Falua: Celebrando três décadas

Falua

O Tejo, todos sabemos, tem paisagem variada e sempre, de uma forma ou outra, moldada pelo rio que lhe dá, não só o nome mas também a originalidade e o carácter. E para os que estão menos recordados do facto, a apresentação da Falua, empresa sediada em Almeirim, não podia ter tido o seu início […]

O Tejo, todos sabemos, tem paisagem variada e sempre, de uma forma ou outra, moldada pelo rio que lhe dá, não só o nome mas também a originalidade e o carácter. E para os que estão menos recordados do facto, a apresentação da Falua, empresa sediada em Almeirim, não podia ter tido o seu início em melhor local – a vinha do Convento -, uma parcela assente em solo de calhau rolado que nos lembra que há 400.000 anos estas terras faziam parte do leito do rio. E quem olhar desprevenido para esta vinha em que, no solo, só se vêem calhaus rolados, quase não acredita que seja possível aqui nascer alguma planta. Esta paisagem existe noutros locais do mundo, mas, em Portugal, só no Tejo se encontra uma área desta dimensão. A vinha do Convento começou por ter 15 há. Após a compra pelo Grupo Roullier, em 2017, plantaram-se mais 30 ha em 2019 e, como nos disse Antonina Barbosa, enóloga e gestora de todos os projectos relacionados com o vinho que o grupo tem em Portugal, a área de vinha irá ser alargada com mais 30 ha. Como reserva, a empresa ainda dispõe de mais 85 ha de terra em zona contígua.

O calhau rolado em terrenos muito pobres, e de fraca retenção de água (como é o caso), funciona como regulador de temperatura e obriga a planta a um sistema radicular mais longo, com evidentes benefícios em termos de complexidade. E, segundo nos confirmou, “esta originalidade é válida não só para tintos como também para brancos. Já o Fernão Pires que daqui sai é bem diferente dos que têm origem noutras zonas do Tejo”.

Desta forma, o mais natural é as celebrações terem começado na vinha onde, ao som do fado e dos petiscos preparados no local pelo Chefe Rodrigo Castelo, do Taberna ao Balcão (1 estrela Michelin, em Santarém), o grupo se inteirou das outras novidades, também apresentadas.

Um dos vinhos icónicos da Falua sempre foi o Conde Vimioso Reserva que, desde a colheita de 2000, é tributário da vinha do Convento. A estrela da noite comemorativa e o vinho mais aguardado era, sem dúvida, o tinto Conde Vimioso, edição que comemora os 30 anos da Falua. O vinho teve origem na colheita de 2005 e, após dois anos de barrica, estagiou 17 anos em garrafa. Foi elaborado com todas as castas da vinha do Convento: Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon, Aragonês e Trincadeira Preta, fermentadas e estagiadas em separado. O lote foi feito antes do engarrafamento e produziram-se 1877 garrafas magnum. Ainda segundo Antonina Barbosa, “este é um vinho que se confunde com a história da empresa, é um pedaço da história daquela vinha. Tirámos partido da enorme qualidade do vinho da colheita de 2005 e mantivemos estas garrafas guardadas à espera do momento certo. É agora!”

O grupo Roullier tem presença em inúmeros países e o departamento de vinhos em Portugal iniciou-se com a compra da Falua, a que se seguiu a aquisição da Quinta do Hospital em Monção, as quintas de Mourão e S. José, no Douro. Rui Rosa, administrador em Portugal, recordou que o Grupo Roullier está em Portugal desde 1994, por coincidência o mesmo ano da criação da Falua e que, além dos investimentos acima descritos, a empresa irá dar ao início do plantio de 36 ha de vinha em Vila Verde (região dos Vinhos Verdes). Ao todo, a Falua gere 300 ha de vinhas com mercados dispersos por 30 países.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2025)

Herdade da Cardeira: Uma revelação confirmada

Herdade da Cardeira

É impossível ficar indiferente à paixão com que Thomas Meier se refere a tudo o que acontece no projeto Herdade da Cardeira, localizado em Borba, que fundou em 2010 com a sua mulher, Erika. Fala-nos dos 100 hectares de terra, e detalha todos os respetivos cantos, descreve-nos com rigor a adega e pormenoriza os 21ha […]

É impossível ficar indiferente à paixão com que Thomas Meier se refere a tudo o que acontece no projeto Herdade da Cardeira, localizado em Borba, que fundou em 2010 com a sua mulher, Erika. Fala-nos dos 100 hectares de terra, e detalha todos os respetivos cantos, descreve-nos com rigor a adega e pormenoriza os 21ha de vinha. Individualiza cada casta, as nacionais e as estrangeiras, e lembra-nos que esteve quase para arrancar a Tinta Caiada, mas, agora, entende que pode vir a ser essencial na produção de vinhos com frescura e, sobretudo, carácter alentejano. É, em suma, o atual projeto de vida de um advogado suíço que já dedicou, no passado, a sua vida à tributação internacional. Agora, mais do que reestruturações financeiras e planeamento fiscal, pretende confecionar tudo o que a terra pode materializar. Coisas palpáveis, diz-nos, é o que mais pretende retirar da sua propriedade.

A conversa com Thomas é cordial, mas feita com precisão helvética. Relembra-nos que a produção com a marca da casa iniciou-se em 2016, já com Filipe Ladeiras como enólogo residente e Paulo Laureano como consultor e diretor. Diz-nos que, atualmente, são um pouco mais de 50 mil garrafas por ano, vendidas para os países cujos mercados melhor Thomas e Erika conhecem, como é o caso da Suíça e Luxemburgo. Mais recente, é a distribuição em Portugal que é, todavia, assumida como uma das prioridades para os próximos anos.

