Rui Silvestre já tem Quorum

O restaurante do premiado chef já tem menu de degustação. Cozinha Michelin no Chiado, sem protocolo apertado e a preços mais acessíveis. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga De entre os chefs portugueses, Rui Silvestre é um dos maiores. Tem um 1,90m de altura e 90kg de peso. À partida, o porte intimida […]
O restaurante do premiado chef já tem menu de degustação. Cozinha Michelin no Chiado, sem protocolo apertado e a preços mais acessíveis.
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga
De entre os chefs portugueses, Rui Silvestre é um dos maiores. Tem um 1,90m de altura e 90kg de peso. À partida, o porte intimida mas logo se percebe que é bem humorado e descontraído. Prova disso é que, a poucos dias de celebrar o seu casamento, ali mesmo, no seu novo restaurante, ainda não sabia qual seria a ementa. Sorri: “Ainda não pensei nisso, confesso.”
Nas últimas semanas, o chef que ficou conhecido à frente do restaurante Bon Bon, no Algarve, ao ganhar uma estrela Michelin com apenas 29 anos, tem estado ocupado com o Quorum. O restaurante, entre o Chiado e o Cais do Sodré, posiciona-se como um fine dining informal, que aposta em dois menus de degustação: um de quatro momentos, com um valor de 46€ por pessoa, e outro de seis com um valor de 58€.
A ideia é poder experimentar comida Michelin, sem o protocolo típico dos restaurantes mais exigentes e com preços mais acessíveis.
Onde não há concessões é na preocupação com o sabor. Rui Silvestre tem uma técnica sólida, com raízes francesas — e não esconde isso. “Uma das minhas referências é o Guide Culinaire, do Escoffier, a outra é o Pantagruel, da Bertha Rosa Limpo”, explicou. De tudo o que veio para a mesa, e foi muita coisa, notou-se sempre uma preocupação em ter pratos limpos e elegantes, mas sempre muito apurados.
A degustação começou com manteiga noisette, com a avelã incorporada e raspada, no topo, a acompanhar fatias de pão da Gleba. As entradas fizeram-se com delicadeza marinha, primeiro com um mexilhão com caril verde; depois ostra, pepino e kombu; por fim, ceviche com tapioca e flores.[/vc_column_text][vc_gallery type=”image_grid” images=”27082,27083,27085,27086,27088″ layout=”fullwidth” item_spacing=”default” gallery_style=”1″ load_in_animation=”none”][vc_column_text]Ainda nos peixes, um dos pratos mais populares de Rui Silvestre é o bacalhau com gema de ovo, coentros, sames desidratados e pão torrado, imerso num caldo translúcido, a lembrar a açorda alentejana — um portento de elegância. Ainda se estava nos encómios, quando uma espuma de ovos com cogumelos e trufa manteve a parada alta, abrindo espaço para o prato de carne: presa de porco com amêijoas, legumes avinagrados e um jus de porto preto de consistência e sabor denso.
A terminar, serviu-se uma tarte de limão merengada e uma composição de chocolate, abacate e coco.
No dia em que visitámos o restaurante, ainda não estava activo o sistema de avaliação digital. A ideia é dar a cada cliente um tablet, onde estes poderão fazer de críticos gastronómicos, atribuindo notas a vários parâmetros da experiência: palato, confecção, empratamento, harmonização, inovação e geral.
Rui Silvestre promete não intimidar ninguém.
Rua do Alecrim nº 30, Lisboa. 21 604 03 75. Segunda a sábado, das 18h às 24h
Edição nº12, Abril 2018
The Yeatman com novo menu

TEXTO Mariana Lopes FOTO cortesia The Yeatman Não é nenhuma maldição ancestral e, se disser em voz alta, os móveis não vão começar a levitar. Carta Fata é uma folha plástica transparente e preparada para a culinária (originalmente para cozinhar porco em Itália), que o chef Ricardo Costa utiliza no novo menu de Primavera e […]
TEXTO Mariana Lopes
FOTO cortesia The Yeatman
Não é nenhuma maldição ancestral e, se disser em voz alta, os móveis não vão começar a levitar. Carta Fata é uma folha plástica transparente e preparada para a culinária (originalmente para cozinhar porco em Itália), que o chef Ricardo Costa utiliza no novo menu de Primavera e Verão no restaurante do The Yeatman Hotel, que exibe duas estrelas Michelin desde 2017.
Na nova carta constam dois menus: um mais extenso, com nove pratos, a “Experiência Gastronómica”, a custar €160; e o “Selecção do Chef”, de seis composições em prato, com um preço de €130. A harmonização com vinho, da curadoria de Beatriz Machado (directora de vinhos) e Elizabete Fernandes (Head Sommelier), pode ser feita de três maneiras: escolha livre de entre os quase 2000 vinhos presentes no Wine Book do The Yeatman, entre a pequena selecção aconselhada para o menu, ou o pairing completo preparado pelas curadoras, que custa €70 para o menu maior e €60 para o mais pequeno.

A “Experiência Gastronómica” começa com um chá de alga Kombu (japonesa) com lúcia-lima, morno e aconchegante, para limpar e preparar o interior para a refeição. De seguida, os aperitivos: nabo apresentado como uma vieira sem o ser, mas como molho desta com matcha (chá verde moído) e ovas finger lime (uma espécie de caviar australiano de fruta cítrica), tudo acompanhado com um “cannellone” de caranguejo real; uma interpretação de frango de churrasco com arepa de milho, esferas moleculares de tomate cereja e azeitona banhadas com água gelada de tomate e, espetados em galhos num vaso com lavanda, aquilo a que chamo “nuggets Michelin” (nuggets de frango mas da alta-cozinha); e uma “marisqueira” de lingueirão, mexilhão e camarão da costa, com pérolas de tremoço e puré de amendoim.
A entrar no “real deal”, Chocos (ou lulas, consoante a disponibilidade) com tinta e soro de leite, um toque de queijo de São Jorge, com crocante de iogurte no topo e molho à bordalesa, e também um crocante de tapioca com tinta. Depois, o prato de Lavagante, que consiste numa sopa tom yum (tailandesa) de galanga (gengibre do Laos) com papaia, manga e o referido crustáceo, a fazer par com o mesmo em crosta de sal, kimuchi, óleo de sésamo, ervilhas, pickles e cebola, e ainda tripas “à moda de Gaia”, cozinhadas na dita Carta Fata, com feijão branco, cebolinho e molho de aves.
