Estive Lá: Vila Real – Os sabores do Chaxoila e da Lapão

O tempo estava frio, chuvoso, mas não nos demoveu de uma passeata húmida por terras de Vila Real, cidade onde passei inúmeras vezes, sobretudo a caminho da Região do Douro, mas onde apenas tinha parado para almoçar. Depois de um pequeno-almoço na Casa Lapão, feito de imperdíveis covilhetes, uma espécie de ex-libris da cidade, bem […]
O tempo estava frio, chuvoso, mas não nos demoveu de uma passeata húmida por terras de Vila Real, cidade onde passei inúmeras vezes, sobretudo a caminho da Região do Douro, mas onde apenas tinha parado para almoçar.
Depois de um pequeno-almoço na Casa Lapão, feito de imperdíveis covilhetes, uma espécie de ex-libris da cidade, bem pecaminoso, feito de massa folhada com recheio de carne, e de uma fatia da sua saborosa e bem recheada bôla, a meias, na companhia do indispensável galão de máquina, foi hora de passeio à chuva, com muitas paragens para usufruir da paisagem. Primeiro na pequena zona velha do centro da cidade. Depois, numa descida até ao rio Corgo, que estava cheio de água, ruidoso e bem bravo, para uma longa caminhada pelas suas margens. Foram várias as paragens, como não podia deixar de ser, sobretudo para ver e ouvir as águas a passar em turbilhão e a cair em cascata no meio daquela zona verde, aquilo que mais tarde alguém de lá disse ser o Parque da Cidade.
Quase três horas depois de termos iniciado o percurso, feito com a calma que todos os fins de semana prolongados merecem, estávamos de volta ao carro, de partida para o nosso destino de almoço, a Casa de Pasto Chaxoila, nesse dia para um Naco de carne de Cachena (raça bovina) fatiado com batatas de forno, na companhia de um tinto Terra a Terra reserva de 2021, depois de mais um par de covilhetes, porque são irresistíveis. Para terminar, dois tentadores bolos locais: uma Crista de Galo, que é recheada com doce de ovos, e um Pito de Santa Luzia, que leva, no interior, doce de abóbora e canela, dois dos mais tentadores bolos locais. Excesso de gulodice, eu sei, mas teve de ser, até porque não vamos a Vila Real todos os dias. A oferta da casa é mais vasta, e ainda lá voltámos para petiscar polvo à galega e umas pataniscas que estavam mesmo boas, apenas para reconfortar o corpo antes de voltar para a Casa Agrícola da Levada, um turismo de habitação familiar, com casas e quartos independentes, que fica numa quinta bem cuidada no interior da cidade. Ficámos no lagar, e gostámos.
Casa de Pasto Chaxoila
Morada: Estrada Nacional 2, Borralha, Vila Real
Tel.: 259 322 654
Pastelaria Casa Lapão
Morada: R. da Misericórdia 64, Vila Real
Tel.: 259 324 146
Casa Agrícola da Levada Eco Village
Morada: Casa Agrícola da Levada, Vila Real
Tel.: 916 594 404
Quinta das Areias Country House – O novo Turismo Rural do Solar da Pena

O produtor de vinhos verdes Solar da Pena inaugurou a sua unidade de turismo rural denominada “Quinta das Areias Wine Country House”. Situado junto ao Rio Cávado, este empreendimento está implantado numa antiga propriedade agrícola totalmente recuperada onde permanece no edifício a traça tradicional do Minho que esteve na sua origem. A Quinta das Areias […]
O produtor de vinhos verdes Solar da Pena inaugurou a sua unidade de turismo rural denominada “Quinta das Areias Wine Country House”. Situado junto ao Rio Cávado, este empreendimento está implantado numa antiga propriedade agrícola totalmente recuperada onde permanece no edifício a traça tradicional do Minho que esteve na sua origem.
A Quinta das Areias Wine Country House é composta por cinco quartos, dos quais 3 duplos e dois familiares, equipados com todas as comodidades para proporcionar uma estadia memorável. Contíguo ao edifício principal, existe também um sequeiro de arquitectura tradicional do Minho transformado numa suite familiar totalmente independente com localização e exposição solar privilegiadas. Existe ainda um bungalow com uma varanda privada suspensa sobre a vinha com jacuzzi. A inauguração do alojamento serviu ainda para apresentação da gama de vinhos do Solar da Pena, actualmente com sete referências: 4 brancos, um tinto, um rosé e um espumante.
O Solar da Pena situa-se em Braga na Rua de Areias, nº 185
Lavradores de Feitoria: Casa nova, vinhos novos

Fundada em 2000 por 15 viticultores durienses, a Lavradores de Feitoria é um projecto inovador a diversos níveis. Agrupando 20 propriedades, dispersas pelas três sub-regiões do Douro, num total de mais de 600 hectares de vinha, conta desde 2021 com uma nova sede e adega e, desde abril do ano passado, com um centro de […]
Fundada em 2000 por 15 viticultores durienses, a Lavradores de Feitoria é um projecto inovador a diversos níveis. Agrupando 20 propriedades, dispersas pelas três sub-regiões do Douro, num total de mais de 600 hectares de vinha, conta desde 2021 com uma nova sede e adega e, desde abril do ano passado, com um centro de enoturismo. No meio de tanta novidade cabem, claro, novos vinhos e colheitas.
Texto: Luís Lopes Fotos: Lavradores de Feitoria
O associativismo no sector do vinho é fenómeno raro e, quando acontece, normalmente não dura muito. O projecto Lavradores de Feitoria merece, por isso, forte aplauso, pela longevidade (quase 23 anos!), dimensão (são hoje 53 accionistas, dos quais 16 proprietários de quintas), conceito (lógica de sustentabilidade social, económica e ambiental) e solidez, reforçada pela aquisição da quinta do Medronheiro, em Sabrosa, e a construção da nova sede e adega no local.

Na base de tudo isto está um enorme capital de confiança gerada entre todos os intervenientes e que a administração da Lavradores de Feitoria, cujo rosto mais visível é a CEO Olga Martins, procura retribuir. Um exemplo, é o valor base de remuneração das uvas aos produtores associados, sempre acima da média praticada na região, garantindo que cobre o custo de produção, numa lógica de “fairtrade”. A Lavradores de Feitoria tem um sistema de pagamentos assente em três patamares – base, superior e extra (que chega a valer mais do dobro do valor base), como forma de valorizar a qualidade das uvas e, por conseguinte, dos vinhos. O pagamento aos fornecedores 30 dias após a emissão da factura é igualmente um ponto de honra da casa.
Mas falemos de vinhas, adegas e vinhos. E aqui é incontornável o nome de Paulo Ruão, director de enologia da Lavradores de Feitoria desde a vindima de 2005. Para construir uma gama de vinhos segmentada e criteriosa, que abarca lotes, monocastas e vinhos de quinta, a partir de 20 propriedades e 600 hectares, é preciso estar familiarizado com cada um destes terroirs e suas particularidades. Paulo conhece bem as quintas dos sócios da empresa. Para além do acompanhamento periódico anual, visita cada uma das vinhas duas vezes antes da vindima, para fazer controle de maturação e escolher as parcelas que pretende, podendo estas variar de ano para ano.
Quando a empresa nasceu, em 2000, a coisa era muito mais simples: cada quinta fazia o seu vinho e a sua marca. Rapidamente se verificou, porém, a insustentabilidade enológica e comercial do modelo. Hoje, estas propriedades dispersas pelo Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior, com uvas de castas bastantes diversas, cepas de todas as idades, plantadas a múltiplas altitudes, com diferentes exposições, numa enorme heterogeneidade de solos, originam apenas duas linhas de vinhos, identificadas como “vinhos de lote”, onde estão as marcas Lavradores de Feitoria e Três Bagos, e “vinhos de vinha”, onde se inserem os clássicos Meruge, branco e tinto, Quinta da Costa das Aguaneiras e, a grande novidade de 2022, Vinha do Sobreiro.
Depois da fase “naif” inicial, a vinificação comum passou a estar concentrada numa adega montada na zona industrial de Paços, em Sabrosa. A ambição de Olga Martins e Paulo Ruão, porém, era outra. Numa empresa assente em quintas e vinhas, fazia sentido ter “uma adega no meio das videiras”. O sonho levou tempo a concretizar. Primeiro, em 2008, foi preciso adquirir, com capitais próprios, a Quinta do Medronheiro. Com 8 hectares de área total, entre os 540 e 580 metros de altitude e exposição sul, 6,5 hectares são de vinha, exclusivamente uvas brancas, Viosinho, Gouveio e Boal, em modo de produção biológica. Depois, houve que ganhar músculo financeiro para construir a adega, inaugurada somente 13 anos depois, em 2021.

