harmonizações de vinhos possíveis, uma de 45€ outra de 60€. Para quem quiser uma refeição mais barata e informal, pode escolher antes o Café Monumental, o outro restaurante do hotel, ao estilo brasserie, com carta também da responsabilidade de Julien Montbabut.

MONUMENTAL PALACE HOTEL
AV. DOS ALIADOS, 151, PORTO. TEL. 22 766 2410. TER-SÁB 19.30-23.30

Edição Nº25, Maio 2019