Quinta da Perdonda: Paulo Nunes (e amigos) entregam-nos Dão e mais Dão
Ainda que sem a pujança que a região merece (sendo esta, naturalmente, uma opinião estritamente pessoal), o Dão tem registado um crescente número de novos produtores, muitos deles focados na qualidade e num posicionamento estratégico alto. De uma década para cá, vimos nascer ou consolidar projetos como Taboadella, MOB, Textura, Quinta da Lomba e, mais […]
Ainda que sem a pujança que a região merece (sendo esta, naturalmente, uma opinião estritamente pessoal), o Dão tem registado um crescente número de novos produtores, muitos deles focados na qualidade e num posicionamento estratégico alto. De uma década para cá, vimos nascer ou consolidar projetos como Taboadella, MOB, Textura, Quinta da Lomba e, mais recentemente, Domínio do Açor. E, antes destes, mas não tão distante, assistimos também ao renascimento da Quinta da Passarella que, em conjunto com dezenas de produtores implantados na região desde os anos 80 e 90, formam um significativo acervo de qualidade vínica. Mais recente ainda é o produtor Quinta da Perdonda, cuja figura principal é Paulo Nunes, enólogo que também oficia na já referida Quinta da Passarella, bem como noutros produtores de Trás-os-Montes ao Alentejo, passando pelo Douro e Bairrada.
Perdonda, palavra de pronunciamento arrevesado, quererá significar “pedra redonda”, não escondendo assim a sua origem na sub-região da Serra da Estrela, conhecida pelos solos graníticos, recortados por parcelas de floresta e pedras de grande dimensão. A propriedade é sita mais concretamente em Paços da Serra, entre Seia e Gouveia, com maior proximidade para esta última, um dos lugares mais a este da região vínica (mais a este e com maior altitude só existe pasto). Mais do que uma quinta propriamente dita, pelo menos no estado desprotegido em que os sócios a encontraram, falamos de uma pequena propriedade de quatro hectares a 700 m de altitude, quase toda em encosta.
Com solos relativamente férteis e predominância para os típicos graníticos da região, tem a particularidade de estes virem, a espaços, em barro, ou seja, e simplificando (não entrando nos detalhes da dimensão das partículas do solo), verdadeiras argilas graníticas. A existência de muita água em redor da propriedade é uma mais-valia, diz-nos o enólogo e produtor, garantindo que, assim, as vinhas estarão, no futuro, bem adaptadas ao aquecimento global cada vez mais sentido na região. Por falar em vinhas, estas remontam a 1948, data da plantação do talhão (n.º 1) com vinhas mais velhas. Também no que toca às castas, a diversidade é a palavra chave, encontrando-se, nos brancos, Barcelo, Semillon, Fernão Pires e Uva Cão, e, nos tintos, muita Jaen, Baga e Tinta Amarela, entre muitas outras brancas e tintas.
A propriedade foi comprada em 2016 com mais dois sócios: Paulo Pinheiro (dono do restaurante Casa Arouquesa em Viseu) e Francisco Batista. De lá para cá, e aos poucos, tem vindo a ser reconstruída a adega (os primeiros vinhos foram vinificados em produtores vizinhos), e tudo indica que a colheita de 2024 já será vinificada na nova adega que conta com cinco pequenos lagares, um por cada parcela ou talhão na quinta. Com efeito, a propriedade, apesar de pequena, com três hectares de vinha, tem cinco talhões todos diferentes – ao nível da altitude, do solo, o ano de plantação, e até do encepamento (uns com mais Baga, outros com mais Jaen e Tinta-Amarela) – tornando-se essencial vinificá-los em separado para melhor ir conhecendo o potencial de cada um. Em comum, todos os talhões têm uma mesma característica, que é a presença de muita uva branca, chegando a um máximo de quase 20%. Para já, provámos dois tintos de 2018 e dois brancos de 2020, todos muito promissores. Uma descoberta!
* Este autor escreve segundo o acordo ortográfico
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Quinta do Perdigão: Uma família, uma vinha e alguns segredos
A aventura do arquitecto começou em 1997. À época, José Perdigão desenhava projectos, mas de uvas e vinho pouco entendia. Isso não o impediu de se apaixonar por esta propriedade, que estava como uma folha em branco onde é suposto desenhar um projecto. Hectares eram 10 e casa era uma, em ruínas. Foi verdadeiramente começar […]
A aventura do arquitecto começou em 1997. À época, José Perdigão desenhava projectos, mas de uvas e vinho pouco entendia. Isso não o impediu de se apaixonar por esta propriedade, que estava como uma folha em branco onde é suposto desenhar um projecto. Hectares eram 10 e casa era uma, em ruínas. Foi verdadeiramente começar do zero: na reconstrução, no plantio e na aquisição de conhecimentos. Diz-nos que “como de vinho não sabia nada de nada, fui para Bordéus aprender, mas, de início, tivemos aqui apoio e conselhos de técnicos locais, como Ari di Mari, Carlos Silva e Paulo Nunes. Agora sou eu e a minha filha Mafalda que orientamos os trabalhos da vinha e adega”.
Mas José não esquece a tese, que abraça sem rebuço, que “é o meu paladar e o meu gosto que devem presidir aos vinhos. O apoio dos técnicos é fundamental do ponto de vista analítico, mas a sensibilidade para saber qual é o caminho a seguir, essa cabe ao produtor”. Fica a dúvida sobre qual será o método mais eficaz para que a sensibilidade se expresse, mas José tem receita própria: “levanto-me de manhã, antes de tomar banho ou sequer lavar dos dentes, sento-me aqui a provar os vinhos e a tentar encontrar os descritores que melhor expressam os aromas e características da prova de boca”. O resultado dessa “meditação matinal” vem depois expresso nos contrarrótulos, onde dá conta dos aromas e sabores que descobriu no vinho.
“De manhã, antes de tomar banho ou sequer lavar dos dentes, sento-me aqui a provar os vinhos e a tentar encontrar os descritores que melhor expressam aromas e sabores”
TOURIGA PRIMEIRO, ENCRUZADO DEPOIS
Nesta zona de Silgueiros não faltam vinhas e produtores conhecidos. Uma verdadeira comunidade onde entra uma propriedade com 120 hectares de vinha da família Santos Lima (mas que apenas vende as uvas) e, mais à frente, a Quinta de Lemos. Embora hoje o branco de Encruzado seja uma das bandeiras da casa, a verdade é que, de início, a intenção era apenas fazer vinho tinto, não aceitando o conselho do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (Nelas), que apontava para que o plantio devesse recair apenas nos brancos. “Nem um pé!”, disse José que, quando um jornalista inglês o visitou e perguntou se não tinha branco ele afirmou, “tenho sim senhor é white wine, a cadela”. Mais tarde percebeu que era um erro, tal como percebeu que aqui não é terra de Tinta Roriz e as cepas desta casta foram re-enxertadas em Encruzado. Para felicidade de “bichos” diversos, já que, em tempos, José Perdigão teve aqui alguns cavalos, mas agora só uma égua que, conta-nos, “adora os bagaços de Encruzado e não sai da porta da adega enquanto não lhos dermos”.
