DONA DORINDA: Pixie, Qué Será, Será…

Dona Dorinda

“Qué será, será Whatever will be, will be The future’s not ours to see Qué será, será What will be, will be”   O leitor mais atento, que seja igualmente fã de música, não pode ter deixado de trautear o famoso refrão “Qué será, será” celebrizado pela cantora norte-americana Doris Day em 1956, e reinterpretado, […]

“Qué será, será

Whatever will be, will be

The future’s not ours to see

Qué será, será

What will be, will be”

 

O leitor mais atento, que seja igualmente fã de música, não pode ter deixado de trautear o famoso refrão “Qué será, será” celebrizado pela cantora norte-americana Doris Day em 1956, e reinterpretado, décadas mais tarde, pela não menos famosa banda Pixies, tal como eu, fã assumido do quarteto de Boston, Massachussets, fundado em 1986. Na verdade, foi mesmo a primeira coisa em que pensei quando me atribuíram esta cobertura jornalística do vinho Pixie.

Com uma combinação única de energia, melodias pop com estruturas musicais imprevisíveis, letras surrealistas e a famosa dinâmica quiet-loud-quiet, onde as canções alternam entre versos calmos e refrões explosivos, os Pixies deixaram uma marca indelével na história da música, estabelecendo-se como uma das bandas mais icónicas e influentes do rock alternativo, servindo, inclusive, de assumida inspiração a bandas não menos icónicas como Nirvana ou Radiohead. Mas e o que é que os Pixies poderão ter em comum com o vinho Pixie, para além da evidente semelhança do nome?

A propriedade totaliza 60 hectares, sendo apenas 8,5 hectares dedicados à vinha

 

ESTILO INOVADOR

Na verdade, tal como os Pixies, com o seu estilo inovador e dinâmicas contrastantes, ajudaram a moldar o som do rock alternativo dos anos 1990, influenciando toda uma geração de bandas que seguiram o seu exemplo, há 25 anos atrás, na Quinta Nossa Senhora da Conceição, uma pequena propriedade no coração do Alentejo, Évora, de onde os recém-lançados vinhos Pixie são oriundos, foi tomada a decisão de abandonar completamente o uso de pesticidas e herbicidas, bem como de implementar práticas biodinâmicas e biológicas.

Convenhamos que, no Portugal vínico de 1999, os termos agricultura biológica e orgânica, produção biodinâmica, substituição de herbicidas, fungicidas e pesticidas sintéticos por preparados naturais, se calhar soava tão disruptivo como o som dos Pixies.

Chegando de Lisboa, um pouco antes de entrar em Évora, viramos à esquerda e tomamos a estrada para Arraiolos, para passado pouco tempo encontrar a Quinta Nossa Senhora da Conceição, numa localidade chamada Valbom do Rouxinol, ladeada pelo Aqueduto romano e confinando adiante com a Cartuxa.

Mark e Dorinda Winkelman são os proprietários. Um casal norte-americano residente nos Estados Unidos, que adquiririu a propriedade há um quarto de século e vêm ao Alentejo mais para usufruir e sentir as boas energias do sítio, do que propriamente para gerir alguma coisa. Essa parte está (bem) assegurada pelo seu braço direito Vítor Conceição, administrador, e Eduardo Cardeal, enólogo.

Victor Conceição está à frente do projecto desde 2006. Nascido e criado na cidade de Évora, conhece a região e o valor daquela terra como ninguém: “Esta zona de Valbom, também conhecida por Valverde, onde estamos, juntamente com o Convento da Cartuxa e a Fundação Eugénio de Almeida, possuía as hortas e vinhas que abasteciam a cidade romana de Évora e outras cidades do Império”, ou seja, conta com dois mil anos de tradição, pelo menos.

A propriedade totaliza 60 hectares, sendo apenas 8,5 hectares dedicados à vinha, onde se inclui a famosa Vinha Meia-Lua, com 2,5 hectares, plantada em 2005 numa pequena elevação, aproveitando todo o declive orográfico (280 a 295 metros altitude); solos de argila vermelha com algum xisto, grande espaçamento entre as plantas, cordão duplo a boa altura em relação ao solo, de forma a maximizar a ventilação, exposição e minimizar o risco de doenças fúngicas, coberto vegetal de ervas locais, contribuindo para a diversidade de vida nos solos, bem como evitando a erosão nas filas de vinhas que se encontram no cimo da elevação.

Os restantes seis hectares de vinha, mais recente, inserem-se dentro da mesma filosofia de viticultura, isto é, de acordo com os princípios do cultivo biológico e biodinâmico, uma vez que, é bom lembrar, a Dona Dorinda Organic Wines possui certificação quer na Europa, quer nos Estados Unidos.

Infusões, misturas e sprays biodinâmicos são utilizados na vinha desde 2007, numa fase preventiva, e todos os trabalhos são realizados segundo o calendário lunar; a monda de cachos, efectuada anualmente, é realizada com o objetivo claro de criar vinhos concentrados e com grande capacidade de guarda; vindimas nocturnas são regra da casa, para aproveitar a excelente amplitude térmica do terroir Dona Dorinda, sob clara influência da Serra d’Ossa, a pouco mais de 30 km em linha recta.

O resto da propriedade “é um pequeno paraíso” referem Vítor e Eduardo, mais de duas mil árvores plantadas a pensar nas futuras gerações, e toda a quinta é um ecossistema vivo e vibrante, composto por montado típico alentejano, que serve de alimento aos porcos pretos, onde vacas pastam pacificamente e o estrume produzido alimenta as vinhas. Cães Rafeiro Alentejano descansam pelas sombras durante o dia e guardam a propriedade durante a noite, mas existe também toda uma grande diversidade de pequenos animais, aves autóctones, insectos, etc.

Dona Dorinda

SYRAH E VIOGNIER

Quanto à escolha das castas a plantar, foi a decisão mais fácil de tomar, ou não fosse Mark, para além de um grande conhecedor e colecionador de vinhos do mundo, um apaixonado pelo Rhône e, como tal, não podiam ser outras que não fossem Syrah e Viognier. Podemos questionar-nos se serão, ou não, as castas indicadas para o Alentejo de Évora, especialmente a Viognier, casta com uma acidez natural baixa e que rapidamente dispara os açúcares se não for vindimada no momento exacto, sendo até preferível uma vindima ligeiramente precoce, para não correr o risco de obter um vinho chato, mole e sem vida. Mas a minha opinião é que devemos respeitar sempre a decisão do produtor. Ainda para mais quando é tomada com uma forte componente emocional e de paixão, como foi o caso.

A Dona Dorinda Organic Wines apresentou Pixie, a nova gama de entrada da marca: um branco, um rosé e um tinto criados com o propósito de tornar o universo encantado da Dona Dorinda acessível a mais pessoas, sem perder a autenticidade que distingue cada garrafa da casa. Este lançamento só foi possível graças à recente expansão da área de vinha, que passou de 2,5 hectares para 8,5 hectares, permitindo aumentar a produção e dar origem a novos vinhos que reflectem a mesma paixão, mas agora com uma abordagem mais leve, descontraída e inclusiva.

E afinal de contas quem é a Pixie?! A resposta é clara – Dorinda Winkelman, a proprietária da Quinta Nossa Senhora da Conceição e da Dona Dorinda Organic Wines. Com o seu espírito livre, sensibilidade estética e ligação profunda à natureza, sempre foi apelidada carinhosamente entre amigos e família como “Pixie” – palavra inglesa para “fada”, símbolo de encanto, leveza e magia. E é, precisamente, essa energia que a nova gama pretende engarrafar! Por mim, está mais que conseguido!

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

ADEGA DE BORBA: Havendo tempo serão mais 70

Adega de Borba

A Adega de Borba tem sabido, desde que foi fundada, e ao longo dos últimos 70 anos, investir na melhoria do seu sistema produtivo e comercial e da sua oferta, para sustentar, com sucesso, o seu negócio e prepará-lo para os desafios do futuro. Segundo nos contou Óscar Gato, o enólogo desta adega, um dos […]

A Adega de Borba tem sabido, desde que foi fundada, e ao longo dos últimos 70 anos, investir na melhoria do seu sistema produtivo e comercial e da sua oferta, para sustentar, com sucesso, o seu negócio e prepará-lo para os desafios do futuro. Segundo nos contou Óscar Gato, o enólogo desta adega, um dos factores que contribuiu para que os vitivinicultores da região se associassem, em 1955, foi a dificuldade que tinham para a comercialização dos seus vinhos. O outro foi incentivo estatal dado, na época, pela Junta Nacional do Vinho, ao associativismo no sector, que contribuiu para a constituição desta e de outras adegas no Alentejo. Também foi um empurrão fundamental para o seu desenvolvimento e a base do protagonismo que o sector tem hoje na região, dado que sustentou a organização e equipamento das suas unidades industriais e a implementação dos seus sistemas de comercialização.

