GPS: Chegou ao seu destino

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de irritante entre os que os olhos vêem e o que as máquinas nos dizem. O material nem sempre tem razão.

Luís Francisco

Não sei se é uma tendência universal ou apenas mais uma das minhas manias. Considero-me uma pessoa de bom feitio, mas assumo a solene embirração que cultivo com as vozes dos aparelhos de GPS. Todas. De todos os aparelhos. Embirro tanto que evito ao máximo utilizar a tecnologia que – dizem – nos leva a todo o lado sem desnecessárias perdas de tempo, seja a decifrar pistas na desconcertante sinalética das nossas estradas, seja no contacto verbal com os locais que, as mais das vezes, muito falam e nada explicam.

Infelizmente, não nasci com capacidades de navegação nem sentido de orientação apurado que me permitam abdicar sem prejuízo das ajudas à navegação. E, portanto, de vez em quando lá tenho mesmo de escutar as directivas deterministas de quem me aconselha, “por favor”, a “abandonar a rotunda na segunda saída” – leia-se: é para seguir em frente – ou a, “dentro de 600 metros, seguir pela esquerda” na auto-estrada – que é, adivinharam, como quem diz para continuar na mesma via.

Para espiar o pecado capital de ceder à tentação da papinha feita em termos de adivinhar o caminho do ponto “a” ao ponto “b” sem passar pela casa da dúvida, obrigo-me a uma série de penitências. Primeiro, colecciono todas as histórias que me chegam ao conhecimento de gente que se perdeu ou se meteu em sarilhos por seguir cegamente o GPS, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos para o que está à sua frente. Acreditem, não são assim tão poucas como isso e algumas com consequências desastrosas. Por outro lado, anoto fervorosamente todos os erros que detecto nas infernais maquinetas. Se a 950 metros de altitude o sistema de navegação indica 976, isso quer dizer que, umas dezenas de quilómetros antes, quando a indicação era de 14 metros de altitude, na verdade estávamos abaixo do nível do mar? Não quero ser alarmista, mas com isto do aquecimento global e da subida dos oceanos, dá para desconfiar…

Mas então, perguntará o leitor que teve a paciência de me acompanhar até este quarto parágrafo, se este tipo abomina assim tanto os sistemas de navegação, por que motivo foi dar o nome “GPS” a estas crónicas? Bom, a explicação é simples. Quando surgiu a ideia de recordar histórias passadas por esse país profundo em busca dos vinhos e dos enoturismos que nos encantam, a primeira história que me veio a cabeça foi a que se passou à chegada à Fundação Eça de Queiroz, ali para as bandas de Baião. Nessa breve, mas intensa, experiência congregaram-se os dois pecados originais da “gpsdependência” humana nos dias que correm: erros da máquina e cérebro humano desligado. Isso e um motorista de autocarro com sonos atrasados. Mas já lá vamos.

Tão perto e tão longe

“Chegou ao seu destino.” A voz do sistema de navegação – não sei se já vos disse que embirro com elas todas… Já? OK, adiante – soou calma, impessoal e autoconfiante como sempre. Mas estava tudo errado. Primeiro, não tínhamos chegado a lado algum. Segundo, aquilo onde estávamos não era um destino. Nem sequer um meio. Parecia mais um fim. Do mundo. A estrada de terra batida desaparecera e a vegetação dava-nos pela altura da janela. Se isto era a Fundação Eça de Queiroz, então o Parque Nacional da Peneda-Gerês seria a Biblioteca Nacional…

Paramos o carro e respiramos fundo. Como é que deixámos esta coisa guiar-nos até ao mato profundo sem desconfiarmos de que algo estava errado? A primeira tentação foi apontar a culpa ao sono desbragado do motorista do autocarro estacionado lá em baixo na estrada nacional, mas convenhamos que nenhum dos dois ocupantes da viatura tinha idade para se agarrar a desculpas infantis… Prometo que não me esquecerei de explicar esta cena do motorista, mas primeiro convém assumir que durante um breve período a evolução da espécie homo sapiens para homo sapiens sapiens se tornou uma falácia quando confrontada com os dois espécimes que ali coçavam a cabeça no meio de uma paisagem belíssima, mas completamente destituída de qualquer sinal de civilização.

