Domínio do Açor: Ano 2

Domínio do Açor

Aqui são as Terras de Senhorim, uma das sub-regiões do Dão. Estamos numa quinta que outrora se chamou Mendes Pereira, que foi adquirida por um grupo de investidores brasileiros, apostados em conseguir produzir vinhos tão originais quanto possível. O grupo, que tem em Guilherme Corrêa (Temple Wines, distribuidora) o seu representante permanente em Portugal, é […]

Aqui são as Terras de Senhorim, uma das sub-regiões do Dão. Estamos numa quinta que outrora se chamou Mendes Pereira, que foi adquirida por um grupo de investidores brasileiros, apostados em conseguir produzir vinhos tão originais quanto possível. O grupo, que tem em Guilherme Corrêa (Temple Wines, distribuidora) o seu representante permanente em Portugal, é constituído por confessos amantes da Borgonha. E a paixão é de tal monta que, desde o início do projecto, se procurou identificar as características do solo que permitissem pensar em fazer vinhos Grand Cru, Premier Cru e vinhos Villages, tudo terminologia muito cara à célebre região francesa. Para essa identificação foi contratado o chileno Pedro Parra, uma sumidade no que toca à identificação e análise de solos. Prevenidos pelo próprio que na análise a fazer não haveria nem “paninhos quentes” nem “palmadinhas nas costas”, o grupo brasileiro ficou radiante com as conclusões do técnico, que identificou 55% da área da vinha como podendo gerar vinhos Grand Cru, 40% Villages e 5% Premier Cru. Esta conclusão foi como “música celestial” que ainda mais incentivou a continuação do projecto. Curiosidade: as opiniões de Parra corroboraram a ideia empírica sobre a qualidade dos vinhos das várias parcelas!
Este ano a novidade técnica prendeu-se também com a contratação de um especialista em poda (assunto bem mais complicado do que se imagina), o italiano Marco Simonit, com larga experiência na Borgonha onde, como nos informaram, dirige a poda do Domaine Leroy há mais de uma década. A identificação precisa do que se deve podar, a forma de o fazer e o que se pode esperar de um trabalho feito em bases científicas, são assuntos para os próximos anos. A paciência também tem aqui o seu lugar. Cativo!
O projecto, que conta com sete trabalhadores em permanência, poderá conhecer algum alargamento. Por um lado, irão, a partir de 2024, usar as instalações da adega contígua à quinta, que foram adquiridas a Carlos Lucas (Magnum Vinhos) e, por outro, Guilherme Corrêa não descarta a hipótese de serem adquiridas parcelas de vinhas velhas que possam ser consideradas interessantes para aumentar a capacidade produtiva.

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Vão ser plantadas onze castas antigas da região, algumas presentes numa parcela da quinta usada pelo Centro de Estudos de Nelas para testes de porta-enxertos.

 

Valorizar, descartar, modificar

Com os trabalhos de análise de solos feitos e já com algumas vindimas no activo, o grupo de enologia, que integra Luis Lopes (consultor e também enólogo na vizinha Quinta das Marias) e João Costa como enólogo residente, começam a ter uma noção daquilo que há a valorizar e das dificuldades/vantagens das castas aqui presentes. A casta mais difícil é a Tinta Roriz, muito atreita a doenças do lenho; a mais surpreendente é a Bical porque aqui beneficia de um solo de limo com boa profundidade acima do granito partido e gera vinhos de boa acidez e álcool, “o que não acontecia na Pellada”, comentou Luis Lopes que foi enólogo na propriedade de Álvaro Castro. Entre re-enxertos, arranque e novas plantações, irão trabalhar com Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alvarelhão, Tinta Pinheira, Baga, Castelão Nacional, Barcelo, Uva Cão, Terrantez, Alvar Roxo e Douradinha, no fundo as velhas castas da região, muitas delas presentes na parcela de vinha velha, plantada em 1961 e que tinha servido de campo ampelográfico para o Centro de Estudos de Nelas, nomeadamente para o teste dos porta-enxertos. O vinho feito com as uvas desta parcela ainda não está no mercado. Para já estagia em barricas oriundas da região italiana de Barolo.
O conceito vitícola aponta claramente para uma conversão em bio, processo lento que obriga a muitos cuidados na vinha e a muita intervenção (este ano os tratamentos contra o míldio foram semanais), combinando o uso do cobre (que não deixa de ser metal pesado que permanece no solo…) com outros compostos associados autorizados em agricultura bio. Desde 2021 que estão a fazer a mobilização do solo para evitar a compactação, plantando leguminosas e cereais na entrelinha, como cevada, centeio, favas e ervilhaca.
O ano de 2022 foi o mais seco em toda a Europa mas, aqui no Dão, alguns solos, nomeadamente com maior percentagem de limo (é o solo mais fino a seguir à argila, que pode aparecer misturado com granito), conservam a frescura mesmo a alguma profundidade. O granito degrada-se em areia e limo – solos de rochas frias que depois transmitem frescura e leveza os vinhos. O limo retém água e por isso não há stress hídrico. Vantagem da região. A verdade é que é da degradação da pedra que podem nascer vinhos onde se sente alguma mineralidade, não do solo ser apenas pedra.