Os primeiros vinhos da Adega de Borba foram lançados no final da década de 50. 

 

Os primeiros vinhos

Os primeiros vinhos da Adega de Borba foram lançados no final da década de 50. A partir daí, a área de vinha e o número de sócios da Adega de Borba foi sempre crescendo, à medida que iam decorrendo diversas mudanças na sua estrutura produtiva, até ao modelo actual.
Com o tempo as vinhas deixaram de estar consociadas com o olival, algumas árvores de fruto e outras, e passaram a ser estremes. A chegada dos primeiros fundos europeus, na década de 1980, contribuiu para que todas passassem a estar alinhadas e aramadas. Veio também a separação das variedades tintas e brancas no terreno, a plantação por casta, tal como se vê hoje, e a opção por vender o vinho embalado. Era preciso responder a consumidores cada vez mais informados e exigentes, num mercado global que procurava, cada vez mais, produtos de qualidade.

Em paralelo continuou o crescimento da área de vinha, que se estabilizou nos cerca de 2200 hectares actuais há cerca de 20 anos. Desenvolve-se nos concelhos de Borba e Estremoz, mas também se insinua nos de Vila Viçosa, Elvas, Monforte e Sousel, que os limitam. São sobretudo terras de planalto, solos calcários que ficam sobre o Complexo Vulcano Sedimentar Carbonatado de Estremoz, aquele que origina o mármore distinto de Estremoz, que é Pedra Património Mundial pela Unesco. Mas também se desenvolvem num vale de solos xistosos em direção à Serra de Ossa, que ali fica bem perto, a cerca de cinco quilómetros para sudoeste. É sobre estas duas zonas que ficam as cerca de 1600 parcelas de vinha dos associados da Adega de Borba.

Saber acumulado

No ano em que celebra sete décadas desde a sua fundação, a Adega de Borba lançou o vinho comemorativo Havendo Tempo. “Este vinho nasce do tempo que se respeita e do tempo que se guarda”, disse Óscar Gato, enólogo da Adega de Borba, durante o evento de lançamento, acrescentando que “cada garrafa encerra o saber acumulado de décadas e a atenção que dedicamos a cada detalhe, da vinha até à cave”, para criar “um vinho pensado para quem sabe esperar”. Havendo Tempo presta homenagem à filosofia de vida das gentes alentejanas e ao tempo investido em cada garrafa, ao longo de sete décadas de história.

Disponível nas versões tinto 2021 e branco 2023, esta edição especial reflecte o espírito da região e o saber acumulado ao longo de gerações, dado que é um tributo à forma como se vive e trabalha no Alentejo, com calma, atenção ao detalhe e respeito pelo ritmo da natureza. Produzidas a partir de castas tradicionais da região e sujeitas a estágios prolongados em barrica e garrafa, as colheitas desta gama foram pensadas para serem apreciadas com calma, tempo e em boa companhia. Em paralelo também foram apresentadas as edições especiais tintas e brancas do Adega Cooperativa de Borba, rotuladas com imagem antiga destes vinhos.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Bustelo: Na hora do Vinho Verde

BUSTELO

A Cas’Amaro é um projeto vitivinícola que une a produção de vinhos de qualidade com o enoturismo, abrangendo cinco regiões vitivinícolas de Portugal: Vinhos Verdes, Douro, Dão, Lisboa e Alentejo. Fundada por Paulo Amaro, empresário com vasta experiência nos setores imobiliário e hospitalar, a Cas’Amaro nasceu em 2016 com a aquisição do Casal da Vinha […]

A Cas’Amaro é um projeto vitivinícola que une a produção de vinhos de qualidade com o enoturismo, abrangendo cinco regiões vitivinícolas de Portugal: Vinhos Verdes, Douro, Dão, Lisboa e Alentejo. Fundada por Paulo Amaro, empresário com vasta experiência nos setores imobiliário e hospitalar, a Cas’Amaro nasceu em 2016 com a aquisição do Casal da Vinha Grande, em Alenquer, onde a antiga adega foi transformada numa unidade de alojamento de luxo com três quartos. A empresa, focada na sustentabilidade e na produção biológica, combina a arte de fazer vinho com uma oferta turística diferenciada, que inclui restaurantes, alojamentos e wine bar. O projeto de enoturismo é pensado para integrar a arquitectura, o design e a arte, reflectindo o gosto pessoal do seu fundador. Até 2030, o objetivo é que todas as unidades de enoturismo estejam em pleno funcionamento, proporcionando experiências únicas aos visitantes.
Com um total de 76 hectares de vinha, a Cas‘Amaro destaca-se pela aposta em castas locais, com vinhos já reconhecidos nos mercados externos. O enoturismo é um eixo estratégico da empresa, permitindo combinar a produção vinícola com uma oferta turística de elevado valor acrescentado.
“Bustelo” é um topónimo português que significa pasto ou pastagem, originário do baixo-latim bustellum. É um diminutivo de bustus, que significa pasto ou rebanho. Pode ainda referir-se a diferentes localidades em Portugal, como freguesias ou lugares.
Na região dos Vinhos Verdes, a Cas’Amaro adquiriu a Quinta do Bustelo, uma propriedade de 25 hectares com vinhas, onde também, a médio prazo, irá funcionar uma unidade de luxo para o enoturismo, numa lindíssima edificação de um antigo solar minhoto.

O enoturismo é um eixo estratégico da empresa, permitindo combinar a produção vinícola com uma oferta turística de elevado valor acrescentado.

 

Vinhedos tradicionais

Junto a Amarante, na Quinta do Bustelo, em vinhedos tradicionais em ramadas e cordão, são produzidas uvas das castas nativas da região, como Alvarinho, Loureiro, Azal e Arinto, nos brancos, e Espadeiro nos tintos.
Como a empresa só tem adega na região de Lisboa, vinifica em instalações de parceiros nas outras. No Dão, na adega das Boas Quintas, de Nuno Cancela de Abreu; no Alentejo, na adega do Monte Branco, de Luís Louro; no Douro, na adega Dona Matilde, com o apoio do seu enólogo, João Pissarra e, na região dos Vinhos Verdes, na AB Valley Wines, de António Sousa.
Os enólogos da casa são Ricardo Santos, largamente conhecido pelo seu projecto em Vila Alva Talhas XXVI, mas que aqui assume as funções de director de enologia da Cas’Amaro, e Gilberto Marques, que coordena a vinificação da empresa em Lisboa depois de se ter mudado da Quinta de Pancas.
A Cas’Amaro reforça a sua presença na região dos Vinhos Verdes, com o lançamento de três criações inéditas, que pretendem ser verdadeiras expressões de ousadia e frescura: o Bustelo Arinto Reserva 2023, o Bustelo Azal Doce 2024 e o Bustelo rosé 2024. As outras três referências – o Bustelo Arinto, o Bustelo Alvarinho e o Bustelo Loureiro/Arinto Colheita Seleccionada – regressam com novas colheitas, preservando a sua essência, mas renovadas pelo tempo e pelas estações. Juntas, estas seis propostas, pretendem celebrar o compromisso da Cas’Amaro com a excelência, a autenticidade e a alma da região que as viu nascer.

Valorizar a autenticidade

“Na Cas’Amaro, procuramos constantemente valorizar a autenticidade e a riqueza da região dos Vinhos Verdes, respeitando o terroir e as castas autóctones. Apresentamos agora três novas referências, que reflectem a nossa paixão pela inovação e pela criação de vinhos com identidade própria, ao lado de três colheitas renovadas que mantêm viva a essência dos Arintos, Loureiros e Alvarinhos clássicos. Cada garrafa é fruto de um trabalho cuidadoso, desde a vinha até à adega, com uvas colhidas e selecionadas manualmente, num processo que honra a tradição e eleva a qualidade a cada vindima”, destaca Rui Costa, Director-Geral da Cas’Amaro.
“O caminho faz-se caminhando” porque não há caminho, porque este só se faz ao caminhar, são palavras sábias de António Machado, poeta espanhol do Século XIX.
Creio que são palavras que se aplicam na perfeição ao projecto Cas’Amaro na sua globalidade, e a cada uma das suas propriedades individualmente consideradas, ambicioso por certo, arriscado seguramente, mas altamente desafiante e, provavelmente, bastante recompensador num futuro próximo. Dêmos-lhe então tempo, e espaço, para que, caminhando, faça o seu caminho. E entretanto, brindemos, pois!

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Valle Pradinhos: Estórias e vinhos de um canto perdido em Portugal

Valle Pradinhos

É um lugar único, perdido num canto de Portugal. Mas, como muitos sítios do nosso país, vale a pena a visita. Foi lá que fui descobrir a história por detrás de um dos primeiros vinhos sobre o qual eu escrevi, há pouco mais de 30 anos, Valle Pradinhos tinto, numa altura em que os selecionava […]

É um lugar único, perdido num canto de Portugal. Mas, como muitos sítios do nosso país, vale a pena a visita. Foi lá que fui descobrir a história por detrás de um dos primeiros vinhos sobre o qual eu escrevi, há pouco mais de 30 anos, Valle Pradinhos tinto, numa altura em que os selecionava nas prateleiras e escrevia sobre os que gostava, apenas uma vez, na revista Exame.