“Chegou ao seu destino” em que aspecto? Seria o nosso destino regressar às origens primitivas e tornarmo-nos caçadores-recolectores naquele prado viçoso rodeado de grandes montanhas? A Fundação Eça de Queiroz, afinal, não existia e tínhamos feito centenas de quilómetros atrás de um embuste? Ou – hipótese igualmente válida naquele momento de estupor – não estávamos a ler bem a paisagem e havia mesmo ali uma casa, vinhas e muitas histórias para descobrir? Na dúvida, o melhor era sair do carro e descobrir.

Saímos. E logo percebemos que, à nossa frente, para lá da estrada nacional que de repente voltamos a descobrir, havia um desvio que descia para um vetusto conjunto de edificações em pedra, coberta por heras e rodeada de vinhas e árvores. À nossa frente, mas uns 20 metros abaixo do local onde nos encontrávamos… O erro do GPS tinha sido minúsculo, mas a barreira vertical era intransponível. Há pouco tínhamos passado naquela mesma estrada, lá ao fundo, e falhado o desvio. Seguiu-se uma bem-intencionada tentativa do GPS para nos fazer dar a volta, enviando-nos por uma estrada secundária, primeiro, depois por ruas estreitas numa aldeia deserta e, finalmente, por picadas cada vez mais residuais até ao esquecimento total do mato.

O sono dos justos

Após uma audaz inversão de marcha, regressámos à estrada e entrámos então no desvio para a Casa de Tormes, onde Eça de Queiroz remoeu saudades dos salões de Paris e escreveu algumas das melhores prosas da sua obra imortal. O caminho era óbvio e até estava sinalizado. Como fôra possível falhá-lo na primeira passagem? E então lembrámo-nos do motorista do autocarro.

Menos de 500 metros antes do desvio, à saída de uma curva do caminho, estava um autocarro estacionado na berma, o compartimento das bagagens aberto. De lá saíam as pernas de alguém que ali encontrara uma sombra para repousar. Tudo bem, quem somos nós para recusar a alguém o direito inalienável de passar pelas brasas? O problema é que, com o tronco metido dentro do compartimento, aquela alma sofredora acabara por estender as pernas, que agora invadiam o asfalto. A guinada do nosso carro terá sido silenciosa, ou então o sono era muito pesado, porque quando olhámos pelo retrovisor ele não se mexera, ignorando completamente o facto de que, instantes antes, poderia ter ficado umas dezenas de centímetros mais baixo…

Comentámos o incidente entre o divertido e o alarmado, debatemos brevemente a hipótese de voltarmos para trás para avisar o homem, fizemos piadas sobre a eventual graduação dos vinhos de Tormes. Enfim, distraímo-nos por completo, falhámos o desvio e confiamos cegamente nas indicações do GPS. E lá fomos parar ao fim do mundo. Sem podermos sequer invocar a desculpa de termos passado pelas brasas no processo.

Artigo da edição nº37, Maio 2020

Bechamelo: A importância de ser restaurador

Estamos em plena era dos chefs, são muito poucos os que na juventude decidem ir formar-se para ser empregados de mesa e quase nenhuns a querer simplesmente ser restauradores, com tudo o que vem com a profissão. É no, entanto, aí que está o ponto fulcral da operação e êxito de um restaurante. Como é […]

Estamos em plena era dos chefs, são muito poucos os que na juventude decidem ir formar-se para ser empregados de mesa e quase nenhuns a querer simplesmente ser restauradores, com tudo o que vem com a profissão. É no, entanto, aí que está o ponto fulcral da operação e êxito de um restaurante. Como é que se inverte esta tendência?

Fernando Melo

Sempre venerei as segundas linhas, assim como sempre me impressionaram mal as ribaltas prematuras. Penso que decorre da natureza de qualquer profissão exercida de corpo e alma, preferir o trabalho à fama, assim como procurar a excelência em todos os detalhes. A profissão de restaurador – o melhor termo que encontrei até hoje – é além do ponto de convergência de todas as funções na operação de um restaurante, a mais importante de todas elas. As atribuições mais importantes são justamente aqueles por que ninguém dá, à excepção de quem tem muitos anos de experiência na área. E essa é a primeira grande razão para a falta de vocações, bem mais grave que a falta de cozinheiros ou empregados de mesa.