 

O objetivo de Thomas e Erika é só um: fazer mais e melhor a partir da sua terra.

Retorno emotivo

Mas voltemos à propriedade que fica situada em Borba, mais concretamente na freguesia de Orada. Para quem conhece a zona, falamos de uma extensão de terra a 400 metros de altitude, virada a norte, defronte da Serra de São Mamede, com a Serra de Ossa a sul. A sua localização e altitude explicam o vento e nevoeiro matinais, e os solos argilosos com muita influência calcária garantem vinhos com boa acidez.

A produção está em velocidade de cruzeiro, e a crítica tem sido uma grande surpresa. Vencedor, ex-aequo, do Prémio Revelação em 2023, viu, recentemente, o seu Verdelho da colheita de 2022 ganhar o destaque de melhor branco no prémio Escolha da Imprensa. O objetivo de Thomas e Erika é só um: fazer mais e melhor a partir da sua terra. Independentemente dos resultados financeiros, ambicionam um retorno emotivo, dizem-nos com convicção. Pois bem, provados os seus mais recentes vinhos tintos, e um espumante, e a julgar pela emoção que todos são capazes de provocar, temos a certeza de Thomas e Erika estão no caminho certo.

Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Artigo publicado na edição de Janeiro de 2025

Fita Preta: Os (muitos) Alentejos de António Maçanita

Fita Preta

É costume dizer-se que o Alentejo é uma região vitivinícola recente. Mas, na realidade, existem zonas nesta região onde a produção de vinho se iniciou há muitos séculos, que entraram nos anais da história como os melhores à época. No fundo, “no Alentejo o local onde se plantava a vinha não era diferente do local […]

É costume dizer-se que o Alentejo é uma região vitivinícola recente. Mas, na realidade, existem zonas nesta região onde a produção de vinho se iniciou há muitos séculos, que entraram nos anais da história como os melhores à época. No fundo, “no Alentejo o local onde se plantava a vinha não era diferente do local onde se vivia – tinha de haver água” – constata o enólogo e produtor António Maçanita, baseando-se nas referências que se encontram nos registos históricos relativos à ribeira da Peramanca e a Enxarrama (do rio Xarrama), nas proximidades de Évora.

 

Fita Preta

 

Pesquisas históricas revelaram que as terras do Paço Morgado de Oliveira incluíam a zona vinícola do Louredo, onde se produzia vinho desde finais do século XIII

 

Regresso às origens

 

O seu primeiro contacto com o Alentejo foi em 2004, quando fundou a Fitapreta Vinhos com David Booth. “Cheguei ao Alentejo contemporâneo, com proliferação de Aragonez, Alicante Bouschet, Syrah, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional… E os primeiros vinhos reflectiram isto. Em 2008 excomunguei o Cabernet Sauvignon e, em 2011, a Touriga Nacional”, conta o produtor. Em 2018 descobriu a vinha Chão dos Eremitas no sopé sul da Serra d’Ossa, plantada nos anos 1969-70 numa espécie de field-blend organizado, ou seja, com várias castas, mas não misturadas. A disponibilidade de água neste sítio é assegurada pelos dois riachos, que trazem as águas das chuvas da Serra D’Ossa, mantendo o nível freático alto e permitindo viticultura de sequeiro.

 

Nesta vinha, António surpreendeu-se com as castas quase desaparecidas hoje, mas que em tempos dominaram a região: Tinta Carvalha, Moreto, Alicante Branco e Trincadeira das Pratas (conhecida no Alentejo como Tamarez), entre outras. Iniciou-se o regresso às origens, ao Alentejo perdido, com pureza, potência e frescura. O branco Os Paulistas do Chão dos Eremitas, um blend de Alicante Branco, Roupeiro, Tamarez e Rabo de Ovelha e os monovarietais tintos provenientes da mesma vinha transparecem este Alentejo genuíno e multifacetado.  

 

Em 2016, com a aquisição do Paço do Morgado de Oliveira, propriedade medieval do século XIV situada a 10 km a sul de Évora, a mente exploradora de António Maçanita encontrou novos estímulos para um levantamento aprofundado das suas origens. Em paralelo com os trabalhos de recuperação do edifício, o produtor envolveu cinco historiadores para investigar o contexto e o desenvolvimento histórico  deste que é o maior paço rural gótico ainda preservado no país. À medida que se iam despindo várias camadas das paredes, revelavam-se verdadeiros tesouros do passado, como uma pintura mural de São Cristóvão na capela-mor, datada de 1567, além de portas e janelas medievais escondidas sob reconstruções e “embelezamentos” de outras épocas.

 

Em 2018 António Naçanita descobriu a vinha Chão dos Eremitas no sopé sul da Serra d’Ossa, plantada nos anos 1969-70 numa espécie de field-blend organizado.

 

Recriando o Enxarrama

 

É preciso ser António Maçanita para conseguir meter uma adega com cubas e barricas dentro desta estrutura monumental. Mas a ideia não foi assim tão disparatada, afinal aqui já se fazia vinho, e era bom! Na actual sala de barricas existe uma antiga lagareta vinária de pedra, com o chamado calcatorium, onde as uvas eram esmagadas com os pés.

