Portugal tem 5 novos restaurantes com Estrela Michelin e 7 com dupla Estrela

Estrelas Michelin Portugal

Na cerimónia que aconteceu esta terça-feira, dia 22 de Novembro, em Toledo, Espanha, a chuva de Estrelas Michelin para o guia de 2023 “abençoou” 38 restaurantes de Portugal, 5 dos quais estreantes. Assim, o país conta agora com 7 restaurantes com dupla estrela, e 31 com uma estrela. Já a Estrela Verde — insígnia que […]

Na cerimónia que aconteceu esta terça-feira, dia 22 de Novembro, em Toledo, Espanha, a chuva de Estrelas Michelin para o guia de 2023 “abençoou” 38 restaurantes de Portugal, 5 dos quais estreantes. Assim, o país conta agora com 7 restaurantes com dupla estrela, e 31 com uma estrela. Já a Estrela Verde — insígnia que premeia a componente sustentável dos restaurantes — foi atribuída a três espaços portugueses.

Em Toledo, foi ainda anunciado que, no próximo ano, o Guia Michelin ibérico fará a cerimónia em Portugal e Espanha, dividida por dois eventos. Segundo a organização, que está a trabalhar neste sentido junto do Turismo de Portugal, há a vontade de “contribuir para a promoção de Portugal como destino gastronómico incontornável”.

Restaurantes com 2 Estrelas Michelin:

Novos restaurantes com 1 Estrela Michelin:

Outros restaurantes com 1 Estrela Michelin:

Entrevista com Chef Diogo Rocha: A estrela Michelin e o novo livro

A entrevista aconteceu no auge da felicidade, com o chef Diogo Rocha ainda mais sorridente do que é costume. Em finais de Novembro, quando ainda festejava a conquista da primeira estrela Michelin, apresentou o seu novo livro, Queijaria do Chef, feito em parceria com o fotógrafo Mário Ambrózio. Conversa sobre o que passado e o […]

A entrevista aconteceu no auge da felicidade, com o chef Diogo Rocha ainda mais sorridente do que é costume. Em finais de Novembro, quando ainda festejava a conquista da primeira estrela Michelin, apresentou o seu novo livro, Queijaria do Chef, feito em parceria com o fotógrafo Mário Ambrózio. Conversa sobre o que passado e o futuro do restaurante Mesa de Lemos, em Silgueiros, Viseu, com o aroma de queijos em fundo.

TEXTO Ricardo Dias Felner

RDF: Comecemos pelos queijos. Como é que nasceu este livro?
DR: Eu e o Mário somos amigos de infância, andámos na mesma escola em Canas de Senhorim.

E ele também gosta de comida?
Imenso. Ele chegou a estagiar com a Marlene Vieira. Era fotógrafo de dia e à noite ia para a Marlene, como estagiário. Ele cozinha muito bem e gosta de cozinhar.

Vem de uma zona de queijos. Que relação tem com os queijos?
Sim, sobretudo do Serra da Estrela. É uma coisa desde muito miúdo. O meu pai tinha uma mercearia, vendia imensos queijos. Ia com ele comprar directamente às queijarias, algumas hoje em dia estão fechadas. Tenho bem presente aquele aroma de queijaria, não é bem um cheiro a chulé, não é desagradável. Pelo menos para mim [risos].

Associa a esses momentos, portanto.
E também a festa. O queijo era uma coisa de festas. Tinha de estar na mesa nessas alturas. E então era sempre o Serra da Estrela. Para consumo diário havia o tipo Serra ou mesmo o flamengo, que vendíamos muito.

Gosta de flamengo?
Há alguns flamengos bem feitos, que não são insípidos, que são cremosos, saborosos.

