Herdade do Gamito: Abegoaria no Norte alentejano

Herdade do Gamito

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e […]

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e as adegas/marcas associadas Cooperativa da Granja e José Piteira. Um terroir que não podia ser mais distinto daquele que encontramos na Herdade do Gamito, no coração do norte alentejano.

As vinhas da Herdade do Gamito foram inicialmente plantadas em 2003 e actualmente são 27 ha que estão à disposição da equipa que inclui Marcos Vieira como enólogo residente e António Braga como consultor. Além daqueles 27, há mais 7 ha arrendados bem perto da propriedade onde, entre outras, está plantada a casta Cabernet Sauvignon, da qual António Braga é grande apreciador, “até vou começar a usar mais porque a casta dá aqui vinho de muita qualidade”, disse. Depois há Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Petit Verdot. Os solos são graníticos, mas de textura variada, desde blocos enormes de pedra dura até terrenos quase arenosos que correspondem ao esfarelamento do granito antigo. Na adega, moderna e bem equipada, da Herdade do Gamito, são também processadas algumas uvas que chegam das vinhas da Granja. “Vamos fazer uns lotes especiais, mas só para o ano poderão ser apresentados, tal como acontecerá com os vinhos de Moreto de vinhas velhas em pé-franco que só daqui a algum tempo estarão disponíveis”, diz-nos Manuel Bio, administrador do grupo Abegoaria.

Herdade do Gamito
Manuel Bio

Na Granja é a Abegoaria que é responsável pela adega cooperativa, onde os 100 associados originais continuam a entregar aas uvas, “Creio que a breve prazo teremos de começar a pagar as uvas das vinhas velhas bem mais caras”, diz Manuel Bio, a propósito. “É que a produção por hectare é muito baixa e a tendência será de arranque das vinhas velhas com a consequente perda irreparável de património vitícola e genético”, confirma. A Abegoaria gere igualmente a produção da Adega Cooperativa de Alijó (Douro) e da Quinta de Vale Fornos (Tejo) e adquiriu as Caves Vidigal (Lisboa) onde produz um vinho de tremendo sucesso, o Porta 6. São quase 7 milhões de garrafas e, diz-nos Manuel Bio, “é marca líder de mercado, quer no Reino Unido quer nos Estados Unidos. E se descontarmos o Vinho do Porto, esta marca corresponde a 1/3 dos vinhos portugueses exportados para Inglaterra.”
Na Herdade do Gamito, Alicante Bouschet é a casta mais plantada, perto de 6 hectares. Recentemente, foram replantados 5 hectares onde entraram castas tradicionais da região (Tinta Caiada, Grand Noir, Trincadeira) e ainda Touriga Nacional.

Nos vinhos ora apresentados, o Verdelho corresponde a 5000 garrafas, é só feito em inox com bâtonnage sobre borras; do rosé são 3500 garrafas. Achámos que fazia sentido ter um rosé, não havia no portefólio”, diz António Braga. Já do Herdade do Gamito branco foram feitas 13 000 garrafas. A abordagem enológica iniciou-se na vindima de 2022, tendo influência directa já nos vinhos deste ano e também nos lotes finais das colheitas anteriores. Também houve mudança ao nível do desenho dos rótulos: a nova imagem acentua o lado granítico da do terroir da Herdade do Gamito. Na base da pirâmide dos vinhos ali produzidos, está a marca Terras do Crato
Para o futuro, em termos de perfil dos vinhos, António Braga é claro: “queremos mais tensão, queremos acentuar um pouco mais o lado dos taninos e da frescura e passar a ter menos preocupação com a cor e a concentração”. O crescendo de ambição estende-se igualmente, e de forma natural, ao conjunto do negócio, seja do Gamito, seja da totalidade das empresas que fazem parte do universo Abegoaria. “O nosso objectivo para 2024 é que 50% de toda a produção se destine à exportação, já que acreditamos que esse é o caminho que nos porá a salvo de sobressaltos do mercado interno”, remata Manuel Bio.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Madeira Wine Company: Novidades e velhidades Blandy’s

Madeira Wine Company

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776. Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não […]

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776.
Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não favorecem o amadurecimento das uvas. Os terrenos são muito férteis, as temperaturas moderadas, as altitudes elevadas. Por outro lado, a acidez é excepcional, e, ao amuar a fermentação com álcool vínico a 96%, nasce um vinho que, sendo envelhecido em velhos cascos de madeira e sujeito às condições climáticas dos velhos sótãos, se torna indestrutível. A Blandy’s é uma empresa familiar, com mais de 200 anos de história na ilha, hoje dentro do universo da Madeira Wine Company, mas sempre com gestão familiar, desde 2010 personificada em Chris Blandy, jovem de 40 e poucos anos.

Gerir uma empresa antiga de Vinho Madeira é gerir um tecido de incrível complexidade. Na apresentação dos novos lançamentos, no restaurante Kabuki, em Lisboa, Chris e o seu enólogo principal e master blender, Francisco Albuquerque, foram sempre citando números: “De Bual há 14ha na ilha, com 104 viticultores na Calheta. A MWC tem 1 ha”. “A Madeira tem 22ha de Sercial, são 125 produtores”. E continuando. Vocês percebem, é só fazer as contas, como dizia o António Guterres. É preciso gerir as nossas vinhas, decidir os tratamentos e datas de colheita, acompanhar as vinhas dos outros (muitas dezenas de) viticultores, colher e separar todas as parcelas, com as castas separadas, já que na Madeira cada casta é também um estilo de vinho.

Francisco Albuquerque, que começou a carreira na Blandy’s em 1990 (e aliás, começou imediatamente a mudar o sector) disse-nos que experimentou fazer algumas castas ao estilo de outras (ou seja, com o nível de doçura “errado”) e descobriu que o resultado era horrível. Diz ele: a doçura está bem assim: Sercial seco com um máximo de 60g de açúcar por litro, Verdelho meio-seco com 60 a 75g de açúcar, Bual meio-doce com 75 a 100g e Malvasia doce com mais de 125g.

Mais um problema: fazer chegar as uvas ao Funchal. Muitas vinhas são em sítios bastante isolados. Há imensa pressão demográfica na Madeira, com apenas 13,5% dos terrenos com declives inferiores a 16%, as vinhas têm de lutar pelo seu espaço contra os hotéis e as habitações. Felizmente, a viticultura tem evoluído e os porta-enxertos aguentam cada vez mais altitude. 80% da ilha da Madeira está acima dos 700m.

Mas a complexidade não termina aqui: feitos os vinhos há que envelhecê-los. E segundo Albuquerque, o sítio onde fica o armazém de envelhecimento também determina o estilo dos vinhos. A Blandy’s tem 16 armazéns de envelhecimento, e em cada localização, as diferentes castas desenvolvem de forma diferente os ácidos orgânicos que dão ao Madeira o seu carácter. Por exemplo, o Caniçal é mais húmido do que o Funchal e há castas que envelhecem lá melhor. É preciso diminuir os factores aleatórios para manter o estilo de cada vinho.

Depois de mais de 30 anos de trabalho, Francisco Albuquerque conseguiu pela primeira vez fazer 4 vinhos do mesmo ano, os 2010 hoje apresentados. Para além desses, viajámos um pouco no tempo para provar alguns vinhos históricos, e comparar estilos da Blandy’s com a sua marca-irmã, Cossart-Gordon. Ao jantar, mais desafios: o IG Madeirense (“de mesa”) Atlantis, Verdelho da Fajã da Ovelha, feito em parceria com Rui Reguinga, e a provocação de harmonizar vinho Madeira com os pratos da cozinha japonesa, uma proposta desenhada com a ajuda de Victor Jardim, escanção do Kabuki e também ele madeirense. Sashimi de atum com Sercial, toro com Sercial e Verdelho, wagyu com Bual. Aposta ganha, num dia em que honrámos as tradições da Madeira com os seus vinhos de enorme delicadeza, etérea profundidade e eterna longevidade.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Arnozelo vs. São Luiz: os bons confrontos

Sogevinus

É sempre entusiasmante receber um convite destes: “Olha, podes no dia tal? Vamos fazer uma prova vertical de Quinta do Arnozelo e Quinta de São Luiz.” Acendem-se logo os sonhos. Estas poucas palavras, mais o autor do telefonema, colocam na mente do velho crítico os contextos todos em zoom próximo: falamos de Vinho do Porto; […]