Começaram por plantar Touriga Nacional com dois porta-enxertos e uma vinha também em pé-franco, material vegetativo fornecido pelo Centro de Estudos. Ao lado da Touriga veio a Jaen e depois o Alfrocheiro. Passados estes anos, existe a convicção que a Touriga Nacional é a casta que melhor se expressa nesta zona. “Com ela já ganhámos todos os prémios”. As uvas da vinha de pé-franco são usadas para o espumante. Porquê só para espumante, atendendo a que são tão poucos os vinhos de pé-franco no país? A resposta parece ter as mesmas reticências que em tempos houve em relação ao Encruzado: “já temos um portefólio alargado, era mais um vinho, mais rótulos, mais caixas e achamos que, em espumante, o facto de ser pé-franco é um factor diferenciador”. Estamos em crer que é uma questão de tempo até porque, diz o arquitecto, “a filoxera não anda por aqui, ainda que a produtividade da vinha de pé-franco seja baixa”.
O primeiro branco só surgiu em 2009 e o “teimoso” Encruzado em 2010. A filha Mafalda também teve os mesmos receios quanto ao branco. “Inicialmente fui contra, porque tive medo que o branco acabasse por ser um tiro no pé, pois não tínhamos uvas nossas que pudéssemos controlar. Só quando plantámos e pudemos estar perto é que avançámos”, seguindo assim a política da casa, ou seja, temos de ter tudo aqui à nossa frente. O que não vemos não nos interessa e, por isso, não plantámos mais vinha”. Por aqui também se percebeu que é fundamental saber escolher o local próprio para cada casta. A Alfrocheiro, por exemplo, “se não estiver boa exposição que a livre da humidade, pode ser um desastre”. A orientação da vinha no sentido norte/sul ajuda ao bom arejamento e saúde dos cachos (o que pudemos constatar in loco.) O produtor é peremptório: no Dão o vinho é sempre excelente ou muito bom; abaixo desse patamar é erro do produtor!
VINHOS QUE DESAFIAM O TEMPO
Visitámos a quinta nas vésperas do início da vindima, ainda sem a natural confusão que ela proporciona. “O mais trabalhoso é o rosé, que não permite qualquer erro. Quer na vindima quer na adega, há que ter uma atenção constante”, diz-nos, e é preciso ter paciência para saber esperar porque, por exemplo, “quer a Touriga Nacional quer a Encruzado, se forem vindimadas demasiado cedo perdem toda a expressão varietal. Por isso não ligamos nenhuma ao alarido que aqui na terra se levanta assim que surgem as primeiras chuvas e desata tudo a vindimar à pressa. Nós procuramos provar as uvas para determinar a vindima. Se chove ou não chove, logo se vê.”
A vinha apresentava, este ano, uma carga normal. Mas em anos muito produtivos faz-se uma primeira monda para rosé. A primeira edição remonta a 1999 e essa colheita foi aqui também objecto de prova, ao almoço, mostrando estar numa forma surpreendente. Nessa refeição provámos vários vinhos de colheitas anteriores e a conclusão é fácil, pois são vinhos que aguentam muito bem a prova do tempo, conservando vigor, estrutura e frescura. A vinha está em produção bio e isso obriga a uma atenção constante, por vezes com pulverizações duas vezes por semana. Mafalda está optimista quanto à resposta que a ciência está a dar no sentido de trazer para o mercado produtos que são amigos do ambiente e que evitam o uso de químicos agressivos para a vinha e para o solo. Mas para isso, relembra, “é preciso estar sempre aqui”.
Na adega procura-se intervir quando necessário mas, recorda Mafalda, “as primeiras fermentações são muito stressantes porque, à conta da limpeza, higienização da adega e da não inoculação de leveduras, essas fermentações demoram muito a arrancar, às vezes quatro a cinco dias. Felizmente não temos tido problemas”. São fermentações em inox e estágios em barrica, essencialmente usada, mas também alguma barrica nova, nomeadamente para a Touriga Nacional.
Também por aqui se contraria tendência, que é também uma moda, de vender os vinhos excessivamente caros. Perdigão não alinha nessa correria aos preços altos: “sou contra os vinhos muito caros, porque o vinho não deve ser um produto de luxo. As pessoas têm de procurar perceber e poder usufruir de um vinho. Somos vignerons, só vendemos o que produzimos das nossas uvas e temos sido amplamente reconhecidos pela qualidade dos nossos vinhos”. Assim deveria ser sempre, dizemos nós.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Quinta da Giesta: Da base até ao topo
A Sociedade Agrícola Boas Quintas vende hoje cerca de 900 mil garrafas/ano, maioritariamente Dão, mas também Bucelas e Setúbal, sendo 80% destinado a exportação. Porém, no início dos anos 90, quando conheci o enólogo Nuno Cancela de Abreu, o seu projecto pessoal resumia-se à propriedade familiar, uma vinha de 1,5 hectares em Mortágua que ele […]
A Sociedade Agrícola Boas Quintas vende hoje cerca de 900 mil garrafas/ano, maioritariamente Dão, mas também Bucelas e Setúbal, sendo 80% destinado a exportação. Porém, no início dos anos 90, quando conheci o enólogo Nuno Cancela de Abreu, o seu projecto pessoal resumia-se à propriedade familiar, uma vinha de 1,5 hectares em Mortágua que ele resolveu ampliar. E recordo-me de ele contar, divertido, de o pessoal da terra comentar que estava louco ao plantar videiras numa zona que só servia para eucaliptos. Na verdade, o território servia para muito mais do que exploração florestal (embora esta fosse mais rentável…), mas as condições iniciais eram bem limitadas. “Os vinhos brancos fermentavam em cubas de inox de 1.000 litros, com garrafões de água congelada, que eram trocados de oito em oito horas de forma a manter a temperatura próxima do óptimo”, conta Nuno. “Os vinhos tintos, remontados com uma única bomba existente, ficavam extraídos e taninosos.”