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Barrica sim, mas com tino
O uso das barricas é aqui permanente. Mas a percentagem de barricas novas é moderada. A ciência do fabrico das barricas permite estudar as aduelas que compõem a barrica para, por cromatografia, escolher as que têm menos lactonas (ou seja, que dão menos aromas de madeira), uma sofisticação que sublinha os cuidados na produção. Como nos lembra Luis Lopes, “quando compramos barricas novas usamos primeiro no vinho de Encruzado, porque é casta que não se deixa dominar pela madeira. A casta Bical, ao contrário, dá-se muito mal com a barrica nova. Temos de nos ir ajustando”.
As novidades ora apresentadas contemplam os brancos de 2022 e tintos de 2021. Os vinhos têm os nomes alterados porque, lembrou Guilherme, “no mercado brasileiro era importante ter um nome associado à parcela” e desta forma temos vinhos com novos nomes; os de lote de várias parcelas mantêm a grafia original. Assim “nasceram” o Vila Romana, o Vinha Ruína e o Vinha Celta Bical. Este último, após um dia de maceração pelicular, o mosto fermenta em barrica e estagia 11 meses sobre borras. Depois ainda passas seis meses em inox antes do engarrafamento sem filtração. O Domínio do Açor branco tem, nesta edição, uma maior percentagem de Encruzado. Fermenta em ovo de cimento, inox e barrica, com maloláctica completa; 11 meses sobre borras sem bâtonnage, em ambiente redutor para que o gás final da fermentação funcione como protector, evitando alguma oxidação e possibilitando menor uso de sulfuroso.
Os tintos tiveram 18 meses de estágio em madeira, jogando entre barricas nova e usadas. No segundo semestre deste ano sairão mais três tintos: Jaen, Tinta Pinheira e o Vinhas Velhas, todos da colheita de 2022.
Os Grand Cru ainda não chegaram, enquanto resultado de todo o trabalho feito na vinha e na poda, mas os cuidados postos em todas as etapas, da vinha ao copo, são indicadores seguros de que o projecto ainda vai ter muito para dar. Curioso mesmo é ouvir falar em “vinhos com pouca intervenção”, como sendo um facto valorativo da nova tendência. Alguém anda muito mal informado. Aqui, tal como noutros produtores que trabalham com profissionalismo, a intervenção não é “pouca”, é “hiper” e contínua…

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2024)

Domínio do Açor: À procura de Borgonha em terras de granito

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A tarefa de procura pelo terroir perfeito coube a Guilherme Correia, um sommelier brasileiro que mora em Portugal, já há alguns anos, e é bem conhecido na comunidade vínica pela sua competência profissional e delicadeza no trato. Trabalha na indústria do vinho há quase 30 anos e foi duas vezes o melhor sommelier do Brasil. […]

A tarefa de procura pelo terroir perfeito coube a Guilherme Correia, um sommelier brasileiro que mora em Portugal, já há alguns anos, e é bem conhecido na comunidade vínica pela sua competência profissional e delicadeza no trato. Trabalha na indústria do vinho há quase 30 anos e foi duas vezes o melhor sommelier do Brasil. Guilherme também é um dos sócios da distribuidora Temple Wines. Descobriu a Quinta Mendes Pereira (que estava à venda) situada junto à vila de Oliveira do Conde, no concelho de Carregal do Sal, rodeada de floresta, com um património fabuloso de vinhas velhas com mais de 60 anos, inseridas num ambiente com forte apelo cultural e histórico, onde ruínas milenares dos celtas e romanos assinalam os nomes das parcelas.