Quando se pensa num restaurante a partir do zero, junta-se normalmente uma equipa de especialistas para trabalhar conjuntamente no projecto. Tenho visto e acompanhado alguns desde o início dos inícios, com reuniões em chão de cimento cru e pontos de água e gás a brotar do chão sem perceber exactamente para quê. Há um arquitecto que trata de layouts de sala, iluminação, cores e mobiliário, que trabalha – quase sempre mal – juntamente com um projectista de cozinhas de produção, que juntos vão engendrando um orçamento que nunca se fica pelos números previstos; excede duas ou três vezes o que se pensava. E foi sempre porque não existia a figura do restaurador. Do homem que não espera pelo parecer do arquitecto; antecipa-se-lhe e faz o programa – é assim que se diz – para o espaço. Culpa-se frequentemente o arquitecto pelos desmazelos encontrados na exploração de um restaurante, quando o que aconteceu foi simplesmente o programa não ter sido pensado por alguém com experiência de facto. A pessoa de quem falamos é a única que pensa em tudo, e a quem depois se pede contas de tudo, sobretudo erros. É quem tem o peso da responsabilidade. Quantas vezes aspectos triviais de conforto tais como ruído, som e reverberação só são olhados depois da abertura, com custos brutais acrescidos? E a qualidade do som, quem a pensou? É um de mil pormenores de que invariavelmente todos os envolvidos se demitem, dizendo simplesmente que ninguém lhes disse. É por isso que não só não é fácil ter um restaurante como não querendo entrar por essas especificidades é melhor nunca chegar a ter.

São muito raros os chefs que têm esta percepção global e ao mesmo tempo minuciosa das frentes de operação de um restaurante. Os seus conhecimentos quando muito são úteis na definição inicial da cozinha, copa e espaços adjacentes, e mesmo assim nem sempre têm conhecimentos suficientes para as decisões que tomam. A figura do gestor – restaurador – é muito importante, é uma espécie de timoneiro que sabe sempre para onde está o barco a ir. Fico sempre muito nervoso quando vejo um chef na televisão num daqueles programas que aceitaram fazer, a opinar sobre a luz, o conforto, os equipamentos e até a salubridade, muitas vezes sem saber bem o que estão a dizer. Digo isto porque infelizmente nem os aspectos culinários fundamentais estão bem dominados e às vezes é de deitar as mãos à cabeça, tal a impreparação. De nada adianta encenar – é de encenação que se trata – aberturas dramáticas de câmaras frigoríficas com tudo podre e o chef aos gritos para impressionar, até porque nesse ponto já não há nada a fazer, para além de deitar tudo para o lixo, limpar e repor stocks. Pelo menos tem solução; a falta de cultura de restauração não. E o meu pensamento enquanto estou a ver esses programas vai para os restauradores, proprietários, directores, chamem-lhe o que quiserem, que sustentam a verve e o topete com que os chefs falam em tom de julgamento. Acho que está tudo mal.

O bom restaurador é não só uma pessoa com experiência e solidez de conhecimentos, como também e principalmente um motivador. Enternece-me o carinho que vejo na forma como grandes profissionais da nossa restauração promover os que trabalham consigo. E na operação na sala é muito fácil perceber isso, sobretudo pela coreografia com que se movimentam, mas sobretudo pela empatia que revelam ter. O chef tem de estabelecer os standards de serviço de cada prato e isso tem de ser reavivado todos os dias, talvez até antes de cada serviço, o chef de sala tem de governar o trabalho todo de serviço e fluxos de trabalho, mas mesmo perante as brigadas mais brilhantes, a figura do nosso restaurador é determinante. Não há dois dias iguais e as pessoas não são autómatos; tem de existir o “middleman” para adaptar o serviço à sala, e a cozinha ao serviço. A formação é a um tempo a tábua de salvação de uma casa e a garantia de regeneração. Escolher dois ou três colaboradores e ir com eles a outros restaurantes, chamando-lhes a atenção para pormenores e puxando pelo seu sentido crítico para que vão dizendo o que lhes parece. Viajar é outro aspecto crítico que na medida do orçamento disponível deve ser posto em prática. Não há formação específica nas escolas de hotelaria para esta figura especial que afinal é aquela de quem falamos quando falamos das casas onde nos sentimos bem. Agora já sabemos como se chama: restaurador.

Artigo da edição nº43, Novembro 2020

O tamanho não importa

Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas. Valéria Zeferino Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de […]

Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas.