O projecto, da autoria do arquitecto Belém Lima, assenta numa estrutura e paredes exteriores em betão armado pré-fabricado, com um padrão texturado onde impera a cor do xisto. Os painéis isolados e de grande eficiência térmica, associados à produção de energia através de painéis fotovoltaicos e ao tratamento de águas, avolumam a vertente de sustentabilidade da empresa. A adega possui todo o equipamento moderno expectável numa instalação destas. Porém, a pisa a pés em lagar de granito, que Paulo Ruão exige para alguns vinhos de topo, continua a ser feita nas quintas dos produtores accionistas. Para além da parte produtiva, o edifício comporta ainda os escritórios da empresa e a área dedicada ao enoturismo, inaugurado em abril de 2022. Também aqui, a Lavradores de Feitoria procura fazer diferente, privilegiando as visitas personalizadas, a cargo de Eduardo Ferreira, exímio contador da história do Douro e das estórias dos vinhos e das gentes…
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2023)
-
Quinta da Costa das Aguaneiras
- 2018 -
Três Bagos
Tinto - 2016 -
Meruge
Tinto - 2018 -
Vinha do Sobreiro
Tinto - 2016 -
Três Bagos
Tinto - 2019 -
Lavradores de Feitoria
Tinto - 2021 -
Lavradores de Feitoria
Rosé - 2021 -
Meruge
Branco - 2020 -
Três Bagos
Branco - 2021 -
Três Bagos
Branco - 2021 -
Lavradores de Feitoria
Branco - 2021
À mesa do Tejo, de copo na mão

Com trabalho, dedicação e muita qualidade, os vinhos do Tejo continuam a dar os passos que precisam para recuperar a grandeza e o prestígio de outrora. Com um aliado de peso nas boas mesas que vão surgindo um pouco por toda a região. À boleia dos prémios anuais da CVR local, este é um roteiro […]
Com trabalho, dedicação e muita qualidade, os vinhos do Tejo continuam a dar os passos que precisam para recuperar a grandeza e o prestígio de outrora. Com um aliado de peso nas boas mesas que vão surgindo um pouco por toda a região. À boleia dos prémios anuais da CVR local, este é um roteiro do que de melhor se come e bebe pelas margens do grande rio.

Texto: Luís Francisco
Fotos: Ricardo Palma Veiga
Há muitos séculos que se produz vinho no vale do Tejo, onde, aliás, muitos historiadores situam o epicentro da expansão desta cultura trazida pelos povos que nos visitavam vindos do Mediterrâneo. Deste caldo de influências nasceu também uma cozinha rica e intensa, alimentada pelo mar, pela água doce, pela fertilidade dos terrenos agrícolas e pelas coutadas de caça que a fidalguia de outros tempos instituiu. Mas a última metade do século XX pareceu trazer uma nuvem cinzenta sobre este panorama, com muitos vinhos a apontarem para a quantidade em detrimento da qualidade e as mesas a perderem alma. Fica a boa notícia: esses tempos já são passado.
“O grande problema da região é a percepção de qualidade que existe no público – e que é errada. Muitos produtores ainda insistem em colocar os seus vinhos nas prateleiras dos preços mais baixos… Acho que muitos dos nossos vinhos batem-se com outros, de outras regiões, dois ou três euros mais caros.” O diagnóstico é traçado por Luís Santos, distinguido este ano pela Comissão Vitivinícola do Tejo como Enólogo do Ano. E é também ele quem destaca a metade cheia do copo: “O rio é o grande normalizador climático desta região. É quente, mas as noites são frescas – no Verão chegamos a ter amplitudes térmicas de 30 graus! E isso é muito bom para o vinho. Outro factor positivo é haver muita gente com qualidade e saber.”
“Temos potencialidade para fazer volume e vinhos de nicho, com concentrações brutais ou grande delicadeza”, continua o enólogo. “Temos castas de qualidade reconhecida e somos uma região aberta. Por isso, temos de deixar de trabalhar pelo preço e ganhar a confiança de procurar maior valorização.” Um bom sinal desse processo é o crescente entusiasmo dos críticos e Luís, à semelhança do que acontecerá ao longo do nosso périplo com outros interlocutores, dá como exemplo os 94+ pontos Robert Parker conseguidos por um vinho da região, o Vinha do Convento Reserva tinto 2017, produzido pela Falua. “Ajuda a puxar a região para cima.”
Muito e bom
Luís fala-nos na adega da Quinta do Casal Monteiro, perto de Almeirim e local de nascimento de vinhos que a esmagadora maioria dos portugueses desconhece, porque “99 por cento vão para a exportação”. Lá fora, “Tejo” não tem estigma. Ao sabor da conversa, provamos três vinhos deste produtor. O Quinta do Casal Monteiro Chardonnay e Arinto é um branco fino, não muito exuberante no nariz, mas untuoso e comprido na boca.
A seguir apreciamos um tinto, o Clavis Aurea 2018, um field blend maioritariamente de castas portuguesas (tourigas Nacional e Franca, Tinta Roriz) que o enólogo cria, não directamente de uma vinha misturada, mas selecionando as uvas e juntando-as na adega. Muito equilíbrio, taninos ainda a mostrar juventude, temos vinho para durar no tempo. Finalmente, encerramos com o Quinta do Casal Monteiro Grande Reserva 2008, fruto das melhores parcelas de Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e Syrah da quinta, com produção controlada – 4 a 5 toneladas por hectare, “o que nesta região é mesmo muito controlado”, explica o enólogo. Redondo, complexo, taninos domados e nítida vocação gastronómica.
São belos exemplos do trabalho deste enólogo nascido na Mealhada e formado em Agropecuária na Universidade de Coimbra, que já trabalhou no Dão, na Bairrada, em Itália, e que “chegou” ao Tejo em 2015. Para, aos 37 anos, ser reconhecido pelos seus pares com a distinção de Enólogo do Ano 2021. “Ainda sou demasiado novo para estes prémios”, desabafa.
Pousamos os copos e saímos para uma volta pelas vinhas, uma imensidão de 70 hectares em terreno plano, de aluvião, onde a extrema fertilidade desmente outras ideias feitas. “A Fernão Pires pode atingir aqui produções de 30 a 40 toneladas por hectare e isso não potencia a qualidade, claro. Mas há castas brancas que, mesmo perto das 20 toneladas por hectare, têm muita qualidade”, explica Luís Santos. Ou seja, “as pessoas podem mesmo viver da viticultura”. Há séculos que o fazem, a bem da verdade. E nós vamos partir à descoberta do que de bom por aqui se faz. Mas à mesa, que se está melhor.
Abrantes
Começamos por Abrantes, mais exactamente em Alferrarede, juntando a mestria gastronómica do chef Vítor Felisberto à longa tradição de qualidade dos vinhos Casal da Coelheira. A empatia é total – e também explica que restaurante e produtor tenham criado um vinho juntos, o Raízes, cuja primeira versão tinto (1500 garrafas) esgotou em seis meses. Vai regressar, agora acompanhado de um branco.
A Casa Chef Vítor Felisberto (distinguida pela CVR Tejo com o prémio Melhor Harmonização) cumpriu três anos de existência no Verão passado. Na cozinha, um homem que aos 18 anos já lavava pratos em Andorra, depois estagiou em França e rumou a Londres para oficiar em restaurantes de prestígio, alguns com estrela Michelin. “Muito stress, muita pressão dos proprietários… Aqui soltei-me mais!”, explica. Virou-se para os pratos tradicionais – o forno a lenha e os recipientes de barro são as imagens de marca da casa. “Mantêm a comida quente mais tempo, o que permite conversar à mesa, sem pressas.”

Começamos com umas molejas (pedacinhos de uma glândula, o timo) fritas em pedacinhos estaladiços. No copo, o Casal da Coelheira Private Colection branco, um 100% Verdelho – “Numa casa de blends, este é uma das excepções”, explica Nuno Falcão Rodrigues, representante da terceira geração à frente desta casa do Tramagal (do outro lado do rio) com 64 hectares de vinha própria e que este ano foi distinguida pela CVR Tejo com o Prémio Excelência.
O vinho seguinte, o Raízes tinto 2017, também é um varietal, este de Alicante Bouschet e a sua força bem domada acompanha a preceito um cachaço de porco cozinhado durante longas horas e com toque final no forno de lenha. Envolvida pelo molho (cuja acidez é surpreendente) e, entre outras maravilhas, castanhas, favas e dois tipos de batata-doce, a carne desfaz-se em suculência.
A fechar, uma rica sobremesa (fondant, doce de ovos, sorvete de frutos vermelhos, também presentes ao vivo) e um copo de Mythos, o topo de gama do Casal da Coelheira. Feito com Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e “um pouquinho” de Touriga Franca, é o ponto final perfeito para uma refeição que aliou uma mesa onde é crescente “a aposta em produtos locais” a um produtor que representa a tradição e a excelência dos vinhos do Tejo.
Torres Novas
Hugo Antunes tinha um bar em Torres Novas, mas o espaço deixou de estar disponível ganhou força e a ideia de criar um restaurante moderno e de qualidade. No próximo dia 26 de Dezembro cumpre-se o sexto aniversário do De’Gustar, um espaço onde o próprio Hugo lidera a cozinha. Assume-se como autodidacta – “aprendi ali dentro, a sofrer” – e conta com a ajuda da companheira, Carla Rosa, que trata das sobremesas. Desta vez, têm a companhia dos vinhos da Enoport, uma das maiores empresas privadas da região, trazidos em mão por Maria José Viana, a quem a CVR Tejo atribuiu o prémio Carreira.