Em jeito de pausa, veio da cozinha um pão quente de alfarroba e malte com manteiga de vaca do Pico e azeite Quinta de Vargellas (do grupo Fladgate, onde está inserido o Hotel, a Taylor’s, Croft, Fonseca, etc.).[/vc_column_text][vc_gallery type=”image_grid” images=”27069,27070,27071,27072,27073″ layout=”fullwidth” item_spacing=”default” gallery_style=”1″ load_in_animation=”none”][vc_column_text]De volta ao exercício, Raia glaceada com beurre blanc e caviar e algas. Sublimes são os Ovos The Yeatman, com cocochas de bacalhau (parte junto à traqueia do peixe), presunto, codorniz e molho Bolhão Pato. Continuando, o Leitão “quase” à Bairrada muito bem conseguido, com a pele super-estaladiça, tostada com perícia. Quase a terminar, o Arroz de Pombo à Antiga, com trufa, o prato que faz revirar os olhos, quase literalmente, pela qualidade da matéria prima (pombo francês Mieral) e pelo talento na remistura.
As coisas doces, do chef pasteleiro Pedro Carvalho, são três. Carpaccio de Ananás com chá verde e gelado de piña colada, muito bem-apresentado dentro de uma metade de um coco. A seguir, um desmanchado de Mirtilo com mascarpone e Kaffir (um citrino do sudeste asiático). Para rematar, uma Tripa de Aveiro (terra natal do Chef) com pipocas e caramelo.
Ficou com água na boca?
Edição nº12, Abril 2018
Queijo fresco de cabra

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTO Ricardo Palma Veiga Os portugueses, sobretudo os urbanos, são uns analfabetos do queijo. Não percebem nada do assunto e acham que não há nada para perceber. A única coisa que gostam de proclamar é que “o Serra é o melhor do mundo” — e isto, muitas vezes, apenas tendo experimentado […]
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTO Ricardo Palma Veiga
Os portugueses, sobretudo os urbanos, são uns analfabetos do queijo. Não percebem nada do assunto e acham que não há nada para perceber. A única coisa que gostam de proclamar é que “o Serra é o melhor do mundo” — e isto, muitas vezes, apenas tendo experimentado uns brie de supermercado ou o cheddar no hambúrguer. Prova desta ignorância é que, ao contrário de outros países, como França, Itália e Espanha, em Portugal não existem praticamente lojas dedicadas ao queijo, muito menos afinadores, profissionais que se dedicam ao processo de cura.
Também por isto, escapa-nos quase sempre a ideia de que os queijos são sazonais e estão dependentes das condições meteorológicas. O comércio procura ofuscar esta realidade, esforçando-se por arranjar sempre matéria-prima, mesmo que caríssima e de menor qualidade. Mas quem anda atento reparou, por exemplo, que na segunda metade do ano passado, durante largos períodos, escasseou requeijão e outro tipo de queijos frescos feitos a partir de leite de animais de produção extensiva.
Felizmente que a seca parece ter acabado e com as chuvas de Março prevê-se uma Primavera verdejante. Este é o melhor cenário para a maioria dos queijos, nomeadamente para o queijo de cabra fresco, que ganha um paladar e uma consistência aveludada incomparável.
Nuno Miguel Coelho, um dos produtores de leite de Cabra Algarvia, na zona do Baixo Guadiana, onde se faz um extraordinário queijo fresco, disse à VINHO Grandes Escolhas que, neste período, os animais alimentam-se sobretudo da flor de esteva, de rosmaninho, de rebentos novos, das flores do tojo e de funcho, o que aumenta o teor de proteína e de gordura, mas também a gama de sabores no queijo.
Noutras regiões do país, podem mudar as plantas, mas não muda a ideia. Quanto mais e melhor pasto as cabras tiverem tanto mais rico será o queijo. Procure-o desde já numa loja perto de si.
Edição nº12, Abril 2018
Bem servir na Manteigaria Silva

Edição nº11, Março 2018 É uma das mais clássicas lojas finas de Lisboa e agora está a arrancar com um novo projecto, praticamente inédito a nível nacional. E consegue combinar como poucas a qualidade e selecção dos seus produtos com um atendimento competente e personalizado. TEXTO António Falcão FOTOS Ricardo Palma Veiga A nível de […]
Edição nº11, Março 2018
É uma das mais clássicas lojas finas de Lisboa e agora está a arrancar com um novo projecto, praticamente inédito a nível nacional. E consegue combinar como poucas a qualidade e selecção dos seus produtos com um atendimento competente e personalizado.
TEXTO António Falcão
FOTOS Ricardo Palma Veiga
A nível de localização, seria difícil conseguir melhor: a Manteigaria Silva fica quase encostada à famosa Praça da Figueira, e a escassos 50 metros da Praça do Rossio, dois dos locais mais visitados de Lisboa. O nome da casa vem do negócio da manteiga, há muitas décadas atrás. Esta era uma das casas, aliás, que estava autorizada a vender manteiga avulso. Em tempos, Lisboa teve 24 casas a ostentar o nome de Manteigaria. Hoje, esta é a única…
Regressamos ao presente e olhamos para a entrada, que pode enganar. De facto, à porta está uma boa selecção de frutas e legumes expostas nas suas tradicionais caixas. Um incauto passante poderia pensar que se trata de uma mercearia qualquer, como as há às dezenas em Lisboa. Mas basta entrar para ficar com outra percepção. A arrumação, a diversidade de produtos e a sua aparente qualidade remetem imediatamente qualquer gastrónomo ou enófilo para o conceito de “loja gourmet”.
Os nossos olhos fixam-se quase imediatamente numa resplandecente máquina, logo à entrada: parece uma fiambreira, mas nunca tinha visto nenhuma parecida. Esta mais parece um torno mecânico, tal a quantidade de rodas, roscas e manípulos. Um funcionário coloca uma peça de presunto no suporte e agarra-se à máquina: em segundos saem para um prato fatias da espessura de uma folha de papel. Esta é uma Berkel de 1923, primorosamente restaurada em Itália.