É sempre entusiasmante receber um convite destes: “Olha, podes no dia tal? Vamos fazer uma prova vertical de Quinta do Arnozelo e Quinta de São Luiz.” Acendem-se logo os sonhos. Estas poucas palavras, mais o autor do telefonema, colocam na mente do velho crítico os contextos todos em zoom próximo: falamos de Vinho do Porto; falamos do grupo Sogevinus, aglutinador de algumas das mais antigas e prestigiadas marcas do sector; falamos da Burmester, pequena empresa de ourivesaria vínica, onde a Quinta do Arnozelo, no Douro Superior, zona da Ferradosa, é das mais acarinhadas; falamos da Kopke, a mais antiga empresa do sector, com fundação no século XVII (1636, a Burmester é muito mais recente, de 1750…), e da sua jóia maior, a Quinta de São Luiz, na frente de rio entre o Pinhão e a Régua. A palavra vertical é já mais ambígua, visto que nestas empresas específicas poderíamos estar a falar de uma prova de vinhos de vários anos e alguns deles poderiam ser muito, muito antigos, com mais de 100 anos. Mas a desambiguação vem da palavra “Quinta” e aí cheira-nos a Porto Vintage, em particular, a Single Quinta. No sector, nos melhores anos o Vintage é feito com a fórmula de misturar os vinhos de várias origens e quintas, originando os Porto Vintage normalmente chamados de clássicos. Single Quinta significa os outros anos, nos quais a longevidade poderá não ser tão prometedora, mas isso é compensado por uma maior ênfase no conceito de “terroir”, a origem geográfica dos vinhos, e também, porque não admiti-lo, por preços de venda mais moderados, e uma maior acessibilidade na sua evolução. Costuma-se resumir isto tudo na fórmula: vinhos para comprar e ir bebendo enquanto esperamos que os anos clássicos cheguem ao seu melhor, depois de pacientemente conservados no escuro e no frio. Tudo isto está já na minha cabeça quando dou a reposta óbvia: “sim, claro que vou, com muito prazer.”

 

Kopke fundada em 1638, Burmester fundada em 1750. Aqui, falamos da história do vinho do Porto.

 

O prazer ainda é maior quando chego ao pé da Ponte Luiz I e entro na belíssima cave que a Burmester tem em Vila Nova de Gaia, ali rente ao rio Douro. O edifício é comprido e desdobra-se em sucessivas salas, paredes de granito, vistas e entrevistas do Douro e do Porto. Lá no fundo, espera-nos o staff da Sogevinus, uma textura de copos, uma promessa de complexidade e prazer. Mistério agora completamente decifrado, não há surpresas, há uma mini-vertical paralela de Burmester Quinta do Arnozelo e Kopke Quinta de S. Luiz, Vintages dos anos 2009, 2012, 2015, 2019, e a apresentação ao público do 2021.

A Quinta do Arnozelo foi adquirida pela Burmester em 2004, e fica na fronteira entre o Douro Superior e o Cima Corgo. Tem 200ha dos quais 93 têm vinha. Tem ainda 38 de olival, 6 de amendoal, 2 de citrinos e mata. O encepamento foca-se na Touriga Nacional e Touriga Franca, as altitudes vão dos 110 aos 520m, e recentemente foi instalada rega para encarar os desafios climáticos. São Luiz fica no coração do Cima Corgo, na margem Sul do Douro, mesmo em frente à estação do Ferrão. Tem 125ha, dos quais 90 têm vinha, e a sua altitude vai dos 80 aos 450m. As suas vinhas são anteriores a 1930, com renovação do encepamento nos anos 1980. A sua exposição a Norte, com talhões também a Noroeste e Nordeste confere aos vinhos uma particular frescura ácida.

 

Burmester Quinta do Arnozelo e Kopke Quinta de São Luiz: os Porto Vintage 2021 da Sogevinus.

 

Cada ano é um ano, e cada provador um provador. Como disse acima, estes single quinta permitem-nos uma visão mais precoce da sua evolução, e alguns dos vinhos estavam já muito acessíveis. Mas os Vintages jovens dão também muito prazer, e em todos os vinhos encontrei qualidades para encarar uma tarte de maçã, um brownie de chocolate, ou uma tábua de queijos. Para os amantes de desporto, e encarando cada ano como um confronto amigável, direi que o Kopke ganhou 4-2.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Quinta do Barbusano: Na ilha, entre a floresta e o mar

Barbusano

Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a […]

Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a oportunidade de visitar a ilha da Madeira, sobretudo a parte norte, não é preciso ler muito sobre isto, é ela que nos mostra. A floresta Laurissilva, que ocupa cerca de 20% do território da ilha (aproximadamente 15 mil hectares), apresenta-nos uma paisagem de um verde intenso que se estende em altitude, numa presença imponente e mística, carácter que se acentua quando é abraçada pelos nevoeiros frequentes das manhãs húmidas e nubladas (quando a ilha está de “capacete”, como dizem os madeirenses…). No município de São Vicente, a Laurissilva — que se divide em três “comunidades” distintas — assume o nome Laurissilva do Barbusano, inspiração para a identidade da Quinta do Barbusano, que tem a floresta como pano de fundo, até aos 450m, e uma vista privilegiada para a capelinha de Nossa Senhora de Fátima, um dos símbolos de São Vicente, situada no topo de uma colina. A caminho da quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo, com um V formado por duas escarpas. V de verde, V de Verdelho.

 

O início

António Oliveira, natural de São Vicente, fundou a Quinta do Barbusano em 2006. Antes de fazer vinho ou de ter vinhas, trabalhava com produtos fitofármacos, numa empresa própria que os vendia aos produtores de uva e dava todo o tipo de apoio aos mesmos. Tinha, ainda, outra empresa de preparação de terrenos e plantações agrícolas. Paralelamente, era — e ainda é, embora em menor escala — “ajuntador de uvas”, conceito muito peculiar: as grandes empresas de vinho Madeira têm, em todos os concelhos da Madeira, alguém que fala com os viticultores para entrega de uvas. É como ter uma pessoa de confiança total, encarregue de ser mediador de uvas, entre os viticultores e a empresa. “Há mais de 30 anos que faço esse trabalho e continuo a fazê-lo, mas apenas para a Blandy’s. Nenhuma uva lá entra sem passar por mim e pela minha decisão”, explica António. Entretanto, durante um trabalho que estava a levar a cabo numas vinhas, desafiou o proprietário das mesmas a fazer com ele “algo diferente” em São Vicente, e foi aqui que arrancou o projecto do Barbusano.

 

BARBUSANO

 

Paulo Laureano foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado no arquipélago da Madeira

 

 

Na ilha da Madeira, há poucos produtores a fazer vinho não fortificado, e António Oliveira não só é um deles como é, hoje, o maior de todos. Os produtores mais conhecidos de vinho Madeira generoso — como Madeira Wine Company (Blandy’s), Barbeito ou Justino’s — têm as suas marcas de DOC Madeirense e elaboram estes vinhos nas respectivas adegas. Os restantes, incluindo o próprio Barbusano, utilizam a Adega de São Vicente, uma adega “comunitária” criada pelo Instituto do Vinho da Madeira (actual IVBAM – Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira), que presta serviços de vinificação, sob supervisão de um enólogo residente. Até à última vindima, os produtores a utilizar os serviços desta adega, para vinho não fortificado, eram cerca de 12.
Foi precisamente pela existência desta adega que António conheceu Paulo Laureano, hoje enólogo consultor da Quinta do Barbusano. Paulo foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado na Madeira, tendo sido também o primeiro enólogo consultor do Governo Regional, quando da criação da Adega de São Vicente. No projecto do Barbusano, está desde o início. “O Paulo conhece muito bem o terroir da Madeira, os solos, as castas, a maneira de trabalhar dos viticultores, e isto é tudo muito importante”, refere António Oliveira.