Como é que surgiu o livro?
Já tinha este desejo e coincidiu com uma viagem a Viena. Fui jantar a um restaurante em Viena que tinha um carrinho de queijos delicioso, com exemplares do mundo inteiro. Ele vem com o carro e pergunto-lhe: e queijos portugueses? “Portugal não tem queijos”, disse-me o empregado. Cheguei a Portugal e despachei um Serra da Estrela para ele. Recebi uma carta depois em que o chef dizia que o queijo tinha sido seleccionado para entrar no carro e ia ser afinado. Eles têm um afinador de queijos lá no restaurante e o livro inicialmente até era para se chamar O Afinador de Queijos. O clique para o escrever deu-se aí.

Tem queijos no restaurante Mesa de Lemos?
Tenho sim, de forma ainda discreta. Mas projecto ter um carro de queijos portugueses.

Não é uma comida muito pesada para integrar numa degustação?
Tem de se pensar a degustação já a contar com esse momento mais robusto. E eu que a mais-valia é podermos afinar os nossos queijos. Temos de perceber que não devemos comer Serra todo o ano. Se calhar o melhor é no princípio do ano. Da mesma forma, as pessoas que procuram requeijão no Verão não sabem o que estão a fazer.

Falta-lhes gordura?
Sim, ou são pasteurizados sem aquelas características do requeijão feito quando o leite está melhor. Tem a ver com o pasto, tem a ver com os animais. Dão leite mas a qualidade não é a mesma.

Mas há Serra da Estrela todo o ano.
Mais do que Serra da Estrela até comemos Seia todo o ano. Gostava que as pessoas percebessem a diferença entre um queijo Serra, um Seia e um Serra da Estrela, que é uma coisa diferente.

Não há bons queijos sem serem certificados com D.O.P.?
Há sim, óptimos. Mas com os D.O.P. temos mais garantia de qualidade. E até na mesma queijaria podemos lá ir hoje e o queijo ser diferente do queijo de amanhã. Mas concordo que há grandes artesãos de queijos que não são D.O.P..

O Serra da Estrela é o seu preferido?
Não. Gosto de queijos mais curados. Como o de São Jorge. Ou o de São Miguel, com uma cura de nove meses, que não sendo muito já lhe dá um picante. Ou os queijos picantes de Castelo Branco, que normalmente quando estão no mercado já ultrapassaram o tempo certo. Ele tem um ponto em que é cremoso, pica, mas não é muito agressivo. É maravilhoso. Nos Serra vende-se todo o stock, que é pouco, antes de eles estarem curados, e é uma pena. O queijo com 40 dias para mim tem sempre um sabor ainda demasiado lácteo.

O restaurante Mesa de Lemos.

E o que acha do queijo comido à colher?
Não é uma guerra que eu queira travar. Mas nós explicamos que ele deve ser cortado à faca, por causa das diferenças de textura e sabor entre a pasta e a casca. Mas dito isto as pessoas devem comê-lo como lhes apetecer.

No livro também se fala da travia.
Sim, é o soro. As pessoas estão meio distraídas, mas todas as grandes superfícies têm.

O que se faz com a travia?
No livro fizemos uma proposta para um bolo. Mas ela é óptima para saladas, porque tem bastante acidez, ou mesmo numas pizzas e numas pastas.

Dos queijos do livro qual é o mais surpreendente?
O queijo chèvre do Adolfo Henriques, da Maçussa. Acho que é uma coisa do outro mundo, campeão mundial. Mas também não sabia que havia um queijo de cabra no Algarve. Ou queijos frescos na Madeira.

Há quem diga que Portugal tem poucos queijos bons, sobretudo olhando para países como Espanha ou França.
Nós temos 18 certificados. Mesmo que sejam todos muito bons, e eu acho que são, são poucos.

O que achas do Rabaçal que se encontra por aí?
O Rabaçal é melhor do que o que as pessoas julgam. Eu tenho ali um certificado que não tem nada a ver com o amanteigado do costume. Não é extraordinário, mas é bom.

Qual é a tua região preferida?
A Beira Baixa tem muitos e bons queijos artesanais. É a zona mais rica em queijos. De cabra, de ovelha, de mistura.