Mas é muito melhor apreciá-los quando se conhece a sua história e as estórias de quem os produz, porque o vinho é, sobretudo, um produto da natureza feito por pessoas e para pessoas. Uma delas, Maria Antónia Mascarenhas, 73 anos, a proprietária do Casal de Valle Pradinhos, quinta que está na sua família há mais de 100 anos, o outro, o enólogo Rui Cunha, 53 anos, na casa há quase 30 vindimas.

Maria Antónia estudou em Lausanne, na Suíça, onde vivia com a família e frequentou e terminou o ensino liceal. Herdou Valle Pradinhos da avó, Maria da Conceição Pinto de Azevedo, há 30 anos. Na época só lá havia homens a trabalhar, o que lhe trouxe alguns desafios iniciais acrescidos, numa sociedade ainda predominantemente machista. Como exemplo conta que, a dada altura, alguém que lhe veio pedir emprego, apenas falou para o “engenheiro” que estava a seu lado e trabalhava para si. Mas salienta, no entanto, que isso já mudou, para melhor, nos dias de hoje.

Todo o Trás-os-Montes é um diamante em bruto e Valle Pradinhos uma jóia, onde ainda há muito por fazer, e onde já se fez muito nos últimos 30 anos 

 

Estabelecer bases para crescer

Outro dos seus desafios foi assumir a propriedade sem perceber nada de agricultura. O Casal de Valle Pradinhos tinha sido comprado pelo bisavô, Manuel Pinho de Azevedo, um empresário do início do século 20. Era, à época, um grande industrial sobretudo na área de fabricação de tecidos, um homem de negócios que investiu em muitas áreas, como o jornal Primeiro de Janeiro, por exemplo. Como gostava muito de caçar e ia para Trás-os-Montes para o fazer, decidiu construir um hotel em Macedo de Cavaleiros, a Estalagem do Caçador, agora fechada, para receber e onde ficava a dormir com os amigos.
“Uma vez alguém lhe disse que estava à venda um quinta muito gira”, conta Maria Antónia. Ele foi vê-la, gostou e comprou o Casal de Valle Pradinhos. Com o tempo foi-lhe aumentando a área através da compra de mais terra. A propriedade “já teve mais de 500 hectares, mas hoje tem pouco mais de 450 porque a minha avó deu cerca de 80 hectares a antigos empregados, para construírem as suas casas e hortas e fez bem”, conta a actual proprietária.

Quando Maria Antónia Azevedo assumiu a gestão do Casal de Valle Pradinhos já havia sobreiros, oliveiras e vinha, entre 12 a 14 hectares que estavam plantados sobretudo em zonas baixas, com muita humidade, onde as plantas são mais atreitas a doenças. “Tive de as arrancar”, conta, acrescentando que não foi por saber de agricultura para tomar a decisão, mas porque tinha, na equipa, tal como hoje, especialistas, “engenheiros” que sabiam o que faziam e a aconselharam a isso. Como não se deu muito bem com o que herdou da avó, contratou depois outro agrónomo, “um homem que percebe muito de vinha” e já está na empresa há 13 ou 14 anos. “Preciso de gente que saiba de certas coisas melhor do que eu, que não vivo aqui o ano todo”, explica, acrescentando que já fez muitos investimentos na sua Valle Pradinhos desde que chegou. No aumento da área de olival e vinha, que ocupa hoje 50 hectares de terra, mas também na sua renovação e na compra de equipamentos agrícolas para as operações necessárias a fazer ao longo do ano.
“Arrisquei na plantação de mais vinha, apesar de, no início, não vendermos muito vinho, porque é preciso estabelecer bases para crescer”, revela, acrescentando que Valle Pradinhos não poderia ser sustentável em termos económicos com base apenas no aparelho produtivo que herdou. Antes disso, a sua família apenas usava as suas propriedades para férias “e, por isso, pagavam tudo do bolso, porque tinham fábricas e outros negócios que lhes permitiam dispor do dinheiro para isso”. Agora a propriedade é rentável.

Os importadores dos mercados de exportação querem muito mais vinhos de castas portuguesas do que internacionais, ou mistura das duas

Um diamante em bruto

Para Rui Cunha, 53 anos, “responsável pelos vinhos de Valle Pradinhos há 29 vindimas, todo o Trás-os-Montes é um diamante em Bruto e Valle Pradinhos uma jóia, onde ainda há muito por fazer, e onde já se fez muito nos últimos 30 anos”, como a mudança para uma agricultura mais responsável, incluindo algumas práticas de agricultura regenerativa, já que a biológica/orgânica só o mantém.
Já começaram a ser feitos os ensaios de arrelvamento necessários para escolher e comprar as alfaias necessárias para as operações. “Estamos este ano a testar essas operações numa pequena parcela, para treinar a equipa”, conta, salientando que ainda hoje se pratica ali a vindima manual na empresa. “Toda a uva que cá chega passa pelas mãos de uma equipa dirigida, comandada por Valle Pradinhos”, realça o enólogo, salientando que a operação “inclui uma primeira selecção e triagem das uvas”. Mas as novas plantações já estão a ser pensadas para serem vindimadas com uma máquina “mais pequena, capaz de o fazer”.

O maneio das vinhas externas a Valle Pradinhos é feita pelos parceiros. “Ou seja, não somos responsáveis pela viticultura, mas podemos sempre aconselhar, até sobre a plantação de novas vinhas, como já aconteceu, para os informar sobre as castas que nos fazem falta, por exemplo”, conta Rui Cunha.
Quando começou a trabalhar na empresa, mais ou menos na mesma altura em que Maria Antónia assumiu a sua gestão, havia dois tintos, “o Porta Velha, entrada de gama, e o Valle Pradinhos, e ia saindo um branco que caiu, de repente, nas graças do mundo”. Trata-se de um lote invulgar para a região, por ser da casta Riesling, alemã, Gewürztraminer, da Alsácia (Alemanha e França) e Malvasia Fina, uma casta portuguesa que existe também em Trás-os-Montes. “É a combinação invulgar das três castas que faz com que este branco seja muito apetecível, muito mais no mercado nacional do que no internacional”, salienta Rui Cunha, explicando que os importadores dos mercados de exportação querem muito mais vinhos de castas portuguesas do que internacionais, ou mistura das duas.

Lugar à mesa

Entretanto o Porta Velha acabou, “porque era um vinho onde perdíamos dinheiro, que tinha de ser feito muito rápido e era cada vez menos bom, porque não tínhamos capacidade de investimento para o fazer”, conta o enólogo. Hoje a empresa produz e comercializa anualmente acima de 100 mil garrafas de Valle Pradinhos, um tinto transmontano que está nas grandes superfícies a um PVP acima de 15 euros, e “roda nas prateleiras porque as pessoas”. Com isto, “estamos a demonstrar que os vinhos de Trás-os-Montes conseguem ter uma boa venda, a um preço elevado para uma grande superfície”, comenta o enólogo, defendendo, no entanto, que é importante, para a região se posicionar e valorizar, que não haja apenas uma estrela. “Tem de haver mais”, defende.

Conta, também, que o trabalho feito em parceria com a distribuidora Viborel em Portugal, que inclui muitas visitas e acções de degustação nos pontos de venda, tem estado a correr muito bem. Mas “infelizmente, as cartas de vinhos dos restaurantes estão dispostas por regiões, em Portugal e no mundo”, lamenta Rui Cunha, explicando que, por isso, Valle Pradinhos é muitas vezes o último, ou um dos últimos vinhos dos menus, enquadrado nas “Outras regiões”, em listas onde o Douro e o Alentejo, as regiões mais mediáticas portuguesas se destacam. “Por isso as pessoas não pedem o nosso vinho, a não ser quando reconhecem a garrafa e a escolhem porque conhecem o produto e a sua qualidade”, salienta o enólogo, acrescentando que, “por tudo isso, é que a região precisa de mais produtores conhecidos, como Valle Pradinhos, no mercado”.

Há alguns anos, esta empresa transmontana começou também a produzir um vinho rosé, “porque sentimos que tem um lugar à mesa”, explica Rui Cunha. Fazê-lo foi um passo dado de forma pensada e calma, em conjunto com a distribuidora, até ser desenhado um rosé produzido com base nas uvas das castas Touriga Nacional e Tinta Roriz, “com um perfil frutado, macio, com boa acidez, seco, para ser bebido como aperitivo ou a acompanhar uma boa refeição”. Para além da criação deste rosé, a empresa também subiu o patamar de qualidade de vinhos com a introdução, no mercado, de um Grande Reserva, que “implica um cuidado muito maior na selecção da uva, das parcelas e das castas” em relação ao Reserva. Neste tinto entram uvas de Cabernet Sauvignon, a casta tinta que diferenciava Valle Pradinhos no passado, mais Touriga Nacional.
Há uns anos foi lançado um varietal de Touriga Nacional, e este ano, é a estreia de um vinho de Tinta Gorda, “uma casta um pouco esquecida do Planalto Mirandês”, sobre a qual pouco se sabe, a não ser que foi trazida de Espanha, e que também se chama Juan Garcia, ao que parece o nome de quem a trouxe do país vizinho para o planalto transmontano.