O mundo dos queijos
A grande especialidade de José Branco é o queijo. O conhecimento veio-lhe de há várias décadas, quando começou a trabalhar numa empresa de queijos e onde aprendeu a afinação com um “bom mestre”. “Ganhei gosto nessa actividade, que ninguém fazia aqui na baixa lisboeta”, garante José Branco.
Em especial o Serra da Estrela, que já vem curando desde há décadas numa câmara especial e para clientes seleccionados. Com a experiência que foi adquirindo, José Branco e o seu filho decidiram alargar esta actividade a níveis nunca vistos em Portugal e compraram várias câmaras de cura, que instalaram num armazém não longe dali. A capacidade chega às 5.000 unidades! A compra de queijos já começou, em várias zonas de Portugal, mas tudo escolhido a dedo. Os Branco não querem limitar-se aos amanteigados mais famosos, como Serra ou Serpa. Querem também outros queijos certificados e, quem sabe, favorecer o aparecimento de outros tipos de queijos.
Os queijos podem levar até 12 meses de cura, mas os ‘Ilha’ podem ir a ano e meio. As experiências ditarão qual o tempo necessário. Como não há qualquer estudo ou ciência feita nesta área, a família Branco decidiu começar um projecto com o Instituto Superior de Agronomia: o ISA irá analisar queijos a cada 4 meses e reportar os resultados. “Temos que estar sempre a aprender, mesmo que nos custe dinheiro”, remata José Branco. Os estudos irão versar sobre a maturação e a validade do queijo. “Por exemplo, um queijo amanteigado tem a validade de um ano; ao fim desse tempo, que validade terá? Sabemos que deverá baixar, mas quanto?”, questiona José Branco filho.
Seja como for, a experiência de vários anos dos dois gestores já dá algumas indicações: tal como os vinhos, durante a cura, o queijo chega a um pico em que está no ponto óptimo de consumo. Determinar esse pico é a tarefa do afinador, que usa sobretudo o tacto e o ouvido: “Eu falo com o queijo, e ele fala comigo, e cada queijo é um queijo”, diz o nosso anfitrião com um sorriso. Os queijos, já agora, são todos de fabrico manual e certificados. José Branco filho diz que o pai “é o único afinador de queijos de Portugal”.
O armazém de cura vai ainda servir para fazerem provas, workshops e cursos. Uma prova será por exemplo uma espécie de ‘vertical’, consoante a cura: 40 dias, 4 meses, 8 meses e um ano; no mesmo tipo de queijo, claro. E depois é ver as diferenças…
“Temos que ter esses queijos todos, e isso requer uma grande logística e algumas toneladas de queijos.” Nota final do especialista: “O Queijo da Serra é à fatia.” Por isso deixem de cortar uma tampa ao queijo e comer à colher…
Presunto, enchidos, bacalhau…
O presunto é outra das especialidades da casa. José Branco quer que seja esta casa a desossar os presuntos completos que compra, de fornecedores de confiança. “O meu filho e os outros funcionários já têm as melhores ferramentas para desossar.” Por aqui há de tudo um pouco, com sete qualidades de presunto no portefólio. O resultado é embalado a vácuo, para preservar a qualidade. “Daqui saem 250 a 300 presuntos por mês, tudo desossado por nós”, diz-nos José Branco filho. A maioria da Casa do Porco Preto, onde têm que fazer pré-reservas com até 3 anos de antecipação!
Os enchidos não faltam, bem como o bacalhau. Para quem quiser, existem quase todos os acompanhamentos necessários em grão, incluindo o parceiro habitual, o grão de bico. Mas pode ainda encontrar compotas, conservas, condimentos e muitas outras iguarias. As preocupações com a saúde, outra área muito actual, não estão alheadas da família Branco, que iniciou uma espécie de cruzada contra o sal em excesso nos produtos. E tentam que os fornecedores recebam esta mensagem…
O primado da qualidade
A conversa foi, entretanto, enriquecida com um vinho da casa, vinificado pela Nieeport, com presunto e queijo. Admirável a combinação. Quanto aos vinhos, a selecção está cá. Não é vasta, mas tem dedo experiente e não faltam sequer os grandes ícones nacionais, incluindo muitos Vinhos do Porto e o incontornável Vintage Nacional da Quinta do Noval. Afinal, a casa é visita frequente por parte de turistas.
A família faz degustações frequentes à porta da loja, combinando toda a espécie de produtos, dos queijos aos enchidos, passando pelo bacalhau, Vinho do Porto e vinhos tranquilos.
A loja é pequena, mas não é por vontade do dono. Já não há mesmo mais espaço, mas mudar para outra localização será tarefa quase impossível, aos preços do imobiliário da baixa lisboeta. E sair daqui para qualquer outro bairro seria perder uma localização privilegiada. Pode ser que haja uma alternativa, mas, até essa possibilidade existir, a Manteigaria Silva terá de lidar com o que tem. Que já é muito. Não foi, aliás, por acaso, que lhe demos o prémio de Loja Gourmet do ano.
CONTACTOS
Manteigaria Silva
Rua Dom Antão de Almada 1
1100-197 Lisboa
Tel. 213 424 905
geral@manteigariasilva.pt
Horário de funcionamento: Segunda a sábado: 9h00 – 19h30. Fecha domingos e feriados
www.manteigariasilva.pt
Três lanças portuguesas em Espanha

Edição nº11, Março 2018 Entrevista Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de […]
Edição nº11, Março 2018
Entrevista
Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de ataque numa tasca de Lisboa, para fazer memória futura e dar conta do estado (de graça) da cozinha portuguesa.
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Juntar três chefs com estrelas Michelin é mais difícil do que sentar à mesma mesa Donald Trump, King-Jong un e o Papa Francisco. Mas, ao fim de umas semanas de intensas trocas de emails, aconteceu. O lugar do encontro foi a Casa Cid, uma antiga tasca do Cais do Sodré, em Lisboa, onde se come peixe frito e torresmos, e que há décadas dá abrigo a noctívagos esfaimados às cinco da manhã.