Valéria Zeferino

Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de vinhos, então, propagam-se como míldio depois da chuva. Quantas vezes ouvimos os entusiastas vínicos a afirmar que só os produtores pequenos fazem vinhos interessantes, vinhos com alma, e as empresas grandes são apenas fábricas a produzir vinho “tecnológico”?
Os pequenos fazem vinho com paixão e muitas vezes de forma artesanal, alguns até indicam no rótulo “hand crafted wine” para que não haja dúvidas que o vinho é feito à mão (já agora, se passarem um dia numa adega, verão que por muita mecanização que haja, continua a existir muito trabalho manual que não pode ser dispensado). E os grandes, claro, só fazem contas. Tudo de forma industrial, a pensar no volume, onde a paixão não tem qualquer impacto. As adegas cooperativas, então, são aquelas que menos romantismo têm aos olhos dos enochatos.
Não tenho absolutamente nada contra os pequenos produtores, mas não dou créditos imediatos só pelo facto de serem pequenos. Acompanho alguns projectos desde o início e agrada-me ver a sua evolução. Há projectos fascinantes, feitos por pessoas determinadas, capazes com o seu conhecimento e dedicação criar grandes vinhos. Mas também vi alguns que produzem vinhos medíocres a serem vendidos caros aos turistas estrangeiros; uns que estacionam o seu carro ao pé das barricas (por mim, não é a falta de espaço, é a falta de rigor); outros que têm vinha e, não sabendo que destino lhe dar e com falta de conhecimento, produzem vinhos sem qualquer alma e conteúdo.
Ao mesmo tempo, conheço várias adegas cooperativas com estratégias bem definidas a nível de viticultura, produção e marketing.
O controlo rigoroso de higiene, equipamento renovado e até sofisticado que permite avaliar a maturação antes da vindima, fazer uma triagem das uvas que chegam à adega, condições ideais de engarrafamento, a abordagem responsável de viticultura – são hoje realidades de empresas sérias na área. As equipas de enologia são formadas por pessoas competentes e interessadas que falam com entusiasmo e paixão de cada vindima e das experiências que fazem.
Por exemplo, na Adega do Cartaxo faz-se classificação de parcelas, sendo as melhores uvas destinadas aos vinhos de topo de gama. Aplica-se um sistema de penalizações e incentivos para garantir uma constância de qualidade e sanidade da matéria prima. As grandes produções (acima dos 35 tn/ha) ficam altamente penalizadas; e se a uva chegar em estado perfeito de uma vinha com produção até 8 tn/ha, o preço sobe até 1 euro por quilo. Os funcionários da adega acompanham as vinhas dos sócios, controlam o estado sanitário e a maturação. Definem as castas a serem plantadas conforme a localização da vinha para obter o melhor resultado. Segundo o enólogo Pedro Gil, os sócios com a vinha na sub-região do Campo têm que plantar no mínimo 20% de Alicante Bouschet porque as habituais Castelão e Tinta Roriz lá não amadurecem tão bem. O Alicante Bouschet é a primeira casta a completar a maturação fenólica antes da alcoólica (pode ser com 13% já com boa maturação e grainhas maduras, enquanto a Castelão pode estar com 14% a apresentar grainha verde e tanino agressivo). Na zona do Bairro, já todas conseguem amadurecer melhor e basta só 10% de Alicante Bouschet.
Outro exemplo. Na Adega de Monção a equipa de enologia mantém a mesma liderança desde 1990. É importante em termos de consistência e conhecimento acumulado. O enólogo responsável, Fenando Moura, tem a experiência de 30 anos, que é praticamente uma vida. Falem e provem vinhos com ele, e verão o entusiasmo e a paixão nos olhos.
Aqui poderão contar-vos muito sobre a arte de blend. As uvas provêm das altitudes diferentes de 30-100 até 200-350 metros acima do mar; apanhadas em momentos diferentes; são vinificadas com e sem maceração pelicular (se forem apanhadas depois das chuvas, não fazem); com e sem micro-oxigenação; fermentam com leveduras diferentes e as temperaturas de fermentação também variam. Alguns destes vinhos têm mais corpo, outros mais acidez. Uns apresentam aromas tropicais, outros citrinos, ou florais. E tudo isto para garantir a consistência de qualidade e de características organolépticas dos seus vinhos. No total, são mais de 100 amostras. Daí sai o clássico Deu-la-Deu, o monovarietal de Alvarinho mais vendido em Portugal (cerca de 450 mil garrafas) e que é sempre uma aposta de confiança.
A Adega de Favaios é mais um exemplo de pfofissionalismo e qualidade, cuja gama de vinhos vai muito para além do seu sucesso comercial – Favaítos. Embora a casta Moscatel Galego tenha predominância, trabalham-se outras castas típicas do Douro. Mais uma vez, trata-se de profissionalismo de quem dirige e depois se traduz na equipa de enologia, com grande empenho pessoal e acompanhamento técnico dos viticultores.
É claro que nem todas as adegas cooperativas são assim. Algumas até já nem existem. Não sou pro ou contra ninguém, apenas acho que nos devemos livrar de preconceitos. Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente com outro que produz 250.000 garrafas, por exemplo.
A Quinta do Vale Meão produz mais de 200 mil garrafas do Meandro sem comprometer a qualidade. É um vinho que dá prazer de beber em qualquer parte do mundo. O Barca Velha tamém não é propriamente uma edição limitada: em função do ano produzem-se 16-18 mil garrafas (no universo de milhões de litros de vinhos noutras gamas). E é um vinho extraordinário de classe mundial.
Conseguir fazer muito e bem também é uma arte em aliança com profissionalismo. Sei que repeti esta palavra muitas vezes, mas, para mim, o profissionalismo vai sempre à frente do romantismo, de todo glamour que um produtor possa ter e, obviamente, da dimenção da sua produção.