Numa semana, ganhou a primeira estrela Michelin, agora o lançamento do livro. Já sabia há mais tempo que ia ganhar a estrela?
Fui contactado pela Michelin para me convidarem para a cerimónia. Mas apercebi-me que houve um ou outro chef, no ano passado, que estava convidado para a gala e não recebeu a estrela. E isso deixou-me na dúvida.

Foi por email?
Inicialmente sim, mas eu não o vi, foi parar ao spam. Entretanto ligaram-me estava eu a almoçar no Cantinho do Tito, em Viseu, um arroz de vinha d’alhos com grelos, e pediram-me para responder ao email. Confesso que não parei o almoço para responder ao email.

A garrafeira do Mesa de Lemos.

Falou mais alto o arroz de vinha d’alhos.
Sim e, quando voltei de Espanha, o primeiro sítio onde fui comer também foi lá. Cheguei já muito tarde mas o sr. Tito reabriu de propósito para me dar de almoço.

Quando estava na cerimónia, em Sevilha, antes do anúncio ainda estava ansioso?
Estava, pois.

Era muito importante ter a estrela?
Era sim. Era um projecto de vida. Acreditava que podia acontecer. Trabalhava para isso e achava que os padrões do Mesa de Lemos encaixavam nisso. Aquilo foi um momento maravilhoso. Eu considero-me uma pessoa feliz, mas aquilo foi…

Olhando para trás, acha a estrela foi dada na altura certa, e não há três anos, quando se começou a falar nessa possibilidade?
Acho que este foi o melhor ano para ganhar a estrela. Fomos melhor equipa, mais consistentes. Acho que premiaram essa consistência.

Portanto não foi por ter posto foie gras ou carabineiro no menu este ano?
[Risos] É curioso que este ano não tive carabineiro. E nunca tive foie gras. Até por uma gestão do food cost. E da mesma maneira a carta de vinhos continua a ser só com vinhos de produção própria.

Alguma vez questionou a Michelin se o facto de só ter vinhos da Quinta de Lemos seria um impedimento para ter a estrela?
Sim, a dada altura fizemos abertamente essa pergunta. Disseram que não.

Eles quando cá vieram apresentaram-se?
Numa das vezes, sim. Este ano tivemos três visitas de três pessoas diferentes. Um deles era o novo inspector português.

Já sabe quem é, então?
Já sei. Mas na altura não desconfiei.

O que é que acontece quando a cozinha se apercebe de que há um inspector na sala?
O Gonçalo, que está comigo no fogão, uma vez perguntou: “E agora?” E eu disse-lhe: “E agora vamos fazer aquilo que fazemos todos os dias.” E ele foi corar o peixe como faz todos os dias. Nós acreditamos que temos bom produto e boa técnica. Obviamente que há dias maus…

Começou logo a haver mais reservas?
Logo nessa semana, é incrível. A dimensão passa a ser internacional. As pessoas dizem que o Guia está desactualizado. É mentira. Tive reservas logo dos EUA, Bélgica, França e Espanha. Pessoas que te dão os parabéns e querem fazer a reserva daqui a um mês, dois. E só tens noção disso quando recebes a estrela. A pessoa que trata das reservas já não se conseguia orientar com tanto pedido.

E agora, vai querer a segunda estrela?
Não, este projecto foi pensado para uma estrela. A segunda implica mais recursos humanos, porventura a garrafeira teria também de mudar.

Está feliz assim?
Muito. É uma sensação do caraças.

Edição nº 33, Janeiro 2020

A maior loucura do Loco

Era para ser uma reportagem, in loco, no Loco, mas o jornalista da Grandes Escolhas acabou na cozinha, a servir jantares. Saiba como é estar do lado de lá de um restaurante com estrela Michelin. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Gomez Como é que se agarra num prato? A resposta parece simples, mas está […]

Era para ser uma reportagem, in loco, no Loco, mas o jornalista da Grandes Escolhas acabou na cozinha, a servir jantares. Saiba como é estar do lado de lá de um restaurante com estrela Michelin.