Sinal dos tempos, já instalados, uma perfuradora fez-se ouvir — “Vão construir aqui um hotel”, disse o tasqueiro — e tivemos de nos mudar para o café Tati, mesmo ali ao lado. Ligado o gravador, a conversa correu livre, deixando claro que os três chefs actuam como um bloco — e querem continuar a conquistar mundo, em nome da cozinha de Portugal.
GRANDES ESCOLHAS – Tentei saber como vos correu o Madrid Fusión, mas não consegui encontrar informação.
ALEXANDRE SILVA – A verdade é que não houve imprensa portuguesa lá.
HENRIQUE SÁ PESSOA – Alguma imprensa especializada relatou o facto de nós irmos à conferência, antes. Só isso.
Porque é que acham que isso aconteceu? Terá a ver com a crise dos media, sobretudo da imprensa escrita?
AS – Acho que se arranjam sempre desculpas para tudo.
JOÃO RODRIGUES – A única coisa que é estranha é haver tanta gente a querer debater a cozinha portuguesa e a querer pôr o dedo na ferida mas, depois, quando vamos para um palco grande parece que, de repente, há um desinteresse generalizado. Ou então há outras razões que desconhecemos ou os jornalistas não são convidados.
AS – Acho que o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal podiam ter dado apoios.
JR – Mas será que foram pedidos?
AS – Provavelmente não foram. Os portugueses acham que são os maiores e que é tudo muito bonito. A verdade é que podíamos ser mesmo os maiores. O problema é que só três ou quatro é que querem fazer e os outros ficam encostados.
JR – Fala-se num movimento nacional, mas para haver esse movimento nacional tem toda a gente de remar para o mesmo lado nos diferentes quadrantes.
Podemos então começar por tentar relatar o que aconteceu no Madrid Fusión. Vocês ocuparam uma manhã do palco principal, certo?
HSP – Sim. Nós quisemos ir para o palco os três ao mesmo tempo. Era importante passarmos a mensagem de que estávamos os três juntos. Não era a apresentação do João, do Alexandre e do Henrique.
JR – A ideia era que a soma das partes fizesse um conjunto. Cada um tinha a sua maneira de ver a cozinha, mas estava ali subjacente a cidade de Lisboa.
Foi um acaso terem os três feito demonstrações de receitas de peixe?
HRP – Era esse o briefing. O tema era a cozinha atlântica de Lisboa.
AS – Mas mesmo que não tivesse sido, provavelmente tínhamos feito o mesmo.
João, como correu a tua apresentação?
JR – A pessoa que era para falar antes de nós não pôde vir e, portanto, tivemos muito mais tempo do que era suposto. Isso não foi bom.
AS – Às tantas, parecia uma telenovela da TVI. Foi encher chouriços, encher chouriços.
JR – Eu cumpri o meu tempo, o Alexandre e o Henrique é que ficaram…
Sobrou para vocês…
[risos]
JR – Sim, principalmente para o Henrique.
HSP – Os gajos vieram ter comigo a pedir para estender por mais 15 minutos. Eu disse-lhes: “Só tenho um prato…” Acho que podíamos ter feito muito melhor se não tivesse acontecido este constrangimento.
Vocês, hoje, para além de chefs, têm de ser performers, oradores. Gostam disso?
AS – Tens que vender a tua cena.
JR – O músico também vai tocar no palco. Não toca só em casa, nem faz só discos.
HRS – A questão do palco intimida. Mas quando estás a falar de uma coisa em que estás à vontade é mais fácil. Qualquer um de nós já fez isto várias vezes.
JR – As apresentações são óptimas para tu explicares o que está por trás do teu trabalho diário. Podemos discutir se hoje a cozinha chegou a este ponto, em que os chefs já pensam e não fazem só bifes… Mas isso seria uma conversa longa.
[Risos]
E como foram as reacções?
HRP – Dadas as condições, as reacções foram positivas.
Às vezes, parece que Espanha ofusca Portugal, como se Portugal fosse uma sub-região gastronómica de Espanha. A polémica de a jaleca entregue aos chefs portugueses que ganharam a estrela Michelin, no ano passado, vir com a inscrição “La Guia”, em espanhol, foi, para algumas pessoas, o último episódio revelador disso. Como vêem esta relação entre os dois países?
HSP – Eles nunca olharam para nós. Mas ultimamente já nos vêem com alguma admiração.
JR – Isso só vai acontecer de facto quando nós não nos preocuparmos com isso. Nós é que levamos isso a sério. Eles têm cinco vezes o nosso tamanho, são mais ricos. É óbvio que estamos ao lado deles e passamos despercebidos.
AS – Mas não podes sentir que és o enteado. Nós temos pai e mãe.
HSP – Temos um complexo de inferioridade, mas não devíamos.
E isso não passa também por se bater o pé em coisas simbólicas, como esta da jaleca?
JR – Não sei. Aquilo é feito em Madrid.
HSP – Imagina que um dia fazemos cá a cerimónia de apresentação do Guia Michelin da Península Ibérica. Se calhar, nessa altura, em vez de dizer “La Guia” diz “Guia”.
JR – Mas porque é que ainda não aconteceu em Lisboa? Quem é que não se quer chegar à frente?
HSP – Aquilo é um negócio. E todos os anos o governo espanhol paga para que a cerimónia do Guia Michelin seja em Espanha. Qualquer candidatura que entra, paga. Nós não temos estrutura nem dinheiro para pagar.
AS – É exactamente assim.
JR – A ideia é olharmos para nós. Deixarmos de ter modelos. Há dez anos os restaurantes com estrelas Michelin eram todos iguais. Hoje já começas a ter restaurantes muito diferentes, como são os nossos três restaurantes. Quando começas a ter uma cultura própria, os outros começam a olhar para ti.
O que é que identifica os vossos restaurantes?