 

Pesquisas históricas revelaram que as terras do Paço Morgado de Oliveira incluíam uma zona vinícola do Louredo, outrora muito afamada, onde se produzia vinho desde finais do século XIII. O mais procurado era o Enxarrama, das vinhas plantadas perto do rio chamado hoje Xarrama. Até os mercadores de fora do país vinham comprar este vinho a Évora. Em 1485, D. João II teve de estabelecer um decreto para que a população local não molestasse os mercadores franceses e bretões. Em 1816, o negociante, enólogo e escritor francês, André Jullien, que viajou pelo mundo para elaborar a sua obra “Topografia de todas as vinhas conhecidas”, escreveu, em relação a Enxarrama, que “os vinhos são de muita fama, sabe-se da sua qualidade, mas mal dão para abastecer a população”, citou António Maçanita. Mais tarde, em 1867, o agrónomo e investigador Ferreira Lapa escreveu: De todos os vinhos de Évora, o Enxarrama é o mais apreciado e obtém o melhor preço em Lisboa (…) ele é, mais que nenhum outro de Évora, procurado para a venda a retalho nos armazéns de Lisboa.”

 

Todo este contexto foi mais do que suficiente para António interiorizar a ideia, aliando-a ao vinho que tinha guardado dos anos anteriores. “Entendi que podia ser qualquer coisa acima do que eu tenho feito até agora”. Aqui temos dominante o Alicante Bouschet, com 85%, e também Aragonez, Trincadeira, Castelão e Moreto. O estágio, que soma 10 anos no total, decorreu em barricas de 228 litros durante 36 meses, mais 12 meses em cubas de 500 litros e, por fim, seis anos em garrafa.

 

Não sabendo como era o Enxarrama de antigamente em termos de castas e vinificação, a nota de prova feita, por Ferreira Lapa, em 1867, serviu de pedra basilar para assegurar o perfil. “O vinho do Enxarrama é bastante tinto e encorpado, crystallino, cheiro tartoso, e não suave, de sabor quente e macio, com travo (…) bem pronunciado. Não é um vinho alcoólico, nem aromático, é um vinho forte e bastão, que bem por causa do seu tanino pode tolerar o seu volume em álcool.” É praticamente o que encontrámos no copo. Assim nasceu o primeiro Enxarrama da actualidade. Foram produzidas 1218 garrafas.

 

Ao mesmo tempo foi apresentado um grande branco, feito 100% de Arinto de produção biológica, plantado em 2017 em sequeiro na vinha do Morgado de Oliveira. De vindima manual nocturna, com prensagem direta sem esmagamento, fermentação alcoólica e maloláctica espontâneas em barricas. Estágio 15 meses em borra fina, sem battonage, em barricas de carvalho francês. Foram produzidas 1919 garrafas.

Assim são as diferentes faces do Alentejo, interpretadas por António Maçanita. Os vinhos Chão dos Eremitas são de vinha, “vinhos arqueológicos” como o produtor os apelidou, precisos e genuínos. O Morgado de Oliveira é o vinho de casta, que eleva o Arinto (que é uma grande casta portuguesa, sem dúvida alguma) a um patamar excepcional. Por sua vez, o Enxarrama é um vinho de conceito, inspirado pela história do lugar, sendo praticamente uma homenagem à região.

(Artigo publicado na edição de janeiro de 2025)

Prémios Grandes Escolhas «Os Melhores do Ano» hoje em directo

Hoje, 7 de Março, a partir do Centro de Congressos do Estoril e com transmissão em streaming aqui no site e nas plataformas digitais, que se realiza a sempre tão aguardada cerimónia do anúncio dos prémios da Grandes Escolhas. Como habitualmente, prevê-se que centenas de convidados possam assistir ao vivo o anuncio das escolhas da […]

Como habitualmente, prevê-se que centenas de convidados possam assistir ao vivo o anuncio das escolhas da redacção da revista Grandes Escolhas dos vinhos e das personalidades, empresas, instituições e profissionais da área dos vinhos e da gastronomia em Portugal. No que se refere aos vinhos, a grande espectativa é mais uma vez revelar o Top 30, aqueles que o conjunto de provadores e críticos da Grandes Escolhas consideram serem os 30 melhores vinhos absolutos provados durante o ano 2024, e dentro destes, qual o melhor espumante, o melhor vinho branco, rosé, tinto e fortificado. Ainda nos vinhos são também anunciados os melhores em cada região, aquilo que a revista designa como “Os Melhores de Portugal”.

Consulte AQUI toda a informação sobre a cerimónia.

Já no que se refere aos Troféus Grandes Escolhas, serão anunciados no final do jantar os 20 Prémios Especiais, cobrindo as áreas da viticultura, da enologia, da performance dos produtores e das empresas, com assim como sommeliers e restaurantes. Em qualquer destes domínios a equipa da Grandes Escolhas escolhe por consenso os premiados que mais se distinguiram no ano transacto nas seguintes categorias:

Produtor Revelação

Produtor

Cooperativa

Empresa

Empresa de Vinhos Generosos

Produtor Singularidade

Enólogo

Enólogo de Vinhos Generosos

Viticultura

Organização

Enoturismo

Garrafeira

Loja Gourmet

Wine Bar

Restaurante

Restaurante Cozinha Tradicional

Restaurante Cozinha do Mundo

Sommelier

Premio Gastronomia David Lopes Ramos

Senhor/a do Vinho

 

Toda a cerimonia vai poder ser seguida por transmissão em directo através do site e das plataformas digitais.