Hoje a empresa produz e comercializa anualmente acima de 100 mil garrafas de Valle Pradinhos, um tinto transmontano que está nas grandes superfícies a um PVP acima de 15 euros

As modas e os novos vinhos

Porque o vinho é moda, quer se goste quer não, primeiro aconteceu a dos tintos e até havia gente que dizia que branco não era vinho. Mas é, e depois começou a beber-se cada vez mais branco, à medida que a sua qualidade foi melhorando e foram surgindo vinhos com características diferenciadas em todas as regiões do país, com opções para todos os momentos à mesa. Mais recentemente, os espumantes deixaram de ser bebidos apenas em festas de aniversário e de final do ano, para o serem também noutras alturas e momentos da refeição, fruto, com certeza também, da melhoria da sua qualidade. O rosé, que nem se provava, já surge na mesa dos portugueses, e há agora quem goste de tintos menos alcoólicos, um bocadinho mais abertos, ao estilo dos vinhos produzidos com a Pinot Noir. “Foi à procura de criar um vinho com este estilo, mais leve e ácido, menos extraído, diferente do Pinot Noir, que criámos um vinho da casta Tinta Gorda”, explica Rui Cunha.

Nos brancos foi também lançado um Grande Reserva, maioritariamente de Riesling, a casta dominante nos brancos da casa e uma pequena edição do Lost Corner tinto feito apenas com castas portuguesas, que surgiu para festejar os 100 anos de Valle Pradinhos, casa que começou em 1912.
Foram escolhidas as castas Tinta Amarela, Tinta Roriz e Touriga Nacional, para um vinho que ainda não tinha nome até que Maria Antónia, a proprietária, sugeriu primeiro que se chamasse Le Coin Perdu. Era o nome de uma marca que o personagem principal do filme “Um bom ano”, do realizador Ridley Scott, baseado no livro homónimo, encontra depois de entrar na cave de uma propriedade que herda em França.

Interpretado pelo actor neo-zelandês Russel Crowe e pela actriz francesa Marion Cotillard, esta ficção foi filmada sobretudo no Chateau La Canorgue, antigo feudo erigido pelo papa Bento XIV e hoje empresa familiar dedicada à produção de vinhos da denominação de Luberon, do Vale do Ródano. Le Coin Perdu, a designação francesa do vinho estava registada, mas The Lost Corner, em inglês, não, e ficou para Valle Pradinhos. O tinto era “um vinho que o protagonista tinha na memória, por ter provado muitas vezes com o tio, e era oriundo de uma vinha a que o caseiro da casa, um velho resmungão francês, chamava Le Coin Perdu, conta Rui Cunha, salientando que é isso que é Valle Pradinhos em Portugal e no mundo, porque quase “ninguém sabe onde está”. O rótulo tem a foto de um mapa antigo, e um dedo a apontar para a localização da propriedade. “Mantemos apenas edições especiais deste vinho, duas a três em cada dez anos, porque nem sempre temos colheitas com qualidade e perfil suficientes para o fazer”, explica o enólogo. Valle Pradinhos vende quase tudo o que produz em Portugal. A exportação é residual, e quase toda para Paris e apenas Paris. Mas porquê? Segundo Rui Cunha, isso deve-se a haver, na cidade, muito português de segunda geração, pessoas com o palato educado à francesa, “que gostam de beber um vinho português bem feito”.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Quinta do Noval: Para além do Porto Vintage…

Quinta do Noval

A Quinta do Noval é uma das mais icónicas e respeitadas propriedades vitivinícolas da região do Douro, com uma história que remonta ao século XVIII. Localizada em Vale de Mendiz, no coração da região demarcada do Douro, beneficia de um terroir único, caracterizado por solos de xisto e uma exposição solar privilegiada, que conferem, aos […]

A Quinta do Noval é uma das mais icónicas e respeitadas propriedades vitivinícolas da região do Douro, com uma história que remonta ao século XVIII. Localizada em Vale de Mendiz, no coração da região demarcada do Douro, beneficia de um terroir único, caracterizado por solos de xisto e uma exposição solar privilegiada, que conferem, aos seus vinhos, uma identidade distinta. No ano de 1993 entrou numa nova fase da sua história, quando foi adquirida pelo grupo francês AXA Millésimes. Esta integração, liderada por Christian Seely, marcou o início de um período de forte investimento, renovação e reafirmação da identidade da Quinta do Noval como referência de qualidade e inovação no setor vitivinícola.

A casa tornou-se particularmente célebre pelo seu lendário Porto Vintage Nacional, um vinho raro produzido a partir de uma pequena parcela de vinhas velhas não enxertadas. “Desde 2011 que declaramos todos os anos um Porto Vintage Quinta de Noval, apenas e só porque tivemos a oportunidade de, em cada ano, fazer pelo menos uma pequena quantidade de vinho que teve a qualidade necessária para ser declarada como tal. Estamos perfeitamente sensíveis e muito conscientes do privilégio e responsabilidade de gestão da Quinta do Noval. Já no caso do Vintage Quinta do Noval Nacional só sai mesmo nos anos em que o consideramos monumental, como é o caso do 2023 que vamos provar hoje”, contou Christian Seely no dia do lançamento. Para além dos vinhos do Porto e da aposta crescente nos vinhos Douro, a Quinta do Noval também produz azeite de elevada qualidade, proveniente de seis hectares de olival cultivados com as variedades tradicionais portuguesas: Cordovil, Verdeal e Madural.

O azeite é produzido a partir de azeitonas colhidas manualmente e prensadas a frio, garantindo a preservação dos aromas e sabores naturais da fruta e um produto de excelência. Em 2019, a Quinta do Noval deu um passo estratégico importante ao adquirir a Quinta do Passadouro, propriedade vizinha situada também em Vale de Mendiz. A aquisição da Quinta do Passadouro permitiu à Quinta do Noval expandir a sua área de vinha de 145 para 181 hectares, consolidando-se como uma das maiores propriedades da região.

A aposta forte nos Douro

Num dia fresco de primavera fomos recebidos na lindíssima propriedade da Quinta do Noval pelo enólogo Carlos Agrellos, o CEO Christian Seeley e a Brand Embassador Ana Carvalho. A ocasião revelava-se de festa por dois momentos muito especiais. Por um lado, a apresentação dos novos Portos Vintage 2023, incluindo o lendário Noval Nacional. Por outro e não menos importante, o lançamento e prova de vários vinhos brancos e tintos, fruto de uma estratégia recente de forte aposta na produção de vinhos Douro, com a construção de uma adega com capacidade para umas impressionantes 1100 barricas que tivemos o privilégio de visitar. “Estávamos muito focados nos vinhos do Porto e o mercado, maioritariamente o premium onde nos posicionamos, pedia-nos vinhos de mesa, sobretudo brancos, dos quais tem aumentado significativamente a procura nos últimos anos. Com a construção deste armazém para armazenamento e envelhecimento de vinhos de mesa, contamos chegar às 400 mil garrafas produzidas”, refere Carlos Agrellos.

A diversidade e quantidade de barricas e a vinificação por castas, na sua maioria, permite criar o perfil desejado em cada vinho. Nota-se também, nos novos vinhos provados que daremos destaque nesta peça, uma menor extração, sem perder o caráter único do terroir e a capacidade inegável de evolução que os vinhos possuem em garrafa. Após a visita e antes de um almoço que foi acompanhado por diversas preciosidades da garrafeira particular de Christian Seely, as entradas foram servidas sob a sombra do majestoso Cedro da Quinta do Noval. Com sua imponente estatura, esta árvore centenária domina a paisagem da propriedade, guardião silencioso da história da quinta, testemunha de muitas gerações que trabalharam ali e cuidaram da terra com dedicação. E foi neste cenário que provámos alguns dos brancos de colheitas anteriores, para atestarmos a sua evolução positiva. E que bem que estavam!

Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Grande Prova: Monção e Melgaço – O expoente do Alvarinho

GRANDE PROVA MONÇÃO E MELGAÇO

Se fossem necessárias algumas razões, bastariam duas para justificar o presente trabalho: por um lado, a fama secular dos vinhos desta sub-região e, por outro, a sua originalidade centrada na casta Alvarinho que ganhou, e bem, um lugar especial nos consumidores nacionais e estrangeiros. Mas voltemos atrás para recordarmos o nosso colega João Paulo Martins […]

Se fossem necessárias algumas razões, bastariam duas para justificar o presente trabalho: por um lado, a fama secular dos vinhos desta sub-região e, por outro, a sua originalidade centrada na casta Alvarinho que ganhou, e bem, um lugar especial nos consumidores nacionais e estrangeiros. Mas voltemos atrás para recordarmos o nosso colega João Paulo Martins quando este referia, nas edições do seu Guia de Vinhos de Portugal nos finais dos anos 90, que existiam Vinhos Verdes e, depois, existiam os Alvarinhos, numa clara alusão ao elevado padrão qualitativo destes últimos, e sempre com destaque para os provenientes de Monção e Melgaço. Claro está que os Verdes de hoje nada têm a ver com os dos anos 90, numa evolução que acompanhou a da generalidade dos brancos nacionais. Mas os vinhos de Monção e Melgaço continuam a ser algo de muito especial, diferente em todos os sentidos, com uma notoriedade histórica onde, já naquela altura, pontificavam marcas como Cêpa Velha, Deu-la-Deu ou Palácio da Brejoeira, todas elas verdadeiros marcadores de um perfil de Alvarinho proveniente de um território de excelência.

Solos e altitudes

Mas afinal que território é este? Protegido por montanhas, com um microclima mais continental do que a média da restante região dos Vinhos Verdes (ou seja, com maior amplitude térmica), Monção e Melgaço caracteriza-se climatericamente por invernos frios e chuvosos e verões que se podem qualificar como quentes. Tanto assim é que, no verão, entre Caminha no litoral e Monção, separada do mar por uma cadeia montanhosa, a diferença de temperatura pode chegar aos 15ºC apesar da mera distância ser de 35 quilómetros. Tal como sucede um pouco pelo país, existem em Monção e Melgaço diferenças de solos e altitudes, sendo que tanto o Alvarinho como as suas declinações de perfil são mais moldadas pela importância dos primeiros. Com efeito, mais do que a altitude, é o tipo de solo de origem granítica (terraços fluviais, com ou sem calhau rolado, aluviões ou franco-arenosos) que melhor determina o resultado de cada néctar. Da mesma forma, é considerando cada tipo de solo que se deve privilegiar o uso de barrica, nova ou usada sendo que, por regra, é nos solos franco-arenosos aqueles em que as barricas de segundo ano dão melhores resultados, originando alguns dos melhores vinhos da sub-região e do país.

Reconhecido há quase um século, em 1929 (vinte anos depois da demarcação da Região dos Vinhos Verdes), este território já foi terra de tinto, com grande sucesso na exportação no final do século XIX, quer pela sua qualidade, quer pela crise na produção europeia que se seguiu à filoxera. Conhecida desde o século XVII como “a terra dos vinhos”, Monção tem fama desde a Idade Média e, como todas as vetustas regiões de vinho no mundo, foi-se adaptando. Mas foi preciso chegar a meados do século XX para o Alvarinho se começar, aos poucos, a impôr. Com referências desde o século XVIII, só a partir da segunda metade do século passado se começa a comprovar que o Alvarinho, em Monção e Melgaço, é especial. Nos anos 60 começam os relatos dos bons resultados da casta e, já nos anos 70 surgem, ainda que timidamente, marcas que engarrafam um branco com base em Alvarinho de perfil tendencialmente seco e delicado (em garrafa escura para não oxidar…), longe das versões mais ácidas e desequilibradas que se encontravam em restaurantes e pensões por todo o norte do país.

O Alvarinho e a barrica

Saltando vários anos em diante, encontramos dois outros marcadores essenciais do tempo para este sub-região. Um primeiro, em 1974 e 1982, respetivamente a data da plantação da primeira vinha contínua de Alvarinho e a data da criação da primeira marca de Alvarinho de Melgaço, ambas pela conhecida Quinta de Soalheiro. Depois, em 1987, quando Anselmo Mendes começa os seus ensaios de Alvarinho fermentado em barrica. A escolha do carvalho e da floresta, das tostas, a dimensão da barrica, o aperfeiçoamento da bâttonage (considerando que o bago do Alvarinho é pequeno, originando mostos intensos à partida) e o controlo da oxidação, tudo são técnicas que vários produtores da sub-região vão abraçar e que Anselmo Mendes preconizou com antecipação. De tal forma que, já no presente século, encontramos quase duas dezenas de Alvarinhos de Monção e Melgaço fermentados e/ou estagiados em barrica, muitos deles num patamar altíssimo de qualidade.

A par de Anselmo Mendes e da Quinta do Soalheiro (sobretudo na referência Reserva) já referidos, há vários anos que encontramos produtores a usar parcial, ou totalmente, barricas, casos da Quinta do Regueiro, Quinta de Santiago, Quintas de Melgaço, sem esquecer a Provam ou a Adega Cooperativa de Monção, João Portugal Ramos, entre outras referências. Na prova que relatamos abaixo, e a par dos nomes já referidos, também os produtores Márcio Lopes, Casa de Paços, Constantino Ramos e, bem assim, as marcas Milagres, Barão do Hospital e Nostalgia usam barrica parcial ou totalmente.

Não espanta, assim, que a área de vinha em Monção e Melgaço não tenha parado de crescer, sinal de vitalidade da área. O número de hectares aproxima-se dos 2000 (grandíssima parte plantados com Alvarinho), sendo a zona de Melgaço a que mais cresce. A notoriedade da casta e da sub-região está consolidada a nível nacional, os vinhos são procurados sobretudo nos restaurantes, e o preço médio é claramente mais alto comparado com o restante Vinho Verde e com muitos dos brancos do país. Para tudo isto também contribuiu o bom trabalho das respetivas cooperativas. Falta, talvez, uma maior projeção internacional, havendo caminho a percorrer na especificação e destaque de Monção e Melgaço relativamente à região dos Vinhos Verdes, já de si bastante internacionalizada e procurada, mas muito centrada em gamas de entrada. Nota final para uma nova vaga de produtores na região, alguns deles enólogos noutras parte do país, caso de Luís Seabra, Márcio Lopes, Constantino Ramos, David Baverstock e António Braga. Isto para não falar de players de mercado que não querem perder a oportunidade de ter uma operação em Monção e Melgaço, casos de João Portugal Ramos e, mais recentemente, da Symington Family Estates. Esta circunstância de atratividade de excelentes profissionais espelha bem o potencial da região e os vinhos em prova, cujas notas deixamos abaixo, confirmam plenamente.

(Artigo publicado na edição de Julho 2025)

 

Costa Boal: Apostar na diferença

Costa Boal

A Costa Boal Family Estates é uma empresa produtora de vinhos nas regiões do Douro, Trás-os-Montes e, desde 2020, em Estremoz, no Alentejo. A tradição da vinha e do vinho na família de António Boal, 45 anos, o seu fundador, remonta a 1857 e tem origem numa das aldeias da região duriense, Cabêda, no planalto […]

A Costa Boal Family Estates é uma empresa produtora de vinhos nas regiões do Douro, Trás-os-Montes e, desde 2020, em Estremoz, no Alentejo. A tradição da vinha e do vinho na família de António Boal, 45 anos, o seu fundador, remonta a 1857 e tem origem numa das aldeias da região duriense, Cabêda, no planalto de Alijó. Com foco nas vinhas e apoiada numa equipa coesa, a Costa Boal tem apostado na valorização do seu património vitivinícola para construir um projeto de vinhos consistente e de qualidade. Os seus autores são o próprio António Boal, e Paulo Nunes, enólogo há muito tempo ligado a este projecto.
O património vitícola e de terroirs da Costa Boal permite-lhe produzir uma diversidade de estilos de vinhos cuja qualidade e distinção lhe tem permitido crescer e solidificar o seu posicionamento nos mercados onde está presente. E não vai parar por aqui, já que António Boal está sempre a pensar em novos investimentos, feito com base numa procura de novos terroirs, onde existam, de preferência, vinhas velhas, a partir dos quais possa produzir, e oferecer ao mercado, vinhos distintos.

Costa Boal

 

A Herdade dos Cardeais fica numa zona mais fresca do Alentejo e os seus solos têm origem numa faixa de transição entre xistos e os mármores de Estremoz

 

Oportunidade no Alentejo

António Boal, 45 anos, é também natural de Cabêda. Desde muito novo, acompanhou o pai nos trabalhos agrícolas da família, ajudando a fazer a vindima, as podas, os tratamentos e até a plantação de vinha. Com o falecimento do progenitor, tinha então 19 anos, tomou nos braços o negócio herdado, depois de já ter adquirido algum conhecimento no curso técnico de Gestão Agrícola da Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Rodo, na Régua. Mais tarde fez também o curso de Engenharia Alimentar no Instituto Piaget, em Mirandela.
Aos 24 anos começou a desenhar os primeiros vinhos para o mercado regional. Mais tarde, aventurou-se no mercado nacional e depois na exportação, sempre com muita atenção a cada passo dado, e vontade de adquirir conhecimento que lhe permitisse ir mais longe. Foi esse que o fez decidir crescer investindo noutras regiões para além da sua de origem, o Douro.
Já foi com o actual sistema de distribuição, baseado em distribuidores regionais em Portugal e distribuidores locais nos mercados externos onde está presente, já montado, que avançou, primeiro para Trás-os-Montes e, mais recentemente, para o Alentejo.