Na época gestor e enólogo da Quinta da Romeira, em Bucelas (onde lançou o revolucionário Prova Régia Arinto), era aos fins de semana que rumava a Mortágua, para acompanhar os vinhos guardados nas pequenas cubas e em algumas barricas recuperadas. “Foi a fase mais purista da minha enologia, em que posso afirmar que fazia vinhos ‘naturais’, tão em voga actualmente. Não estou a tentar dizer que estava à frente no tempo. As condições que existiam é que não me davam grandes alternativas…”, recorda com humor.
A Boas Quintas foi crescendo e evoluindo, alocando quase todos os recursos à exportação, tendo adaptado a enologia aos diferentes mercados
Os brancos eram produzidos em quantidades marginais, mas foram muito importantes na sua aprendizagem sobre a casta Encruzado. Quanto aos tintos, eram encorpados, com pouca cor (“para meu desespero a cor caía após a maloláctica”), pouco percebidos pelos consumidores da época, o que se reflectia numa grande dificuldade em vendê-los no mercado nacional.
Até então, o percurso de Nuno Cancela de Abreu, após concluir Agronomia no ISA e Viticultura e Enologia em Montpellier, tinha passado pelo Douro – foi director da ADVID Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense e professor na UTAD – e por Bucelas. Entender em profundidade o Dão vitivinícola, apesar de nele estarem fundadas as suas raízes familiares, levou algum tempo. “O Dão atravessava uma má fase, com um estigma negativo que fechava qualquer porta a que batesse. Com o tempo, fui estudando, evoluindo, tornando os vinhos cada vez mais consistentes”, refere.
Na primeira década dos anos 2000, a vinha da Quinta da Giesta contava já com sete hectares, a atingirem a idade madura. O patamar qualitativo era bom, mas, reconhece Nuno, “faltavam a notoriedade e os vinhos premium.” Era preciso dedicar mais tempo ao projecto e havia que tomar uma decisão. “Em 2010, optei por arriscar e arrancar com uma nova fase estrategicamente disruptiva”, diz. “Passei a estar a tempo inteiro, tendo abandonado o trabalho para terceiros (Nota: ao tempo, era administrador e enólogo da Quinta da Alorna). E dividi a orientação da empresa com o meu amigo, e actual sócio, Rui Brandão, gestor de formação com grande competência no controlo financeiro e na gestão”, conta Nuno Cancela de Abreu.
Começando com apenas dois colaboradores, a empresa Boas Quintas foi crescendo e evoluindo, alocando quase todos os recursos à exportação, tendo adaptado a enologia aos diferentes mercados. Em 2016 foi inaugurada uma nova adega, revelando já outras ambições na sua dimensão, com capacidade para chegar, no futuro, aos dois milhões de garrafas. A estratégia de vendas tem sido centrada nas exportações, para cerca de 25 mercados em todo o mundo, sobretudo Reino Unido, Alemanha, EUA, China, Brasil, Canadá e Benelux. No entanto, e apesar do sucesso e notoriedade dos vinhos Fonte do Ouro, considerados entre os melhores do Dão, faltava a Nuno Cancela de Abreu uma marca posicionada acima desta, uma marca que se tornasse referência inquestionável no mercado nacional. E é aqui que voltamos ao princípio de tudo, à Quinta da Giesta.
Nuno Cancela de Abreu confessa que “reinventar” a linha Quinta da Giesta, passando-a da base para o topo, lhe deu um prazer muito especial.
Um Dão mais fresco
A Quinta da Giesta, localizada em Mortágua, tem condições edafoclimáticas distintas das de outras zonas do Dão, sobretudo as mais interiores e influenciadas pela altitude. Aqui, neste Dão mais a sul e próximo do litoral, as principais influências têm origem na serra do Bussaco, que protege os vinhedos dos ventos marítimos frios e húmidos, e na barragem da Aguieira, que introduziu um factor moderador da temperatura e da humidade. Como consequência, desde que a barragem foi construída as geadas primaveris desapareceram na zona sul da região. “Os nevoeiros matinais na época da maturação são os guardiões da frescura dos nossos vinhos e o diferencial de temperatura entre o dia e a noite ajuda a potenciar os aromas elegantes”, destaca o enólogo.
Os solos são sedimentares, argilosos com alguma pedra, ácidos, muito pobres em nutrientes, e transmitem mineralidade e concentração, com produções medianas por hectare. A vinha está plantada em terrenos “arrancados às garras dos eucaliptos”, em encostas suaves, envolvida pela floresta circundante. “Os pinheiros e eucaliptos dão um toque de especiarias aos vinhos”, diz Nuno. A Quinta da Giesta faz parte da rede internacional de “Business & Biodiversity”, que promove a preservação ambiental e a sustentabilidade, e as vinhas estão em modo de Produção Integrada.
Em termos de castas, a base assenta na branca Encruzado e na tinta Touriga Nacional. Mas para além destas foram plantadas Malvasia Fina, Tinta Roriz, Jaen, Alfrocheiro e Trincadeira, entre outras. Nuno Cancela de Abreu, profundo conhecedor e apreciador de Arinto, conseguiu que a CVR do Dão alterasse finalmente a legislação para admitir o Arinto de Bucelas, sendo a parcela existente na Quinta da Giesta um motivo de orgulho para o enólogo e produtor. “Os nossos brancos ficaram a ganhar”, diz.
Ao longo de muitos anos, o talento e conhecimento de Nuno Cancela de Abreu enquanto enólogo ficou, sobretudo, associado aos seus vinhos brancos. E quer o trabalho feito em Bucelas quer os Fonte do Ouro (com destaque para o Dão Nobre de 2019) justificam por inteiro essa associação. Encruzado é, naturalmente, a casta de eleição destes vinhos e Nuno explica porquê: “a casta dá origem a vinhos bastante equilibrados, frescos, elegantes, minerais e vibrantes, com volume de boca e muita longevidade, especialmente quando o mosto é fermentado e estagiado em barrica.” Mas nem tudo são rosas na Encruzado. “O ponto ideal de colheita é fugaz, obriga-nos a controlá-la muito de perto. E a sua grande fragilidade é a propensão para a oxidação dos mostos e vinhos. Para o evitar, saturamos com azoto, todos os equipamentos e cubas por onde o Encruzado passa, começando na bomba de massas e continuando na prensa, tubagens e cubas. Quando o mosto é transportado para encher as barricas, já vai com a fermentação iniciada para estar protegido pelo CO2 libertado.” Nos melhores brancos da casa entra também, é claro, o Arinto (“acrescenta fruta tropical, citrina, frescura e mineralidade”) e, por vezes, a Malvasia Fina (“tem alegria no aroma floral e boca volumosa com sabor a fruta amarela madura”).