As vinhas do António

António é também o maior proprietário de vinha da ilha, com parcelas em várias zonas. A Quinta do Barbusano está rodeada por 12 hectares maioritariamente de Verdelho, a uva em que se focam os brancos do projecto, com alguma Tinta Negra que vai para o rosé. Tudo vinha conduzida em latada. “Na altura, estes 12 hectares tinham 88 parcelas pertencentes a 56 donos. Tive de negociar com todos eles e foi muito difícil”, revela o produtor. “Foi tudo feito em três fases, devido ao capital que era necessário, em primeiro lugar, e em segundo, eram terrenos abandonados, e quando as pessoas começaram a ver ali interesse, plantações e luz, o valor das parcelas circundantes subiu muito”, lembra. Depois de criar a base em São Vicente, António Oliveira alugou terrenos no Arco de São Jorge, parcialmente abandonados, para plantar 2,5 hectares de vinha com uma uva branca de que tinha falta, a Arnsburger (casta trazida da universidade alemã de Geisenheim para a Madeira e que funciona aqui muito bem em lote); outro hectare em Ponta Delgada, com Verdelho e Arnsburger; e na Ribeira da Janela, em Porto Moniz, tem entre 6 e 7 hectares com as tintas Touriga Nacional e Aragonez. Estas duas vão para os vinhos tintos da casa que, apesar de não serem a estrela do produtor (nem da Madeira, na verdade…), “o mercado local pede muito”, diz António. Mas antes de tudo isto estar operacional, durante os primeiros quatro anos, os vinhos do Barbusano foram feitos com uvas compradas. O primeiro de todos originou apenas 4 mil garrafas. Hoje, a empresa já produz 100 mil por ano, incluindo um espumante 100% Verdelho, bem interessante, feito com leveduras livres e remuage manual. Há pouquíssima produção de espumante na Madeira, mas “estão a surgir pequenas produções”, segundo António, que investiu agora no equipamento para dégorgement, que antes tinha de alugar no continente e transportar para a ilha.

 

A caminho da Quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo., com um V formado por duas escarpas.

 

O projecto do Porto Santo

Um dos grandes canais de venda dos vinhos Barbusano é o próprio enoturismo da quinta, que desde 2018 recebe sobretudo turistas estrangeiros que procuram experiências vínicas autênticas. E quando se fala em autênticas, é mesmo assim, porque para os que escolhem o programa de provas com almoço, é quase sempre António que está na grelha a fazer as famosas (mas fiéis) espetadas madeirenses.
Porém, com a chegada da pandemia em 2020, a Madeira, que vive do turismo, parou totalmente e, consequentemente, pararam também as vendas. “Estava toda a gente com medo de viajar para outros países, e os portugueses viraram-se para a ilha do Porto Santo. Começaram a dizer-me, ‘vai para o Porto Santo, está a encher e lá vais conseguir vender o vinho’. Assim fiz, e consegui arranjar clientes”, confessa António Oliveira. Como era altura das vindimas, acabou por visitar várias vinhas, a ideia de fazer vinho nesta ilha começou a surgir, e o produtor acabou por consultar João Pedro Machado, enólogo residente da Adega de São Vicente, sobre a viabilidade da casta Caracol, a uva branca da ilha. António recorda: “A opinião dele era que, a solo, não acreditava muito nela, mas que combinada com Verdelho poderia dar um vinho excelente. Verdelho já eu tinha na Madeira, faltava-me o Caracol. Quando falámos com os viticultores do Porto Santo, nessa altura, disseram-me que já estava tudo vendido, e eu aceitei e vim-me embora. Passados uns dias, recebo uma chamada de um deles, a perguntar se eu ainda estava interessado nas uvas. Eu disse que sim, e regressei com o João Pedro ao Porto Santo para ver as ditas uvas e avaliar o estado de maturação. Decidimos comprá-las e, depois de vindimadas, trouxemo-las para a ilha da Madeira”. Note-se que, no ferry que faz a travessia Porto Santo-Funchal, transportar um camião de uvas custa mais de mil euros. A juntar aos mais de quatro euros/quilo que custa a uva Caracol… comprar uvas em Porto Santo fica tudo menos barato. Foi assim que surgiu o primeiro vinho Fonte d’Areia 2021, que juntou Caracol (51%) a Verdelho. “À terceira ou quarta prova do vinho, percebi que ou simplesmente beberíamos uns copos com ele, ou teria de começar a produzir uvas no Porto Santo. O resultado é que já estou com dois hectares próprios de vinha, e planos para plantar mais 1,5 em 2024. À partida, fico-me por aqui”, avança António Oliveira. Além de Caracol (que já entrou numa segunda e bastante melhorada edição do Fonte d’Areia, de 2022) estes dois hectares têm algumas parcelas de uvas tintas, como Syrah, Trincadeira ou Castelão.

O Porto Santo traz outra enorme vantagem ao portefólio do produtor: diferenciação. Ainda que a menos de 70 km de distância entre si, as ilhas da Madeira e Porto Santo poderiam estar em hemisférios distintos. Enquanto alguns locais da Madeira lembram partes do Brasil, com os morros cobertos de vegetação verde e clima húmido subtropical, quem caísse de para-quedas no Porto Santo pensaria estar no norte de África, com colinas áridas despidas de árvores, clima quente e muito seco. A escassez de água e o solo arenoso marcam profundamente a viticultura no Porto Santo, tendo influência decisiva no perfil dos vinhos. E, quem sabe, abrindo uma janela de oportunidade às castas tintas que António Oliveira pretende aproveitar.
O projecto Barbusano continua a crescer e a procura a aumentar. Também por isso, o produtor decidiu fazer uma mudança na imagem dos vinhos. “Os rótulos já vinham de 2008 e estavam muito cansados. Tudo isto tem custos e nós preocupamo-nos, obviamente, também com esta componente, mas, sobretudo da minha parte, há uma ainda maior preocupação pelo que coloco dentro das garrafas. Mas chegou a hora de o fazer e também de lançar novos vinhos”, adianta António. Quanto a próximos objectivos, a vontade é chegar ainda este ano às 150 mil garrafas. Fazer mais espumante é também um desejo, e para isso foram recentemente plantadas Baga e Loureiro na quinta, para bases de espumante.
Pelo que provámos, os vinhos brancos da Madeira são algo muito sério (aqui, palmas para a uva Verdelho), com um potencial nervoso e a pedir para serem mais explorados. A visita a uma garrafa de Barbusano Verdelho branco 2011 confirmou-o, deixando todos de queixo caído. Será esta uma das “next big things” da cena vitivinícola portuguesa?

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

 

Herdade da Bombeira: O segredo está na vinha

Herdade da Bombeira

Uma das grandes virtudes da Herdade da Bombeira é a gestão da sua vinha. Inclui a programação do seu maneio com base em conhecimento adquirido ao longo de muitos anos, e a boa gestão da rega, essencial para evitar o stress excessivo às uvas numa zona onde as temperaturas são extremas. Luis Fiúza Lopes, 68 […]

Uma das grandes virtudes da Herdade da Bombeira é a gestão da sua vinha. Inclui a programação do seu maneio com base em conhecimento adquirido ao longo de muitos anos, e a boa gestão da rega, essencial para evitar o stress excessivo às uvas numa zona onde as temperaturas são extremas. Luis Fiúza Lopes, 68 anos, fundador e administrador da Bombeira do Guadiana, empresa proprietária da herdade, tem tudo o que se passou na sua vinha assente no seu caderno, desde a forma como decorreram os ciclos vegetativos desde que a plantou, incluindo os eventos climáticos e outros, até ao maneio feito ano a ano. “É a ele que recorro quando tenho dúvidas em relação à forma como os anos correram, porque as suas notas são ainda mais precisas do que as minhas”, conta Bernardo Cabral, o enólogo da empresa.
Para verificar o cuidado que ali se tem com a viticultura, basta entrar, naquela propriedade à beira do Guadiana, para ver como a vinha, que bordeja o rio, contrasta pelo aprumo com a desarrumada paisagem serrana envolvente, típica da zona fronteira entre o Alentejo e Algarve. No dia em que a equipa da Grandes Escolhas lá esteve, as pessoas que cuidam dela estavam em azáfama intensa e empenhada, porque era tempo de despampanar, tirar os “ladrões” e os lançamentos dos porta enxertos, ou seja, tudo o que ali estava a mais e podia afetar o equilíbrio da produção em termos de quantidade e qualidade.

Herdade da Bombeira
Luís Fiuza Lopes é o fundador da Herdade da Bombeira.