Comprou a Herdade dos Cardeais após alguns anos à procura de oportunidade de investimento na região. “Mas tudo o que me aparecia eram sempre projectos demasiado grandes, com mais de 70 hectares de vinha, o que exigiria uma estrutura enorme e a construção de uma força de vendas muito grande, o que não era o meu objectivo”, conta António Boal. Até que surgiu a oportunidade de comprar a Herdade dos Cardeais, que foi adquirida em 2020.
Nessa altura tinha 10 hectares de vinha, uma adega e um stock de vinhos de 140 mil litros. Para além disso, o encepamento era composto por vinhas com cerca de 20 anos das castas tintas Aragonez, Syrah, Cabernet Sauvignon, Petit Verdot e Alicante Bouschet e brancas Antão Vaz, Roupeiro e Arinto, este plantado em 2014, o que agradou ao enólogo da empresa, Paulo Nunes, já que havia o potencial para produzir os vinhos mais frescos que pretendia fazer no Alentejo.
“O objectivo da nossa empresa, desde o início, é fazer pequenos volumes com valor acrescentado, e foi por isso que comprámos a Herdade dos Cardeais, pois fica numa zona mais fresca do Alentejo e os seus solos têm origem numa faixa de transição entre xistos e os mármores de Estremoz”, explicou o proprietário da Costa Boal Family Estates durante o evento de lançamento.

Vinhos com assinatura

Foi a partir do que havia em stock que foram lançadas as primeiras referências da Quinta dos Cardeais, da colheita de 2019, em 2023. Mas os dois tintos de 2020, um Reserva e um Grande Reserva, e os dois brancos apresentados à imprensa, e ao mercado, foram totalmente produzidos pela equipa da casa.
“A grande diferença entre os vinhos da colheita de 2019 e os que estamos a lançar agora é que foram pensados na vinha”, o que implicou que “o maneio e a condução das plantas foram readaptados para produzir os vinhos que pretendemos”, explicou Paulo Nunes no almoço de lançamento das novas colheitas, que decorreu no restaurante Plano, em Lisboa. Ou seja, houve redução da carga de cachos por planta, e diminuição do volume de rega, o que deu origem a uma produção significativamente menor e contribuiu, com a “enologia minimalista” usada na adega, para que os vinhos “expressem toda a identidade da região”.

Um vinho é sempre melhor com uma boa história por detrás. E se esta não existir, “nós acabamos por ser mais um dos muitos que estão no mercado”, o que tornaria o negócio da sua empresa mais difícil de gerir e António Boal não quer. Foi, por isso, que só avançou para o Alentejo nesta década. “Se fosse apenas uma marca, engarrafava e até podia fazer o melhor vinho do mundo, mas não tinha a história, a adega, a terra, as castas, o perfil que idealizamos”, defende. Em 2025 lançou os primeiros vinhos das colheitas de 2021 em diante da Quinta dos Cardeais, “produzidos com a nossa viticultura e enologia”, salienta.
A filosofia do projecto da Costa Boal Family Estates é fazer vinhos a partir de pequenas quintas, com 10 a 12 hectares de vinha até agora, com controlo total da produção nas regiões onde está activa, “para não depender de terceiros”, onde tem, em cada uma delas, uma adega. “Esta forma de estar e agir no negócio é mais dispendiosa, mas permite-nos adquirir um conhecimento essencial para fazer vinhos diferenciados, cujas características variam com as condições de cada ano”, explica. Mas é preciso vendê-los e António Boal já sabe, hoje, a melhor forma de o fazer.

Um negócio de amizades

“O negócio do vinho passa pela proximidade”, pelo estabelecimento de amizades, explica, salientando que foi isso que lhe aconteceu muitas vezes ao longo do tempo. “Hoje tenho clientes que foram, primeiro, amigos”, revela dizendo que não basta chegar a um restaurante, apresentar um vinho e deixar a garrafa.
“Sem um relacionamento estabelecido não se vende vinho, porque é um negócio que tem, como base, relacionamentos e amizades que o tornam sustentável”, pelo menos nas empresas de pequena e média dimensão, que não têm grandes equipas de vendas com acesso a toda a rede de clientes. “É, por isso, que quando vou a qualquer parte do país, faço questão de visitar sempre vários clientes, os restaurantes que conheço, para cumprimentar as pessoas, saber como está a correr a venda de vinhos e o que precisam de nós. É parte essencial dos projectos”, defende.

António começou por ser agricultor e, depois, produtor de vinho. Mas isto não basta para gerir um negócio onde é essencial saber comunicar, vender e cobrar e garantir a sustentabilidade económica de forma duradoura. As bases para isso foram-lhe comunicadas pelo pai através de uma frase que este lhe dizia muitas vezes: juntar dinheiro custa, mas gastar é rápido. “No fundo, o que tenho feito é usar essa frase sábia colocando-a em prática, mantendo uma racionalização de custos que nos tem permitido aumentar o nosso património cada vez mais, e acrescentar valor nos produtos que colocamos no mercado”, explica o proprietário da Costa Boal Family Estates. “E não vamos ficar por aqui, já que projectamos avançar para mais regiões”.
Hoje a Costa Boal está presente em três regiões, Douro, Trás-os-Montes e Alentejo, a partir das quais engarrafa cerca de 400 mil garrafas de vinho. Neste momento é uma empresa estável, que já está a apostar no enoturismo, projecto que deverá arrancar com base numa quinta de 1932, que fica em Favaios. Nela vai ser desenvolvido um hotel e um restaurante. Mas não vai ficar por aqui, porque prepara-se para entrar noutras sub-regiões em breve. No ano passado adquiriu mais 10 hectares de vinha velha em Trás-os-Montes, o que faz, da Costa Boal Family Estates, um dos principais produtores com vinhas velhas nesta região. “Tanto eu, como o enólogo e o responsável de viticultura gostamos de desafios e o nosso limite é o céu”, diz ainda António Boal.

Costa Boal

 

As regiões e quintas da Costa Boal

 Douro

No berço duriense da Costa Boal, na aldeia de Cabêda, está instalada a antiga adega da família, datada de 1857. Mantém os lagares tradicionais de granito, nos quais se faz ainda a pisa a pé as uvas. É a casa onde repousam, entre outros, os Vinhos do Porto velhos e muitos velhos da Costa Boal, que aqui produz as referências Costa Boal e Flor do Côa.

Nesta região, a Costa Boal possui a Quinta dos Tojais (Cabêda, Alijó), Quinta do Sobredo (Vilar de Maçada, Alijó), Quinta Vale de Mouro (Vila Nova de Foz Côa), Quinta da Pia (Porrais, Murça) e a recém adquirida Quinta de Arufe, em Favaios, onde se vai desenvolver o primeiro projecto da marca na área do enoturismo.  A empresa produz também azeite a partir de oliveiras centenárias das variedades Madural, Verdeal e Cobrançosa nesta região.

 Trás-os-Montes

É das vinhas velhas da Quinta dos Távoras, em Mirandela, uma das propriedades da Costa Boal na região transmontana, que são colhidas as uvas para os vinhos Flor do Tua, Quinta dos Távoras e Palácio dos Távoras. A Costa Boal detém nesta região uma vinha histórica centenária, em Miranda do Douro, nas arribas do rio, mesmo junto à fonteira com Espanha.

A aquisição de mais 10 hectares de uma vinha velha, com mais de 67 anos, fez crescer a área explorada pela empresa para os 22 hectares, reforçando o seu posicionamento como produtor de vinhos de vinhas velhas.

Alentejo

A Costa Boal Family Estates chegou em 2020 ao concelho de Estremoz, sub-região do Alentejo, uma propriedade com 10 hectares de vinha, com a compra da Quinta dos Cardeais. É a partir dela que são produzidas as gamas Quinta dos Cardeais e Monte dos Cardeais. Em 2025 foram lançados os primeiros vinhos.

 

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Bairrada: Uma região de “clássicos”

Bairrada

Criada apenas em 1979, após vários anos de hesitações entre o poder político e os interesses dos agentes económicos, a Região Demarcada da Bairrada, antes de acolher regulamentação legal, já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território. Muitos são os testemunhos, enraizados nos […]

Criada apenas em 1979, após vários anos de hesitações entre o poder político e os interesses dos agentes económicos, a Região Demarcada da Bairrada, antes de acolher regulamentação legal, já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território. Muitos são os testemunhos, enraizados nos vestígios arqueológicos, que nos reafirmam a vitivinicultura como uma das principais atividades agrícolas que se estenderam desde a ocupação romana e perduram até à atualidade.