HSP – A ideia de que o nosso produto é o melhor do mundo é falsa. Temos um produto que é muito bom. Mas em Espanha também há, na Tailândia e em França também há. O que realmente é interessante na cozinha em Portugal, e em Lisboa em particular, é as cozinhas serem diferentes umas das outras. Em Espanha, ficaram com um vazio. O El Bulì ditava as tendências, havia ali uma enciclopédia, uma base de dados, que era lançada todos os anos e servia de orientação. Isso não existiu nem existe em Portugal. E isso é que é diferenciador.
AS – Isso é bom.
HSP – Vais ao restaurante do João, do Alexandre ou ao meu e tens experiências completamente diferentes. Podes gostar muito de um ou outro, mas é inegável a qualidade em todos os espaços e isso não acontecia há uns anos.
JR – Numa tertúlia recente, alguém disse que era impossível haver um restaurante de referência mundial português que não fizesse cozinha portuguesa tradicional. E eu perguntei a essa pessoa se ela reconhecia o Ferran Adrià como uma referência da cozinha espanhola. E se ele fazia cozinha espanhola tradicional.
HSP – Tens outro caso em Espanha, o David Muñoz, três estrelas Michelin [faz uma cozinha de fusão, com muitas influências asiáticas].
JR – Cá, se calhar, era morto.
Acham que a imprensa portuguesa é agressiva relativamente aos chefs?
AS – Pessoalmente, estou farto de ser criticado. Mas a verdade é que o restaurante é meu. Eu faço aquilo que eu quero, pago às minhas equipas, pago aos meus fornecedores. Na verdade, estou-me a borrifar para aquilo que as outras pessoas pensam. Mas custa-me muito quando lá vai uma pessoa jantar e depois escreve umas linhas e nem sequer sabe muito bem o que está a dizer e nós temos de engolir e as outras pessoas que também não sabem o que se passa também engolem. Ficamos todos a perder.
Mas isso não é a democracia a acontecer?
HSP – A questão é que já não existe imprensa.
JR – A qualidade técnica no jornalismo perdeu-se em detrimento de uma preocupação de imagem. Hoje em dia, toda a gente está mais preocupada com a estética e com a rapidez com que se comunica, com que se faz e se desfaz, do que propriamente com saber o conteúdo e a dimensão técnica da coisa. Isso define muito o meio gastronómico hoje em dia. Muitas das pessoas apareceram do nada e rapidamente chegaram ao topo porque têm uma boa base de imagem e uma boa base de comunicação. E muito pouco conhecimento técnico.
Vocês olham para as críticas do Zomato, por exemplo?
HSP – Eu não. Mas os nossos sócios, colaboradores, clientes, vêem.
JR – A última avaliação que tive no Zomato era uma pessoa que descrevia que o tio tinha tido morrido engasgado no restaurante. E isso não aconteceu. Escrevemos para a Zomato a alertar e acabou por ser retirado.
HSP – Isso é uma piada de muito mau gosto.
AS – E afecta o restaurante.
Mudando de assunto. Quando viajam lá para fora como é que vêem o que se está a fazer cá dentro?
AS – Quando viajo agrada-me ver que nós estamos muito bem.
HSP – É verdade. Agora. Há uns anos não era assim.
AS – Falta a parte do Governo, da imprensa, apoiarem-nos. Parece que nós nunca conseguimos arrancar.
O que é preciso para isso, em concreto?
AS – É preciso que o resto do mundo reconheça que nós somos bons. Que saibam que em Portugal há arte, há técnica, que conheçam as cozinhas regionais que nós temos no nosso país e que os outros países muito dificilmente conseguem ter.
HSP – A par da Itália nós somos o país que tem mais regionalidade.
AS – E temos uma margem enorme de progressão.
Como é que essa promoção pode ser feita? Passa por continuar a trazer jornalistas estrangeiros a Portugal?
JR – Acho que nós trabalhamos mais isso de trazer gente cá, individualmente. Mas tem havido iniciativas [do Governo], sim. Mas acho também que da parte dos empresários e dos privados falta essa noção do que nós queremos fazer. O dono do negócio pensa de forma conservadora, pensa no volume, para reaver rapidamente o investimento. E nunca se pensa em fórmulas para se conseguir um bocadinho de tudo: reaver o investimento e criar algo que de alguma forma possa servir de âncora para tudo o resto. O José Avillez tem feito isso muitíssimo bem.
HSP – Até há uns anos viajava e sentia um desnível enorme. Numa viagem recente a Nova Iorque, fui a cinco ou seis restaurantes e senti exactamente o contrário. O que nós estamos a fazer está ao mesmo nível. A única coisa que senti foi que nós evoluímos em quase todas as áreas, mas no serviço continua a haver limitações.
O que é que é um bom serviço para vocês?
AS – Um bom serviço é aquele que, no final, tu queres pensar no assunto e não consegues porque não o sentiste. Isso para mim é um bom serviço. O Loco é um caso diferente. Estamos sempre a abordar o cliente. Já fomos criticados por isso, porque interrompemos demasiadas vezes o cliente. Mas para mim é ter pessoas competentes, que saibam aquilo que estão a dizer. Encontras colaboradores que te estão a pregar uma grande peta em vez de serem sérios naquilo que fazem.
Há falta de recursos nesta área?
HSP – O problema é que toda a gente vê o serviço de sala como um trabalho temporário.
AS – E é mal pago.
JR – Acho que é muito mal pago.
HSP – Mas, João, é mais mal pago do que noutros sectores? Um empregado de mesa do Alma, com 22, 23 anos, ganha 1100 euros líquidos por mês, entre ordenado e gratificação.
Tens muitos turistas no Alma. O que é que os surpreende mais, no final da refeição?
HSP – Acho que somos uma caixinha de surpresas para eles. Eles pensam que estão no terceiro mundo e de repente ficam impressionados. “Mas vocês têm menus de degustação! Esta decoração!”
AS – Dizem-nos: “Este restaurante podia estar em Nova Iorque, em Londres.”
HSP – Quando entrei no programa do Anthony Bourdain em Lisboa, há uns anos, fiquei bastante desiludido quando vi o resultado final. Passou a imagem de que nós éramos um país que ainda não tinha saído do 25 de Abril. E agora vês o programa do Phil Rosenthal [episódio sobre a gastronomia de Lisboa, da série da Netflix] e até é um bocado exagerado. Tudo é incrível em Lisboa, Lisboa é espectacular! Mas prefiro essa mensagem à mensagem do coitadinho e do fado e das lágrimas e Salazar.