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Gomez

Como é que se agarra num prato?
A resposta parece simples, mas está a martelar-me a cabeça desde que Ricardo Leite, chef executivo do Loco, me deu ordem para vestir a jaleca. “Vai dar serviço connosco”, atirou assim que entrei no restaurante.
Não sabia da surpresa. A ideia era apenas fazer uma reportagem a propósito dos novos pratos incluídos no menu de degustação. Fora isto o combinado. Observar. Tomar nota do novo bacalhau com alho negro, do leitão com cogumelos fermentados, da ostra e da santola. Sair quando os clientes começassem a chegar.
Mas agora há este drama. Estamos a três horas do jantar, querem que cozinhe e sirva às mesas. E eu não sei como é que se agarra num prato segundo o protocolo Michelin. Devo abrir a mão e apenas sustentá-lo. Mas depois como o poiso? Devo prendê-lo com o polegar por cima. Mas não será isso um delito sanitário?
Ricardo Leite acorda-me do pânico. “Não quer?”
Penso. Muito. Rápido. Eu quero. Sempre quis. Noutras circunstâncias, já pedi e não me deixaram. Mas assim tão em cima, sem qualquer preparação? Isso seria uma loucura. Uma loucura como o Loco nunca fez.
Pela cabeça passam-me todas as críticas que escrevi acerca de restaurantes Michelin, toda a maledicência. O empregado a respingar água na mesa; um censurado por falar de mais; outro por falar de menos. Lembro-me da vez em que fui implacável por causa de uma quenelle imperfeita; por o molho estar deslaçado. De quando impliquei com o excesso de sal e também de quando apontei a falta de sal. Tantas prosas ácidas, e eis-me agora na iminência de estampar louça em cima de clientes exigentes. Gente que ao final da noite terá menos 200 euros no bolso.
Ricardo Leite apercebe-se da aflição. “Deixe-me então falar com o Alexandre.” Alexandre é Alexandre Silva, dono e chef do restaurante, sentado em frente ao portátil, numa das mesas da sala. Alexandre está a trabalhar no seu novo projecto, o restaurante Fogo, que irá abrir em breve. Os dois conferenciam. E então Alexandre levanta-se e vem ter comigo. “Já temos ali a jaleca e o avental. Vais ficar na zona dos snacks. E vais servir às mesas, como todos fazem aqui”.
Certo. Vocês é que sabem. Locos.[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”35340″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][vc_column_text]“Sabes trabalhar sapateira?”
São 16:00. O restaurante a essa hora está tranquilo, com o pessoal a dividir-se entre preparações (mise em place) e trabalho de secretaria. Ricardo quer pôr já as coisas a mexer. “Sabes trabalhar sapateira?” Aaa… Trabalhar Sapateira… Rebentar sapateira… Isso eu sei… faço um esgar de dúvida e o chef, braço direito de Alexandre Silva, toma a decisão sensata: manda-me para a bancada de pastelaria armazenar pasta de cevada.
Já tinha estado no Loco, como cliente, há quase três anos. E tudo parece na mesma. A cozinha é magnífica, aberta para a sala, tachos de caldos a fumegar, luzes baixas, como uma encenação. Reparo agora no fogão ao centro, um bicho mastodôntico e sólido, meia dúzia de metros de comprimento. É um Marrone, italiano, personalizado pelo próprio Alexandre Silva, 72 mil euros de fogão. Tem isolantes de calor nas margens, um circuito de água interno com torneira, induções, chapa, bicos de gás, robata.
Só não leva pratos à mesa. Uma pena.
A comandar-me está agora Carolina Pereira. A pasteleira do Loco tem apenas 22 anos, mas parece segura. Dá-me uma formação rápida em ensacamento para fechar em vácuo. Três dobrinhas num saquinho de plástico e colocam-se lá dentro 400 gramas da nhanha. “Tens uma margem de erro de 6 gramas, mas só se for para mais.” O recheio é uma pasta que acaba de ser triturada, composta por cevada perolada, cevada fumada e trigo integral. Há-de integrar o extraordinário pão que chegará às mesas perto das 19.30, juntamente com um molho de bife, feito de cogumelos fermentados e alho negro. A ideia é esfriar a pasta numa bandeja e, depois, com uma colher, inseri-la nos sacos.
Parece fácil. Hmmm, nem tanto. Ao primeiro saco a pasta cola-se aos dedos que se colam ao saco que se colam à balança. Parece giro. Giro não é. Ao 18º saco temos a sensação de estar numa linha de montagem da Autoeuropa e não num restaurante de alta cozinha criativa. Eis a realidade. Não há arte sem suor. O fine dining também é isto. E isto é duro. Fisicamente duro. Ao ponto de fazer doer nas costas e nos dedos e nos joelhos. Intelectualmente duro. Ao ponto de nos fazer perguntar pelo romance da restauração, pelo que é ser chef. E é assim todos os dias, das 10.30 à 01.00.