Se porventura nos quisermos apoiar no rigor do suporte documental, pode atestar-se que, já no ano 950, o seu território era conhecido como região vinhateira, conforme nos revela um documento existente na Torre do Tombo referente a uma doação ao Mosteiro do Lorvão de terras e vinhas na Silvã (Mealhada). Um outro documento refere uma “vinha em Rippela sob o monte Buzacco”, em 1086. Ou uma outra doação àquele Mosteiro, de “uma casa em São João e vinha na Pocariça” (Cantanhede), em 1176.

Contudo, o documento mais curioso é datado de 1137, e encontra-se igualmente na Torre do Tombo, no qual “D. Afonso Henriques autoriza a plantação de vinha na herdade de Eiras, sob o caminho público de Vilarinum (Vilarinho do Bairro, Mealhada) ao monte Buzacco (Bussaco), com a condição de lhe darem 1/4 do vinho, sem mais encargos e eles fiquem com as primícias e décimas do vinho…”. Um testemunho de inigualável valor que atesta a qualidade do vinho ali produzido, o qual servia de meio de pagamento dos impostos ao Rei.

OS PRIMÓRDIOS DA BAIRRADA

Não se pense que a criação da Região Demarcada do Douro, peticionada por 14 dos “principais lavradores de Cima do Douro e Homens Bons da cidade do Porto”, estribados pela visão de Sebastião José de Carvalho, não terá tido influência em diversas outras regiões do país onde se cultivava vinha e produzia vinho. A representação dirigida ao rei D. José I, em 31 de Agosto de 1756, foi estabelecida por Alvará, confirmado a 10 de Setembro desse mesmo ano, demarcando e, diz-se, protegendo a região duriense dos demais territórios produtores.

Se é certo que a instituição da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro somente aos vinhedos daquela região dizia respeito, a realidade mostrou-nos que, nos anos seguintes, houve extensas demandas legislativas que intervieram noutras zonas vinhateiras, determinando o arranque de diversas vinhas em “terrenos das vargens, lezírias e campinas” que fossem mais próprias, pela sua natureza, para nelas se promover a cultura cerealífera, tão necessária para a alimentação básica dos portugueses. Medidas drásticas que alteraram a paisagem vitivinícola portuguesa, dizimando a produção de vinha em larga escala. À data, tais medidas eram justificadas pela carência de cereais e falta de pão para o consumo das gentes. Por outro lado, visava-se diminuir a produção excessiva de vinho de qualidade inferior que, em concorrência desleal, acarretava elevados prejuízos para os de qualidade superior.

A região da Bairrada não terá ficado imune a estas medidas, por força dos alvarás que aplicaram a mesma lei às margens e campinas dos rios Mondego e Vouga e a mais terras que fossem de paul e lezírias. E, apesar de nesses alvarás se fazerem referências elogiosas aos vinhos produzidos “nos terrenos de Anadia, Mogofores e outros das mesma qualidade”, igualando estes vinhos aos criados nos “termos de Lisboa, de Oeyras, de Carcavelos, do Lavradio, de Torres Vedras, Alenquer…”, nesses tempos com notoriedade semelhante aos vinhos durienses, certo foi que, outro Alvará, agora de 18 de Fevereiro de 1766, já impunha como sujeição imediata o arranque de vinhas existentes em Anadia, Mogofores, Arcos, Avelãs de Caminho e Fermentelos”, terras bairradinas por excelência, duas delas citadas com louvor cinco meses antes.

Numa visão otimista, podemos considerar que o génio ímpar de Pombal, além de ter criado a primeira Região Demarcada do mundo, terá ensaiado outras demarcações, embora sem lhes ter dado o tratamento legislativo adequado. A da Bairrada terá tido atenção do seu pensamento, pois, pelo menos por duas vezes, referenciou os terrenos Anadia e Mogofores como sendo de óbvia qualidade para a produção de vinho.

 

“A Região Demarcada da Bairrada (…) já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território”

 

O PAIZ VINHATEIRO

Em 1866, por Portaria de 10 de Agosto, foi nomeada pelo Ministro do Reino, Andrade Corvo, uma comissão encarregada de estudar as diversas regiões do país “durante a vindima e da feitura do vinho nos principais districtos vinhateiros do reino”. Desta comissão faziam parte três membros e a cada um dos quais foi delimitada a respetiva área de estudo.

O Visconde de Villa Maior ficou com a área a norte do Rio Douro, António Augusto de Aguiar ficou responsável pela área de território entre os rios Douro e Tejo, excluindo o distrito de Lisboa, cabendo, por fim, a Joaquim Inácio Ferreira Lapa o distrito de Lisboa e todos os territórios a Sul do Tejo.

Publicado em 1867, nesse trabalho conjunto, mas com as respetivas indicações de cada um dos seus autores, existe um único mapa. E este, no conjunto de tantas outras regiões vitivinícolas nela representadas, refere-se apenas a uma, designado “Paiz Vinhateiro da Bairrada”. Um mapa que, mesmo desatualizado ao tempo da criação da região demarcada, mais de cem anos depois, serviu de base à sua delimitação. Naquele mapa há já uma marcação, a cores diversas, de três sub-regiões, ainda que em moldes distintos daquelas que foram, por exemplo, definidas em França. Neste, as sub-regiões são designadas por região de vinho branco, região de vinho tinto de embarque e região de vinho de consumo. Estabelecem-se, também, limites geográficos, definindo, a Sul, o concelho de Mealhada, ao tempo considerado o coração da Bairrada, e parte do concelho de Cantanhede; ao centro, o concelho de Anadia; a Norte o concelho de Oliveira do Bairro. Excluídos ficaram, a Sul, a freguesia de Souselas, no Centro, parte do concelho de Cantanhede e todos os de Vagos e Aveiro, e, a Norte, parte do concelho de Oliveira do Bairro.

As zonas nobres para vinhos tintos de embarque delimitavam-se, aos concelhos da Mealhada e de Anadia, enquanto as mais aptas para vinhos brancos situavam-se na margem esquerda do rio Certoma, até Óis do Bairro, S. Lourenço e Mogofores. Fora destes limites situavam-se as zonas de vinhos para consumo, classificando-se detalhadamente os de primeira, segunda e terceira categorias. Interessante é constatar o detalhe com António Augusto de Aguiar estudou a composição dos solos, identificando, com denodo, uma zona hoje muito bem conhecida por produzir vinhos de extrema elegância: “da Mealhada para o Luso, do Travasso para a Vacariça encontra-se uma mistura de solos, em que figuram retalhos de arenatas do terreno quaternário…”. Falamos, em parte, da zona de Cadoiços, onde se encontram hoje algumas das mais imponentes vinhas velhas da Bairrada e das quais nasce um dos grandes vinhos que constituem o painel de prova deste artigo.

Elaborado este estudo pouco após a grande crise do oídio, que afetando toda a viticultura nacional também não poupou o território da Bairrada, é um exercício curioso constatar como se dá a evolução do encepamento na região. Em 1850, o oídio surge de modo lancinante e, durante quase uma década, destruiu, quase por completo, toda a produção de uva na região. As castas mais atacadas foram, nas tintas, o Castelão e a Trincadeira, e, nas brancas, o “Boal Cachudo”, o Arinto e Mourisco. Perante estas adversidades, eis que surge uma uva salvífica, a Baga, fortemente resistente ao oídio. A partir de 1860, a atual intitulada casta rainha da Bairrada, conhece uma expansão até então nunca vista, tendo António Augusto de Aguiar, que por ela não morria de amores, escrito que, “se o amor por ella continuar como até agora, dentro de poucos anos toda a Bairrada fará plantações e vinhos extremes de uma casta só”.

A 28 de Dezembro de 1979, nasce a Região Demarcada da Bairrada, e com ela a sua delimitação geográfica que, curiosamente, não é assim tão distante daquela que havia sido desenhada mais de 100 anos antes por António Augusto de Aguiar.

 

ANTEVISÃO DE UMA REGIÃO

Com a industrialização do espumante e o nascimento das grandes casas engarrafadoras a partir dos anos 20 do século passado, assistiu-se a um crescimento exponencial da região. Caves São João, Caves Messias, Caves Aliança ou Caves São Domingos, entre outras, tornam-se os grandes centros produtores do país, engarrafando, comercializando e exportando vinhos para as colónias e Brasil. A demarcação era, à data, e já após o Dão ter procedido à sua demarcação enquanto região em 1908, uma temática não muito do agrado das grandes casas, que adquiriam vinhos em diversas regiões limítrofes para satisfazer a as suas necessidades de grande volume.

No início dos anos 50 dá-se início a uma contenda feroz entre, por um lado, os defensores da não demarcação, liderados pela maior referência da enologia nacional, Mário Pato, e, do outro lado, uma linha vanguardista defensora da necessidade de criar a região demarcada, tendo na linha da frente o Professor Américo Urbano.