A sub-região Terras de Senhorim, onde a quinta está enquadrada, fica praticamente no meio da região do Dão, entre dois rios (Dão e Mondego), e goza de um mesoclima mais fresco do que nas zonas mais quentes e menos frio e húmido do que na Serra da Estrela. Os solos são de origem granítica, de textura arenosa e franco-arenosa, pobres em matéria orgânica e fraca capacidade de retenção de água, duas características que não induzem grande vigor na planta e naturalmente regulam a produção.

 

João Costa, enólogo residente, e Luís Lopes, enólogo consultor, partilham da visão de Guilherme Corrêa, um dos proprietários.

 

Os sócios desta aventura avançaram com aquisição da quinta em Maio de 2021, o ano que deu origem aos primeiros vinhos da Domínio do Açor. O nome do projecto é inspirado no conceito francês de “domaine” — sítio/propriedade com/dedicada à produção de vinho — mais associado à Borgonha, ao qual se junta o nome da Serra do Açor, moderador climático das vinhas daquela zona. A necessidade de ir para além de um “feeling”, motivou os sócios para contratar um dos maiores especialistas em solos, o Mr. Terroir chileno, Pedro Parra.

Como diferem as parcelas entre si? Quais têm o maior potencial? Como devem tratar as uvas de cada parcela na adega? Dos 11 plotes, através do estudo de granulometria e conductividade electromagnética dos solos, Pedro Parra identificou que mais de metade “corresponde” a Grand Cru e Premier Cru, os outros a Village e um não apresenta grande qualidade. Por muito potencial que o terroir tenha, a equipa de enologia tem que ser bem escolhida, partilhar a visão com o produtor e ser capaz de trazer o terroir até ao copo.

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Vinha da Ruína

Nesta aposta contam com o enólogo consultor Luís Lopes, formado em enologia na UTAD. Estagiou no aclamado Comte Lafon, na Borgonha, e posteriormente no Martinborough Vineyards, na Nova Zelândia. Em Portugal, era enólogo na Quinta da Pellada e apoiou o projecto de António Madeira e da Quinta das Marias. O papel do enólogo residente foi assumido por João Costa, natural do Dão e com ligação à agricultura familiar, que recentemente trabalhou na Quinta da Lomba (Niepoort), no Dão.

O primeiro vinho é um blend de Cerceal-branco, Malvasia Fina e Encruzado, mantido em inox quase um ano com borras finas. Ao lote juntraram-se mais 20% de Encruzado vinificado em barrica de 500 litros. Estágio sem sulfuroso, sobre borras, não passam a limpo, só tocam no vinho quando for para engarrafar, para fixar a tal “redução intelectual”, como lhe chamou Guilherme Correia. Deste vinho foram produzidas 3550 garrafas. O monovarietal de Cerceal foi originado pelas uvas da melhor parcela da vinha Ruína, feito só em inox. Fermentou com leveduras indígenas, pois gostaram mais do resultado final. Um ensaio com leveduras inoculadas não correu bem, “o vinho perdeu drama”, explicou Guilherme Correia. Foram produzidas apenas 230 garrafas magnum.

O monovarietal de Bical provém das vinhas velhas, plantadas nos anos 60 do século passado. Para a vinificação usaram 2 barricas usadas de 228 litros de Chenin Blanc. Demorou 2 meses para acabar a fermentação. Foram produzidas 677 garrafas. O Encruzado foi submetido ao estágio longo sobre borra, sem bâtonnage, em madeira maioritariamente nova mas “invisível”. Foram produzidas 1364 garrafas. O Jaen da melhor parcela fermentou com 30% de engaço no lagar (no granito com mais limo esta uva precisa de engaço). Ao fim de 10 dias prensaram na prensa vertical. A fermentação maloláctica ocorreu em inox e depois o estágio em barrica usada Taransaud de 400 litros. Foram produzidas 511 garrafas.

A Tinta Pinheira queima-se com sol e apodrece com chuva, razão pela qual perdeu a popularidade. É uma casta vegetal, e apesar de estar no solo delgado, não precisa de engaço. Delicada e tem uma presença texturada, precisa de delicadeza na vinificação. Provém só de uma parcela, desengaçada e vinificada em lagar. Pisada à mão… é mais uma infusão do que extração. Fez a fermentação maloláctica em inox, estagiou numa barrica de 500 litros e foi engarrafada sem colagem nem filtração. Foram produzidas 645 garrafas.

Este é um projecção com bom senso. Não só tem pernas para andar, como tem a cabeça para escolher o melhor caminho. A elegância, finesse e precisão dos vinhos são marcantes. Dá para acreditar que os amigos-produtores encontraram a sua Borgonha em terras de granito.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)