A meio da tarefa, surge João Marujo, o chef de sala, o homem mais efusivo do Loco, garante do ânimo e da eficiência. Passa para a zona da copa, aperta com o copeiro Elish, um nepalês sorridente — “faster, faster!” —, espreita da porta, nas minhas costas, e depois volta para a sala a rir-se. “Estão a gozar contigo”, alerta-me o fotógrafo. Na minha maneira de ver e fazer, parecia estar a correr benzinho. Engano. João regressa com um ar mais sério. “Tens de pôr os dedos por dentro das dobras do saco, para o abrires sem te sujares. Assim”, exemplifica. A dica muda tudo. A isto chama-se técnica e técnica é essencial na cozinha, seja alta ou baixa.[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”35342″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][vc_column_text]Tagliatelle e bochechas para o staff
Na equipa de dez pessoas do restaurante toda a gente já sabe o que tem de fazer. O grupo é praticamente o mesmo desde o início, os procedimentos estão bem definidos. Gonçalo Freire, chef das entradas, ficou com a tarefa de trabalhar a sapateira. Não o invejo. Primeiro quebra a casca, depois retira a carne à pinça para os alvéolos de uma caixinha de botões, armazenada por baixo do balcão. Na hora de servir, está tudo à mão, vai ser só finalizar: pôr o crustáceo numa tacinha, o brûlée de alga codium, espumar a água do mar com a varinha mágica e empratar. No fim, ele próprio há-de levar a entrada à mesa, explicando de que se trata.
Ao lado, João Alves, sous chef, trata da “captura do dia”, rodovalho, um peixe muito parecido com o pregado. Primeiro, corta-o em filetes, depois em peças de dominó, que embrulha em papel vegetal. São armazenados no frio e vão a cozer ao vapor assim, dentro de uma caixa de bambu, na altura de serem servidos, como nos dumplings chineses. No fim, levam no topo várias ervas marinhas, de valverde a erva do gelo e alga dulse.
Na banca dos quentes, por sua vez, Nicu Lastremschii dedica-se agora às batatas fritas que hão-de acompanhar o leitão. As batatas são fatiadas finas, a cru, numa mandolina, e depois enroladas em forma de charutos. “Assim ficam macias por dentro e estaladiças por fora”, garante este moldavo grande que Alexandre Silva trouxe da Bica do Sapato. O homem no posto mais quente da cozinha é também responsável pelos caldos que borbulham à sua frente. Há um de leitão, saborosíssimo só assim, ossos e água, e outro de mão de vaca, com alho queimado, mais gelatinoso, a reduzir desde manhã. Nicu passa o tempo a retirar a espuma no topo, para que eles não amarguem.
Quem por esta hora também está de volta do fogão é Ricardo Leite. O outro grande tacho a fumegar, está às suas mãos. Leva tagliatelle e bochechas de vitela e o chef vai atirando para lá ervas: sálvia, tomilho, salsa. “Quanto mais ervas pões, menos sal precisas. Gosto muito de comida de tacho. Isto é para nós”, regozija-se. São 17.30, e vai ser servido o jantar do staff. Cedo demais? Alguma vez falta apetite? Emília Craveiro, a escanção, garante de que não: “É impossível estar a servir os outros com fome. Não consegues estar bem-disposto”.
Toda a gente come, mas ninguém bebe vinho. Há regras para isso? Nada. “É só bom senso”. Como não há regras rígidas para o uso de telemóvel, antes do serviço. “O Nicu, por exemplo, tem um filho pequeno e às vezes precisa de comunicar”, explica Ricardo Leite.
Às 18.15 acaba-se o jantar. As coisas aceleram. Vestimos a jaleca e preparamos a sala. É feita uma última limpeza. Quando se está num restaurante Michelin, com tudo à vista, não se pode facilitar. Aspira-se o chão, lavam-se paredes, polem-se os candeeiros da zona de passe. No fim, colocam-se uns tapetes especiais no chão, destinados a absorver o ruído dos pés e a tornar a deslocação dos cozinheiros mais confortável, e o mesmo acontece sobre os balcões, cobertos por esteiras de borracha. Embora a cozinha seja aberta, não se ouve louça a bater. “Gostamos que haja silêncio”, diz Alexandre Silva.
Alexandre Silva vai-se posicionando no “lugar do timoneiro”, na ponta do balcão entre a cozinha e a sala, para a última conferência do dia. O chef acredita que, quando “está fora, já não se nota a diferença”. Mas ainda faz “90 por cento dos serviços”.