Rega a seguir à vindima

O ciclo produtivo começa, na Herdade da Bombeira, logo a seguir à vindima, com a rega da vinha. “Regamos muito, porque a planta precisa de mais água depois da vindima, que aqui decorre muito cedo, pois termina no fim de agosto, e nós temos um mês de setembro muito quente”, conta Luis Fiúza Lopes, acrescentando que ali se continua a regar a vinha até às primeiras chuvas de novembro.
A poda começa a meio de dezembro e decorre até ao princípio de março, todos os dias, já que a Bombeira tem uma equipa de pessoas no terreno, que paga à jorna para fazer todos os trabalhos, que são supervisionados pelo diretor de produção da empresa, Márcio Quintas. Os “ladrões” e rebentamentos dos porta-enxertos começam a ser removidos após o abrolhamento até que, a meio de maio, começa a despampa.
A monda de cachos sucede-se a partir do mês seguinte. É Luis Fiúza Lopes, que conhece a sua vinha como ninguém, que indica qual o número a deixar, variando com a casta. “São cinco a seis cachos para o Arinto e oito para o Chardonnay, porque são mais pequenos”, revela, dizendo também que chegou a estes números com base na avaliação da qualidade do vinho ao longo dos anos, feita através da prova. “É um pouco a olho, mas funciona”, defende.
Quando chega à altura da maturação das uvas vai todos os dias à vinha e observa, quase cacho a cacho, a forma como tudo está a evoluir, até tomar a decisão de vindimar em conjunto com Bernardo Cabral. Trata-se de um processo que começa muito cedo em cada dia, por volta das 7h, e termina entre as 10h e as 11h, quando o camião frigorífico está cheio. À hora do almoço o veículo está na adega da Casa Santa Vitória, onde as uvas da empresa são vinificadas há muitos anos, sob a supervisão de Bernardo Cabral, através de um contrato de prestação de serviços. Depois de chegarem, o processamento depende do vinho que vai ser feito.

Frescura natural

As uvas para brancos e rosés são vindimadas cedo para os vinhos expressarem a sua acidez natural. Dão origem a brancos e rosés frescos e elegantes, características um pouco inesperadas para vinhos do interior sul do Alentejo, onde as temperaturas superam muitas vezes os 40 graus no verão. “Isso acontece porque o Luis Fiúza escolheu muito bem a zona onde plantou as castas brancas”, explica Bernardo Cabral, salientando que o Chardonnay está uma parte do dia à sombra, protegido por uma colina anexa, e as vinhas estão viradas a norte, o que faz com que o tempo seja mais fresco naquela zona.
No caso dos tintos, as uvas passam todas em tapetes de escolha e são vinificadas em cubas lagares, onde são pisadas por robôs, geralmente nos dois primeiros dias, e as massas são mantidas em frio durante quatro a cinco dias a fazer macerações a frio (sem produção de álcool), para que não haja demasiadas extrações com álcool depois da fermentação. “Dai que os vinhos desta casa tenham corpo, mas não sejam agressivos”, salienta Bernardo Cabral. Depois da fermentação, vão todos para barricas na cave da Casa de Santa Vitória e vão sendo provados por Bernardo Cabral e Luis Fiúza Lopes até ser tomada a decisão de engarrafar. Depois desta operação, e ainda sem rótulos, são armazenados nas instalações da empresa em Mértola e na Venda do Pinheiro, para onde vai a maioria das garrafas, “uma região mais fria, onde ficam a estagiar antes de serem comercializados”, termina o enólogo.
Luis Fiúza Lopes nasceu na Póvoa da Galega, no concelho de Mafra e frequentou o ensino Superior no ISCTE após terminar o liceu. Durante 2º ano do curso decidiu deixar de estudar para fazer o serviço militar, onde foi oficial miliciano. Mas saiu da tropa aos 22 anos para trabalhar com o pai, que possuía um matadouro na sua aldeia natal.
Oito anos mais tarde comprou a empresa ao progenitor e aos irmãos. Criou, depois, uma nova sociedade onde lançou a marca Dilop, de produtos de carne, que ainda existe hoje, para sair oito anos mais tarde para fazer um período sabático na Região de Mértola. Mas isso não aconteceu, já que não conseguiu resistir a começar a trabalhar no negócio da caça. “Cheguei mesmo a ser o maior empresário do sector em Portugal, gerindo cerca de 32 mil hectares de terras”, revela. Acrescenta que tudo isto sucedeu sem ser premeditado. “Quando cheguei a Mértola estavam a surgir muitas oportunidades nesta área e as coisas foram acontecendo”, conta, salientando que a sua experiência de gestão anterior contribuiu para o sucesso nesta área de negócio. Diz, também, que a compra da Bombeira do Guadiana, proprietária da Herdade da Bombeira, que tinha, na altura, 67 hectares, aconteceu quando chegou à região. Hoje são 760 ha.

Herdade da Bombeira

 

 

Quase um enoturismo

São 16 quartos, uma piscina com vista para o rio, cerca de 2 mil metros quadrados de área de construção, um restaurante com capacidade para muitas dezenas de pessoas, com área social interna e externa. Está prevista, também, a abertura de uma loja de vinhos. Será um estabelecimento mais virado para o descanso, que ainda não está aberto, sobretudo porque os caminhos comuns até à propriedade, cujo arranjo depende da autarquia, ainda não estão em condições para o trânsito de veículos que não sejam de todo-o-terreno. “Quando a unidade estiver em funcionamento, terá de ter 12 pessoas a trabalhar, que têm de ser pagas, tenha, ou não, clientes”, explica o gestor, acrescentando que não abre ao público enquanto não houver garantia de haver um fluxo suficiente de clientes que sustente o negócio. Até lá, vai cedendo os quartos e o resto das instalações aos amigos e clientes.

 

 

 

Aprendizagem com o tempo

A propriedade tinha pertencido à Torralta, que ali investira na produção de laranja, tangerina e uva de mesa. Mas nunca tinha sido feito vinho. Mas Luis Fiúza Lopes achou que tinha potencial para produzir uvas, mandou avaliar a qualidade dos solos e restantes condições para o desenvolvimento da cultura. Os resultados deram-lhe razão e avançou com o investimento. Plantou a vinha em 2000. A presença mesmo ao lado do rio Guadiana ajudou ao desenvolvimento do projecto até à barragem do Alqueva ser concluída, altura em que deixou de ser possível retirar água do rio. A solução foi fazer diversos furos naquela zona da propriedade, com uma capacidade disponível para suprir as necessidades da cultura.
Inicialmente foram plantados 18 hectares de castas tintas. “Mais tarde, cheguei à conclusão que os nossos clientes também precisavam de vinhos brancos e plantei mais 5,5 hectares com esse objetivo”, conta. Hoje são, no total, 21,5 hectares de vinha. Nela estão plantadas as castas brancas Chardonnay e Arinto e as tintas Alicante Bouschet, Syrah, Trincadeira, Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon.
Luis Fiúza Lopes confessa que não percebia nada do negócio quando plantou a vinha. Mas, aos poucos, foi-se apercebendo quais eram as castas se davam melhor no seu terroir e quais as que originavam vinhos mais facilmente comercializados. “Depois de algum tempo, cheguei à conclusão que as castas que se davam melhor aqui são as que estão plantadas actualmente”, afirma. Para chegar a este encepamento, foram feitas replantações das zonas menos produtivas da vinha quando esta chegou aos 20 anos, com castas adaptadas ao local. “A única experiência que fiz, nessa altura, foi a introdução da Touriga Nacional depois de ter estudado o tema e de me ter aconselhado com quem sabia”. Graças a isso, descobriu que há clones da casta bem-adaptados para climas secos e solos pobres como os da Herdade da Bombeira. Plantou as primeiras cepas da casta há quatro anos, para substituir alguma Syrah. “A segunda plantação substituiu a Trincadeira que produzia mal”, revela.
Mas não basta ter a ideia de plantar uma vinha e produzir vinho de qualidade para ter sucesso. É preciso também saber vendê-lo e cobrá-lo. Segundo Luis Fiúza Lopes, todo processo de crescimento e solidificação do seu negócio decorreu “muito devagar, demorou o seu tempo, mas nunca perdemos dinheiro nele”. Acrescenta que foram sempre vendendo o vinho e “nunca se estragou uma garrafa”. Os excedentes de uva “no máximo 20 mil quilos por ano se a produção for média”, são comercializados para outros produtores da região onde a herdade está inserida.