Actualmente, Maria José está na direcção de Marketing e Relações Públicas, mas ao longo de 30 anos já fez um pouco de tudo, da enologia à gestão, da viticultura à representação institucional. “A única coisa que nunca fiz foi a parte comercial pura e dura”, ri-se. Advoga que os vinhos do Tejo “têm de conquistar notoriedade” e tem em Hugo Antunes um aliado: “A nossa carta terá uns 90% de vinhos do Tejo. As pessoas tendem a pedir o que já conhecem, mas nós gostamos de sugerir o vinho, se não gostarem, trocamos.”
À mesa chega, entretanto, um carabineiro, sobre uma pequena cama de algas e com molho espesso a preencher o prato. Recebe-o um copo de Cabeça de Toiro Grande Reserva branco 2019 (Fernão Pires, Chardonnay e Sauvignon Blanc). A seguir, um prato complexo, que Hugo apresenta como “o porco que se apaixonou pela perdiz” e que junta a bochecha do primeiro à perna da segunda, tudo cozinhado a baixa temperatura. O Quinta S. João Batista Grande Reserva tinto 2014 (Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet) faz as honras no copo. Nasceu aqui bem ao lado, no concelho de Torres Novas.
O De’Gustar foi distinguido com o prémio Melhor Apresentação e os primeiros pratos já se tinham mostrado à altura, mas a sobremesa parece uma composição artística. Explode cor e sabores no prato (bavaroise de maracujá, disco laranja, chocolate, caramelo, manga, sorbet de baunilha…) e a sua incrível persistência e complexidade no palato serve para acolher o Quinta S. João Batista Reserva tinto 2016 (Touriga Franca e Alicante Bouschet) numa despedida em grande estilo.
Tomar
O restaurante Manjar dos Templários, que venceu o prémio Prova Teórica, uma iniciativa da CVR Tejo, fica a poucos quilómetros de Tomar. À nossa espera, uma casa que serve leitão assado (entre outras preciosidades, claro) e um produtor com muitas histórias para contar. José Vidal, trouxe da Quinta Casal das Freiras três vinhos, entre os quais um com 14 anos que há-de revelar-se um portento. Lá iremos.
Em 2015, Silvano Vaz sucedeu aos pais na gestão de um restaurante com 30 anos, que ganhou novo fôlego mas manteve a tradição. Do leitão, para começar. “O meu pai começou em França e o cozinheiro era da Mealhada… Aprendeu a assar leitões e quando veio para Portugal continuou a fazê-lo. Na altura era dos poucos sítios fora da Bairrada onde se servia leitão assado no forno!”

A história do Casal das Freiras, cujas vinhas, em linha recta, não ficam a mais de dois quilómetros da mesa onde nos sentamos, remonta a 1882, quando o avô de José Vidal, natural de Ovar, se instalou junto a Tomar. O primeiro vinho que abrimos, o Casal das Freiras Reserva 2007 é, acima de tudo, uma homenagem à neta, que nasceu nesse ano. “Achei que tinha de fazer alguma coisa de especial…” E como o fez! Rico, fresco e muito equilibrado, este vinho prova a capacidade do Tejo para trabalhar a longevidade. Acaba por nos acompanhar ao longo de toda a refeição.
Avançamos com o bacalhau na broa, esta é feita no restaurante com milho amarelo e chega à mesa inteira, com couve salteada e lascas do fiel amigo no interior. Ainda passamos pelo polvo assado antes de aterrarmos no leitão – comprado a produtores locais – e percebermos que a pele estaladiça, a carne suculenta e a apresentação em pequenos nacos homenageiam a tradição da Bairrada. Com uma novidade: o molho tem pimenta branca, não preta.
Desta vez, e porque o “ancião” de 2007 teima em não nos deixar o copo, não há um vinho para cada prato, mas todos se dão muito bem. Provamos um branco, o Casal das Freiras Reserva 2019 Vinhas Velhas, e um varietal tinto, o Casal das Freiras Syrah 2015, este nascido por inspiração de um vinho provado numa feira em França. “Fomos os primeiros da região a plantar Syrah!”, orgulha-se José Vidal, distinguido pela CVR Tejo com o prémio Carreira. Finalizamos com uma sobremesa típica, as fatias de Tomar.
Santarém
Desde as décadas de 1960 e 70 que o avô de Manuel Vargas servia petiscos aos amigos num espaço informal junto a Santarém. Consta que assava leitões muito bem, mas só nos anos 1980 o Oh Vargas se assumiu como restaurante e ganhou nova vida em 2019, quando, após profundas obras de remodelação, Manuel Vargas reabriu em grande estilo uma casa que é já uma referência na região – foi considerado pela CVR Tejo o Melhor Restaurante e arrecadou nada menos do que outros cinco prémios.
“Gostamos de nos considerar um restaurante tradicional, com grande âncora nas carnes grelhadas”, explica Manuel Vargas. Mas há muito mais. A carta de vinhos abriu com umas 200 referências – sempre a apontar para as gamas mais altas, como facilmente se percebe pela estante que enche uma das paredes – e agora já serão mais do dobro. Cerca de um quarto da lista (uns 100 vinhos) são do Tejo. Com destaque evidente para um vizinho, a Falua, instalada do outro lado do rio.

Adquirida pelo grupo francês Roullier em 2017, a empresa foi criada em 1994 e, a par do foco na qualidade dos vinhos, sempre teve muita atenção às questões da sustentabilidade. “A adega construída em 2004 deu o sinal disso mesmo, em 2010/11 instalámos painéis solares, fomos os primeiros a ter uma ETAR própria…”, enumera Antonina Barbosa, directora-geral e de enologia da Falua. O que justifica plenamente o prémio Sustentabilidade atribuído pela CVR Tejo. “Está no nosso ADN e faz parte dos nossos objectivos anuais.” As próximas novidades surgirão nas poupanças com o vidro.
Na mesa, começa por brilhar estratosfericamente uma rica canja de robalo, acompanhada pelo Falua Reserva Unoaked 2019 branco, um 100% Fernão Pires sem madeira, como o nome indica. A seguir, uma costeleta maturada de carne barrosã divide a atenção com a versão tinta 2018 do Unoaked (varietal de Touriga Nacional) e o Conde Vimioso Reserva tinto do mesmo ano (percentagens semelhantes de Castelão, Cabernet Sauvignon, Aragonês e Touriga Nacional). No final, aproveitando o balanço e à boleia de uma tábua de queijos, ainda se prova o “tal” vinho que está a assumir-se como “ponta de lança” da região, o Vinha do Convento Reserva tinto 2017. Sublime.
Aveiras de Cima
Em Aveiras há uma marisqueira de referência, mas que está longe de servir apenas frutos do mar. Luís Rodrigues pegou no negócio do pai, que abriu portas há 37 anos, e transformou-o numa casa moderna e funcional, sem cortar na tradição, mas com a preocupação de se mostrar mais ao exterior. Nos últimos anos, ganhou estatuto de referência sem perder o ambiente familiar – ganhou o prémio para Melhor Atendimento. No final da refeição, a mãe de Luís ainda nos brinda com uma prova das suas compotas, uma das quais (de romã) ainda a apurar na panela…
Para acompanhar a comida, a Adega Cooperativa de Almeirim (prémio Empresa Dinamismo) traz-nos três vinhos, que mostram a sua capacidade para fazer vinhos brancos de grande circulação sem comprometer a qualidade. “Fazemos 15 milhões de litros de vinho anualmente, dos quais 12 milhões vão para garrafa. Somos das maiores adegas cooperativas do país”, resume Romeu Herculano, enólogo residente. Há pouco mais de uma década, o granel representava a fatia de leão, mas agora vale apenas 20% do total.