A última reunião antes da chegada dos clientes, a segunda do dia, acontece às 18.40, em ponto, e é liderada por João Marujo. A primeira aconteceu pelas 11.00, só com os cozinheiros. A grande preocupação são as alergias e intolerâncias. Por estes dias, nada parece causar mais stress numa cozinha do que as alergias e intolerâncias. Na altura da reserva, é logo feito um despiste, mas, mesmo assim, João Marujo liga na véspera para todos os clientes; e volta a fazer o questionário do costume; e, mesmo assim, há surpresas de última hora, como a de um grupo de estrangeiros em que um não comia porco, outro não comia marisco e outro era vegetariano. Acresce que, em média, recebem um celíaco por semana — “um caso muito sério”, diz Alexandre Silva. “Já tivemos, inclusive, aqui a Associação Portuguesa de Celíacos a dar-nos formação”.[/vc_column_text][image_with_animation image_url=”35341″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][vc_column_text]O momento decisivo, a entrega do prato
A conferência acaba — como sempre — com a frase do dia, um aforismo com destinatário, uma espécie de correctivo por erros passados. Desta vez, cabe a Alexandre Silva dizê-la em frente a todos. “Todos temos o direito de ser estúpidos, não temos é o direito de abusar disso.” Alguém há-de enfiar a carapuça e ficar responsável pela próxima frase do dia.
A casa está cheia. E é assim desde que o Loco ganhou a primeira estrela, há dois anos. “Nunca mais tivemos uma cadeira vazia”. As reservas são agendadas para horários que permitam que tudo flua com uma cadência célere. “É raro o cliente que espera mais de quatro minutos por um prato”, diz Alexandre Silva. Às 19.00 chega o primeiro casal, às 19.15 o segundo e por aí adiante, até às 21.00. São sete mesas e 16 pessoas, nesta noite, mas vão ser servidos quase 400 pratos, para minha desgraça e do copeiro Elish.
Por fim, João Marujo vem ter comigo. Faltam cinco minutos para as portas abrirem. Agora é que tem mesmo de ser. Ensina-me as posições. Cada mesa tem um número e cada cadeira tem outro número. Também me ensina quem servir primeiro. Servir toda a mesa ao mesmo tempo mas, se isso não for possível, servir primeiro as senhoras ou o mais velho da mesa. Servir pela direita, mas se isso interromper uma conversa “ou se eles estiverem aos linguados” pode-se ir pela esquerda.
“E os pratos, como é que é se agarra nos pratos?”, insisto.
“Quatro dedos na base e o polegar a apertar a borda para dar estabilidade”. Treino no momento. “Sem tocar na superfície”, alerta Marujo.
Às 20.00 a azáfama é grande. A comunicação é essencial. No Loco, procura-se o mínimo de palavras para passar a mensagem. Sempre que Alexandre Silva dá uma ordem, toda a gente tem de assinalar que o ouviu com o máximo de economia. Exemplo: o clássico “Sim, chef” foi substituído por um “Sim”, mais curto e menos hierarquizante.
De resto, é preciso atenção, foco, capacidade de observação, reacção rápida. Todos os detalhes contam. “Mesa 6, posição 2, esquerdina”, comunica Alexandre Silva mal a cliente ataca o primeiro pedaço de cavala, um dos snacks de entrada (servido com um dashi delicioso, lardo de porco e pó de alface do mar). Daí em diante, cada talher vai ser colocado de acordo com essa idiossincrasia. As indicações continuam. “Mesa 3, posição 1, foi à casa de banho”. Sérgio Craveiro, assistente de sala, acorre rapidamente, troca de guardanapo e dobra-o, qual Marie Kondo. Quando a senhora da posição 1 regressa, o pano está imaculado à sua frente. Outro detalhe delicioso. De cada vez que alguém agarra na comida com a mão, Alexandre Silva agarra numa micro-toalha, pulveriza-a de perfume de lima kafir, feito na casa, e dá ordem para seguir para a mesa, numa bandeja de madeira.
Chega, por fim, o momento decisivo. João Marujo aproxima-se da zona de passe, onde estou. Pergunta, baixinho: “Queres servir este?” Estou a olhar para o prato pela primeira vez. Calha-me um desses snacks para comer à mão. “Quero. O que é?” O ritmo cardíaco aumenta. “Recheio de fígado de tamboril, por fora alga crocante e cebolinho”. Ele diz isto e isto é simples. Repito: “Fígado de tamboril, alga crocante…” Ele completa: “Cebolinho”. Ok, ok. Cá vai disto. Vou repetindo, para mim: “Cebolinho, cebolinho, cebolinho”. Marujo dá um último recado: “Sorrir também não faz mal”. Contorno o balcão, agarro no prato do lado da sala. Estou a arrancar quando Marujo me trava: “Ainda não!” Temos de partir no mesmo segundo. “Bora”. Cebolinho, cebolinho, cebolinho. Caminhar parece equilibrismo. Cebolinho, cebolinho, cebolinho. Ocorre-me Pedro Abrunhosa a estatelar-se em palco, na TV. Cebolinho, cebolinho, cebolinho. O prato aterra suave como um balão de ar quente. A descrição sai rápida. Traz cebolinho. E um sorriso.
Marujo espera-me junto ao balcão. Assente com a cabeça. “Divertiste-te?”, pergunta, quando passo. “Bastante”.