 

Espumantes Rosé: Bolhas em tons rosa

Espumantes

Novidade, notícia, atenção: este é o primeiro texto com uma seleção exclusivamente dedicada a espumantes rosés portugueses na nossa revista! E os resultados são, no mínimo, excelentes! De tal forma se deram tão bem em prova, que cabe interrogar-nos porque razão não fizemos antes este tipo de seleção? Em primeiro lugar há que dizer que […]

Novidade, notícia, atenção: este é o primeiro texto com uma seleção exclusivamente dedicada a espumantes rosés portugueses na nossa revista! E os resultados são, no mínimo, excelentes! De tal forma se deram tão bem em prova, que cabe interrogar-nos porque razão não fizemos antes este tipo de seleção? Em primeiro lugar há que dizer que provamos muitos espumantes rosés ao longo do ano. Simplesmente não sintetizamos essa prova num único texto. O mesmo se poderá dizer, claro está, quanto a outro tipo muito específico de vinho, do Vinho de Talha ao Porto LBV, que podem merecer tantas vezes uma seleção à parte, mas, por regra, saem mais dispersamente ao longo de várias edições.

Depois, talvez seja melhor colocar já o dedo na ferida, e apesar dos excelentes exemplares nacionais, todos nós – consumidores, vendedores, críticos e produtores – não andamos a prestar a atenção devida à categoria dos rosés espumantes. Salve-nos, a esse respeito, não ser uma falha exclusivamente nossa, uma vez que em Champagne – pináculo da produção de vinhos espumantes – só muito tempo depois do monge Dom Pérignon aprender a controlar a segunda fermentação, é que se passou a valorizar a respetiva versão rosada. Hoje, ao invés, e dependendo das marcas, a versão rosé dos Champagnes (e em alguns Franciacorta italianos) pode ser mesmo mais exclusiva do que os brancos, em parte devido à sua muito menor produção, em parte por alguns exemplares serem absolutamente magníficos (com distribuição em Portugal recomendamos o mítico Cristal rosé, o gastronómico Gosset Grand Rosé e o sensual Billecart-Salmon rosé).

Uma questão de estilo

Como é evidente, um bom espumante rosé em nada fica atrás de um bom espumante branco (não nos referimos aqui aos tintos que deixamos para outra altura). É uma questão de estilo. Aliás, quando um dos melhores produtores de rosé em Portugal, a empresa bairradina Kompassus, quis iniciar-se em espumantes topos de gama, fê-lo em versão rosés, quer com Baga e Pinot Noir juntas, quer com cada uma das castas em estreme. E assim o é, desde logo, porque a partir de uma casta tinta se pode fazer espumante branco ou rosé. Com efeito, quanto à cor e perfil, e não querendo entrar em muitos detalhes, trata-se de uma opção de vinificação do produtor, sendo que uma uva tinta, dependendo da variedade, naturalmente, pode conduzir a um mosto mais claro do que uma uva branca. De resto, a carga fenólica de grande parte das uvas tintas com que se faz espumante é menor do que a das castas brancas (simplificando, esmagando uvas de Pinot Noir e de Chardonnay lado a lado, o mais provável é que o sumo desta última tenha mais cor do que o da primeira). Por isso, e como escrevíamos, a versão rosé depende da escolha na adega, nomeadamente no que respeita ao tempo de contacto do mosto com as películas da uva. Para os vinhos mais delicados utiliza-se apenas o mosto lágrima (tête de cuvée) utilizando-se o método de bica aberta sem contacto com as películas. Em Champagne pode-se utilizar este mesmo método para os rosés, com maior ou menor contacto com as películas, ou produzir espumantes brancos e tintos que são depois misturados. Não sendo este um método maioritário, contribui para alguns dos champanhes rosés com mais carácter.

Espumantes

Rosés de eleição

Mas voltemos à nossa premissa inicial. Não existe nenhum motivo para não eleger um espumante rosé quando nos apetece bolhas, seja a solo, de aperitivo, ou a acompanhar uma refeição. É verdade que a sua produção continua a ser residual face aos brancos, e é verdade que quem pretende um espumante centrado em notas de panificação, ou até com perfil mais cítrico ou floral, não pensa imediatamente numa bebida com tons rosados. E pode ser até que os espumantes rosés tenham herdado, por parte do público, algum do preconceito que existe em relação à generalidade dos vinhos rosés (preconceito que nos afigura estar a desvanecer). Em todo o caso, provando os vinhos, nas suas melhores versões (vários dos recomendados são topos de gama), é impossível ficar indiferente a uma sedução ligeiramente frutada que equilibra as notas fermentativas típicas de uma segunda fermentação e atenua os matizes mais barrocos provocados pela “reação de Maillard”.

Pois bem, quanto à nossa recomendação, não vale a pena guardar segredo e avancemos para a conclusão que já temos vindo a desvendar nos parágrafos anteriores: temos mais espumantes rosés de excelência em Portugal do que pensamos e, definitivamente, do que andamos a beber. Produto ainda valorizado para momentos festivos, acaba muitas vezes esquecido dentro do coffret (palavra francesa para a caixa decorativa em que os champagnes de edição limitada são comercializados) na dispensa. Todavia, e depois de provarmos muitos vinhos e de selecionarmos mais de uma dúzia, não temos dúvida em classificá-los como o melhor acompanhamento à mesa com uma piza (melhor ainda se for levemente picante), com almondegas ou outros pratos à base de carne picada, mas também, e noutro polo, com peixes secos e para maridagens com pratos exóticos (caril em especial). De preferência quando o espumante rosé é bruto natural como grande parte dos que aqui selecionámos, com uma mousse cremosa, cordão vivo e pressão média.