A Adega tem 190 sócios, 1200 hectares de vinha, equipas profissionalizadas em todos os sectores e continua a investir para acompanhar as exigências do mercado. Um bom exemplo disso são os 200 mil euros que custou o equipamento que permite injectar uma bolha mais fina e elegante no frisante Cacho Fresco, que abre as hostilidades no copo, ao lado de uma travessa de marisco.
Segue-se o Varandas branco 2020, um 100% Fernão Pires, oriundo da região da Charneca – genericamente, o Tejo divide-se em três grandes zonas: Campo (zona contígua ao rio), Bairro (nos terrenos mais montanhosos da margem direita) e Charneca (margem direita, terrenos mais arenosos). Acompanha a preceito o bacalhau com torricado e lapardana (pão e batata) de beldroegas. A seguir, uma costoleta Tomahawk Black Angus – “Esta é pequena, só tem 900g…”, explica Luís Rodrigues – espaldada por cogumelos, bata frita e grelos, a justificar um vinho mais volumoso e personalizado. Como a Adega de Almeirim é uma casa de brancos, venha então o Varandas Chardonnay/Arinto 2020, que se mostra à altura.
O Tejo esconde muitas surpresas…
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2021)
Uma nova Malhadinha Nova

Mais de 20 anos depois da sua inauguração, e a sensação de atravessar a entrada da Herdade da Malhadinha Nova mantém-se com a certeza de se antecipar bons momentos. Seja pelas grandes cegonhas sentadas que nos miram, de forma serena, mesmo por cima do pórtico da Herdade, seja pela vastidão da planície e clima ameno […]
Mais de 20 anos depois da sua inauguração, e a sensação de atravessar a entrada da Herdade da Malhadinha Nova mantém-se com a certeza de se antecipar bons momentos. Seja pelas grandes cegonhas sentadas que nos miram, de forma serena, mesmo por cima do pórtico da Herdade, seja pela vastidão da planície e clima ameno (por estes dias, que daqui a poucos meses o calor vai imperar), ou pela forma calorosa como somos recebidos.
Texto: Rita Martins
Fotos: Malhadinha Nova
O ar que se respira é diferente de outros lugares do país, diferente porque nos encontramos em pleno Alentejo, com a perspectiva do calor quente e dourado a que estas terras já nos habituaram e, sobretudo, porque todo o ambiente dentro da Herdade apela à tranquilidade. Junto à nova recepção do hotel ficamos em contacto com os cavalos da propriedade; são trinta e dois Puro-Sangue Lusitano no total… Desde 2008, que a Herdade da Malhadinha Nova se dedica à criação desta espécie para treino, competição da modalidade de dressage e comercialização. Em paralelo, habitam também os cavalos de passeio integrados no turismo equestre da Malhadinha.
A recepção e a nova loja são espaços recentes da Herdade, criados a partir das antigas cavalariças. O ‘check in’ dos hospedes é feito nesse novo edifício onde podemos passear pela loja que vende vinhos, mel e produtos biológicos, todos produzidos na propriedade ou até passar algum tempo no bonito winebar, chamado Taberna, para provar os vinhos. O staff prima pela simpatia, simplicidade e o acolhimento é feito de forma descontraída, onde nos explicam todas as atividades possíveis de realizar (e são muitas!), os horários do restaurante, mapas da propriedade que são bem necessários tendo em conta que estamos perante 450 hectares….
A deslocação a pé dentro da Herdade é exigente a não ser que estejamos com ideia de andar por horas ou fazer grandes passeios, jogging ou trekking. Felizmente, o staff disponibiliza-se a qualquer momento para nos ir buscar de jeep onde estivermos e deixam-nos onde queremos; têm também à disposição dos hóspedes pequenos buggys elétricos e bicicletas para quem quiser. A distância entre os diversos alojamentos pode ser grande, bem como entre os restaurantes para o pequeno-almoço ou para as refeições, para as piscinas ou até mesmo para fazer um pic-nic ou um passeio nas vinhas (duas das muitas actividades organizadas pela Herdade). No entanto é bom reforçar que andar a pé é algo que se deve mesmo fazer quando se está na Malhadinha, por isso se o calor não apertar em demasia e se estiver para aí virado, força! Tem caminhos infinitos para explorar.
Um dos passeios que aconselhamos é a observação das vacas alentejanas, animais de grande porte, que nos deixam aproximar e nos olham com um ar pacífico enquanto pastam e comunicam entre si como se não estivéssemos ali. A pastagem ao ar livre, a partir dos recursos naturais existentes é a base para a criação de animais como as vacas alentejanas, porco preto e a ovelha merina que se alimentam exclusivamente de produtos naturais, com a denominação de origem protegida (DOP). A sustentabilidade ambiental é fundamental para o projecto, por isso a aposta na criação de raças autóctones, o tratamento de resíduos e a consciente gestão e aproveitamento dos recursos naturais como a água. Neste momento estão a ser concluídos 400m2 de painéis solares que irão reduzir em cerca de 35% o consumo energético de toda a propriedade.
Cozinha e alojamento de excelência
Para além dos 80 hectares de vinha, o olival e a produção de mel biológico são grandes apostas já reconhecidas da Herdade da Malhadinha. Desde 2016 que a Malhadinha é totalmente biológica desde a vinha, as pastagens dos animais, o olival as hortas e os pomares que fornecem o restaurante e o incrível pequeno-almoço que se guarda na memória. Joachim Koerper (estrelado pela Michelin, e um dos sócios do Restaurante Eleven em Lisboa), está à frente da cozinha da Malhadinha com a sua equipa liderada pelo chefe residente, Rodrigo Madeira, auxiliado por Vitalina Santos, cozinheira de mão cheia que conhece como ninguém as iguarias tradicionais alentejanas. Por sua vez, o jovem sommelier Andrii Pokryshko tem a cargo todo o serviço de vinhos e Cintia Koerper encarrega-se da pastelaria e nada do que faz nos deixa indiferentes.
São cinco os alojamentos que estão totalmente integrados na paisagem da Herdade da Malhadinha Nova dentro de cada um existem várias possibilidades de quartos e suites, com a finalidade de proporcionar aos hóspedes uma experiência única e em constante contacto com a natureza. A recente integração no prestigiadíssimo universo da Relais & Châteaux – colecção internacional de restaurantes gastronómicos e hotéis de luxo – foi a cereja no topo do bolo. Distinção há muito esperada e, dizemos nós, há muito merecida.
O contraste entre a inspiração rural e objetos de design nacional e internacional é grande, mas está totalmente pensado para uma convivência perfeita. Podemos encontrar peças originais desenhadas por artesãos, cadeiras feitas à mão em harmonia com peças de iluminação desenhadas por Philippe Starck. Os quartos são todos diferentes com cores e apontamentos diferentes, com aromas pensados para cada um, mas com o mesmo conforto e bom gosto…
A Herdade da Malhadinha Nova apostou recentemente na nova imagem gráfica que ficou a cargo do Studio Eduardo Aires. Na apresentação do projecto foi-nos explicado todo o novo conceito que foi aplicado à assinatura institucional, rótulos dos vinhos, site, cartas do restaurante e carta dos vinhos, logotipos nos quartos, fardas e aventais. Uma nova imagem para um refresh, mantendo a identidade e imagem de marca da Malhadinha. O novo logotipo da Herdade da Malhadinha Nova corresponde a uma demarcação tipográfica sobre a paisagem alentejana. A nova sigla HMN é disposta segundo a ordem de um plano cartesiano que assinala os quadrantes do tempo (12h, 15h, 18h, 21h) e as coordenadas espaciais (Norte, Sul, Este e Oeste). Procurou-se assim representar a prioridade do projecto Malhadinha que é não mais do que garantir a sustentabilidade ambiental respeitando o equilíbrio entre o humanizado e o Natural. Nos novos rótulos dos vinhos demarcou-se o tempo, espaço de cultivo, vindima e fermentação. Na imagem, tal como desde o início, cumpre-se a tradição da família Soares que deixa a cargo da terceira geração a ilustração de espécies da avifauna protegida, os cavalos ou os insetos. Para além dos elementos mais novos da família Soares serem os autores de muitas das ilustrações, também crianças da região contribuíram para a elaboração dos novos desenhos.
Acolhimento em família
Ao longo dos anos os irmãos João e Paulo Soares juntamente com a Rita e a Margaret Soares – o núcleo duro – habituaram-nos à sua maneira afável, calorosa e genuína como recebem. Preocupam-se com todos os detalhes e dedicam-se de corpo e alma à Herdade da Malhadinha Nova que emprega já uma grande camada dos moradores da terra. A isso mesmo, a família Soares chama de sustentabilidade social, e é bem bonito de se ver no terreno as caras felizes dos que ali trabalham.
Para a família Soares é tempo de desfrutar. 22 anos depois da compra dos terrenos, o projecto agora sim está acabado, no sentido de que não se irá aumentar a capacidade hoteleira nem a capacidade de vinificação. Actualmente são 75ha de vinha na Malhadinha Nova mais 5ha bem próximos em Vale Travesso (que começaram por ser 1,5ha de vinha muito velha) e não há pretensão para mais, pelo menos no que respeita ao Baixo Alentejo. Para este desfecho, foram feitas várias mudanças como vimos, mas, tal como disse o Paulo com uma lágrima bem gorda no olho quando fazia a apresentação do novo projecto “É preciso que tudo mude, para que tudo fique igual”.
Eu não acho Paulo…. Eu acho que ficou ainda melhor!!!