Alentejo meu

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. Sem barreiras.

Luís Francisco

O saca-rolhas cumpre a sua função e os copos estendem-se para a garrafa acabada de abrir. O vinho corre e a conversa anima-se, ao ritmo da paisagem que desfila por baixo de nós, a linha sinuosa do rio brilhando aos primeiros raios do sol, prados, vinhas e montado numa sucessão de cores e texturas. De vez em quando, uma casa. E animais, muitos animais. Domésticos e selvagens, vagueando pela terra alheios à presença silenciosa do balão de ar quente e da meia-dúzia de seres humanos que nele se aninham.
Sim, quem nunca saboreou um copo de vinho branco bem fresquinho às sete da manhã a bordo de um balão de ar quente não sabe o que perde. Lá em cima não há medos nem sustos, só um constante maravilhamento. O balão progride suavemente ao sabor da leve brisa do amanhecer, que, por caprichos da meteorologia, sopra exactamente na direcção contrária ao que estava planeado: em vez de nos levar a sobrevoar a reserva de caça da Herdade do Sobroso na serra do Mendro, num safari aéreo que prometia emoções fortes, transporta-nos na sua almofada de sossego para Sul.
Não há tempo nem disposição para desilusões. Os sentidos estão demasiado ocupados na tarefa de tentar absorver tudo o que nos rodeia. O piloto do balão capricha numa travessia rasante sobre o espelho de água do Guadiana, elevando depois o aparelho para evitar as árvores da margem oposta. O ruído dos queimadores é, por agora, o único som que quebra o mar de silêncio em que navegamos. Bom, isso e a ocasional exclamação de espanto de algum dos presentes. E, claro, há alguns minutos, o murmúrio arrastado da rolha que saltou da garrafa de vinho…

Vida selvagem

A serra fica para trás – e, com ela, a promessa de vermos de cima o que na véspera tínhamos adivinhado num passeio de jipe: a vida selvagem pujante desta zona. Centenas de hectares da serra do Mendro albergam animais de grande porte, como gamos, muflões, javalis ou veados. E nós vimo-los todos: um enorme veado trotando pelas curvas da estrada à nossa frente, um grupo de javalis avistado ao longe junto a uma charca, um gamo espreitando pelo meio dos arbustos lá mais em cima, perto do cabeço panorâmico onde armámos um piquenique, meia-dúzia de muflões atravessando o caminho assim que deixaram de ouvir o ruído do motor.
Mas soube a pouco e hoje havia a promessa de podermos olhar de cima, pairando nos ares sem que a bicharada se apercebesse, sequer, da nossa presença… A expectativa era grande e o mini-pequeno-almoço é engolido à pressa para não perdermos tempo. Ainda deitado em terra, o tamanho do balão impressiona. A pouco e pouco, os queimadores aquecem o ar no interior e a cúpula vai subindo. Não tarda nada estamos a bordo e a aventura vai começar!
A brisa é que não está de feição e, num balão, contra isso não há engenho humano que nos valha. Aproveitemos, portanto, para gozar as emoções do voo por si só e tentar reter todos os detalhes desta viagem pelos céus de copo na mão. Pode não ser um safari, mas é uma experiência única.
E, no entanto, aquilo que ali se mexe, espantosamente a apenas algumas dezenas de metros de uma casa, parece ser… isso mesmo, é um veado! E depois outro, e mais uns quantos. Imperturbável pelos sinais de ocupação humana, a grande fauna vagueia também na margem oposta do Guadiana. Há javalis que trotam por carreiros que levam a uma pequena barragem – onde, por sinal, uma raposa caça por entre a vegetação rasteira – e parece quase surreal a visão de um veado que “estacionou” junto ao reboque de tractor parado debaixo de um grande sobreiro.