Aposta em monocastas

Hoje a Herdade da Bombeira produz cerca de 40 mil garrafas de vinhos brancos, oito mil de rosé e 80 mil de vinhos tintos. 95% dos vinhos são comercializados em Portugal, no canal Horeca, 30% dos quais no Algarve e outro tanto na Grande Lisboa, 5% para exportação e o restante no resto do país. São cerca de 130 mil garrafas as unidades que o gestor da Bombeira do Guadiana espera comercializar este ano. “Este volume deverá corresponder a um valor muito próximo dos 600 mil euros de vendas”, explica, salientando o número representa um crescimento de 30% em relação ao ano anterior.
A aposta na produção e comercialização de vinhos monocasta é evidente. O administrador da Bombeira do Guadiana defende que o terroir de Mértola se sente mais nos vinhos de casta do que nos de lote, e a qualidade é melhor. “Como vendemos bem os vinhos que produzimos, estamos certamente a fazer bem o nosso trabalho”, defende. Conta, ainda que o sucesso da sua empresa se deve também ao trabalho feito pela sua equipa no sentido de transmitir confiança aos compradores, “que necessitam ter e certeza de estão a adquirir produtos que lhes dão a garantia suficiente para que os possam recomendar aos clientes, seja num hotel ou num restaurante”, defende.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Casa Américo: O “sonho americano” na Serra da Estrela

Casa Américo

Américo Seabra nasceu em 1927 e emigrou para os Estados Unidos, em 1967. Consigo levou a mulher e os seus seis filhos, ainda crianças. A razão foi a mesma que levou tantos outros portugueses a deixar o país, em vagas sucessivas, ao longo da década de 60: buscar uma vida melhor para si e para […]

Américo Seabra nasceu em 1927 e emigrou para os Estados Unidos, em 1967. Consigo levou a mulher e os seus seis filhos, ainda crianças. A razão foi a mesma que levou tantos outros portugueses a deixar o país, em vagas sucessivas, ao longo da década de 60: buscar uma vida melhor para si e para os seus.
Anos e anos de trabalho duro permitiram à família criar um autêntico império comercial e de serviços, em diversas áreas, entre elas a restauração, a logística, os supermercados, com a cadeia Seabra Supermarket, e a distribuição de vinhos e bebidas, com a Aidil Wines, que muito tem feito pela implantação local dos vinhos portugueses.
Porém, o coração serrano de Américo Seabra ficou sempre em Vila Nova de Tazem, onde manteve uma pequena vinha cujas uvas vendia para a cooperativa local. Quando ele e a mulher regressaram às origens, em 2000, deixando os filhos à frente dos negócios americanos, resolveu produzir o seu próprio vinho. O que veio a acontecer na vindima de 2005, com o apoio dos filhos que construíram uma pequena adega em Tazem. O tinto resultante, segundo consta na família, não era nada de especial. “Mas deu uma alegria enorme ao meu pai”, revela Albano Seabra, que com seus irmãos António, Américo e José, resolveu, em 2009, ajudar o progenitor a dar outra dimensão ao seu sonho. Surgiu assim a Seacampo, empresa familiar sedeada em Vila Nova de Tazem e dedicada à produção e comercialização de vinhos do Dão.

Casa Américo tornou-se marca e assinatura da empresa que o pai Américo Seabra, falecido em 2011, ainda viu nascer e produzir os primeiros vinhos.
Ano após ano a Casa Américo foi crescendo e aumentando o seu património. O que começou com uma vinha de 5 hectares transformou-se em seis quintas mais algumas parcelas, num total de 150 hectares de vinha, onde se inclui já a Quinta da Garrida e a Quinta das Casticeiras, adquiridas em 2022 à Aliança/Bacalhôa. É uma área impressionante para a região e mais ainda se pensarmos que toda ela se insere na sub-região da Serra da Estrela, talvez a mais vincadamente diferenciadora de entre as sete sub-regiões do Dão. Já em 2017 tinha sido adquirida a Adega Cooperativa de São Paio. Com essa aquisição, foi possível preservar um pedaço da história vinícola da região, implicando embora um forte investimento na sua renovação e actualização. A adega pode vinificar milhão e meio de litros e armazenar dois milhões, algo que ultrapassa em muito a produção da Casa Américo, que está ainda assim em crescendo, passando dos 525 mil litros em 2021 para os 650 mil em 2022. Muitos antigos viticultores associados da adega de São Paio continuam a ali entregar as suas uvas. O património completa-se com um solar/palacete adquirido em 1999, situado no centro de Vila Nova de Tazem e rodeado por 1 hectare de vinha. Foi ali que a família desenhou de raiz o projecto Casa Américo.

Um empreendimento desta magnitude, ainda para mais com os seus proprietários a viver nos Estados Unidos da América, necessita de uma gestão profissional no seu dia a dia. “A dada altura percebemos que isto não podia ser somente uma paixão, era importante profissionalizar, criar dimensão, economias de escala. Só assim poderíamos corresponder ao propósito de trazer valor para Vila Nova de Tazem e honrar o nome do nosso pai”, refere Albano Seabra, dos quatro irmãos sócios aquele que está mais tempo em Portugal. Assim, uma equipa liderada pelo director geral David Lopes e composta pelo enólogo consultor Pedro Pereira (técnico com vasta experiência no Dão e, em particular, na sub-região da Serra da Estrela), pelo enólogo residente João Cantão e pelas irmãs Dora Caseiro (marketing) e Beatriz Caseiro (comercial) assegura o bom desempenho do projecto que tem como principais mercados de consumo Portugal, EUA, Brasil, Europa e Suíça, por esta ordem.

No coração da Serra

As vinhas da Casa Américo Wines estão distribuídas por 6 quintas e mais algumas propriedades dispersas entre Vila Nova de Tazem e S. Paio, Gouveia. A Quinta Nova é a maior, constituída por 68,5ha de vinha em produção. São distintas parcelas com diferentes idades e castas, rodeadas por pinhal, oliveiras e afloramentos graníticos. Para além das castas, brancas e tintas, mais comuns e tradicionais do Dão, existe também aqui uma parcela recentemente plantada com castas antigas e, algumas delas, quase desaparecidas da região, existentes apenas nas vinhas velhas. Variedades brancas como Alvadurão, Gouveio, Barcelo, Uva Cão, Terrantez e tintas como Baga, Alvarelhão, Camarate, Sousão, Bastardo e Rufete têm aqui uma nova oportunidade. “É também uma forma de preservar a nosso património vitivinícola para as gerações futuras”, diz a propósito David Lopes. Também em Tazem encontramos a segunda maior propriedade, a Quinta da Garrida. São 18ha de vinhas, algumas com mais de 50 anos, onde estão presentes diversas castas antigas. Aqui só existem variedades tintas, com destaque para a Tinta Roriz e Touriga Nacional. A Quinta do Aral situa-se perto de Gouveia, sendo a vinha de maior altitude (todas as vinhas da casa estão entre os 400 e 650 metros), de onde saem os brancos e tintos Casa Américo 625. No Aral encontramos 15ha de vinha (com parcelas, brancas e tintas, muito velhas, remontando aos anos 30 e também uma parcela plantada em 2017 com varas das vinhas velhas) e 4ha de pomar Bravo de Esmolfe. A Quinta do Paço, localizada igualmente nos arredores de Gouveia, tem um total de 27ha, dos quais 15ha de vinha, em bonitos patamares, de onde vem a marca Vinha de Púcaros. Um olival em modo de produção biológica, uma casa antiga recuperada e uma capela são outros destaques da propriedade.

Casa Américo

Já a Quinta das Casticeiras, adquirida no ano passado, está situada em Moimenta da Serra, bem próxima da encosta da Estrela. Rodeada por muro de granito, tem 12ha de vinhedos, a 580 metros de altitude. Segundo o enólogo Pedro Pereira, é daqui que vem a melhor Touriga Nacional da empresa. Finalmente, a Quinta da Cerca. Tem apenas 1,5ha de vinha, cercada por um muito de granito, mas a sua importância é bem maior do que a dimensão. É que esta é a vinha mais antiga da Casa Américo, com mais de um século de idade, feita de cepas retorcidas com uma grande variedade de castas brancas e tintas. Aqui nasce o ex-libris da casa, o Vinhas Centenárias.
Mais de 75% das vinhas da empresa têm uma idade entre os 10 e os 50 anos e as castas tintas predominam largamente nos encepamentos, com 85%. A aquisição de propriedades vai ficar por aqui, a ideia agora será, sobretudo, aumentar a área de uvas brancas, provavelmente à custa da Tinta Roriz, casta que Pedro Pereira não aprecia particularmente. O que aprecia, isso sim, é a disponibilidade de diversas vinhas “maduras” e em altitude, com dias quentes que contrastam com as noites frescas e orvalho nas madrugadas, conduzindo a vinhos de forte personalidade e muita frescura. “O perfil de vinhos que ambicionamos são os que expressam a identidade da Serra da Estrela, terra natal do Sr. Américo Seabra”, diz o enólogo. “Daí todo o investimento na preservação do património vitivinícola da região e das castas autóctones.”