Do Mercado – Espargos

Edição nº11, Março 2018 TEXTO Ricardo Dias Felner Há uns anos, um amigo meu decidiu plantar espargos num terreno que acabara de comprar. Fê-lo por impulso e paixão, sem se precaver do escoamento para o mercado. Sucede que as grandes superfícies preferiam os do Perú e de Espanha, mais baratos e com fornecimento o ano […]
Edição nº11, Março 2018
TEXTO Ricardo Dias Felner
Há uns anos, um amigo meu decidiu plantar espargos num terreno que acabara de comprar. Fê-lo por impulso e paixão, sem se precaver do escoamento para o mercado. Sucede que as grandes superfícies preferiam os do Perú e de Espanha, mais baratos e com fornecimento o ano todo, e os chefs preferiam os certificados, mais seguros. Pelo que, na altura da primeira colheita, o meu amigo ficou sem saber o que fazer a umas centenas de quilos.
Uma das poucas pessoas que lucrou com o desaire fui eu. Durante várias semanas, por esta altura do ano, tive fornecimento regular dos rebentos e pude experimentar todo o tipo de receitas. Das sopas aos ovos, das saladas aos purés, fiz de tudo.
É preciso dizer, todavia, que nenhuma fórmula bateu a preparação clássica dos italianos: um minuto em água a ferver, de pé; depois cortá-los em troços e saltear em azeite; com o lume desligado acrescentar manteiga, limão, pimenta preta, flor de sal e lascas de parmesão. Se cozinhados no tempo certo, ficavam crocantes, o interior tenro e sumarento, notas verdes e doces — uma das grandes maravilhas vegetarianas de sempre.
Quando os comprar no comércio, a primeira coisa que deve ter em atenção são as pontas. Nunca compre espargos com as pontas pisadas. É sempre por aí que eles apodrecem. De resto, escolha os que têm a pele mais uniforme.
Os meus preferidos, com mais sabor, mais doces, são os espargos verdes. Mas há quem aprecie os brancos, uma variedade privada de clorofila pela ausência de contacto com o sol, popular em Itália, na Holanda e na Alemanha. Os verdes de cultivo devem ser cortados pela base, muito rija, mas não a descarte: pode sempre fazer um caldo de legumes para entrar num arroz ou numa sopa. Se pelar a metade inferior, mais fibrosa e dura, com um descascador de vegetais, não terá qualquer problema. No caso dos espargos selvagens, que se encontram à venda na beira das estradas, sobretudo no Alentejo, o truque é dobrá-los com uma mão em cada ponta. O sítio por onde partirem separa a parte tenra da parte fibrosa.
Para terminar, uma nota escatológica: se notar um cheiro estranho na urina depois de comer espargos, não estranhe. Resulta da metabolização de um composto e só é detectado em algumas pessoas. No limite, significa que anda a comer bem.
O Rei tem nova carta

“Mais do que Rei dos Leitões, queremos ser reis da gastronomia”. Foi assim que o Chef Carlos Fernandes introduziu a apresentação dos novos pratos do menu para a Primavera. O restaurante da Mealhada, gerido pelos proprietários Licínia Ferreira e Paulo Rodrigues, onde a procura por novos produtos de qualidade é incessante, tem agora um menu […]
“Mais do que Rei dos Leitões, queremos ser reis da gastronomia”. Foi assim que o Chef Carlos Fernandes introduziu a apresentação dos novos pratos do menu para a Primavera. O restaurante da Mealhada, gerido pelos proprietários Licínia Ferreira e Paulo Rodrigues, onde a procura por novos produtos de qualidade é incessante, tem agora um menu renovado com pratos que combinam o requinte com a descontração da estação amena.

Para entrada, as novidades são três e todas remetem para o mar: caviar sobre percebes com salicórnia (da ria de Aveiro) e aipo; uma elegante exposição de vieira com abacate, ouriços e cebolinho; e carabineiro com abóbora, rabanete e manjericão. No que ao peixe diz respeito, entra rodovalho acompanhado de lingueirão, tomate e hortelã da ribeira; bacalhau com favas, azeitonas e coentros; e robalo da costa aveirense, numa visão verde composta por agrião, creme de cherovia (ou pastinaca) e rúcula. Para ferrar bem o dente, mas com classe, surge cabrito com broa, alecrim e maçã bravo de Esmolfe; o real leitão com puré de laranja, cenourinhas e sob trufa negra raspada no momento; e pato que se junta a foie gras, cenoura e baunilha. E como o bom garfo também não dispensa queijos e doces, surge uma tríade dos primeiros com compota de abóbora, tomilho e “neve” de gengibre a cobrir; a alentejana sericaia com ameixa, amêndoa e hortelã; e Morgado do Bussaco na combinação clássica com nozes e mel, modernizado com lima Kaffir. As sobremesas são da autoria da chef de pastelaria Lídia Ribeiro.


A premiada Adega do Rei, que conta já com cerca de 3000 referências de vinho, é a fonte para as harmonizações sugeridas pelo chefe de sala Fernando Ruas. Com tanta variedade gastronómica e vínica, é seguro dizer que a única dificuldade é escolher…
Três lanças portuguesas em Espanha

Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de ataque numa tasca de Lisboa, […]
Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de ataque numa tasca de Lisboa, para fazer memória futura e dar conta do estado (de graça) da cozinha portuguesa.
TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga e cortesia Madrid Fusión
JUNTAR três chefs com estrelas Michelin é mais difícil do que sentar à mesma mesa Donald Trump, King-Jong-un e o Papa Francisco. Mas, ao fim de umas semanas de intensas trocas de emails, aconteceu. O lugar do encontro foi a Casa Cid, uma antiga tasca do Cais do Sodré, em Lisboa, onde se come peixe frito e torresmos, e que há décadas dá abrigo a noctívagos esfaimados às cinco da manhã. Sinal dos tempos, já instalados, uma perfuradora fez-se ouvir — “Vão construir aqui um hotel”, disse o tasqueiro — e tivemos de nos mudar para o café Tati, mesmo ali ao lado. Ligado o gravador, a conversa correu livre, deixando claro que os três chefs actuam como um bloco — e querem continuar a conquistar mundo, em nome da cozinha de Portugal.