Regressar à terra

Lá se vai a teoria de que o abandono dos terrenos agrícolas é a mais forte explicação para o regresso dos grandes mamíferos selvagens… Aqui há agricultura e vida selvagem, lado a lado. Talvez a melhor explicação seja mesmo a política de gestão sustentável da reserva de caça do outro lado do rio. Mas quem vai perder tempo com estas elucubrações quando o mundo desfila aos nossos pés?
De vez em quando, o ruído dos queimadores desperta os animais do seu sossego, mas eles não conseguem perceber de onde veio o som e não lhes passa pela cabeça olhar para cima. Se o fizessem, dariam de caras com seis pares de olhos humanos que os fitam em embevecido espanto, por momentos o copo de vinho esquecido na mão. E assim se passam os minutos, ou serão horas, que nestas ocasiões o tempo é uma entidade sinuosa.
Só que a silhueta distante de casario e cabeços torna-se cada vez mais nítida e isso é uma clara indicação de que o dia já avança – o sol está mais alto e com o aumento da temperatura começam a gerar-se correntes térmicas que podem complicar a vida ao piloto do balão. O que é bom depressa se acaba, diz o povo. Está na altura de descer.
No solo, uma viatura acompanha o nosso trajecto, para nos recolher (e ao balão) assim que tocarmos o solo. O ritmo das comunicações intensifica-se. É preciso procurar um local plano, sem árvores nem linhas eléctricas, com acesso à estrada. Mesmo no Alentejo, isto nem sempre é fácil. E é preciso que o vento nos leve na direcção correcta. Aterrar um balão, portanto, não é pensar e fazer.
Ao fim de algum tempo, a bonomia do piloto acalmando as ansiedades de quem viaja a bordo, lá surge um belo prado e é lá que pousamos. Já vivemos uma eternidade neste dia e ainda nem são dez da manhã! Abre-se mais uma garrafa de vinho, enquanto se revivem as visões exaltantes da bicharada à solta na imensa paisagem alentejana. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. Com uma vantagem: o vinho por aqui é muito melhor!

Edição nº 34, Fevereiro 2020

Legumes, capão e Michelin

Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos. Fernando Melo São dois os problemas fundamentais da cozedura […]

Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos.