 

Edição Nº23, Março 2019

[

O novo menu do The Yeatman

chef ricardo costa

TEXTO: Mariana Lopes            FOTOS: cortesia The Yeatman Não é nenhuma maldição ancestral e, se disser em voz alta, os móveis não vão começar a levitar. Carta Fata é uma folha plástica transparente e preparada para a culinária (originalmente para cozinhar porco em Itália), que o Chef Ricardo Costa utiliza no […]

TEXTO: Mariana Lopes            FOTOS: cortesia The Yeatman

Não é nenhuma maldição ancestral e, se disser em voz alta, os móveis não vão começar a levitar. Carta Fata é uma folha plástica transparente e preparada para a culinária (originalmente para cozinhar porco em Itália), que o Chef Ricardo Costa utiliza no novo menu do restaurante do The Yeatman Hotel, de Primavera e Verão, que fica disponível a partir de hoje.

Com duas estrelas Michelin desde 2017, este destino gastronómico de Vila Nova de Gaia continua a subir a fasquia: “O público é o mesmo, mas vem com uma atitude diferente” – confessa o Chef, referindo-se ao período pós dupla-estrela – “para nós, a tensão é maior e a adrenalina também”. Na cozinha, a jovem (mas experiente) equipa de 14 executantes não vacila perante a pressão e essa é uma das razões que fazem deste restaurante uma referência no plano português.