Mas se a associação aos vinhos brancos se justifica, não deixa de ser redutora para este produtor e enólogo, já que também os tintos são a “sua praia”. No caso do Dão, a Touriga Nacional é a eleita, sendo que, nos topos, surge também no lote alguma Tinta Roriz, por vezes com um pouco de Jaen ou até Alicante Bouschet. Mas a Touriga é largamente dominante nas preferências de Nuno, “pelos bagos pequenos e concentrados que originam vinhos de aromas florais e frutados, com perfeito equilíbrio entre acidez e taninos, suavidade, requinte e elegância.”
Revolução no portefólio
Até há pouco, a marca Quinta da Giesta estava na base da pirâmide da empresa Boas Quintas, como porta de entrada no portefólio de vinhos do Dão. Agora, passa para o topo. Uma autêntica revolução, que implicou alterações profundas ao nível da imagem, do conteúdo das garrafas e do posicionamento de preço (gama média/alta, alta e muito alta) que Nuno Cancela de Abreu justifica: “É uma forma de assinalar as minhas quatro décadas de enologia e, ao mesmo tempo, de honrar e continuar o legado dos meus antepassados, a fazer vinho no Dão desde 1884.” O facto de este ser o único vinho de “Quinta” que a empresa comercializa como DOC Dão e de assentar numa vinha madura e confiável, instalada em 1986, hoje com 38 anos, também pesou na decisão.
Mas muito mais foi necessário garantir. Desde logo, acima de tudo, o vinho, claro. “Alterámos a composição e perfil dos lotes, com diferentes tipos de estágio, para dotá-los de maior consistência de aroma e sabor, mais estrutura, longevidade e diferenciação”, aponta o enólogo. O portefólio Quinta da Giesta contempla três “Colheita” (branco, rosé e tinto, a €10), dois Reserva (branco e tinto, a €20) e dois Grande Reserva (branco e tinto, a €110).
Brancos e tintos são vindimados à mão para caixas pequenas. A partir daí, Nuno Cancela de Abreu, como é seu timbre, não vai em “modas artesanais” e tira todo o partido da tecnologia ao seu dispor: desengaçador com mesa de escolha para a seleção das uvas, prensas pneumáticas, bombas peristálticas, filtração tangencial, gerador de azoto… “A tecnologia, quando bem usada, é importante para respeitar a qualidade e a genuinidade dos vinhos”, defende, “um vinho oxidado não tem origem.”
O branco Colheita (tal como o rosé) é trabalhado em inox, com batonnage semanal (“com bomba submersa, para evitar oxidações”). Reserva e Grande Reserva branco fermentam e estagiam em barrica. Nos tintos, Nuno tem, por norma, fazer passar o mosto por um crivo de inox, retirando as grainhas (“assim evitamos que o álcool dilua os taninos amargos, secos e adstringentes das grainhas, que iriam tornar os vinhos duros e agressivos”) e pratica a micro-oxigenação logo após a fermentação “para incentivar as ligações entre os antocianos (cor) e os taninos (corpo), possibilitando manter a cor após a fermentação maloláctica.”
A sua filosofia de vinificação, assume, inspira-se na região de Borgonha. E aqui as barricas assumem um papel crucial, sobretudo para o segmento Reserva e Grande Reserva. “Depois de alguns anos e muitas barricas experimentadas e provadas, selecionámos duas pequenas tanoarias na Borgonha”, explica. “Estas barricas borgonhesas, com tosta suave, transmitem elegância respeitam e exaltam a fruta fresca dos vinhos, não dominam nem marcam.”
Com sete referências distintas e a produção limitada aos sete hectares de vinha existentes na propriedade, os Reserva e, sobretudo, Grande Reserva, só são engarrafados em anos de eleição. E a distribuição é feita através de uma rede de pequenos agentes regionais.
Aos 68 anos de idade e com uma carreira profissional de sucesso, Nuno Cancela de Abreu já não tem nada a provar a ninguém. Mas confessa que “reinventar” a linha Quinta da Giesta, passando-a da base para o topo, lhe deu um prazer muito especial. Os vinhos, esses, para além da consistência e qualidade intrínseca, expressam integralmente quer a sua origem, quer o “estilo” do enólogo. E é assim que deve ser.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)
Domínio do Açor: Ano 2
Aqui são as Terras de Senhorim, uma das sub-regiões do Dão. Estamos numa quinta que outrora se chamou Mendes Pereira, que foi adquirida por um grupo de investidores brasileiros, apostados em conseguir produzir vinhos tão originais quanto possível. O grupo, que tem em Guilherme Corrêa (Temple Wines, distribuidora) o seu representante permanente em Portugal, é […]
Aqui são as Terras de Senhorim, uma das sub-regiões do Dão. Estamos numa quinta que outrora se chamou Mendes Pereira, que foi adquirida por um grupo de investidores brasileiros, apostados em conseguir produzir vinhos tão originais quanto possível. O grupo, que tem em Guilherme Corrêa (Temple Wines, distribuidora) o seu representante permanente em Portugal, é constituído por confessos amantes da Borgonha. E a paixão é de tal monta que, desde o início do projecto, se procurou identificar as características do solo que permitissem pensar em fazer vinhos Grand Cru, Premier Cru e vinhos Villages, tudo terminologia muito cara à célebre região francesa. Para essa identificação foi contratado o chileno Pedro Parra, uma sumidade no que toca à identificação e análise de solos. Prevenidos pelo próprio que na análise a fazer não haveria nem “paninhos quentes” nem “palmadinhas nas costas”, o grupo brasileiro ficou radiante com as conclusões do técnico, que identificou 55% da área da vinha como podendo gerar vinhos Grand Cru, 40% Villages e 5% Premier Cru. Esta conclusão foi como “música celestial” que ainda mais incentivou a continuação do projecto. Curiosidade: as opiniões de Parra corroboraram a ideia empírica sobre a qualidade dos vinhos das várias parcelas!
Este ano a novidade técnica prendeu-se também com a contratação de um especialista em poda (assunto bem mais complicado do que se imagina), o italiano Marco Simonit, com larga experiência na Borgonha onde, como nos informaram, dirige a poda do Domaine Leroy há mais de uma década. A identificação precisa do que se deve podar, a forma de o fazer e o que se pode esperar de um trabalho feito em bases científicas, são assuntos para os próximos anos. A paciência também tem aqui o seu lugar. Cativo!