Há, pois, que valorizar os espumantes nacionais, incluindo os rosés, o que passa por compreender que produzir um espumante é muito mais difícil do que produzir um vinho tinto, por exemplo. Outra coisa que por vezes se esquece é que uma premissa base para um bom espumante é a qualidade das uvas que estão na sua génese. Devem ser uvas destinadas exclusivamente a espumante tendo em consideração o álcool provável, pH e acidez total. Uvas demasiado maduras contribuirão para espumantes com demasiado carácter varietal (o que não se pretende) pelo que se deve privilegiar regiões frias para a sua produção ou, nas menos frias, optar por uma vindima precoce. O vinho base para um espumante deve ter entre 10,5% e 11,5% de álcool, uma acidez total entre os 9 a 10 g/l e um pH preferencialmente abaixo dos três. Não espanta, assim, que a produção de espumante, espalhada por todo o território, se concentre em duas regiões onde não falta frescura: a atlântica Bairrada e a montanhosa Távora-Varosa. Na nossa seleção, os vinhos destas regiões puxaram dos pergaminhos (muito bem o  Baga-Bairrada da Aliança, que já produz 65.000 garrafas a um preço imbatível), seguidos por regiões de clima também temperado e húmido como Lisboa (sobretudo nos solos calcários) e os Vinhos Verdes. Mas terminamos como começámos, concluindo que em todo o nosso território se produzem grandes espumantes e também na versão rosé que em nada fica atrás da versão branca. Em alguns casos, bem pelo contrário!

 Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024)

 

 

Grande Prova: Tintos do Alentejo

grande prova alentejo

Se há região presente nos corações dos apreciadores de vinho em Portugal é o Alentejo. E não é só no nosso país, pois há mercados importantes como Brasil e Angola a elegerem a região do sul como a sua favorita. E mesmo aqui ao lado, na vizinha Espanha, já não é raro algum consumo de […]

Se há região presente nos corações dos apreciadores de vinho em Portugal é o Alentejo. E não é só no nosso país, pois há mercados importantes como Brasil e Angola a elegerem a região do sul como a sua favorita. E mesmo aqui ao lado, na vizinha Espanha, já não é raro algum consumo de vinhos alentejanos, sobretudo nos territórios mais próximos da fronteira. O Alentejo é, sem dúvida, uma região firme e regular no que respeita a escolhas dos consumidores.

Nas últimas três décadas, o Alentejo impôs-se graças a um estilo atrativo com produtos de grande qualidade e preços competitivos, tendo sido uma das primeiras regiões a modernizar-se, seja na replantação de vinha apta a produzir quantidade com qualidade, seja na apresentação acessível e excitante das garrafas ao consumidor. Com efeito, na década de 90 do século passado, enquanto outras regiões lusitanas faziam ensaios ou apresentavam os seus primeiros vinhos considerados modernos, já o Alentejo fidelizava clientes com vinhos e marcas irrepreensíveis como Esporão e Monte Velho, Alabastro e Quinta da Terrugem, Tapada de Coelheiros, Marquês de Borba, Cartuxa, Couteiro-Mor, Herdade Grande, ou Quinta do Carmo, sem esquecer o trabalho muito profissional que já se fazia na maioria das cooperativas. Longe da rusticidade, e de vinhos com fenóis típicos de décadas anteriores, os anos 90 colocaram o Alentejo no topo das escolhas dos enófilos que buscavam um perfil mais contemporâneo, em alguns casos até com inspiração internacional. A este respeito, a introdução de castas de fora da região teve a sua quota-parte de importância nesta ascensão, tanto mais que esse movimento teve, no Alentejo, mais sucesso que em qualquer outra região, com a chegada das Tourigas durienses, e das francesas Syrah e Cabernet Sauvignon (e, pouco depois, mas com menos expressão, de Petit Verdot e, mais residual ainda, de Petite Sirah), não por acaso chamadas de “castas melhoradoras”.

A igualmente “francesa adotada” Alicante Bouschet passou de exclusiva a meia dúzia de produtores (com destaque para Mouchão, Quinta do Carmo e Reynolds), para ser quase a segunda casta mais plantada na região, praticamente omnipresente nos encepamentos da planície, de tal forma que, ainda hoje, é difícil (muito difícil mesmo, com exceção do Pêra-Manca) encontrar um topo de gama alentejano sem a presença desta variedade. E tanto assim o é, que já todos consideramos o Alicante Bouschet como uma casta do Alentejo, e a prová-lo temos o impressionante número de 4.352 hectares ali plantados. A comandar esta tendência de vinhos modernos, com fruta límpida e madura, encontrávamos nomes de profissionais incontornáveis na região, produtores e enólogos, como João Portugal Ramos, Júlio Bastos, Paulo Laureano, Pedro Baptista, Luís Duarte e Rui Reguinga, entre outros. Com a entrada no novo milénio, marcas e empresas de sucesso como Malhadinha, Monte da Ravasqueira, Herdade dos Grous, Tiago Cabaço, Ervideira, Rocim, Fita Preta, Casa Relvas, entre muitas e muitas outras, solidificaram o pedestal alentejano junto dos consumidores.

MODERNO E CLÁSSICO

E, assim, chegámos à atualidade. Grande na dimensão territorial e nos seus quase 2000 viticultores e 250 produtores com produção declarada, o Alentejo produz hoje mais de 85 milhões de litros com certificação DO Alentejo e IG Alentejano, e ultrapassa os 120 milhões no total. Com uma produção média por hectare de 5200 litros, o Alentejo afirmou-se como um dos principais motores vitivinícolas no país, sem dúvida o mais aberto a tendências vindas de fora, sem esquecer a atenção à sustentabilidade graças a um eficaz sistema de gestão ambiental. Perante o cenário já descrito, constatamos que os últimos anos confirmam uma estabilidade notável, sentindo-se uma ligeira consolidação perante o aumento do número de grandes produtores (acima de um milhão de litros), o mesmo se sentindo no número de produtores com uma dimensão entre 100 e 200 hectares, que aumentou ligeiramente. Mas este Alentejo atual não é só números. É cada vez mais uma região cosmopolita, que tanto tem certificação de Vinho de Talha e produz vinhos das suas castas autóctones, como dispõe de produtores junto à costa com vinhos de Sauvignon Blanc, Riesling e Pinot Noir marcadamente atlânticos. É uma região que viu renascer o interesse pelo território e património vitícola da Serra de São Mamede e a valorização das vinhas de sequeiro, uma região que tem castas como Trincadeira e Moreto, mas onde também se produz vinho com Carignan e Grand Noir de cepas velhas. Tudo isto!