O portefólio começa a ser vasto (são seis linhas distintas de produto, cada qual com várias referências, sendo que Casa Américo é a marca mais sonante) mas isso não assusta David Lopes. “Temos opções para diferentes momentos de consumo, para diferentes tipos de consumidores e diferentes canais”, justifica. “Queremos ser uma referência entre os vinhos portugueses, como embaixadores da sub-região da Serra da Estrela, Dão.”

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Quinta do Monte Travesso: Navegar com maré alta

Quinta do Monte Travesso

À Quinta do Monte Travesso chega-se sem dificuldade. É provável que, quer no caminho, quer ao chegarmos à quinta, nos cruzemos com viajantes em autocaravanas. A razão é que Bernardo Nápoles facilita o estacionamento destes visitantes na propriedade, favorece o uso de instalações sanitárias e não esconde as vantagens que daí advêm quando nos lembra […]

À Quinta do Monte Travesso chega-se sem dificuldade. É provável que, quer no caminho, quer ao chegarmos à quinta, nos cruzemos com viajantes em autocaravanas. A razão é que Bernardo Nápoles facilita o estacionamento destes visitantes na propriedade, favorece o uso de instalações sanitárias e não esconde as vantagens que daí advêm quando nos lembra que “é gente diferente, muito interessada em vinho, em fazer provas e, o que nos interessa particularmente, em comprar vinho. Quando vão embora levam caixas na carrinha”. Chegam através de sites como o Park4night e o resultado tem sido muito animador, “é gente diferente das caravanas de praia”, recorda. À quinta acorrem turistas para provas, eventualmente para refeições ou para usarem as duas casas que estão disponíveis para receber visitantes. Tal como acontece cada vez com mais frequência no Douro, o enoturismo está a ter um peso muito importante na facturação, cerca de 40%, diz-nos Bernardo. É claro que uma das primeiras medidas práticas para poder receber visitas foi ter copos de qualidade e frigoríficos para manter os vinhos à temperatura certa. Das provas passou-se às refeições, abriu-se uma mini loja e às duas casas já em uso poderão juntar-se mais duas, por ora em plano.
De há muito tempo ligado à Symington Family Estates, como profissional de campo, Bernardo recorda que esteve vários anos como responsável da quinta do Vesúvio, depois Senhora da Ribeira. Como todos temos assistido, a Symington continua a adquirir propriedades de diferentes dimensões e isso “é um sufoco de trabalho”, disperso por muitas zonas distintas da região. E, como nos diz, rindo “há sempre mais um telefonema do Paul Symington que tem um pequeno problema na sua quinta e lá vou a correr”. O desejo de voltar ao mar está assim cada vez mais distante e mais ainda o sonho (louco, dizemos nós que não somos dados a navios…) de dar a volta ao mundo!

Pezinhos na terra

Sonhos à parte, é a quinta que herdou da família que lhe toma o pouco tempo disponível. Com referências que remontam a 1896, a quinta está na posse da família desde 1931. A casa solarenga foi considerada de interesse municipal e ostenta as armas da família, destacando-se, nesta história, a figura matriarcal de Judith de Barros Caupers de Sousa Nápoles, agora homenageada em marca de vinho.
O “novo” projecto arrancou em 1996 e tem sido construído aos poucos, sempre com fundos próprios, passo a passo. Como é tradição da região, o direito de benefício e as correspondentes uvas são vendidos, uma vez que aqui não se produz Porto “Temos 35 pipas de benefício que desde sempre entregávamos à Ferreira mas agora, com a adega da Granvinhos aqui ao lado, é para lá que vão as uvas”, diz Bernardo. O desejo de vir a fazer um vinho do Porto de marca própria existe mas a concretização é que não está para breve, já que continua a existir a obrigação da lei do terço e isso implica um grande empate de capital e muito vinho em stock. É um sonho para já adormecido. As boas uvas são usadas para fazer os DOC Douro da marca da quinta mas a rentabilidade é muito complicada porque, diz-nos, o Douro está a ter um problema de quebra significativa de produção por hectare e “mesmo com rega as produções tendem a baixar, não sabemos bem porquê, mas poderá ter a ver com a qualidade das plantas, dos enxertos prontos” E dos 60 hectares de vinhas que existiam no tempo do avô, Bernardo herdou os 12 que agora compõem a quinta, situada perto dos 500 m de altitude. Daqui saem anualmente de 35 a 50.000 garrafas, muito para exportação, sobretudo para o Brasil, o principal mercado. No mercado interno, com a excepção das lojas El Corte Inglès, o vinho encontra-se nas garrafeiras e restauração. A venda à porta é um negócio interessante e é para continuar.

Na vinha disponível vamos encontrar de tudo: uma parcela velha com 90 anos (1,5 ha) onde já se identificaram 14 castas brancas e 7 tintas, já objecto de uma tese de mestrado na UTAD; vinha em patamares, vinha ao alto e pilheiros (são vides colocadas nos buracos dos muros para aproveitar todo o espaço disponível). Para já nada é para alterar, a vinha velha é para continuar e as reestruturações estão feitas. Agora é preciso, isso sim, rentabilizar. Mesmo os modelos de vinho estão encontrados e o portefólio apenas virá a conhecer um novo rosé da cor aberta que agora se tornou o padrão e que poderá ser feito de Touriga Nacional. O rosé que já existe tem muita cor mas “os visitantes das caravanas assumem esse vinho com um tinto de Verão e tem funcionado bem”.
O grande salto em termos de profissionalismo das tarefas da quinta foi dado com a entrada de um jovem enólogo, Daniel Souto, um verdadeiro “apaga fogos” que está presente em todas a tarefas, da vinha à adega. A equipa fica completa com Pedro Francisco que é enólogo consultor e proprietário da vizinha Quinta da Padrela. Com a limitação da área da vinha, o crescimento apenas é possível com as entregas de pequenos lavradores da zona que há muitos anos fornecem uvas. Antigamente porque a quinta tinha produção insuficiente e hoje porque é uma alavanca para aumentar a produção da marca de entrada, Travesso.
Por aqui pratica-se a protecção integrada na viticultura e na adega são sempre usadas leveduras para inocular os mostos; depois são usadas barricas de várias tanoarias, sobretudo de 225 litros de capacidade. As novas tendências de enologia “no fio da navalha” não encontram aqui muita receptividade. Joga-se na segurança, algo que, estamos certos, vem também quer do trabalho na Symington quer nas quintas da Prats & Symington, recentemente acrescentadas de 10ha e que serão, diz-nos, objecto de reconversão total. A boa surpresa tem sido o comportamento da Touriga Nacional que “a esta altitude e, quem sabe, fruto das alterações climáticas, está a dar resultados excelentes”. As duas castas brancas de eleição (Gouveio e Viosinho) estão encontradas, não há que inventar.
A vindima ainda é uma festa, com um grupo que se tem mantido ano após ano e que não dispensa a festa final da “entrega do ramo”, momento de boa disposição sempre animado pelas quadras que a D. Salete (na quinta há 30 anos) faz para o evento. E se a vindima e o negócio correrem de feição, “há uma prenda especial no Natal”, diz Bernardo.

Quinta do Monte Travesso
O jovem enólogo Daniel Souto assume, com Bernardo Nápoles, as tarefas da vinha e adega.

Um portefólio fechado

Das provas que fizemos na quinta percebemos que existe uma hierarquia muito segura dos vários tipos de vinhos e das gamas de preços. A altitude ajuda a uma acidez sempre muito evidente nos diferentes vinhos. O branco de 2022 é apenas feito em inox e sem maloláctica para preservar a acidez. Os brancos são vinificados por casta e por parcela e só no final se faz o lote, o que permite ter um melhor retrato das parcelas da quinta e do comportamento das castas. O Vinhas Velhas branco é fermentado em barricas usadas e vai agora na 5ª edição.

Nos tintos destaca-se o Reserva, um vinho sempre com edição anual e do qual se produzem cerca de 3000 garrafas e também Magnum, muito fruto do pedido de alguns restaurantes. Os topos de gama da casa são o Capela e Judith. No caso do Capela juntam-se a Touriga Francesa da vinha velha junto à capela e a Touriga Nacional mais antiga que existe na quinta, agora com 30 anos. Teve a primeira edição em 2021 e fizeram-se 1300 garrafas. O tinto Judith é um varietal de Touriga Nacional, criado pela primeira vez na vindima de 2015.