O projecto, que conta com sete trabalhadores em permanência, poderá conhecer algum alargamento. Por um lado, irão, a partir de 2024, usar as instalações da adega contígua à quinta, que foram adquiridas a Carlos Lucas (Magnum Vinhos) e, por outro, Guilherme Corrêa não descarta a hipótese de serem adquiridas parcelas de vinhas velhas que possam ser consideradas interessantes para aumentar a capacidade produtiva.
Vão ser plantadas onze castas antigas da região, algumas presentes numa parcela da quinta usada pelo Centro de Estudos de Nelas para testes de porta-enxertos.
Valorizar, descartar, modificar
Com os trabalhos de análise de solos feitos e já com algumas vindimas no activo, o grupo de enologia, que integra Luis Lopes (consultor e também enólogo na vizinha Quinta das Marias) e João Costa como enólogo residente, começam a ter uma noção daquilo que há a valorizar e das dificuldades/vantagens das castas aqui presentes. A casta mais difícil é a Tinta Roriz, muito atreita a doenças do lenho; a mais surpreendente é a Bical porque aqui beneficia de um solo de limo com boa profundidade acima do granito partido e gera vinhos de boa acidez e álcool, “o que não acontecia na Pellada”, comentou Luis Lopes que foi enólogo na propriedade de Álvaro Castro. Entre re-enxertos, arranque e novas plantações, irão trabalhar com Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alvarelhão, Tinta Pinheira, Baga, Castelão Nacional, Barcelo, Uva Cão, Terrantez, Alvar Roxo e Douradinha, no fundo as velhas castas da região, muitas delas presentes na parcela de vinha velha, plantada em 1961 e que tinha servido de campo ampelográfico para o Centro de Estudos de Nelas, nomeadamente para o teste dos porta-enxertos. O vinho feito com as uvas desta parcela ainda não está no mercado. Para já estagia em barricas oriundas da região italiana de Barolo.
O conceito vitícola aponta claramente para uma conversão em bio, processo lento que obriga a muitos cuidados na vinha e a muita intervenção (este ano os tratamentos contra o míldio foram semanais), combinando o uso do cobre (que não deixa de ser metal pesado que permanece no solo…) com outros compostos associados autorizados em agricultura bio. Desde 2021 que estão a fazer a mobilização do solo para evitar a compactação, plantando leguminosas e cereais na entrelinha, como cevada, centeio, favas e ervilhaca.
O ano de 2022 foi o mais seco em toda a Europa mas, aqui no Dão, alguns solos, nomeadamente com maior percentagem de limo (é o solo mais fino a seguir à argila, que pode aparecer misturado com granito), conservam a frescura mesmo a alguma profundidade. O granito degrada-se em areia e limo – solos de rochas frias que depois transmitem frescura e leveza os vinhos. O limo retém água e por isso não há stress hídrico. Vantagem da região. A verdade é que é da degradação da pedra que podem nascer vinhos onde se sente alguma mineralidade, não do solo ser apenas pedra.
Barrica sim, mas com tino
O uso das barricas é aqui permanente. Mas a percentagem de barricas novas é moderada. A ciência do fabrico das barricas permite estudar as aduelas que compõem a barrica para, por cromatografia, escolher as que têm menos lactonas (ou seja, que dão menos aromas de madeira), uma sofisticação que sublinha os cuidados na produção. Como nos lembra Luis Lopes, “quando compramos barricas novas usamos primeiro no vinho de Encruzado, porque é casta que não se deixa dominar pela madeira. A casta Bical, ao contrário, dá-se muito mal com a barrica nova. Temos de nos ir ajustando”.
As novidades ora apresentadas contemplam os brancos de 2022 e tintos de 2021. Os vinhos têm os nomes alterados porque, lembrou Guilherme, “no mercado brasileiro era importante ter um nome associado à parcela” e desta forma temos vinhos com novos nomes; os de lote de várias parcelas mantêm a grafia original. Assim “nasceram” o Vila Romana, o Vinha Ruína e o Vinha Celta Bical. Este último, após um dia de maceração pelicular, o mosto fermenta em barrica e estagia 11 meses sobre borras. Depois ainda passas seis meses em inox antes do engarrafamento sem filtração. O Domínio do Açor branco tem, nesta edição, uma maior percentagem de Encruzado. Fermenta em ovo de cimento, inox e barrica, com maloláctica completa; 11 meses sobre borras sem bâtonnage, em ambiente redutor para que o gás final da fermentação funcione como protector, evitando alguma oxidação e possibilitando menor uso de sulfuroso.
Os tintos tiveram 18 meses de estágio em madeira, jogando entre barricas nova e usadas. No segundo semestre deste ano sairão mais três tintos: Jaen, Tinta Pinheira e o Vinhas Velhas, todos da colheita de 2022.
Os Grand Cru ainda não chegaram, enquanto resultado de todo o trabalho feito na vinha e na poda, mas os cuidados postos em todas as etapas, da vinha ao copo, são indicadores seguros de que o projecto ainda vai ter muito para dar. Curioso mesmo é ouvir falar em “vinhos com pouca intervenção”, como sendo um facto valorativo da nova tendência. Alguém anda muito mal informado. Aqui, tal como noutros produtores que trabalham com profissionalismo, a intervenção não é “pouca”, é “hiper” e contínua…
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2024)
Lusovini: Castas antigas, novos horizontes
Temos em Portugal muito orgulho em possuir uma enorme variedade de castas autóctones, mas, na realidade, em cada região trabalhamos com uma dúzia delas. Desde os anos 80, quando o fundador da Lusovini, Casimiro Gomes, resolveu iniciar um projecto vitivinícola no Dão, ouvia falar de castas “esquecidas”, das quais nunca encontrou os vinhos para experimentar. […]
Temos em Portugal muito orgulho em possuir uma enorme variedade de castas autóctones, mas, na realidade, em cada região trabalhamos com uma dúzia delas. Desde os anos 80, quando o fundador da Lusovini, Casimiro Gomes, resolveu iniciar um projecto vitivinícola no Dão, ouvia falar de castas “esquecidas”, das quais nunca encontrou os vinhos para experimentar. Até agora.
Em 2015, quando surgiu a oportunidade de adquirir a Vinha da Fidalga, propriedade do século XVIII com 25 hectares em Carregal do Sal, não pensou duas vezes. Ficou logo decidido expandir a selecção para além as castas habituais da região.