Mário Pato, numa publicação de 1 de Outubro de 1953, no Boletim da Federação dos Grémios da Lavoura da Beira Litoral, clamava que a região começava a sofrer de uma “delimitomania” ou mania das regiões delimitadas, que amolece as faculdades mentais dos viticultores e lhes paralisa a atividade. Para o enólogo, o pedido de intervenção do Governo na delimitação da sua região causaria um atavismo e um encerramento dentro de si própria, que motivaria uma não evolução no acompanhamento do desenvolvimento dos métodos enológicos e, consequentemente, uma desvalorização dos vinhos produzidos. À data, dava como exemplo as regiões de Bucelas, Colares e Carcavelos, cujos vinhos começavam a perder notoriedade, invocando igualmente os exemplos do Dão e Vinhos Verdes que também não se mostrariam brilhantes.

Já Américo Urbano trazia para a defesa da demarcação preocupações que não são díspares das da atualidade, mostrando toda a pertinência. A este preocupava-o a concorrência feroz vinda das terras a Sul, onde os custos do granjeio eram muito inferiores e a qualidade dos vinhos, em que “milhentas de pipas de água anualmente são adicionadas aos mesmos”, era manifestamente inferior.

No meio das contendas, Américo Urbano não foi parco em palavras, acusando Mário Pato de ser o principal responsável pelo uso de técnicas enológicas que privilegiavam a produção de vinhos destinados ao lote, ao invés de dar o seu contributo para o aperfeiçoamento das características organoléticas que sempre distinguiram os vinhos da Bairrada. Uma conceção visionária que, ainda hoje, define o modo como se entende uma Bairrada de características muito distintas.

O interesse pela demarcação da região vai crescendo ao longo dos anos 60 e, em 1973, é criado o Grupo de Trabalho incumbido do estudo da Demarcação da Bairrada, composto pelos agrónomos Melchior Barata de Tovar e Octávio da Silva Pato, contando ainda com a colaboração de Mateus Augusto dos Anjos e de Luís Azevedo Correia. O relatório veio a revelar-se extremamente relevante para constituir as bases para a futura demarcação, incidindo sobre a orografia e hidrografia, geologia, solos, clima, práticas agrícolas, castas cultivadas, métodos de vinificação e tipos de vinho, proposta de demarcação e delimitação da região produtora e, entre outras, do direito à denominação de origem. Estava quase…

Para dar força a este movimento, Luiz Ferreira da Costa, figura icónica das Caves São João, agrega uma série de figuras relevantes da região e cria a Confraria dos Enófilos da Bairrada, em Junho de 1979, associação que foi absolutamente determinante, através de diversas iniciativas e contactos com as esferas do Governo, para derrubar as últimas barreiras tendentes à Regulamentação da Região Demarcada da Bairrada.

POR FIM, A DEMARCAÇÃO

A 28 de Dezembro de 1979, pela Portaria nº 709-A/79, nasce a Região Demarcada da Bairrada e, com ela, a sua delimitação geográfica que, curiosamente, não é assim tão distante daquela que havia sido desenhada mais de 100 anos antes por António Augusto de Aguiar. Exigindo-se a condução da vinha em forma baixa, definem-se, desde logo, as castas autorizadas, que serão objeto de apreciação e cadastro pelos serviços competentes, definindo-se, como tintas autorizadas, a Baga com mínimo de 50%, Castelão ou Moreto e Tinta Pinheira, autorizando-se, desde que não excedessem 20% do povoamento total, o Alfrocheiro Preto, Bastardo, Preto de Mortágua, Trincadeira, Jaen e Água Santa. Nas castas brancas, exigindo um mínimo de 60% do povoamento, Bical, Maria Gomes (Fernão Pires) e Rabo-de-Ovelha, autorizando-se com um máximo de povoamento total de 40%, o Arinto, Cercial, Chardonnay e Sercialinho, lista que mais tarde havia de ser revista. Nesta primeira abordagem que, até aos dias de hoje, havia de ter diversas alterações, definiu-se a obrigatoriedade de a vinificação ser realizada dentro da região em adegas inscritas para o efeito, limitou-se a produção a um máximo de 55 hectolitros por hectare de vinha, parametrizou-se um teor alcoólico mínimo de 11% vol. para os vinhos e fixou-se estágios obrigatórios mínimos de 18 meses para tintos e 10 meses para brancos.

Bairrada

Inicialmente, ou seja, em 2003, a menção “Clássico” ficou destinada apenas a vinhos tintos, cingindo-se às castas Baga, Camarate, Castelão (Periquita) e Touriga Nacional

 

“CLÁSSICO”, UM SELO DE IDENTIDADE

Após a demarcação e até ao virar do século, muitas foram as mudanças de paradigma a que se assistiu na Bairrada. As Adegas Cooperativas e as grandes casas engarrafadoras foram colocadas perante uma nova realidade de produção e consumo. O mundo pedia vinhos com maior identidade, vinhos de Quinta, produções menores, mas muito mais exigentes e qualitativamente nos antípodas daquilo que até então se fazia. Os mercados das colónias haviam desaparecido, o Brasil minguava na procura. Uma nova Bairrada despontava e muitas foram as grandes casas que soçobraram. Adegas Cooperativas, como Vilarinho do Bairro, Mogofores e Mealhada, ou casas engarrafadoras como Barrocão, Valdarcos, Monte Crasto, entre outras, finaram-se. Felizmente, houve casos de grande sucesso na mudança, como foram as Caves São João, que já em 1971 haviam adquirido a Quinta do Poço do Lobo, ou as Caves Messias, com produção de vinhos de uvas próprias na Quinta do Valdoeiro.

Algo havia a fazer para contrariar uma certa desorientação estratégica que afetava a Bairrada. A preocupação dos agentes económicos centrava-se na adequação das potencialidades da região, sempre associadas a uma nomenclatura de qualidade e certificação, alcançando a sua melhor valorização no mercado.

A Portaria nº 428/2000, de 17 de Julho, vem fixar as castas aptas à produção de vinho em Portugal. Nessas condições, entendia-se como necessário efetuar algumas alterações relativamente aos encepamentos existentes permitidos para a DOC Bairrada, do mesmo modo que era crível que podia haver uma maior variedade de vinhos de qualidade produzidos na região e reconhecidos no mercado. Subjacente a estas alterações, que viriam alterar substancialmente o número de castas autorizadas à menção DOC, nada mais, nada menos que 26, algumas delas com pouca expressão na região, um juízo avisado justificou a criação de uma certificação especial para os vinhos da Bairrada que pudessem respeitar determinados parâmetros de tradição e práticas antigas, tanto de viticultura como de vinicultura, adotando-se, por via dessa premissa, a menção “Clássico”. Inicialmente, ou seja, em 2003, a menção “Clássico” ficou destinada apenas a vinhos tintos, cingindo-se às castas Baga, Camarate, Castelão (Periquita) e Touriga Nacional, obrigando os vinhos a representar, em conjunto ou separadamente, 85% do encepamento, não podendo a Baga representar menos de 50%. Obrigava, ainda, a que a uva fosse proveniente de vinhas com rendimento não superior a 55 hectolitros por hectare, não podendo o vinho tinto possuir um teor alcoólico inferior a 12,5%. É, no que toca ao tempo de estágio, que surgem as condições mais exigentes, obrigando os vinhos tintos com aquela menção a poderem apenas ser comercializados  após um estágio mínimo de 30 meses, 12 dos quais obrigatoriamente em garrafa. A Portaria 211/2014, de 14 de Outubro, repõe a justiça e concede, igualmente, aos vinhos brancos a possibilidade de ostentarem a menção “Clássico”, definindo como castas aptas à mesma a Maria Gomes (Fernão Pires), Bical, Cercial e Rabo-de-Ovelha. Aqui, houve também a preocupação em regular a produção máxima por hectare, que seria idêntica à das castas tintas, limitando o volume alcoólico dos brancos aos 12% mínimo, obrigando ainda a um estágio mínimo antes de comercialização a 12 meses, seis dos quais em garrafa. Em matéria de reposição de injustiças, a Portaria nº 335/2015, de 6 de Outubro, veio colmatar uma ausência inadmissível, colocando a histórica Arinto, casta já referenciada por António Augusto de Aguiar, em 1867, como uma das mais relevantes uvas brancas do encepamento do território da Bairrada.

Terminamos esta longa, mas rica história de um território abençoado pela proteção das Serras do Bussaco e Caramulo, bafejado pela influência do Atlântico, com a afirmação de qualidade superior dos vinhos que ostentam a menção “Clássico”, concedendo à Bairrada um estatuto de maior relevância em boa hora regulamentada, e que tão bem é expressa nos 12 vinhos que brilharam na nossa prova.

* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

(Artigo publicado na edição de Junho de 2025)