Quanto à prova verdadeiramente dita, comecemos pelos aspetos mais positivos que dela ressaltaram. Em primeiro lugar, a boa forma de todos os vinhos provados, daqueles com três anos em garrafa até aos com sete ou oito anos. Todos, sem exceção, encontram-se num bom momento de consumo. Aliás, cabe mesmo elogiar a longevidade dos vinhos provados, vários deles ainda jovens no copo, mesmo aqueles com 10 anos (caso do Segredo de Saturno) ou mais (Gloria Reynolds).
Se alguém ainda duvida da longevidade dos vinhos do Alentejo é porque não anda a provar seriamente os vinhos da região. A este respeito ainda, quero deixar um elogio aos produtores alentejanos que conseguem reter uma ou duas colheitas em casa, colocando os seus vinhos no mercado apenas quando o consideram próximo do seu melhor momento. Na nossa prova, encontrámos vinhos, lançados este ano de 2024, das colheitas de 2021 e 2020, alguns casos até de anos mais antigos. Ora, esta capacidade de retenção, quando se trata de uma decisão e não de uma consequência de stocks volumosos, é de aplaudir e deve servir de exemplo para outras regiões. Outra nota muito positiva para a boa qualidade geral das rolhas, com apenas um residual despiste de TCA.

ÁLCOOL A MODERAR

Quanto aos desafios para a região, a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre si. Vinhos intensos, exuberantes e capitosos, fantásticos na sedução, mas, em vários casos, parecidos uns com os outros. Numa região com sub-regiões tão diversas, e terroirs diversificados quanto à composição do solo e à altitude, e à proximidade do oceano, seria positivo encontrar mais registos e registos mais diversificados. É verdade que, tal como aconteceu com a prova dos topos de Lisboa na edição de outubro, ou na do Douro, na edição de novembro, os topos de gama tendem a uma uniformização no que respeita ao ponto de maturação fenólica e ao uso de barrica, mas, mesmo assim, teríamos preferido encontrar perfis mais espontâneos e singulares.

Vários dos vinhos mais bem pontuados foram precisamente aqueles que, dentro da extrema qualidade, conseguiram revelar maior originalidade, por resultarem de vinhas muito particulares (Vinha da Micaela e Chão dos Ermitas) ou por representarem um estilo quase único (Reynolds e Marquês de Borba Reserva). E, por fim, um outro ponto sensível ao qual, todavia, não queremos fugir: o grau alcoólico dos vinhos provados. Que fique bem claro que não temos nenhum problema com um vinho com 15 ou 15,5% de álcool, se isso for fruto de um ano especificamente quente ou de maior concentração. Não é esse o tema… O tema é, sim, que em quase 40 vinhos provados, de muitas colheitas e terroirs, diferentes (do Alto ao Baixo Alentejo, Este e Oeste), mais de 15 (ou seja, quase metade) contêm álcool superior a 15% vol. e, alguns deles, acima de 16%. Uma vez mais, não critico o nível do álcool nos vinhos. Mas é de difícil sustentação que, em parte desses vinhos, a partir de 15,5% esse álcool não se sinta em prova. O facto de o Alentejo ser uma região maioritariamente quente faz, em alguns casos, que o álcool se sinta com maior acutilância (utilizemos Espanha como exemplo: é manifestamente diferente provar um Bierzo ou Sierra de Gredos com 14,5%, do que provar um Priorat ou Penedés com a mesma graduação).

Por outras palavras, sendo o Alentejo um território com temperaturas elevadas, sobretudo no Verão, com vinhos de grande entrega e poderosos, o álcool pode ser tão atrativo como distrativo, e prejudicar até alguns mercados de exportação. A título de provocação (positiva), veja-se que, na prova dos topos de gama do Douro da última edição (novembro), a média de álcool era sensivelmente 1% mais baixa do que a desta prova que realizamos. Há cinco anos essa diferença não existia.

Tudo isto para deixar uma mensagem de grande otimismo. É precisamente nos momentos de sucesso e consolidação que se deve preparar o futuro e enfrentar desafios, grande parte deles não exclusivos de uma ou outra região. No que ao Alentejo diz respeito, tem tudo para continuar a triunfar: terrenos com tradição de vinha, castas únicas, vários produtores bravos e alguns visionários, enólogos talentosos, gastronomia e património ímpares.

Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024

 

Associação das Empresas de Vinho do Porto junta-se ViniPortugal

A Associação das Empresas de Vinho do Porto juntou-se recentemente à ViniPortugal, entidade responsável pela promoção internacional dos vinhos portugueses, segundo um comunicado desta última. “Vemos, com entusiasmo, a possibilidade de trabalharmos em conjunto, para continuarmos a construir um caminho de sucesso na internacionalização dos vinhos portugueses”, destaca o presidente da AEVP, António Filipe, a […]

A Associação das Empresas de Vinho do Porto juntou-se recentemente à ViniPortugal, entidade responsável pela promoção internacional dos vinhos portugueses, segundo um comunicado desta última.