Em 2017 começaram a plantar a vinha experimental numa área de cerca de 3,5 ha com variedades minoritárias, algumas praticamente extintas. O processo demorou três anos. Inicialmente escolheram 22 castas, cerca de 1000 pés de cada. “É preciso perceber onde está o ponto crítico de cada casta”, diz Casimiro Gomes.
A condução das videiras foi delineada em monoplano ascendente, com poda longa por não existir informação técnica sobre a zona de frutificação destas variedades. O acompanhamento do comportamento das plantas na vinha foi um processo de aprendizagem que levou, também, a uma selecção que deixou algumas delas para trás (“ou apodreciam com facilidade, ou não produziam nada”). Hoje mantêm-se, nesta vinha, as 12 castas que conseguiram convencer os responsáveis da viticultura e da enologia: Arinto do Interior, Coração de Galo, Gouveio, Luzídio, Uva Cão, Terrantez, Barcelo, Rabo d’Ovelha, Douradinha, Malvasia Preta, Monvedro e Cornifesto. Este projecto gerou um grande entusiasmo dentro da empresa, conta Casimiro Gomes, sobretudo na altura das vindimas, pois todos queriam acompanhar uma nova história a ser construída.
Uvas no estado puro
Entre 2021 e 2022 fizeram-se microvinificações. Desta última colheita provámos os primeiros cinco vinhos, que saíram para o mercado em quantidades muito limitadas (entre 1000 e 1200 garrafas). A enologia idealizada por Sónia Martins foi a mais neutra possível para “testar as uvas no seu estado puro, como base para recriar muitas outras coisas”. Fermentação e estágio sem madeira, com levedura neutra, sem qualquer tipo de bâtonnage. No final foram retiradas as borras groseiras, com uma ligeira clarificação (com bentonite) e filtração. As uvas tintas foram desengaçadas, manta mexida manualmente duas vezes ao dia no pico da fermentação. A prensagem ocorreu em prensa vertical de madeira, seguida de fermentação maloláctica espontânea, clarificação natural e ligeira filtração antes de engarrafamento. A colheita de 2023 também foi feita nesta óptica, para ter mais anos de comparação e aprendizagem.
Cada um dos cinco vinhos tem uma imagem diferente no rótulo, transmitindo alguma ligação à casta que representa: Terrantez, Uva Cão, Douradinha, Malvasia Preta e Monvedro. O nome pode confundir, mas a variedade Terrantez cultivada no Dão não tem nenhuma ligação genética com a Terrantez da Madeira, nem do Pico, nem da Terceira. É uma casta referenciada na Península Ibérica desde o século XVI, disseminada no século XIX em quase todo o país, do Minho até ao Algarve. A partir do Século XX passou a estar presente quase exclusivamente no Dão, onde em 1986 representava menos de 0,03%. É das castas ainda pouco estudadas. Sabe-se que de ponto de vista agronómico é uma casta de abrolhamento e maturação em época média. Como é muito susceptível ao desavinho e bagoinha, necessita de bom arejamento na zona das inflorescências. Tem um porte retumbante e é assim que aparece no rótulo. Os mostos desta casta apresentam teor alcoólico relativamente baixo e acidez bastante alta. O vinho mostrou um grande equilíbrio num perfil fresco e consensual.
Grande frescura de boca
A Uva Cão é de origem desconhecida. Mas é famosa pela sua elevada acidez. É uma casta muito antiga, mencionada em 1711 por Vicêncio Alarte. No Dão existe principalmente nas vinhas velhas dos concelhos de Tondela e Carregal do Sal. De abrolhamento médio a tardio, tem boa fertilidade, com alguma sensibilidade ao desavinho. Amadurece tardiamente e precisa de estar bem exposta ao sol e em solos com pouca humidade. É resistente ao stress hídrico e aguenta bem as vagas de calor, o que lhe projecta um futuro interessante. Entretanto, foi referido que os mostos são bastante sensíveis à oxidação. O vinho surpreendeu pela sua amplitude aromática e ofereceu uma grande frescura de boca.
A Douradinha é filha das variedades Amaral e Alfrocheiro, mencionada pela primeira vez em 1851 e, depois, em 1880. Referenciada no Dão em 1986, com uma percentagem de plantação muito reduzida, foi desaparecendo ao longo do tempo, sendo hoje uma das castas antigas mais raras na região. Tem cacho com aspecto dourado quando atinge a plena maturação, o que provavelmente originou o nome. Muito sensível à podridão cinzenta, se não estiver bem exposta no período de colheita. Surpreendentemente, apresenta uma acidez ainda mais alta do que a Uva Cão. Este vinho talvez seja mais desafiante, mais intenso na acidez e mais austero na performance aromática.
O Dão a recuperar património
A Malvasia Preta é originada por cruzamento natural de Alfrocheiro com Cayetana Blanca (Sarigo). Com primeira referência em 1866, está mais presente no Nordeste de Portugal. Na região, figura em 1986 como “Negro Mouro”, com uma presença próxima dos 4% de plantação. Transmite acidez bastante elevada e aroma com fruta mais imediata e fácil de gostar.
A casta Monvedro é a filha de Alfrocheiro com outro progenitor desconhecido. Presente na região em quantidades diminutas (em 1986 menos de 0,01%), é medianamente produtiva, abrolha cedo e amadurece tarde. Mostrou-se bastante sensível às vagas de calor. Por isso precisa de estar numa zona mais fresca e sombria. Sensorialmente, é um caso para dizer: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. É menos consensual, com carácter muito próprio que exige uma prova atenta e alguma paciência para o descobrir.
É importante acrescentar que, depois da prova, todos os vinhos se portaram muito bem à mesa. São vinhos de nicho, alguns mesmo únicos no país (e no mundo!). Quando começarem a surgir mais, será muito bom sinal: o Dão a recuperar o seu património e a basear nele o seu futuro.
(Artigo publicado na edição de Março de 2024)
Marca Caves Velhas surge com novos vinhos e destilados
Num evento de lançamento no final de Outubro, no histórico edifício das Caves Velhas, em Bucelas, a marca assinalou o seu regresso com a apresentação de novos vinhos e destilados. Com mais de 80 anos, Caves Velhas é uma das marcas mais antigas da Enoport Wines, com o primeiro registo a datar de 1940. No […]
Num evento de lançamento no final de Outubro, no histórico edifício das Caves Velhas, em Bucelas, a marca assinalou o seu regresso com a apresentação de novos vinhos e destilados.