Fernando Melo

São dois os problemas fundamentais da cozedura dos legumes que nos servem nos restaurantes. O mais gritante é o excesso de água em que normalmente cozem, o outro é o tempo de cozedura que se pratica. Gosto de pegar no tomate como referência, por ser rico em licopeno e também pelo seu conteúdo elevado de açúcar. Acontece que no tomate cru nem um nem outro se manifestam, mas na cozedura correcta manifestam-se ambos e tornam o fruto/hortícola determinante enquanto fonte de nutrientes para a nossa subsistência e ao mesmo tempo facilitador de digestões mais eficazes. A palavra-chave é disponibilidade, o mesmo é dizer o que cada verdura oferece ao organismo, mediante a intervenção culinária. A quantidade de água em que se coze determina o ponto óptimo da disponibilidade de nutrientes para o corpo humano, devendo evitar-se o excesso, por provocar a sua dissolução. Ao mesmo tempo o prolongamento exagerado da cozedura leva à destruição da estrutura das fibras e dos nutrientes dos legumes em causa. Os cozinheiros lúcidos e avisados já cozinham legumes e verduras de acordo com este vector da disponibilidade e extracção óptimas. Apesar dessa evidência, continua a cozer-se demais, aliás não só vegetais mas tudo o resto. Está mais que provado que a cozedura certa – mesmo que se trate de bringir apenas – determina directamente o bem-estar e o nosso funcionamento interno. Constato que mesmo no meio da cozinha profissional estamos ainda nos antípodas das considerações de digestibilidade. O nosso “bocadinho de salada”, à laia de ornamento baralha-nos completamente o esquema e pouco ou nada contribui para melhorar o perfil do que comemos, justamente pela pouca disponibilidade de nutrientes face à bateria existente no prato. Somos um sistema, não somos o repositório de ingredientes que a maioria dos nutricionistas não-médicos nos querem fazer crer. Não me quero – nem sei – alongar mais sobre este assunto, mas quero aqui lavrar a súplica aos cozinheiros: enquanto não tiverem a certeza absoluta do que estão a fazer não ponham lado a lado legumes crus e cozidos.
Todos os anos no dia 12 de Dezembro, véspera do dia de Santa Luzia, tem lugar o concurso e jantar de gala do capão à Freamunde. Desde há três anos engalanado – passe a redundância – com a certificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP), o passareco gigante está a caminho dos píncaros da qualidade, prestes a tornar-se no mais sublime animal de criação em todo o país. Originário das chamadas Chãs de Ferreira, planalto granítico triangular definido por Ferreira, Paços de Ferreira e Freamunde, está agora aberto a empresários que queiram investir na produção. Há muito espaço ainda para o efeito, a área consagrada na certificação tem ainda pelo menos um par de décadas de franco crescimento pela frente. A prazo vai ser mais importante a proveniência que a receita, de resto já está a acontecer. Cozinheiros de todo o país, incluindo estrelados Michelin estão a oferecer as suas versões da grande ave aos clientes. Uma epopeia que vem dos tempos da ocupação romana – o galo capado não canta, por isso era mais cómodo para os centuriões de então -, atravessa quase dois mil anos de história e atinge hoje a maior glória de sempre. Ombreia com as grandes denominações de origem, por exemplo Bresse, em França, e é único no mundo. O concurso português é porventura o melhor de todos os que se fazem, pois a prova é inteiramente feita às cegas e sem possibilidade de cruzar opiniões; cada membro do júri tem no prato perna, peito e recheio de um capão e no mesmo serviço ninguém tem o mesmo. É sempre surpreendente o restaurante vencedor, muitas vezes o próprio não está sequer à espera. Na gala, todos os presentes, vencedor e os outros estão em festa e aplaudem com entusiasmo os que ganham. O nível culinário é desde os últimos anos muito elevado, sinal de que todos estão a melhorar e provar os capões da concorrência. Dado muito importante para nos entendermos e crescermos. Viva o capão de Freamunde.
Ambiente de festa rija houve também em Sevilha no dia 20 de Novembro, na noite do anúncio das estrelas Michelin Portugal e Espanha. Foi de encher a alma a subida dos chefs Diogo Lemos (Mesa de Lemos, VIseu) e Rui Silvestre (Vistas, Monte Rei Golf, Vila Real de Santo António) ao novo estrelato, e muito importante todos os actuais detentores de estrelas estarem lá para felicitar e festejar todos, uns aos outros. Foi uma festa ibérica, é certo, mas senti-a também muito portuguesa. E é verdade que os nossos chefs têm o denominador comum da entreajuda, as portas das suas cozinhas estão sempre abertas para os que quiserem estagiar, aprender e desenvolver a sua forma de trabalhar. Claro que formos uma vez mais fulminados em número pelas novas estrelas espanholas, mas há um sentimento grande de vitória por parte de todos os nossos. É preciso continuar, assim como estamos, assentes nos redutos das raízes e da proximidade. O Guia Michelin já fala de Portugal como quem fala do paraíso, temos produto, talento e história para crescer exponencialmente de ano para ano. Estamos em festa.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui. João Paulo Martins Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos […]

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.

João Paulo Martins

Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.

Afinal, o que ganhámos com a técnica?

Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O frio é uma coisa relativa

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos que eles teimem em mostrar-se.