GRANDES ESCOLHAS – Tentei saber como vos correu o Madrid Fusión, mas não consegui encontrar informação.
ALEXANDRE SILVA – A verdade é que não houve imprensa portuguesa lá.
HENRIQUE SÁ PESSOA – Alguma imprensa especializada relatou o facto de nós irmos à conferência, antes. Só isso.
Porque é que acham que isso aconteceu? Terá a ver com a crise dos media, sobretudo da imprensa escrita?
AS – Acho que se arranjam sempre desculpas para tudo.
JOÃO RODRIGUES – A única coisa que é estranha é haver tanta gente a querer debater a cozinha portuguesa e a querer pôr o dedo na ferida mas, depois, quando vamos para um palco grande parece que, de repente, há um desinteresse generalizado. Ou então há outras razões que desconhecemos ou os jornalistas não são convidados.
AS – Acho que o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal podiam ter dado apoios.
JR – Mas será que foram pedidos?
AS – Provavelmente não foram. Os portugueses acham que são os maiores e que é tudo muito bonito. A verdade é que podíamos ser mesmo os maiores. O problema é que só três ou quatro é que querem fazer e os outros ficam encostados.
JR – Fala-se num movimento nacional, mas para haver esse movimento nacional tem toda a gente de remar para o mesmo lado nos diferentes quadrantes.
Podemos então começar por tentar relatar o que aconteceu no Madrid Fusión. Vocês ocuparam uma manhã do palco principal, certo?
HSP – Sim. Nós quisemos ir para o palco os três ao mesmo tempo. Era importante passarmos a mensagem de que estávamos os três juntos. Não era a apresentação do João, do Alexandre e do Henrique.
JR – A ideia era que a soma das partes fizesse um conjunto. Cada um tinha a sua maneira de ver a cozinha, mas estava ali subjacente a cidade de Lisboa.
Foi um acaso terem os três feito demonstrações de receitas de peixe?
HSP – Era esse o briefing. O tema era a cozinha atlântica de Lisboa.
AS – Mas mesmo que não tivesse sido, provavelmente tínhamos feito o mesmo.
João, como correu a tua apresentação?
JR – A pessoa que era para falar antes de nós não pôde vir e, portanto, tivemos muito mais tempo do que era suposto. Isso não foi bom.
AS – Às tantas, parecia uma telenovela da TVI. Foi encher chouriços, encher chouriços.
JR – Eu cumpri o meu tempo, o Alexandre e o Henrique é que ficaram…
Sobrou para vocês…
[risos]
JR – Sim, principalmente para o Henrique.
HSP – Os gajos vieram ter comigo a pedir para estender por mais 15 minutos. Eu disse-lhes: “Só tenho um prato…” Acho que podíamos ter feito muito melhor se não tivesse acontecido este constrangimento.
Vocês, hoje, para além de chefs, têm de ser performers, oradores. Gostam disso?
AS – Tens que vender a tua cena.
JR – O músico também vai tocar no palco. Não toca só em casa, nem faz só discos.
HSP – A questão do palco intimida. Mas quando estás a falar de uma coisa em que estás à vontade é mais fácil. Qualquer um de nós já fez isto várias vezes.
JR – As apresentações são óptimas para tu explicares o que está por trás do teu trabalho diário. Podemos discutir se hoje a cozinha chegou a este ponto, em que os chefs já pensam e não fazem só bifes… Mas isso seria uma conversa longa. [Risos]
E como foram as reacções?
HSP – Dadas as condições, as reacções foram positivas.
Às vezes, parece que Espanha ofusca Portugal, como se Portugal fosse uma sub-região gastronómica de Espanha. A polémica de a jaleca entregue aos chefs portugueses que ganharam a estrela Michelin, no ano passado, vir com a inscrição “La Guia”, em espanhol, foi, para algumas pessoas, o último episódio revelador disso. Como vêem esta relação entre os dois países?
HSP – Eles nunca olharam para nós. Mas ultimamente já nos vêem com alguma admiração.
JR – Isso só vai acontecer de facto quando nós não nos preocuparmos com isso. Nós é que levamos isso a sério. Eles têm cinco vezes o nosso tamanho, são mais ricos. É óbvio que estamos ao lado deles e passamos despercebidos.
AS – Mas não podes sentir que és o enteado. Nós temos pai e mãe.
HSP – Temos um complexo de inferioridade, mas não devíamos.
E isso não passa também por se bater o pé em coisas simbólicas, como esta da jaleca?
JR – Não sei. Aquilo é feito em Madrid.
HSP – Imagina que um dia fazemos cá a cerimónia de apresentação do Guia Michelin da Península Ibérica. Se calhar, nessa altura, em vez de dizer “La Guia” diz “Guia”.
JR – Mas porque é que ainda não aconteceu em Lisboa? Quem é que não se quer chegar à frente?
HSP – Aquilo é um negócio. E todos os anos o governo espanhol paga para que a cerimónia do Guia Michelin seja em Espanha. Qualquer candidatura que entra, paga. Nós não temos estrutura nem dinheiro para pagar.
AS – É exactamente assim.
JR – A ideia é olharmos para nós. Deixarmos de ter modelos. Há dez anos os restaurantes com estrelas Michelin eram todos iguais. Hoje já começas a ter restaurantes muito diferentes, como são os nossos três restaurantes. Quando começas a ter uma cultura própria, os outros começam a olhar para ti.
O que é que identifica os vossos restaurantes?
HSP – A ideia de que o nosso produto é o melhor do mundo é falsa. Temos um produto que é muito bom. Mas em Espanha também há, na Tailândia e em França também há. O que realmente é interessante na cozinha em Portugal, e em Lisboa em particular, é as cozinhas serem diferentes umas das outras. Em Espanha, ficaram com um vazio. O El Bulì ditava as tendências, havia ali uma enciclopédia, uma base de dados, que era lançada todos os anos e servia de orientação. Isso não existiu nem existe em Portugal. E isso é que é diferenciador.