“Vemos, com entusiasmo, a possibilidade de trabalharmos em conjunto, para continuarmos a construir um caminho de sucesso na internacionalização dos vinhos portugueses”, destaca o presidente da AEVP, António Filipe, a propósito. Já para Frederico Falcão, presidente da ViniPortugal, a entrada da Associação de Empresas de Vinho do Porto na ViniPortugal é “um passo que fortalece a união do sector” e dá origem a “uma colaboração que enriquecerá o trabalho conjunto, preparando-nos melhor para enfrentar os desafios futuros na promoção da excelência dos vinhos portugueses”.

A integração da AEVP representa o cumprimento de um desígnio antigo, agora formalizado, que permitirá potenciar esforços e recursos, assegurando uma comunicação mais coesa e eficaz do vinho português enquanto produto de excelência e tradição.

Harmonias: O fabuloso mundo dos azeites

Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. […]

Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. O tempo e o modo pedem azeite novo e em troca obtemos as maiores alegrias.

 

Das gorduras utilizadas pelo mundo na cozinha, o azeite é porventura a mais sofisticada, pelo simples facto de que intervém, com toda a sua personalidade, tanto no gosto como no aroma.

Não é uma gordura neutra e altera as suas características com o tempo, dois factores a ter em conta em qualquer utilização que se faça. Mas há mais. A cor do azeite não tem qualquer significado quanto a origem, qualidade ou acidez. Isto vale para os que vêem virtude nos azeites de uma certa cor, preterindo uns em relação a outros. É tanto assim quanto a prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer.

Outra falácia bastante comum é a presunção da acidez a partir da prova em boca. Um erro que se encontra muitas vezes entre os provadores de vinhos, referindo-se à acidez titulada em ácido tartárico ou sulfúrico. Acontece que a acidez do azeite se refere ao teor de ácido oleico, que o nosso sistema gustativo não consegue julgar. Há que não confundir com os amargos de certo azeite, que comunicam informação semelhante mas sem qualquer relação possível entre uma coisa e outra. Já o mesmo não se pode dizer dos aromas, que podemos e devemos julgar livremente com os receptores que utilizamos no quotidiano. É de resto nesta etapa da degustação que avaliamos defeitos nos azeites, caso por exemplo da tulha, ranço e mofo. A tulha tem origem no armazenamento precário e amontoado das azeitonas, que fermentaram por isso mesmo. Já o ranço é devido à oxidação da matéria-prima, e o mofo tem a ver com humidade residual, contaminando e condenando o estado da fruta antes do processo extractivo que origina o azeite. Um azeite defeituoso nunca melhora e vai arruinar todo e qualquer cozinhado que se faça com ele.

harmonias azeite

A prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer

Pelas virtudes é que vamos

A prova de azeites é completamente diferente da prova de vinhos e exige prática recorrente. Recomendo um caminho na exploração dos aspectos positivos, mais do que dos negativos de cada azeite. Tal como no vinho, detemo-nos nos aromas primeiro, e procuramos destrinçar as notas de fruta verde, como noz e maçã, das sensações mais maduras como ameixa  e dióspiro. Depois temos de colocar no tabuleiro variáveis como especiarias, flores e notas balsâmicas, tal como fazemos com o vinho numa prova. Talvez não seja de imediato, mas em três tempos vai tornar-se especialista e aprender a explorar sem ajuda o fabuloso mundo dos azeites. Desde que seja virgem extra, o sentido de descoberta instala-se rapidamente, para nunca mais nos deixar.

Como tempero de saladas, utilizamos abundantemente um bom azeite e logo os componentes individualizados se manifestam como um instrumento musical numa orquestra. O mesmo acontece com o vinagre, e não é à toa que azeite e vinagre entram juntos à mesa, quase com o mesmo valor de sabor, pois no equilíbrio é que está o ganho. A fritura é manifestação feliz dos pontos positivos de uma gordura na cozinha, ajudando a conservar os alimentos e, ao mesmo tempo, conferindo-lhes a crocância que tanto apreciamos numa boa tempura. O azeite pode, neste caso, ser uma boa influência. Mas, na maioria das situações, um óleo alimentar de origem vegetal consegue melhores resultados. Face aos alimentos crus que estamos a trabalhar, adornados por gorduras abundantes, o conselho de harmonização recai inevitavelmente sobre um Loureiro sem madeira, da região dos Vinhos Verdes. A acidez fixa elevada resolve, o sabor consola. Se acrescentar frutos secos como amêndoas ou nozes, o acréscimo na textura vai encontrar contraponto de luxo no vinho da casta rainha de Ponte de Lima.

harmonias azeite

A variante lagareiro

A primeira declinação culinária que nos vem à mente, no tocante a azeite e proteína, é a posta de bacalhau assada no forno, bem regada e orlada com bastante alho. Sabores que estão incrustados na nossa alma desde que nascemos, com os quais crescemos bem nutridos e felizes, passando o testemunho para as gerações seguintes. Seja bacalhau, polvo, lulas ou outro ingrediente principal, encontramos esta solução culinária sob a designação “lagareiro”, justamente por ter o azeite como condutor do calor para o cozinhado. Em casa, dizemos apenas que é assado em azeite, mas, de facto, justifica-se alguma reflexão, porque não é exactamente assim.

Aproveito para introduzir alguma entropia – leia-se agitação – no assunto, indo aos postulados que reconhecemos como fundadores do processamento lagareiro. Um Vinhão do Minho ou um Cabernet Sauvignon do Tejo fazem as loas ao assado magistral, conferindo-lhe realeza e novos matizes de sabor. Ultimamente tenho feito experiências com vinhos Chardonnay do Tejo com madeira, exactamente com esta preparação de bacalhau com azeite, e quase sempre resultou. Há que experimentar e provar com persistência. Por muito que se evoque a tradição, sabemos que é coisa incriada e sempre aberta a novos processamentos.