Com mais de 80 anos, Caves Velhas é uma das marcas mais antigas da Enoport Wines, com o primeiro registo a datar de 1940. No evento — que incluiu harmonização com pratos da autoria do chef Pedro Sommer — foram apresentados três vinhos, um por cada “terroir” onde a marca está presente: Caves Velhas Bucelas Arinto Garrafeira branco 2018, Caves Velhas Lisboa Garrafeira tinto 2018 e Caves Velhas Dão Garrafeira tinto 2018. Foi, ainda, lançada uma versão em juta deste último. Já os Caves Velhas Aguardente Bagaceira 2010, Caves Velhas Aguardente Bagaceira 2015 e Caves Velhas Brandy Velhíssima, foram os destilados em destaque.
“No final da campanha de 2018 percebemos que tínhamos em mãos uvas que dariam excelente vinho, com características de guarda. O caminho lógico seria reactivar a marca com mais ‘expertise’ nesta matéria”, declarou Nuno Santos, CEO da Enoport Wines.
Ainda para celebrar o acontecimento, as Caves Velhas associaram-se à BMW, com o lançamento do seu i5. Os convidados foram conduzidos até às Caves Velhas ao volante deste modelo, numa parceria com a Caetano Baviera.
Casa Américo: O “sonho americano” na Serra da Estrela
Américo Seabra nasceu em 1927 e emigrou para os Estados Unidos, em 1967. Consigo levou a mulher e os seus seis filhos, ainda crianças. A razão foi a mesma que levou tantos outros portugueses a deixar o país, em vagas sucessivas, ao longo da década de 60: buscar uma vida melhor para si e para […]
Américo Seabra nasceu em 1927 e emigrou para os Estados Unidos, em 1967. Consigo levou a mulher e os seus seis filhos, ainda crianças. A razão foi a mesma que levou tantos outros portugueses a deixar o país, em vagas sucessivas, ao longo da década de 60: buscar uma vida melhor para si e para os seus.
Anos e anos de trabalho duro permitiram à família criar um autêntico império comercial e de serviços, em diversas áreas, entre elas a restauração, a logística, os supermercados, com a cadeia Seabra Supermarket, e a distribuição de vinhos e bebidas, com a Aidil Wines, que muito tem feito pela implantação local dos vinhos portugueses.
Porém, o coração serrano de Américo Seabra ficou sempre em Vila Nova de Tazem, onde manteve uma pequena vinha cujas uvas vendia para a cooperativa local. Quando ele e a mulher regressaram às origens, em 2000, deixando os filhos à frente dos negócios americanos, resolveu produzir o seu próprio vinho. O que veio a acontecer na vindima de 2005, com o apoio dos filhos que construíram uma pequena adega em Tazem. O tinto resultante, segundo consta na família, não era nada de especial. “Mas deu uma alegria enorme ao meu pai”, revela Albano Seabra, que com seus irmãos António, Américo e José, resolveu, em 2009, ajudar o progenitor a dar outra dimensão ao seu sonho. Surgiu assim a Seacampo, empresa familiar sedeada em Vila Nova de Tazem e dedicada à produção e comercialização de vinhos do Dão.
Casa Américo tornou-se marca e assinatura da empresa que o pai Américo Seabra, falecido em 2011, ainda viu nascer e produzir os primeiros vinhos.
Ano após ano a Casa Américo foi crescendo e aumentando o seu património. O que começou com uma vinha de 5 hectares transformou-se em seis quintas mais algumas parcelas, num total de 150 hectares de vinha, onde se inclui já a Quinta da Garrida e a Quinta das Casticeiras, adquiridas em 2022 à Aliança/Bacalhôa. É uma área impressionante para a região e mais ainda se pensarmos que toda ela se insere na sub-região da Serra da Estrela, talvez a mais vincadamente diferenciadora de entre as sete sub-regiões do Dão. Já em 2017 tinha sido adquirida a Adega Cooperativa de São Paio. Com essa aquisição, foi possível preservar um pedaço da história vinícola da região, implicando embora um forte investimento na sua renovação e actualização. A adega pode vinificar milhão e meio de litros e armazenar dois milhões, algo que ultrapassa em muito a produção da Casa Américo, que está ainda assim em crescendo, passando dos 525 mil litros em 2021 para os 650 mil em 2022. Muitos antigos viticultores associados da adega de São Paio continuam a ali entregar as suas uvas. O património completa-se com um solar/palacete adquirido em 1999, situado no centro de Vila Nova de Tazem e rodeado por 1 hectare de vinha. Foi ali que a família desenhou de raiz o projecto Casa Américo.
Um empreendimento desta magnitude, ainda para mais com os seus proprietários a viver nos Estados Unidos da América, necessita de uma gestão profissional no seu dia a dia. “A dada altura percebemos que isto não podia ser somente uma paixão, era importante profissionalizar, criar dimensão, economias de escala. Só assim poderíamos corresponder ao propósito de trazer valor para Vila Nova de Tazem e honrar o nome do nosso pai”, refere Albano Seabra, dos quatro irmãos sócios aquele que está mais tempo em Portugal. Assim, uma equipa liderada pelo director geral David Lopes e composta pelo enólogo consultor Pedro Pereira (técnico com vasta experiência no Dão e, em particular, na sub-região da Serra da Estrela), pelo enólogo residente João Cantão e pelas irmãs Dora Caseiro (marketing) e Beatriz Caseiro (comercial) assegura o bom desempenho do projecto que tem como principais mercados de consumo Portugal, EUA, Brasil, Europa e Suíça, por esta ordem.
No coração da Serra
As vinhas da Casa Américo Wines estão distribuídas por 6 quintas e mais algumas propriedades dispersas entre Vila Nova de Tazem e S. Paio, Gouveia. A Quinta Nova é a maior, constituída por 68,5ha de vinha em produção. São distintas parcelas com diferentes idades e castas, rodeadas por pinhal, oliveiras e afloramentos graníticos. Para além das castas, brancas e tintas, mais comuns e tradicionais do Dão, existe também aqui uma parcela recentemente plantada com castas antigas e, algumas delas, quase desaparecidas da região, existentes apenas nas vinhas velhas. Variedades brancas como Alvadurão, Gouveio, Barcelo, Uva Cão, Terrantez e tintas como Baga, Alvarelhão, Camarate, Sousão, Bastardo e Rufete têm aqui uma nova oportunidade. “É também uma forma de preservar a nosso património vitivinícola para as gerações futuras”, diz a propósito David Lopes. Também em Tazem encontramos a segunda maior propriedade, a Quinta da Garrida. São 18ha de vinhas, algumas com mais de 50 anos, onde estão presentes diversas castas antigas. Aqui só existem variedades tintas, com destaque para a Tinta Roriz e Touriga Nacional. A Quinta do Aral situa-se perto de Gouveia, sendo a vinha de maior altitude (todas as vinhas da casa estão entre os 400 e 650 metros), de onde saem os brancos e tintos Casa Américo 625. No Aral encontramos 15ha de vinha (com parcelas, brancas e tintas, muito velhas, remontando aos anos 30 e também uma parcela plantada em 2017 com varas das vinhas velhas) e 4ha de pomar Bravo de Esmolfe. A Quinta do Paço, localizada igualmente nos arredores de Gouveia, tem um total de 27ha, dos quais 15ha de vinha, em bonitos patamares, de onde vem a marca Vinha de Púcaros. Um olival em modo de produção biológica, uma casa antiga recuperada e uma capela são outros destaques da propriedade.