Luís Francisco

Há quem continue a achar que o vinho é uma coisa que dá trabalho, sim, mas apenas em algumas ocasiões bem definidas no calendário. Na vindima, claro, quando as uvas se precipitam para a adega e toda a gente anda numa correria, mostos para aqui, mostos para ali, depósitos a encher e a esvaziar, fermentações e decisões enológicas, mão-de-obra intensiva e o nervoso miudinho de ver todos os sonhos e planos de um ano a ganharem forma. Claro, também há aquela coisa da poda, no Inverno, mas isso é o menos. Basta visitar uma adega em outra altura do ano que não na vindima e percebe-se logo o sossego de quem dá o litro (metáfora irresistível) em Setembro e Outubro e depois descansa durante 300 dias…
E, no entanto, não é nada assim. Na vinha ou na adega, há sempre trabalho para fazer. E foi para falar nisso que um dia saímos em reportagem. Escolhemos o destino – no caso, a Quinta do Gradil, região de Lisboa – e lá fomos, decididos a recolher e partilhar informação sobre tudo o que se passa numa exploração vitivinícola nos meses que medeiam entre uma vindima e a outra. É claro que, num acesso de masoquismo ou consciência profissional (prefiro a segunda, mas, como hão-de ver a seguir, há indícios de que o primeiro não esteve totalmente ausente do cenário…), não embarcámos em facilidades. Se era para mostrar trabalho, então que fosse na altura mais improvável, o Inverno.
Escusava era de ser o dia mais frio do ano. A suspeita começou a ganhar forma com os primeiros arrepios da madrugada, a nortada gélida a fatiar sadicamente as résteas de conforto térmico oferecido pela roupa. E foi então que vimos um post no Facebook. De saída para o Alentejo, onde a empresa estava a preparar terrenos para plantar novas vinhas, o viticólogo do Gradil, Bento Rogado, registara a temperatura que se fazia sentir às 6h30 da manhã no sopé da Serra de Montejunto. O termómetro do carro anunciava uns inquietantes -7º centígrados…
Ler esta indicação nas férias, sentados junto à lareira num chalet de montanha até pode ser giro, mas garanto que não tem graça nenhuma quando nos preparamos para andar pelas vinhas, de máquina fotográfica em punho ou de bloco e esferográfica na mão para tomar notas… E, naturalmente, as duas inocentes alminhas que viajam para o Gradil nessa madrugada esqueceram-se de levar luvas. Provavelmente não dariam jeito nenhum quando chegasse a hora de trabalhar, mas, caramba, para algum momento haviam de servir…

Uma cave… quentinha

Chegamos, depois de deixarmos a estrada numa viragem perpendicular que nos aponta à linha amarela dos edifícios para lá do vale coberto de vinhas. O vento vai soprando. Mas, ansiamos, o termómetro há-de ter agora melhores notícias para nós – diz-se que a última hora da noite é a mais negra e a mais fria, mas o Sol já nasceu. Envergonhado, tímido, lá vai espreitando num tom esbranquiçado por entre as nuvens do amanhecer. Os cientistas juram que esta gigantesca fornalha celestial que queima hidrogénio e o transforma em hélio funciona ininterruptamente a uma temperatura que atinge os 5500 graus centígrados, mas esta manhã, desculpem lá, não há ciência que nos salve… Está tanto frio que até a ameaça do aquecimento global soa a música para os nossos enregelados ouvidos.
São 8h30 da manhã e ainda estão dois graus negativos. Daí a duas horas, o termómetro chegará finalmente ao zero. E, pela hora do almoço, a água que tapa o fundo do tanque situado no terreiro central da quinta, junto ao restaurante, continua sólida. Atiramos uma pedrinha, outra. E sempre o som cavo do gelo, austero e definitivo. Valha a verdade, por essa altura o pior já passou: andámos pelas vinhas para saber mais sobre a poda e a orientação das videiras, conversando com gente que maneja a tesoura com mestria (perdoem-me a insistência, mas eles tinham luvas!), visitámos a adega para conversar sobre operações de filtragem e estabilização, perceber trasfegas e limpezas, conhecer os muitos pequenos passos que nos permitem abrir uma garrafa e beber com prazer.
Quando nos convidam para descer à cave das barricas, que fica uns bons metros abaixo do solo, a primeira sensação é de arrepio. Se em dias quentes às vezes é complicado visitar estes sítios de manga curta, como será hoje… O elevador transporta-nos para o subsolo e, de repente, está quentinho! Longa vida às maravilhas do isolamento térmico: aqui a temperatura mantém-se estável à volta dos 15/16ºC, um verdadeiro paraíso tropical quando comparado com a manhã siberiana que nos aguarda lá em cima, no regresso à superfície. O elevador sobe e o bafo da respiração diz-nos que nestes últimos minutos o cenário térmico não mudou.
Felizmente, a reportagem aproxima-se do seu fim e a última parte será feita à mesa, onde vamos conversar com os responsáveis do Gradil. Lá fora, o tanque continua gelado e as vinhas, despidas, parecem encolher-se para resistirem à nortada. Até os passarinhos estão mudos que nem pedras. Uma breve mirada às notas no bloco confirma que a manhã não foi fácil: gatafunhos quase imperceptíveis, palavras cortadas a meio, frases que se perdem em linhas mal amanhadas… não vai ser fácil decifrar isto.
Mas agora temos vinho no copo. As mãos e a alma começam a aquecer. Lá fora, a silhueta da serra ganha luz e cor. De repente, tudo parece bonito e acolhedor. A mente humana tem a espantosa capacidade de obliterar impiedosamente as más memorias. Sim, porque isto do frio é uma coisa muito relativa.

Edição n.º33, Janeiro 2020