Finalmente, os vinhos… e é caso para dizer, cada vez mais frescos e vibrantes. A aposta é clara na frescura através de castas mais aptas à região. Vinhos que se pretendem firmes e tensos, e que possam brilhar à mesa, diz-nos Nuno Gonzalez, enólogo residente que conhece todos os cantos à casa (à adega, entenda-se) e que, em conjunto com o experiente Luís Duarte, assina os vinhos. A par de algumas novidades dentro do portefólio já existente, como a aposta em vinhos com a mesma casta, mas de vinhas diferentes, uma revelação está para breve e respeita à aquisição de uma propriedade com 4 hectares de vinha no Alto Alentejo, mais propriamente junto a Portalegre e tudo já também em modo biológico. Mais novidades em breve, portanto, e – antevemos – mais razões para a família Soares continuar a sorrir…
Herdade da Malhadinha Nova
7800-601 Albernoa – Beja
GPS – 37° 49’ 50. 60” N, 7° 59’ 20. 91” W
Hotel: 284 965 432 / Adega: 284 965 210 / Restaurante: 284 965 210
https://www.malhadinhanova.pt/
(Artigo publicado na Edição de Outubro 2021)
Um imenso Alentejo para descobrir

Das altitudes de Portalegre às planuras de Beja. Da influência atlântica do Sudoeste até às estepes semi-desérticas do Guadiana. A diversidade do Alentejo só tem paralelo na sua dimensão e este é um mundo inteiro para descobrir. De copo na mão, claro. Texto: Luís Francisco Foto: Ricardo Palma Veiga Cinco colunas de vidro com exemplos […]
Das altitudes de Portalegre às planuras de Beja. Da influência atlântica do Sudoeste até às estepes semi-desérticas do Guadiana. A diversidade do Alentejo só tem paralelo na sua dimensão e este é um mundo inteiro para descobrir. De copo na mão, claro.
Texto: Luís Francisco
Foto: Ricardo Palma Veiga
Cinco colunas de vidro com exemplos de diferentes tipos de solos. Seis painéis de vídeo que passam imagens do quotidiano em paisagens e ambientes completamente distintos. Uma extensa galeria de caixas de vinho, identificadas com os logotipos dos produtores e com garrafas para descobrir. O Alentejo em toda a sua diversidade. E está tudo aqui, na Sala de Provas da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, em Évora, praticamente à porta da velha Sé, datada do século XIII e a maior catedral medieval do país.
No Alentejo a história está por todo o lado, tantas vezes preservada de forma quase pristina – a dimensão do território, a fraca densidade demográfica e o “esquecimento” a que a região foi votada durante longos períodos ajudam a explicar esta realidade. É como se o passado tivesse sido protegido pelo próprio tempo – que, como é sabido, passa mais devagar nestas paragens banhadas pelo sol do Grande Sul. E também a história do vinho alentejano é longa e recheada de altos e baixos.
Os detalhes fundamentais estão explicados na “sala de visitas” da CVRA, que sonha agora com a retoma do movimento turístico “congelado” pela pandemia no último ano. Tartessos, Fenícios, Gregos, todos viram no território português – e, nomeadamente nas terras quentes do Alentejo – o potencial para cultivar a vinha, muito provavelmente introduzindo variedades mediterrânicas.
Quando os Romanos chegaram, encontraram uma cultura do vinho já bem difundida entre as populações locais e, como era seu timbre, desenvolveram-na de forma a torná-la mais organizada e mais produtiva. A marca romana continua hoje bem evidente na cultura dos vinhos de talha, uma tradição milenar que nos últimos anos ganhou notoriedade pública, mas que nunca deixou de ser acarinhada pelos produtores locais.
Seguiram-se as invasões bárbaras e, depois, o domínio muçulmano. A islamização do território implicou o abandono de muitas vinhas, que só começaram a recuperar quando terminaram as guerras da reconquista e o reino de Portugal se estendeu até ao Algarve. Durante a era dos Descobrimentos, os vinhos de Évora ganharam fama e correram mundo nos porões das naus e caravelas portuguesas. Era mais um ponto alto, nesta montanha-russa de sucessos e apagamentos. Seguiu-se novo período difícil, com a Guerra da Restauração, primeiro, e a criação da Real Companhia Geral de Agricultura dos Vinhos do Douro, em 1756, por decisão do Marquês de Pombal. O poder administrativo puxava para Norte o epicentro da produção vitivinícola nacional e os vinhos do Alentejo voltaram a perder visibilidade.
Muito por onde escolher
Já no século XIX, a “febre” voltou e as vinhas regressaram ao grande território alentejano, mas depressa a filoxera deitou tudo a perder e, já no século XX, os políticos voltaram a entrar em cena: o Estado Novo decretou que o Alentejo era terra de produção de cereais e as vinhas passaram a ser residuais, de auto-subsistência. Décadas depois, as adegas cooperativas e uma mão-cheia de produtores privados conseguiram voltar a pôr o vinho alentejano no mapa e em 1989 foi finalmente criada a Comissão Vitivinícola Nacional Alentejana – o que torna esta região uma das mais recentes em Portugal. Mas, em poucos anos, o sucesso foi estrondoso: hoje, com mais de 22.000 hectares de vinhas, o Alentejo tem cerca de dez por cento da área plantada, mas a sua quota no mercado interno ronda os 40 por cento.
Os vinhos de Denominação de Origem Controlada (DOC) do Alentejo estão divididos em oito sub-regiões – Portalegre, Borba, Redondo, Reguengos, Évora, Vidigueira, Granja-Amareleja e Moura – e a sua variedade espelha o enorme mosaico de solos e micro-climas que encontramos nos distritos de Portalegre, Évora e Beja. Um território vasto e recheado de sedutoras propostas para qualquer viajante, num cardápio em que o vinho e a comida estão no centro das opções. Naturalmente, a oferta enoturística é, também ela, variada e cativante.
Os safaris fotográficos na Herdade do Sobroso (junto ao Alqueva, entre Moura e Vidigueira), as ruínas romanas na atmosfera casual-chic do Torre de Palma Wine Hotel (Monforte), o requinte e a vastidão de horizontes da Herdade da Malhadinha Nova (Beja), a organização e política ambiental do Esporão (Reguengos), os arrojos arquitectónicos da Adega Mayor (Campo Maior) ou da Herdade do Freixo (Redondo), o silêncio e a beleza pura da paisagem na Herdade Monte do Vau (Serpa), as ligações à cultura na Cartuxa (Évora) ou na Quinta do Quetzal (Vidigueira). E podíamos continuar por aí fora…
Com tantas opções – e num território onde as principais localidades estão, na maior parte das vezes, separadas por dezenas de quilómetros – dá muito jeito poder planear a nossa rota. E a CVRA disponibiliza a ferramenta ideal para o fazer: na Sala de Provas, em Évora, foi instalado um ecrã onde podemos definir as características dos locais que pretendemos visitar, seleccioná-los, traçar os itinerários e enviar a informação para o nosso e-mail. Isto, claro, contando sempre com a colaboração das pessoas que ali trabalham e podem dar uma ajuda preciosa.

Um templo escondido
Iniciemos antão, também nós, uma pequena jornada de descoberta do que o Alentejo tem para oferecer. Desta vez, a tarefa de desenhar um percurso coube à própria CVRA, mas há um verdadeiro mundo de oportunidades entre as sete dezenas de produtores que incluem a Rota dos Vinhos alentejana. Uma profusão de experiências vínicas que não se excluem do contexto circundante: o Alentejo dos vinhos funde-se com o Alentejo da gastronomia, com o Alentejo do património histórico, o Alentejo da cultura, o Alentejo do lazer.
E, nem de propósito, a nossa primeira paragem não é um projecto vitivinícola. Uma pequena caminhada pela velha cidade património mundial da UNESCO, que agora começa a redescobrir a animação dos tempos pré-covid, leva-nos até um edifício de três andares, numa ruela insuspeita. À porta, uma placa em latim: In Acqua Veritas. Vamos entrar nuns banhos romanos.
Laura Martins e Pedro Branco são dois dos quatro sócios (os outros são os seus respectivos cônjuges) que há dois anos abriram as portas deste verdadeiro templo do bem-estar. A inspiração veio dos banhos árabes, mas a realidade de Évora, onde a herança romana é notável, levou a algumas adaptações. Quando entramos, numa recepção arejada e elegante, começamos a ter uma ideia do que nos espera quando olhamos para as incríveis abóbodas em tijolo (havemos depois de descobrir que são seis, todas diferentes umas das outras) que pairam por cima da nossa cabeça. Mas nem isso nos prepara para a atmosfera extraordinária da zona de banhos. Três piscinas – água morna (31ºC), água quente (40º), água fria(16º) –, zona de massagens, bar ao fundo com mesas e cadeiras. E tudo isto entre paredes seculares, onde tijolo antigo e pedra se vão cruzando, arcos embutidos em sucessivas eras de construção, recantos, nichos.
As termas abriram há dois anos, após um longo período de obras com acompanhamento arqueológico, mas é como se estivessem agora a entrar numa segunda vida – como quase tudo em Portugal, foram obrigadas a fechar por força da pandemia. Neste momento, por razões de segurança e higiene, funcionam apenas mediante marcação e os preços começam nos 39 euros da Experiência Banhos (máximo duas horas), mas o menu inclui ainda as opções Degustação (vinhos, queijos, enchidos, fruta) e Massagem. No Inverno é acolhedor e quentinho, no Verão “é dos sítios mais frescos de Évora”, salienta Pedro. E está a ser um sucesso. “Há quem venha a Évora de propósito para nos visitar”, explica Laura. E assim a cidade ganhou mais um argumento turístico.
A caminho de Estremoz
Seguimos viagem, agora percorrendo por auto-estrada as três dezenas de quilómetros que nos separam de Estremoz, vencendo o desnível dos contrafortes da Serra de Ossa (altitude máxima: 653m) e perdendo o olhar na silhueta fortificada de Évora Monte. Até que o horizonte se enche com as muralhas e o casario de Estremoz, rodeados de vinhas. Não deve haver por todo o Alentejo tamanha concentração de projectos vitivinícolas numa área tão restrita – veteranos como João Portugal Ramos e “jovens lobos” como Tiago Cabaço; grandes produtores como a Herdade das Servas ou projectos de nicho como o Monte Branco, enfim, há de tudo um pouco (quase duas dezenas de referências) à volta da monumental cidade alentejana, também conhecida pelos seus mármores.