Já a Quinta das Casticeiras, adquirida no ano passado, está situada em Moimenta da Serra, bem próxima da encosta da Estrela. Rodeada por muro de granito, tem 12ha de vinhedos, a 580 metros de altitude. Segundo o enólogo Pedro Pereira, é daqui que vem a melhor Touriga Nacional da empresa. Finalmente, a Quinta da Cerca. Tem apenas 1,5ha de vinha, cercada por um muito de granito, mas a sua importância é bem maior do que a dimensão. É que esta é a vinha mais antiga da Casa Américo, com mais de um século de idade, feita de cepas retorcidas com uma grande variedade de castas brancas e tintas. Aqui nasce o ex-libris da casa, o Vinhas Centenárias.
Mais de 75% das vinhas da empresa têm uma idade entre os 10 e os 50 anos e as castas tintas predominam largamente nos encepamentos, com 85%. A aquisição de propriedades vai ficar por aqui, a ideia agora será, sobretudo, aumentar a área de uvas brancas, provavelmente à custa da Tinta Roriz, casta que Pedro Pereira não aprecia particularmente. O que aprecia, isso sim, é a disponibilidade de diversas vinhas “maduras” e em altitude, com dias quentes que contrastam com as noites frescas e orvalho nas madrugadas, conduzindo a vinhos de forte personalidade e muita frescura. “O perfil de vinhos que ambicionamos são os que expressam a identidade da Serra da Estrela, terra natal do Sr. Américo Seabra”, diz o enólogo. “Daí todo o investimento na preservação do património vitivinícola da região e das castas autóctones.”
O portefólio começa a ser vasto (são seis linhas distintas de produto, cada qual com várias referências, sendo que Casa Américo é a marca mais sonante) mas isso não assusta David Lopes. “Temos opções para diferentes momentos de consumo, para diferentes tipos de consumidores e diferentes canais”, justifica. “Queremos ser uma referência entre os vinhos portugueses, como embaixadores da sub-região da Serra da Estrela, Dão.”
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)
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Casa Américo Vinhas Centenárias
Tinto - 2018 -
Casa Américo 625
Tinto - 2019 -
Casa Américo
Tinto - 2016 -
Casa Américo
Tinto - 2018 -
Casa Américo
Tinto - 2016 -
Casa Américo
Tinto - 2018 -
Casa Américo
Rosé - 2021 -
Vinha de Púcaros
Branco - 2020 -
Casa Américo Branco Pelicular
Branco - 2021 -
Casa Américo 625
Branco - 2020 -
Casa Américo
Branco - 2021 -
Casa Américo
Branco - 2020
Caminhos Cruzados: Em modo Clandestino
Em 2012, o empresário Paulo Santos iniciava o seu negócio de produção de vinho em Vilar Seco, Nelas. Anos mais tarde, a sua filha Lígia tomava as rédeas da empresa, mas o destino mostrou ser outro: Em finais de 2020, a empresa foi adquirida pelos empresários Paulo Pereira e o casal Maria do Céu Gonçalves […]
Em 2012, o empresário Paulo Santos iniciava o seu negócio de produção de vinho em Vilar Seco, Nelas. Anos mais tarde, a sua filha Lígia tomava as rédeas da empresa, mas o destino mostrou ser outro: Em finais de 2020, a empresa foi adquirida pelos empresários Paulo Pereira e o casal Maria do Céu Gonçalves e Álvaro Lopes, do Grupo Terras e Terroir, proprietário da famosa Quinta da Pacheca, no Douro, e de outras quintas na Bairrada e Alentejo. A nova gestão não só manteve a estrutura de produção, como continuou receptiva à experimentação. Esta equipa é a responsável pelos vinhos Titular, a marca mais conhecida da empresa do Dão, mas também por vinhos com Descarada, Caminhos Cruzados, Vinhas da Teixuga e Teixuga.
Nesta casa com 40 hectares de vinha, a enologia está a cargo de Carla Rodrigues, uma engenheira química industrial convertida em enóloga (depois de formação adicional). Carla não está só: os enólogos consultores Manuel Vieira e Carlos Magalhães dão-lhe apoio há vários anos, aportando à adega décadas de experiência.
A linha Clandestino nasceu da cabeça da jovem Lígia Santos, actualmente responsável pelos departamentos de comunicação e sustentabilidade do grupo Terras e Terroir. O primeiro elemento surgiu em 2017, o Clandestino tinto, que agora vai na colheita de 2019. E logo no ano a seguir, surge o branco, que está na versão de 2022. Este é oriundo de castas estrangeiras plantadas junto à adega, na Quinta da Teixuga, e que, por razões legais, não podem dar origem a vinhos com Denominação de Origem Dão. Como é Clandestino, a bem-disposta Lígia armou o seu melhor sorriso e não quis dizer quais as castas usadas: Chardonnay, Sémillon… quem sabe?
O mais recente da linha é outra provocação da equipa: um vinho com mistura de uvas brancas e tintas, que recebeu o nome de Clandestino Cuvée EC + TN. É da colheita de 2022 e resulta da adição de películas de Touriga Nacional (resultantes da produção de um rosé) ao mosto de Encruzado. Afinal, diz Lígia, estas são as duas “castas rainhas do Dão”.
É um tinto de cor clara mas, também pelo corpo que apresenta, hesitamos em classificá-lo. Manuel Vieira diz que “não é um clarete e certamente não é um rosé”. E talvez não seja um palhete. Afinal, diz Carla Rodrigues, “é um vinho fora da caixa”. Ou, diríamos nós, um vinho de perfil “Clandestino”.
(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)