Em tempos idos, enquanto se extraía o azeite novo nos lagares, aproveitava-se para ir lascando, respeitando o colagénio existente em abundância na posta. Em termos de temperatura, estava-se longe da fervura, que, como todos sabemos, é prejudicial à saúde do bacalhau, correndo o risco de secar e encortiçar. Era como se a posta soltasse pétalas de extremo sabor e tenrura. Entretanto, sobre as brasas mortiças repousavam batatas rachadas que, no momento de consumir, se juntava e regavam com o azeite novo e morno. Esta história ficcionada tem um fundo autêntico e situa-se nas Beiras, onde tem raízes a epopeia do bacalhau na mesa portuguesa. Fica maravilhosamente bem com um branco de Fonte Cal da Beira Interior, aliás como qualquer perfil de bacalhau. Gosto de fazer o paralelo com o torricado do Ribatejo. As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses. Talvez nestas circunstâncias devamos orientar-nos para um Fernão Pires de Almeirim, copioso e não muito frio, para que a alquimia de boca se cumpra. Não se deixe intimidar pela eventual desconfiança no bacalhau congelado, em pratos que queremos executar rapidamente pode mesmo ser a solução indicada. Eu tenho, por hábito, demolhar bacalhau seco para depois demolhar a preceito e congelar. Para mim o sal deve pronunciar-se sobre a goma e a única forma de o conseguir é com esta abordagem. Mas há produtos cortados e corrigidos que vão ao encontro dos nossos gostos e bolsas, que dão rendimento muito apreciável em termos de sabor e integração em pratos de forno. Importante é que se cumpra o desígnio inicial, que é ter sempre bom bacalhau na mesa.

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As variantes da variante

Em tempos que já lá vão reinou entre nós uma das sérias figuras da alta cozinha, chamado Aimé Barroyer. A cozinha do Pestana Palace, em Lisboa, vibrou e ficou ao rubro diversas vezes, com as criações do grande chef francês. Inesquecível a forma cândida com que Barroyer assumiu a sua perplexidade ante jóias da nossa cozinha, como a massa de pastel de bacalhau. Provei mais de uma dúzia de pratos feitos com a dita massa, a que confesso que nunca havia dado a atenção que o genial chef deu. Talvez a mais incrível de todas tenha sido a sua bola de massa de pastel de bacalhau em cama de percebes. No fundo, tratava-se de uma bola de massa próxima da brandade, que ia a fritar com batata palha à laia de raios de sol e vinha servida em cama de percebes. A experiência vínica mais fascinante que fiz com esta maravilha aconteceu com um Sauvignon Blanc do Douro, talvez mesmo a mais notável das experiências que me foi dado fazer com a casta.

Cebola, azeite e bacalhau são capazes de nos surpreender quando menos esperamos. A preparação dita à moda de Braga é exemplar. Posta de bacalhau frita com cebolada em azeite, batata frita às rodelas, tudo levado ao forno quente por pouco tempo, é uma das formas de perceber as mais valias que a cebola pode ter junto de bom azeite. O Bacalhau à Narcisa preenche praticamente os mesmos requisitos e, na verdade, muitos outros bacalhaus tradicionais bebem todos da mesma fonte sábia e ancestral. A cebola adora vinho branco, se lho soubermos dar, e a maravilha do bacalhau à minhota – outra designação possível do prato – acontece com um Arinto velho. Se for da Bairrada, tanto melhor, pois temos mineralidade forte e desempenho genial com azeite fervido em termos de sabor.

As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses.

E não esqueçamos o galego Brás, que oficiava outrora na sóbola empena que vinha do Tejo e ia até ao céu sempre que houvesse interessados na jornada. Das muitas figuras do meu relicário gastronómico, é de longe aquele a quem mais impus a minha própria fantasia. Nos parcos e tíbios cursos que ministrei, o bacalhau à Brás pontifica, é eterno em nós e é do povo, não admitindo qualquer tipo de discriminação. Peguemos então numa aba fina de bacalhau seco. Esfiapamo-la com pressão da unha do polegar contra a do indicador. Fibra a fibra, vamos libertando os fios do fiel e vamos reparando que o sal vai saindo também. Terminada a empreitada, temos um montinho de sal, que deitamos fora. O passo seguinte é o corte de batatas em juliana fina, que reservamos após passadas por várias águas. Finalmente cortamos cebolas segundo o veio em bitola semelhante à da juliana de batata, que colocamos em sertã grande, mais larga que funda, em azeite virgem extra, lume no mínimo. Quando a cebola amolece, juntamos-lhe a batata, devidamente escorrida. Com a colher de pau, envolvemos ambos os legumes. Entretanto passamos por água corrente abundante, no fio da torneira, o bacalhau esfiapado da etapa inicial. Enxaguamos, e secamos com um pano. Levantamos um pouco o lume, até atingir fervura ligeira, às batatas e à cebola, que nesta altura devem estar chochas e mortiças. Integramos então o bacalhau, envolvendo sempre. Logo que volta a atingir fervura, apaga-se o lume. Deita-se uma gema batida por pessoa, mexendo sempre, deita-se coentros picados e azeitonas pretas e está pronto a servir. Há muitos caminhos para chegar ao objectivo final na cozinha portuguesa. Acompanhe com Bical do Dão com alguma madeira.

Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024