Mas, como que para reforçar mais uma vez a ideia de diversidade do vinho alentejano, paramos bem dentro do núcleo urbano, num projecto que tem sede em Estremoz mas glorifica as uvas de Portalegre. O enólogo David Baverstock nasceu na Austrália, em Barossa Valley (terra da Shiraz, Syrah na sua denominação oficial em Portugal), casou com uma portuguesa e vive por cá desde 1982. Um dia conheceu o empreendedor britânico Howad Bilton, que vive em Hong Kong e manifestou interesse nos vinhos alentejanos feitos por David (no Esporão, nomeadamente). Em 2002, uniram forças num projecto conjunto, a que chamaram Howard’s Folly.
Têm uma vinha na região de Portalegre e é lá também que compram uvas a pequenos produtores, cujas vinhas velhas constituem um património cada vez mais apreciado (e cobiçado) no universo do vinho português. Mas a sede nasceu em Estremoz, num edifício adquirido em 2018 e onde funcionara o Grémio da cidade. Dentro daquelas imponentes paredes brancas encontramos agora a adega, uma galeria de arte (ligada à fundação, a Sovereign Art Foundation, que ajuda crianças desfavorecidas e vítimas de maus-tratos) e um restaurante de atmosfera divertida (o nome Folly dá o mote) onde os vinhos da casa (que incluem também um Alvarinho feito com uvas de Melgaço) encontram os seus parceiros à mesa.
Provam-se os vinhos da adega, invariavelmente caracterizados pela especial frescura e complexidade das vinhas velhas em altitude que povoam as encostas da Serra de S. Mamede, conversa-se sobre Portugal e o mundo, as castas e a bem portuguesa arte de as combinar na garrafa, o património histórico e a tradição gastronómica de Estremoz, que muita gente classifica como “Cascais do Alentejo”, pela sua atmosfera cosmopolita. Com tudo isto, a fome aperta e sentamo-nos à mesa, para uma refeição de grande nível que combina um traço moderno com os produtos tradicionais da região.


Um “château” no Alentejo
Por mais que nos custe, temos mesmo de nos levantar e fazer ao caminho. Mas esta deslocação é curta: em poucos minutos, nos limites da área urbana da cidade, passamos um apertado portão e o olhar perde-se na contemplação do imenso terreiro central da Quinta D. Maria. De um lado, primeiro, uma série de casinhas geminadas tradicionalmente ocupadas pelos trabalhadores da propriedade, depois a torre, a capela, o edifício principal, silhueta branca debruada a verde das trepadeiras que se prolonga até aos muros ao fundo, atrás dos quais o jardim e a horta se fundem numa atmosfera romântica muito peculiar. Do outro lado, os edifícios de serviço, entre os quais a sala das talhas, a adega, armazéns, a sala de provas, a loja. E, no meio deste rectângulo do tamanho de um campo de futebol, relvados verdejantes.
Este verdadeiro “château” no coração do Alentejo nasceu por vontade do rei D. João V, que a mandou construir uma elegante casa de campo para oferecer a uma cortesã, D. Maria, por quem estava tomado de paixões. A quinta é de 1718, a capela foi edificada em 1752 e devotada a Nossa Senhora do Carmo, o que explica o outro nome por que é conhecida este impressionante e belíssimo palacete: Quinta de Nossa Senhora do Carmo. Júlio Bastos, o proprietário e um dos nomes mais respeitados do panorama vitivinícola alentejano, guia-nos na visita por alguns dos espaços. A impressionante sala das talhas, que em breve serão usadas para fazer um vinho da casa ao velho estilo dos Romanos. A adega com os seus belos lagares em mármore. A sala de barricas onde estagiam os néctares que nos próximos anos nos chegarão ao copo. A sala de provas, preparada para nos dar a conhecer alguns dos vinhos deste produtor com longa tradição e um cuidado sempre especial com a elegância e o requinte das suas propostas vínicas.

Quem quiser pode optar pela versão completa da visita, incluindo uma refeição no interior da casa principal, onde elegantes painéis de azulejo embelezam as paredes e a atmosfera nos faz esquecer o mundo lá fora. Quanto a nós, a visita era para ter acabado a meio da tarde, mas o regresso a Lisboa faz-se já de faróis ligados. O grande génio da Física Albert Einstein lançou muitas ideias que só décadas mais tarde puderam ser confirmadas pela ciência. Uma delas é que “o tempo é relativo e não pode ser medido do mesmo modo e por toda a parte”. Mas isso já os alentejanos sabiam há muito…
(Artigo publicado na edição de Junho 2021)
GPS: Chegou ao seu destino

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de […]
O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de irritante entre os que os olhos vêem e o que as máquinas nos dizem. O material nem sempre tem razão.
Luís Francisco
Não sei se é uma tendência universal ou apenas mais uma das minhas manias. Considero-me uma pessoa de bom feitio, mas assumo a solene embirração que cultivo com as vozes dos aparelhos de GPS. Todas. De todos os aparelhos. Embirro tanto que evito ao máximo utilizar a tecnologia que – dizem – nos leva a todo o lado sem desnecessárias perdas de tempo, seja a decifrar pistas na desconcertante sinalética das nossas estradas, seja no contacto verbal com os locais que, as mais das vezes, muito falam e nada explicam.
Infelizmente, não nasci com capacidades de navegação nem sentido de orientação apurado que me permitam abdicar sem prejuízo das ajudas à navegação. E, portanto, de vez em quando lá tenho mesmo de escutar as directivas deterministas de quem me aconselha, “por favor”, a “abandonar a rotunda na segunda saída” – leia-se: é para seguir em frente – ou a, “dentro de 600 metros, seguir pela esquerda” na auto-estrada – que é, adivinharam, como quem diz para continuar na mesma via.
Para espiar o pecado capital de ceder à tentação da papinha feita em termos de adivinhar o caminho do ponto “a” ao ponto “b” sem passar pela casa da dúvida, obrigo-me a uma série de penitências. Primeiro, colecciono todas as histórias que me chegam ao conhecimento de gente que se perdeu ou se meteu em sarilhos por seguir cegamente o GPS, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos para o que está à sua frente. Acreditem, não são assim tão poucas como isso e algumas com consequências desastrosas. Por outro lado, anoto fervorosamente todos os erros que detecto nas infernais maquinetas. Se a 950 metros de altitude o sistema de navegação indica 976, isso quer dizer que, umas dezenas de quilómetros antes, quando a indicação era de 14 metros de altitude, na verdade estávamos abaixo do nível do mar? Não quero ser alarmista, mas com isto do aquecimento global e da subida dos oceanos, dá para desconfiar…
Mas então, perguntará o leitor que teve a paciência de me acompanhar até este quarto parágrafo, se este tipo abomina assim tanto os sistemas de navegação, por que motivo foi dar o nome “GPS” a estas crónicas? Bom, a explicação é simples. Quando surgiu a ideia de recordar histórias passadas por esse país profundo em busca dos vinhos e dos enoturismos que nos encantam, a primeira história que me veio a cabeça foi a que se passou à chegada à Fundação Eça de Queiroz, ali para as bandas de Baião. Nessa breve, mas intensa, experiência congregaram-se os dois pecados originais da “gpsdependência” humana nos dias que correm: erros da máquina e cérebro humano desligado. Isso e um motorista de autocarro com sonos atrasados. Mas já lá vamos.
Tão perto e tão longe
“Chegou ao seu destino.” A voz do sistema de navegação – não sei se já vos disse que embirro com elas todas… Já? OK, adiante – soou calma, impessoal e autoconfiante como sempre. Mas estava tudo errado. Primeiro, não tínhamos chegado a lado algum. Segundo, aquilo onde estávamos não era um destino. Nem sequer um meio. Parecia mais um fim. Do mundo. A estrada de terra batida desaparecera e a vegetação dava-nos pela altura da janela. Se isto era a Fundação Eça de Queiroz, então o Parque Nacional da Peneda-Gerês seria a Biblioteca Nacional…
Paramos o carro e respiramos fundo. Como é que deixámos esta coisa guiar-nos até ao mato profundo sem desconfiarmos de que algo estava errado? A primeira tentação foi apontar a culpa ao sono desbragado do motorista do autocarro estacionado lá em baixo na estrada nacional, mas convenhamos que nenhum dos dois ocupantes da viatura tinha idade para se agarrar a desculpas infantis… Prometo que não me esquecerei de explicar esta cena do motorista, mas primeiro convém assumir que durante um breve período a evolução da espécie homo sapiens para homo sapiens sapiens se tornou uma falácia quando confrontada com os dois espécimes que ali coçavam a cabeça no meio de uma paisagem belíssima, mas completamente destituída de qualquer sinal de civilização.
“Chegou ao seu destino” em que aspecto? Seria o nosso destino regressar às origens primitivas e tornarmo-nos caçadores-recolectores naquele prado viçoso rodeado de grandes montanhas? A Fundação Eça de Queiroz, afinal, não existia e tínhamos feito centenas de quilómetros atrás de um embuste? Ou – hipótese igualmente válida naquele momento de estupor – não estávamos a ler bem a paisagem e havia mesmo ali uma casa, vinhas e muitas histórias para descobrir? Na dúvida, o melhor era sair do carro e descobrir.
Saímos. E logo percebemos que, à nossa frente, para lá da estrada nacional que de repente voltamos a descobrir, havia um desvio que descia para um vetusto conjunto de edificações em pedra, coberta por heras e rodeada de vinhas e árvores. À nossa frente, mas uns 20 metros abaixo do local onde nos encontrávamos… O erro do GPS tinha sido minúsculo, mas a barreira vertical era intransponível. Há pouco tínhamos passado naquela mesma estrada, lá ao fundo, e falhado o desvio. Seguiu-se uma bem-intencionada tentativa do GPS para nos fazer dar a volta, enviando-nos por uma estrada secundária, primeiro, depois por ruas estreitas numa aldeia deserta e, finalmente, por picadas cada vez mais residuais até ao esquecimento total do mato.
O sono dos justos
Após uma audaz inversão de marcha, regressámos à estrada e entrámos então no desvio para a Casa de Tormes, onde Eça de Queiroz remoeu saudades dos salões de Paris e escreveu algumas das melhores prosas da sua obra imortal. O caminho era óbvio e até estava sinalizado. Como fôra possível falhá-lo na primeira passagem? E então lembrámo-nos do motorista do autocarro.
Menos de 500 metros antes do desvio, à saída de uma curva do caminho, estava um autocarro estacionado na berma, o compartimento das bagagens aberto. De lá saíam as pernas de alguém que ali encontrara uma sombra para repousar. Tudo bem, quem somos nós para recusar a alguém o direito inalienável de passar pelas brasas? O problema é que, com o tronco metido dentro do compartimento, aquela alma sofredora acabara por estender as pernas, que agora invadiam o asfalto. A guinada do nosso carro terá sido silenciosa, ou então o sono era muito pesado, porque quando olhámos pelo retrovisor ele não se mexera, ignorando completamente o facto de que, instantes antes, poderia ter ficado umas dezenas de centímetros mais baixo…
Comentámos o incidente entre o divertido e o alarmado, debatemos brevemente a hipótese de voltarmos para trás para avisar o homem, fizemos piadas sobre a eventual graduação dos vinhos de Tormes. Enfim, distraímo-nos por completo, falhámos o desvio e confiamos cegamente nas indicações do GPS. E lá fomos parar ao fim do mundo. Sem podermos sequer invocar a desculpa de termos passado pelas brasas no processo.
Artigo da edição nº37, Maio 2020
Talhas, grandes horizontes e muito mais