Crescer, mas com passos seguros, é o lema. Com o pai a ajudar e a aprovar as iniciativas de Bernardo, e a D. Salete a criar pratos gulosos para servir aos visitantes, algo que, com prazer, pudemos constatar, a Quinta do Monte Travesso está aí para continuar a revelar o que nesta zona do Douro é possível fazer de bom. Não é um navegar à vista, é um jogo de orientação entre o saber e a força, por vezes telúrica, dos elementos. Neste caso algo parecido com o que se passa em alto-mar.

(Artigo publicado na Edição de Agosto de 2023)

Grande Prova: Um mundo cor de rosa

O rosé está claramente na moda. Comunica pela imagem, incluíndo a garrafa e a cor, mais do que qualquer outro tipo de vinho. A França, sobretudo a região de Provence, está na vanguarda e serve de inspiração aos outros. Basta ir ao stand da Provence na Prowein para ver as mais lindas garrafas com vinhos […]

O rosé está claramente na moda. Comunica pela imagem, incluíndo a garrafa e a cor, mais do que qualquer outro tipo de vinho. A França, sobretudo a região de Provence, está na vanguarda e serve de inspiração aos outros. Basta ir ao stand da Provence na Prowein para ver as mais lindas garrafas com vinhos de cores apelativamente suaves. É claramente um produto de design para ser atraente na prateleira, na mão e no copo. E sim, rosé é o vinho mais instagramável que existe.
Mas o design não é tudo. Há cada vez maior procura pelos vinhos mais leves, mais frescos e menos alcoólicos, onde o rosé se enquadra perfeitamente. É mais do que uma moda, é uma mudança estrutural de consumo. Não é por acaso que o concurso de vinhos Concours Mondial de Bruxelles desde 2021 realiza uma edição de rosés em separado para dar mais ênfase a este tipo de vinho.

Tendências globais ou rosé mania

A França lidera o movimento rosa no mundo, sendo número 1 em produção, consumo e exportação em valor (em volume a Espanha exporta mais). Em conjunto, a França, Espanha e Estados Unidos são responsáveis pelo 66% da produção mundial de rosé.
Em França, a produção de rosés cresceu substancialmente graças a várias regiões que apostaram neste tipo de vinho ao longo da última década. Fora de França, surgiram “novos” países produtores de vinho rosé com um crescimento de mais de 50% no espaço de 10 anos, com, no mínimo, 50.000 hectolitros produzido anualmente. São os casos do Chile, Nova Zelândia, Hungria, Romênia e Bulgária.
Aproximadamente 1 em cada 10 garrafas de vinho consumidas no mundo é de rosé. E em França, este número é de 1 em 3 garrafas, pois neste país consome-se 33% da produção total do rosé. Seguem-se a Alemanha com 12% e os Estados Unidos com 11%.
Em Portugal a categoria também está a crescer, embora nem sempre seja fácil encontrar informação estatística, por ser o rosado quase sempre enquadrado nos dados do vinho tinto. Entretanto, no último Anuário do IVV foi registada a variação da produção do vinho rosado desde 2011 até 2021, assentando o rosado com uma quota de 6% da produção nacional. Na campanha de 2020/2021 o rosé correspondeu a 6,6% de produção total dos vinhos nacionais em termos de cor (sendo 59,6% de tinto e 33,8% de branco).
Mas quase não é preciso olhar para as estatísticas, basta ver as prateleiras para perceber que o rosé está claramente na mente do consumidor actual. Há 20 ou até 10 anos não havia tanta variedade de rosés como hoje. O mesmo se pode dizer também da qualidade.

Há cada vez maior procura pelos vinhos mais leves, mais frescos e menos alcoólicos, onde o rosé se enquadra perfeitamente

 

Como é feito um rosé

A cor e os aromas estão nas películas, onde se encontram as antocianas responsáveis pela cor e os precursores aromáticos. Como a maioria das castas tintas não tem antocianas na polpa (com excepção das variedades tintureiras), o sumo sai quase transparente. A duração do contacto com as películas tem influência directa na intensidade da cor e do aroma do vinho.
O OIV (organização que rege a produção mundial de vinho, com 45 países filiados) distingue três principais métodos de fazer um rosé.
Prensagem directa ou uma maceração curta (normalmente na própria prensa) inferior a 2 horas – com o mínimo possível contacto com as películas. As uvas podem ser desengaçadas ou não, isto depende das castas. O desengace promove melhor passagem das antocianas para o sumo, enquanto a prensagem de cachos inteiros facilita a drenagem. A prensagem tem de ser delicada para dar tempo e obter o nível pretendido de antocianas sem extrair taninos e aromas verdes. Produtor e enólogo da Quanta Terra (em parceria com Celso Pereira), Jorge Alves, refere que de 4 tn só conseguem 1.200 litros. Na última prensagem obtém-se mais 300-400 litros com mais cor. Esta fracção mantém-se à parte, para lotear com o resto e obter a cor que se pretende – clarinha e bonita. Basicamente, é a vinificação das castas tintas como se fossem brancas, onde a fermentação ocorre sem películas. Desta forma obtêm-se os rosés mais pálidos e delicados aromaticamente, com uma maior acidez.
Maceração pelicular superior a 2 horas e depois o sumo é separado, em lágrima (escorrendo naturalmente da prensa) ou prensagem. O tempo de maceração varia com cada casta. Se for uma casta com pouca intensidade corante como a Pinot Noir ou Tinto Cão, pode justificar-se uma maceração mais longa.
Sangria é uma separação parcial do sumo das uvas em maceração. Este método era mais utilizado antigamente, nem tanto para fazer um rosé, mais para concentrar um tinto. No depósito de fermentação, depois de se retirar 5-15% de sumo, ficavam mais películas para menor volume de líquido. Um rosé obtido por este método tem mais cor, mais tanino, aromas de fruta madura e menor acidez (devido à liberação de potássio da película para o mosto durante a maceração que se liga ao ácido tartárico e aumenta o pH). Estas uvas são também colhidas mais maduras, a pensar em vinho tinto. Este método é menos adoptado para os rosés mais ambiciosos e não é utilizado em Provence, por exemplo.
Existe ainda outro método de fazer rosés, praticado em alguns países, sobretudo de Novo Mundo, quando se mistura o vinho branco com vinho tinto, prática genericamente proibida na União Europeia (mas autorizada para os rosés de Champagne). A fermentação maloláctica é quase sempre evitada para preservar a frescura e evitar os aromas lácticos que esta pode conferir ao vinho.
Quando passámos de um rosé corrente para um rosé premium, constatamos que não é raro ocorrer fermentação e estágio, total ou parcial, em barricas, normalmente usadas (casos das marcas Phenomena, Giz, Redoma, Quinta do Monte d’Oiro, Olho de Mocho Single Vineyard, Ravasqueira, Herdade das Servas e muitos outros), mas também novas, como é o caso da Casa da Passarella o Fugitivo Rosado.

Enologia ou terroir?

Embora um rosé possa ser visto mais como um produto de enologia do que uma expressão de uma região, eu não faria uma distinção tão peremptória. Por um lado, é verdade que as uvas vindimadas mais cedo conseguem fugir um pouco às adversidades do ano e da zona onde ficam, e muitas vezes ainda não têm desenvolvido todos os precursores aromáticos varietais. Por outro lado, a abordagem correcta na adega não será possível sem um bom conhecimento de castas utilizadas e o local onde estão plantadas. Precisamente por isto, os rosés não são todos iguais.
Um bom exemplo é o novo rosé da Casa da Passarella, o Fugitivo Rosado. Paulo Nunes, o talentoso enólogo desta casa, já há algum tempo andava a pensar num rosé de topo, tendo como inspiração um rótulo antigo de 1937 do “vinho rosado”. Nesta altura, o vinho era elaborado com a ajuda de um enólogo francês Eugène Hellis (que também esteve, segundo me contam, envolvido nos primeiros anos do Mateus Rosé). Não se sabe como eram aqueles rosés, não sobrou nenhuma garrafa, mas de certeza que o rosé de hoje é bem diferente. Provém de uma parcela com várias castas, que foi plantada naquela época. É a mais sombria de todas, onde a partir das 15-16 horas não há sol, por causa da floresta circundante. A vindima é tardia, só no início de Outubro. Prensagem de cacho inteiro com engaço e fermentação espontânea em barricas novas de 500 litros, longa, que dura quase até Dezembro, sem bâtonnage. Combina-se neste caso um profundo conhecimento das parcelas existentes e pleno domínio técnico na adega para conseguir um resultado extraordinário.