AS – Isso é bom.
HSP – Vais ao restaurante do João, do Alexandre ou ao meu e tens experiências completamente diferentes. Podes gostar muito de um ou outro, mas é inegável a qualidade em todos os espaços e isso não acontecia há uns anos.
JR – Numa tertúlia recente, alguém disse que era impossível haver um restaurante de referência mundial português que não fizesse cozinha portuguesa tradicional. E eu perguntei a essa pessoa se ela reconhecia o Ferran Adrià como uma referência da cozinha espanhola. E se ele fazia cozinha espanhola tradicional.
HSP – Tens outro caso em Espanha, o David Muñoz, três estrelas Michelin [faz uma cozinha de fusão, com muitas influências asiáticas].
JR – Cá, se calhar, era morto.
Acham que a imprensa portuguesa é agressiva relativamente aos chefs?
AS – Eu pessoalmente estou farto de ser criticado. Mas a verdade é que o restaurante é meu. Eu faço aquilo que eu quero, pago às minhas equipas, pago aos meus fornecedores. Na verdade, estou-me a borrifar para aquilo que as outras pessoas pensam. Mas custa-me muito quando lá vai uma pessoa jantar e depois escreve umas linhas e nem sequer sabe muito bem o que está a dizer e nós temos de engolir e as outras pessoas que também não sabem o que se passa também engolem. Ficamos todos a perder.
Mas isso não é a democracia a acontecer?
HSP – A questão é que já não existe imprensa.
JR – A qualidade técnica no jornalismo perdeu-se em detrimento de uma preocupação de imagem. Hoje em dia, toda a gente está mais preocupada com a estética e com a rapidez com que se comunica, com que se faz e se desfaz, do que propriamente com saber o conteúdo e a dimensão técnica da coisa. Isso define muito o meio gastronómico hoje em dia. Muitas das pessoas apareceram do nada e rapidamente chegaram ao topo porque têm uma boa base de imagem e uma boa base de comunicação. E muito pouco conhecimento técnico.
Vocês olham para as críticas do Zomato, por exemplo?
HSP – Eu não. Mas os nossos sócios, colaboradores, clientes, vêem.
JR – A última avaliação que tive no Zomato era uma pessoa que descrevia que o tio tinha tido morrido engasgado no restaurante. E isso não aconteceu. Escrevemos para a Zomato a alertar e acabou por ser retirado.
HSP – Isso é uma piada de muito mau gosto.
AS – E afecta o restaurante.
Mudando de assunto. Quando viajam lá para fora como é que vêem o que se está a fazer cá dentro?
AS – Quando viajo agrada-me ver que nós estamos muito bem.
HSP – É verdade. Agora. Há uns anos não era assim.
AS – Falta a parte do Governo, da imprensa, apoiarem-nos. Parece que nós nunca conseguimos arrancar.
O que é preciso para isso, em concreto?
AS – É preciso que o resto do mundo reconheça que nós somos bons. Que saibam que em Portugal há arte, há técnica, que conheçam as cozinhas regionais que nós temos no nosso país e que os outros países muito dificilmente conseguem ter.
HSP – A par da Itália nós somos o país que tem mais regionalidade.
AS – E temos uma margem enorme de progressão.
Como é que essa promoção pode ser feita? Passa por continuar a trazer jornalistas estrangeiros a Portugal?
JR – Acho que nós trabalhamos mais isso de trazer gente cá, individualmente. Mas tem havido iniciativas [do Governo], sim. Mas acho também que da parte dos empresários e dos privados falta essa noção do que nós queremos fazer. O dono do negócio pensa de forma conservadora, pensa no volume, para reaver rapidamente o investimento. E nunca se pensa em fórmulas para se conseguir um bocadinho de tudo: reaver o investimento e criar algo que de alguma forma possa servir de âncora para tudo o resto. O José Avillez tem feito isso muitíssimo bem.
HSP – Até há uns anos viajava e sentia um desnível enorme. Numa viagem recente a Nova Iorque, fui a cinco ou seis restaurantes e senti exactamente o contrário. O que nós estamos a fazer está ao mesmo nível. A única coisa que senti foi que nós evoluímos em quase todas as áreas, mas no serviço continua a haver limitações.
O que é que é um bom serviço para vocês?
AS – Um bom serviço é aquele que, no final, tu queres pensar no assunto e não consegues porque não o sentiste. Isso para mim é um bom serviço. O Loco é um caso diferente. Estamos sempre a abordar o cliente. Já fomos criticados por isso, porque interrompemos demasiadas vezes o cliente. Mas para mim é ter pessoas competentes, que saibam aquilo que estão a dizer. Encontras colaboradores que te estão a pregar uma grande peta em vez de serem sérios naquilo que fazem.
Há falta de recursos nesta área?
HSP – O problema é que toda a gente vê o serviço de sala como um trabalho temporário.
AS – E é mal pago.
JR – Acho que é muito mal pago.
HSP – Mas, João, é mais mal pago do que noutros sectores? Um empregado de mesa do Alma, com 22, 23 anos, ganha 1100 euros líquidos por mês, entre ordenado e gratificação.
Tens muitos turistas no Alma. O que é que os surpreende mais, no final da refeição?
HSP – Acho que somos uma caixinha de surpresas para eles. Eles pensam que estão no terceiro mundo e de repente ficam impressionados. “Mas vocês têm menus de degustação! Esta decoração!”
AS – Dizem-nos: “Este restaurante podia estar em Nova Iorque, em Londres.”
HSP – Quando entrei no programa do Anthony Bourdain em Lisboa, há uns anos, fiquei bastante desiludido quando vi o resultado final. Passou a imagem de que nós éramos um país que ainda não tinha saído do 25 de Abril. E agora vês o programa do Phil Rosenthal [episódio sobre a gastronomia de Lisboa, da série da Netflix] e até é um bocado exagerado. Tudo é incrível em Lisboa, Lisboa é espectacular! Mas prefiro essa mensagem à mensagem do coitadinho e do fado e das lágrimas e Salazar.