Na nova carta constam dois menus, um mais extenso com nove pratos, a “Experiência Gastronómica”, a custar €160, e o “Selecção do Chef”, de seis composições em prato, com um preço de €130. A harmonização com vinho, da curadoria de Beatriz Machado (directora de vinhos) e Elizabete Fernandes (Head Sommelier), pode ser feita de três maneiras: escolha livre de entre os quase 2000 vinhos presentes no Wine Book do The Yeatman, entre a pequena selecção aconselhada para o menu, ou o pairing completo preparado pelas curadoras, que custa €70 para o menu maior e €60 para o mais pequeno. Nesta última hipótese, o perfil dos vinhos é sempre o mesmo, mas as referências variam. Richard Bowden, director de marketing, é pertinente com as palavras “O vinho harmoniza com a comida, mas também com as pessoas”.

A “Experiência Gastronómica” começa com um chá de alga Kombu (japonesa) com lúcia-lima, morno e aconchegante, para limpar e preparar o interior para a refeição. De seguida, os aperitivos: nabo apresentado como uma vieira sem o ser, mas como molho desta com matcha (chá verde moído) e ovas finger lime (uma espécie de caviar australiano de fruta cítrica), tudo acompanhado com um “cannellone” de caranguejo real; uma interpretação de frango de churrasco com arepa de milho, esferas moleculares de tomate cereja e azeitona banhadas com água gelada de tomate e, espetados em galhos num vaso com lavanda, aquilo a que chamo “nuggets Michelin” (nuggets de frango mas da alta-cozinha); e uma “marisqueira” de lingueirão, mexilhão e camarão da costa, com pérolas de tremoço e puré de amendoim.

nabo
O Nabo

A entrar no “real deal”, Chocos (ou lulas, consoante a disponibilidade) com tinta e soro de leite, um toque de queijo de São Jorge, com crocante de iogurte no topo e molho à bordalesa, e também um crocante de tapioca com tinta. Depois, o prato de Lavagante, que consiste numa sopa tom yum (tailandesa) de galanga (gengibre do Laos) com papaia, manga e o referido crustáceo, a fazer par com o mesmo em crosta de sal, kimuchi, óleo de sésamo, ervilhas, pickles e cebola, e ainda tripas “à moda de Gaia”, cozinhadas na dita Carta Fata, com feijão branco, cebolinho e molho de aves.

lavagante
O Lavagante

Em jeito de pausa, veio da cozinha um pão quente de alfarroba e malte com manteiga de vaca do Pico e azeite Quinta de Vargellas (do grupo Fladgate, onde está inserido o Hotel, a Taylor’s, Croft, Fonseca, etc.). De volta ao exercício, Raia glaceada com beurre blanc e caviar e algas. Sublimes são os Ovos The Yeatman, com cocochas de bacalhau (parte junto à traqueia do peixe), presunto, codorniz e molho Bolhão Pato. Continuando, o Leitão “quase” à Bairrada muito bem conseguido, com a pele super-estaladiça, tostada com perícia. Quase a terminar, o Arroz de Pombo à Antiga, com trufa, o prato que faz revirar os olhos, quase literalmente, pela qualidade da matéria prima (pombo francês Mieral) e pelo talento na remistura.

arroz de pombo
O Arroz de Pombo à Antiga
mirtilos
Os Mirtilos

As coisas doces, do chef pasteleiro Pedro Carvalho, são três. Carpaccio de Ananás com chá verde e gelado de piña colada, muito bem-apresentado dentro de uma metade de um coco. A seguir, um desmanchado de Mirtilo com mascarpone e Kaffir (um citrino do sudeste asiático). Para rematar, uma Tripa de Aveiro (terra natal do Chef) com pipocas e caramelo.

Ficou com água na boca?