A Vidigueira é uma daquelas terras a que associamos imediatamente o universo do vinho. A tradição secular das talhas e a concentração de produtores de renome fazem deste pequeno concelho do Alentejo um destino incontornável para quem gosta de enoturismo. Mas há muito mais para descobrir, desde a história às grandes paisagens, passando, claro, pela […]
A Vidigueira é uma daquelas terras a que associamos imediatamente o universo do vinho. A tradição secular das talhas e a concentração de produtores de renome fazem deste pequeno concelho do Alentejo um destino incontornável para quem gosta de enoturismo. Mas há muito mais para descobrir, desde a história às grandes paisagens, passando, claro, pela gastronomia.
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Gomez
Não é preciso procurar muito na Vidigueira para darmos de caras com nomes conhecidos do universo vitivinícola português. A bem dizer, eles estão, praticamente, ao virar de cada esquina ou curva da estrada. Mesmo num país onde o vinho é praticamente omnipresente no universo rural, este concelho do distrito de Beja – bem como os que o rodeiam: Portel, Moura, Serpa, Beja e Cuba – exibe uma concentração quase imbatível de produtores de renome. E, num Alentejo que não existia como região oficial até 1989, a Vidigueira oferece ainda o bónus de um passado repleto de tradições no sector.
Faz-se vinho no Alentejo desde tempos imemoriais. Quando se deu a colonização romana já as vinhas faziam parte da cultura e da paisagem da região, mas a influência do mais poderoso império da época moldou a realidade do vinho alentejano. Para o comprovar, temos a cultura secular das talhas, uma tradição que nunca morreu e que agora ganha uma popularidade muito especial. A Vidigueira e, especialmente, a sua freguesia (até 1854 sede do concelho) de Vila de Frades são consideradas as capitais nacionais do vinho de talha.
A este passado juntam-se a influência da serra do Mendro, cujos 412 metros de altitude podem até parecer irrelevantes, mas não são. A influência da geografia proporciona noites mais frescas do que noutras regiões do Alentejo, pormenor fundamental na definição do perfil dos vinhos da terra. A Vidigueira é terra de brancos, berço da casta Antão Vaz – e, mais uma vez, poucas terras em Portugal serão tão imediatamente associadas a uma variedade de uva como acontece por aqui.
O resultado desta receita de história, geografia e dedicação humana é uma paisagem singular: por aqui, ao contrário do que é regra no Alentejo, a paisagem agrícola divide-se em pequenas parcelas – e uma percentagem elevada deste minifúndio está ocupada com vinha. Quando, nas últimas décadas do século XX, o interesse pelos vinhos do Alentejo ganhou balanço, a Vidigueira estava pronta e na linha da frente, despertando o interesse de produtores de renome vindos de fora e consagrando os que por lá estavam e investiram no mercado.
Hoje, com a Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito a manter o estatuto de maior produtor (cerca de 8 milhões de garrafas/ano), a lista de empresas presentes na zona é extensa e notável: Herdade do Peso, Quinta do Quetzal, Paulo Laureano, Ribafreixo. Herdade Grande, Herdade do Sobroso, Cortes de Cima, HMR… E muitos outros, deixando de fora da lista também os que, ficando nas imediações, não se encontram administrativamente no concelho da Vidigueira. Mas que ajudam a compor um leque impressionante de opções de visita.
De copo na mão e sentidos bem despertos, rumemos então à terra que adoptou Vasco da Gama e onde viveram os antepassados de Luís Vaz de Camões. Diz-se até que a casta Antão Vaz tem o nome do avô do poeta…
A Herdade do Rocim fica entre Cuba e a Vidigueira, mas administrativamente está situada no primeiro destes concelhos alentejanos. O projecto nasceu em 2000, com a aquisição da propriedade, a renovação das vinhas (actualmente, são 70 hectares, maioritariamente de uvas tintas) e a construção de uma moderna adega, concluída em 2007 e concebida arquitectonicamente para ter impacto quase nulo na paisagem, mas com espaço e condições de trabalho de grande qualidade. Duas décadas depois do primeiro acto, o Rocim afirma-se como produtor de referência e como destino enoturístico de excelência.
Percorrendo a estrada entre a Vidigueira e Cuba, a adega nem sequer é a primeira coisa que nos chama a atenção. Na verdade, o olhar fica preso do outro lado da estrada, onde uma vinha se agarra à encosta abrupta, visão tão pouco usual no Alentejo. A seguir damos com o portão e entramos no complexo da adega, primeiro passando por um lago e depois percebendo as linhas esguias e discretas do edifício no alto do morro. Entramos para o pátio interior, onde a água escorre numa cascata de degraus, há plantas que crescem do chão e descem dos pátios e vastas superfícies vidradas amenizando as paredes de betão. Acedemos então ao wine-bar, espaço arejado e de decoração moderna onde podemos provar os vinhos da casa e dar uma facada na dieta com os petiscos regionais.
Dali passaremos à adega, que abrangemos de cima quando caminhamos pelo corredor panorâmico com uma enorme janela em vidro. Lá dentro, a meio do espaço, um pátio metálico octogonal que facilita os trabalhos e nos traz um visual industrial de grande elegância. Noutra zona, passamos por uma adega antiga, com as inevitáveis talhas de barro (o Rocim organiza anualmente o Amphora Wine Day, evento que reúne produtores, críticos e apreciadores dos vinhos de talha). Mais um corredor e estamos na sala das barricas, depois passamos na sala polivalente (destinada a eventos de empresas e, também, a cerimónias particulares – considerada uma Design Winery, a adega do Rocim é também muito procurada para casamentos).
Mas se a visita pelo interior tem muitos aspectos interessantes e surpresas pelo caminho, não há nada como voltar a subir as escadas junto à cascata e virar para o pátio panorâmico. O dia está fresquinho, mas ensolarado. À nossa volta há vinhas e olival a perder de vista, mesmo em frente o morro coberto de vinha parece desafiar a gravidade e transporta-nos para outras regiões do país. Encha-se o copo e a alma. Afinal, como dizia Fernando Pessoa, devidamente citado numa das paredes da adega, “boa é a vida, mas melhor é o vinho”.
[/vc_column_text][vc_column_text css=”.vc_custom_1588007346056{background-color: #efefef !important;}”]HERDADE DO ROCIM
Estrada Nacional 387, Cuba
Tel: 284 415 180
Mail: herdadedorocim@herdadedorocim.com
Web: www.rocim.pt
GPS: 38º 11’ 50.0”N | 7º 51’18.6”W
Visitas à adega entre segunda-feira e sábado, com 11 às 19h00, com a última a começar às 18h00. Encerra ao domingo. O preço varia entre os 8 euros e os 25 euros por pessoa, conforme a gama de vinhos a provar no final. Solicita-se marcação prévia nos casos de visitas com almoço – a ementa e os preços são sob consulta. Na loja podem encontrar-se os produtos da casa, mas também um conjunto de outros artigos, nomeadamente da Moleskine ou da Taschen.Originalidade (máx. 2): 1,5
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 3
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 18