Grande Prova Rosés

 

Com excepção das castas tintureiras, aquelas com a polpa corada, todas as castas podem ser adaptadas para produção do rosé.

 

 

As melhores castas

Com excepção das castas tintureiras, aquelas com a polpa corada, todas as castas podem ser adaptadas para produção do rosé. É preciso saber trabalhá-las de acordo com as características varietais e estilo pretendido.
Na região de Provence, para produção de rosés são tipicamente utilizadas Cinsault, Grenache, Mourvèdre, Syrah, em algumas denominações também Cabernet Sauvignon e Carignan e ainda algumas castas brancas, incluindo Clairette, Sémillon, Ugni Blanc e Rolle (Vermentino) que acrescentam frescura e aromas.
No Sul do Ródano, na DO Tavel, exclusiva para rosés, também para além das castas tintas (Cinsault, Grenache, Mourvèdre, Piquepoul Noir, Syrah) podem ser utilizadas variedades brancas (Bourboulenc, Clairette, Grenache Blanc Clairette Rose e Piquepoul Blanc) ou chamadas “cinzentas”, aquelas com uma ligeira coloração da película (Grenache Gris e Piquepoul Gris). Em Espanha é muito utilizada a casta Tempranillo e Garnacha e na Itália Sangiovese, para além de outras castas.
A Pinot Noir, de película fina e pouca intensidade corante, é uma boa opção para os rosés. Não é de estranhar uma aposta séria nesta casta para os rosés de ambição. Três belíssimos exemplos – Phenomena da Quanta Terra no Douro, Vicentino na costa alentejana e AdegaMãe na região de Lisboa. No Quinta do Poço do Lobo, da Caves São João, a Pinot Noir entra em partes iguais com Baga. Jorge Alves refere que Pinot Noir é uma boa exploradora do terroir. Fenolicamente e aromaticamente amadurece bem, traz profundidade aromática e transparência da altitude. Consegue transferir o terroir e a barrica.
A Tinta Roriz também é uma boa opção para rosés. Usam-na na Taboadella no Dão. Jorge Alves explica que é uma casta redutora, tem algum tanino e não oxida facilmente. É muito sensível no momento de vindima com a janela de oportunidade muito curta. Desidrata, absorve potássio e perde acidez, o pH sobe. Tem de se vindimar com pH 3,3 no máximo, pois com 3,7 já não vai dar. Uma parte estagia em barrica para compensar a parte que estagia num ambiente mais redutor de cimento. A Tinta Roriz é também utilizada no caso da M.O.B. no Dão ou Carlos Reynolds no Alentejo.
Em Portugal não temos nenhuma DO destinada somente à produção de rosés, que são feitos ao longo do país, desde o Minho até ao Algarve, e as castas adotadas são muitas vezes as típicas de cada região. Por exemplo, na região dos Vinhos Verdes são utilizadas castas com pouca cor Espadeiro e Padeiro, e no Algarve Negra Mole e na Madeira Tinta Negra (das duas últimas temos nesta prova os exemplos interessantes). A Baga na Bairrada é uma grande protagonista nos rosés. Com a maturação lenta e tardia, aguenta mais tempo sem criar grandes alterações a nível organolêptico e permite acertar no momento da vindima. Luís Gomes, do projecto Giz, considera que as vinhas velhas da Baga oferecem robustez e segurança na produção de rosés. Vindima normalmente de 8 a 15 de Setembro.
A Quinta do Vallado e a Sogevinus (São Luiz Winemakers Collection) fazem um belíssimo rosé da casta Tinto Cão que preserva bem a acidez e naturalmente não passa muita cor.
A versátil Touriga Nacional veste-se bem em tons de rosé com notas citrinas e florais. Temos óptimos exemplos da Ravasqueira (Heritage) e Chocapalha. A Touriga Franca é raro ver num rosé a solo, mas nesta prova temos o Qualt da Quinta Alta no Douro. Mais uma casta com pouca cor – Alvarelhão – pode ser provada na versão rosé Quase Tinto da Quinta dos Avidagos. Outro exemplo varietal – Tinta Caiada no Monte do Álamo, Alentejo.
O resultado muito interessante demonstra a casta levemente corada Moscatel Roxo, utilizada pelas grandes empresas da Península de Setúbal – José Maria da Fonseca e Bacalhôa – e também pela Aveleda no projecto Vila Alvor no Algarve, produzindo rosés extremamente aromáticos e com uma cor naturalmente muito leve.
A Syrah brilha no Monte D’Oiro de uma parcela da vinha mais antiga (antes de 1998) e na Herdade do Sobroso. A casta Sangiovese mostra o seu carácter no Monte das Bagas e na Herdade das Servas – em dois perfis bem diferentes – um mais guloso e outro marcadamente acídulo e crocante.
Também temos alguns exemplos bem sucedidos de uso das castas brancas na produção de rosés. A Quinta das Cerejeiras, na região de Lisboa, ao Castelão (que amadurece relativamente cedo) acrescentou 15% de Moscatel Graúdo (com maturação tardia), que acabam por ser vindimadas na mesma altura, na segunda semana de Setembro e fermentam em conjunto. As castas completam-se, a Castelão conribui com textura e aromas de fruta vermelha, enquanto Moscatel oferece acidez, frescura e aromas exóticos. Outro exemplo de parceria feliz entre a casta tinta e branca é o QM rosé feito de Vinhão e Alvarinho.

 

 

 

 

Nenhum vinho comunica tanto pela cor como o rosé: a cor mais ligeira indica delicadeza e elegância; e a cor mais intensa promete intensidade e estrutura.

 

 

 

 

 

 

 

 

A cor importa?

Nenhum outro vinho comunica tanto pela cor como um rosé: a cor mais ligeira indica um vinho mais delicado e a cor mais intensa promete um vinho com maior intensidade de sabor e mais estrutura.
Os franceses até se debruçaram para definir a paleta de cores de rosés que podem variar de pêssego, melão, lichia, manga, pomelo, framboesa, damasco, tangerina e groselha.
Jorge Alves confirmou que a cor é extremamente importante para um rosé e que eles tomam muitos cuidados a este respeito para garantir que um produto final fique apelativo na prateleira. E é preciso ter em atenção que durante todos os processos de vinificação e estágio a cor vai-se perdendo. Já Luís Gomes não liga nada à cor que pode num ano ser mais intensa do que noutro – é mesmo assim!

Um rosé pode ser caro?

Pode, como outro vinho qualquer. Pode custar tanto, quanto o consumidor estiver disposto a pagar por ele em função da espectativa, qualidade e raridade do mesmo.
Antigamente achava-se que o rosé é um vinho barato. Lembram-se quando o rosé fazia parte da triologia de entrada de gama – um branco, um tinto e um rosé, deixando os gamas médias e de topo para tintos e brancos? Agora há muitos rosés portugueses de topo, que rondam os 25-30 euros e uns poucos ultrapassam os 50 euros.
Em França, durante alguns anos o rosé mais admirado e caro foi Garrus do Château d’Esclans, Provence, cujo preço hoje ultrapassa os 100 euros – é um blend de Grenache com Rolle das vinhas centenárias. Em 2020, Languedoc disputou a primazia da Provence quando Gérard Bertrand lançou o “Clos du Temple” feito de Grenache, Cinsault, Syrah, Mourvèdre e algum Viognier com o PVP de 190 euros.

Qual é a melhor altura para apreciar um rosé?

Quando apetecer. No verão talvez apeteça mais vezes, mas não vejo porque o rosé não possa ser consumido noutras alturas do ano, num momento apropriado. Quem come burrata, céviche de salmão, sushi e saladas apenas no verão? São harmonizações perfeitas para um rosé. Pode ser consumido tanto à mesa, como num bar, a solo, ao pé de uma piscina. Um encontro de amigos depois de trabalho numa sexta-feira à noite ou um jantar romântico também são momentos certos. Alguns rosés têm presença e intensidade suficientes para aguentar um prato com alguma estrutura: um bife de atum na grelha acompanhado de legumes parece uma óptima opção. Carnes brancas, até com molhos para compensar a acidez do vinho, ou caril de frango ou de camarão são outras sugestões a considerar.
Resumindo, um rosé de sucesso é um produto completo de vinha, de enologia competente, de imagem aliciante e de marketing inteligente.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)