Continuamos a fintar o magnetismo da vila da Vidigueira e contornamo-la pelo Sul, rumo ao concelho de Beja e às margens do rio Guadiana. Uma estrada de terra batida é quanto baste para percebermos que há novas paragens para descobrir e a expectativa não sai defraudada quando chegamos à Herdade do Vau. Um conjunto de casas recuperadas, bem como algumas construções antigas ainda em ruínas, também elas atraentes na sua harmonia e sensibilidade, paira num esporão rochoso, dominando a paisagem espantosa.
O rio corre lá em baixo, em curvas caprichosas por entre falésias, charnecas, vinhas, olivais e bosque. Sobreiros e azinheiras, sim, mas também pinheiros, na encosta defronte. Uma ou outra mancha branca no horizonte denuncia a presença humana, mas aqui a Natureza mantém a sua alma, selvagem e poderosa como as cheias súbitas do rio, em tempos que já lá vão. Os moinhos de água tipo igloo, de tectos redondos para resistirem à passagem das águas quando, antes de a barragem de Alqueva o “domesticar”, o Guadiana se inchava de maus humores na época das chuvas. O estranho fortim (ou posto aduaneiro) que controlava gentes e produtos que atravessavam o rio – esta era uma zona de passagem entre Sevilha e Beja e é por isso que estamos na Herdade do Vau – e que, também ele, foi concebido para ser “anfíbio”: não tem portas e o seu formato faz lembrar o desenho do casco de um navio.
Em 2006, a propriedade foi comprada e o seu novo dono recuperou construções e edificou outras para servir de casa de família aos fins-de-semana. Mas todo este espaço disponível acabou por ter pouco do uso originalmente planeado e deu origem a um hotel rural com 12 alojamentos (32 pessoas), zonas comuns de cativante beleza rústica, piscina, court de ténis, sala de refeições, sala de provas. A decoração dos quartos é minimal, não há televisão (mas há Internet) e se o interior é confortável e acolhedor, na verdade é lá fora que está o que mais interessa.
Passeamos pelas margens do rio, subimos a encosta por entre vinhas, apreciamos os novos olivais nas colinas em redor. Por todo o lado, o vigor e a força de uma paisagem natural pujante de biodiversidade. Voltamos a entrar, para um copo de vinho no pavilhão de caça, um antigo palheiro recuperado, voltamos a sair já de noite, o silêncio impressionante da vastidão, um céu a gritar de estrelas, as luzes distantes de Serpa lá ao fundo. Mas tudo isto são palavras e essas leva-as a brisa fresca de Inverno. A Herdade do Vau não se explica, sente-se.
HERDADE DO VAU HOTEL
Lugar Monte do Vau, Quintos, Beja
Tel: 911 793 446 | 966 052 219
Mail: na@herdadedovau.com
Web: www.herdadedovau.com
Os preços dos quartos começam nos 80 euros (Twin) e vão até aos 170 euros da casa para três pessoas e aos 165 da casa para quatro pessoas. Mediante marcação, organizam-se visitas à vinha (7,5 euros por pessoa) e provas de vinhos (15 euros). Os hóspedes devem contactar o pessoal do hotel caso desejem realizar outras actividades, em parceria externa.Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2
Venda directa (máx. 3): 2
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17,5
O roteiro termina, como se impunha, no epicentro desta mancha vitivinícola, a vila da Vidigueira. Nas margens do núcleo urbano ficam as instalações da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito, um gigante cujo nome denuncia desde logo a sua vocação agregadora de produtores de vários concelhos. E o enoturismo é cada vez mais uma face dessa missão de locomotiva do sector na região.
Quem antes visitasse as instalações já podia ficar a conhecer a adega, a loja e a adega das talhas, mas 2019 marcou um reforço da aposta nesta actividade turística, com a inauguração da Casa das Talhas. E assim nasceu um espaço multifuncional, que permite enriquecer o percurso da visita, mas também receber eventos e servir de embaixada da gastronomia local e dos vinhos de talha.
O salão é espaçoso, com bar e zona de exposição (lá estão as talhas, claro, bem como alfaias agrícolas e um recanto onde podemos ficar a conhecer os vinhos da casa, com a ajuda de ecrãs tácteis) rodeando as mesas, onde se provam vinhos e se apreciam refeições. Confeccionadas na cozinha adjacente, mas pelos chefes de restaurantes locais que cada um entenda convocar para o seu evento. Madeiras claras e escuras, bancos rústicos de troncos, chaminé tradicional, um enorme ecrã de vídeo e a presença solene das grandes talhas de barro compõem o cenário.
Por baixo da Casa das Talhas foi criado o percurso Vasco da Gama. O navegador nasceu em Sines, mas tornou-se Conde da Vidigueira e é uma figura incontornável na história da vila. Primeiro passamos pelos grandes depósitos em cimento (são 101 ao todo), a seguir percorremos um corredor que nos leva às barricas velhas (onde repousam aguardentes), à vetusta caldeira a lenha e aos alambiques. Depois ficamos a conhecer a Sala 1498, data que marca o ano da chegada da armada de Vasco da Gama à Índia e dá nome ao vinho mais ambicioso da casa, o 1498 Grande Reserva tinto 2014, do qual se fizeram exactamente 1498 garrafas. Muitas delas estão aqui, umas já vendidas e com o nome do proprietário no rótulo, outras ainda não. Numa das paredes, um planisfério em relevo fala-nos da portuguesa vocação de dar novos mundos ao mundo.
Mais ao fundo, a nave das barricas novas, com um espaço destinado a eventos mais reservados, a Sala Vasco da Gama, gradeamento à volta e mesa no meio. As madeiras do tecto, o cordame pendurado aqui e ali, a disposição das barricas, as cores castanhas e cinzentas, tudo aqui foi desenhado para nos criar a impressão de que estamos no porão de um navio. As naus dos Descobrimentos levavam, efectivamente, barricas nos seus porões. Há mar e mar, há vinho e voltar.
ADEGA COOP. VIDIGUEIRA, CUBA E ALVITO
Bairro Industrial, Vidigueira
Tel: 939 190 460 | 284 437 240
Mail: visitas@adegavidigueira.pt
Web: www.adegavidigueira.pt
GPS: 38.207959 | -7.799580
Visitas todos os dias (aos feriados, mediante marcação) nos períodos 10h00/12h00 e 15h00/17h00 (Verão) ou 10h00/ 12h00 e 14h00/16h00 (Inverno). Preços em actualização, de momento sob consulta. Refeições e programas especiais com marcação prévia. Possibilidade de agendar actividades extra, como passeios de balão e a cavalo ou experiência na barragem de Alqueva. A loja está aberta todos os dias, das 9h00 às 19h00. Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 1,5
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17,5
ESTAÇÃO DE SERVIÇO
Quetzal, Sobroso ou Ribafreixo são produtores de vinho da zona com belos restaurantes nas suas instalações, mas, por ora, vamos optar por outras casas. É claro que, no coração do Alentejo, uma das regiões gastronomicamente mais pujantes, variadas e surpreendentes deste país de mesa posta, não há-de ser difícil descobrir belos locais para reabastecimento sólido. Deixamos três sugestões, todas elas marcadas pelo seu carácter típico. Peça vinho da talha, se ainda houver.
ARTE DO VINHO
Travessa do Beco, Vidigueira
Tel: 964 847 016
TABERNA TIA JACINTA
Largo Frei António das Chagas nº71, Vidigueira
Tel: 284 436 021
ADEGA DA CASA DE MONTE PEDRAL
Rua da Fonte dos Leões, Cuba
Tel: 936 520 036
Edição nº34, Fevereiro 2020