Rui Moura Alves (1942-2022)
TEXTO: Luís Lopes Vítima de doença prolongada, faleceu dia 11 de abril, aos 79 anos de idade, o enólogo Rui Moura Alves, por cujas mãos passaram algumas das mais notáveis marcas da Bairrada. Como muitos da sua geração, Rui Alves iniciou a sua vida profissional não pela academia, mas pela prática, desenvolvendo ao longo dos […]
TEXTO: Luís Lopes
Vítima de doença prolongada, faleceu dia 11 de abril, aos 79 anos de idade, o enólogo Rui Moura Alves, por cujas mãos passaram algumas das mais notáveis marcas da Bairrada. Como muitos da sua geração, Rui Alves iniciou a sua vida profissional não pela academia, mas pela prática, desenvolvendo ao longo dos anos um saber de experiência feito.
Nascido em Sangalhos, começou a trabalhar muito jovem nas caves bairradinas, aí aprendendo o ofício. Na segunda metade dos anos 80, e através do seu laboratório de análises, Soanálise, foi o principal impulsionador de um movimento que autonomizou diversos produtores tradicionais, que até aí vendiam os seus vinhos a granel às caves locais. Nasceram assim, muito pelo seu incentivo e acompanhamento, algumas marcas “de quinta” que se tornaram referências na região e no país, precursores do chamado “Bairrada clássico”, caracterizado pelos lagares, tonéis de madeira usada, filtrações mínimas ou inexistentes e estágios prolongados em garrafa. Casa de Saima, Quinta das Bágeiras, Sidónio de Sousa ou Quinta de Baixo assumiram-se então como os mais legítimos representantes do estilo.
Apesar de algumas breves incursões pelas regiões dos Vinhos Verdes e do Douro, manteve sempre o foco profissional na Bairrada e chegou a dirigir a enologia de casas de maior dimensão, nomeadamente Caves Valdarcos e Caves São João.
Paralelamente, afirmou-se como produtor artesanal de vinagre, lançando no mercado o vinagre “Moura Alves”, de acidificação natural, envelhecido uma década em madeira, referência absoluta neste tipo de produto.
A produção de espumantes foi talvez a sua grande paixão, tendo a partir dos anos 80 assumido que todos os espumantes com o seu cunho seriam “bruto zero”, antecipando a tendência “brut nature” que hoje faz escola em diversos produtores. Anteviu, igualmente, o sucesso nacional e mundial deste tipo de vinho: “o espumante é a bebida do futuro”, dizia muitas vezes, na época. O tempo viria a dar-lhe razão.
Salvador Guedes, Senhor do Vinho (1957-2022)
TEXTO: Luís Lopes Após uma década de luta contra uma das mais insidiosas doenças neurodegenerativas, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), deixou-nos ontem Salvador da Cunha Guedes. Tive, ao longo da sua e da minha vida, o privilégio de com ele privar inúmeras vezes. E em todas elas valorizei a sua cultura, o seu conhecimento, o […]
TEXTO: Luís Lopes
Após uma década de luta contra uma das mais insidiosas doenças neurodegenerativas, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), deixou-nos ontem Salvador da Cunha Guedes. Tive, ao longo da sua e da minha vida, o privilégio de com ele privar inúmeras vezes. E em todas elas valorizei a sua cultura, o seu conhecimento, o seu entusiasmo, a sua forma de estar; e fiquei eu próprio mais valorizado pela troca de ideias e experiências.
Conheci-o em 1990, quando Salvador Guedes era director de marketing e presidente da Sogrape Distribuição. O “patrão” era seu pai, Fernando Guedes (falecido em 2018), pessoa encantadora e extraordinário empresário, de quem Salvador herdou o fino trato, os dotes de conversador, o talento e a paixão pelo negócio do vinho. Dez anos depois, em 2000, coube-lhe a ele assumir a liderança da Sogrape. Mas já antes tivera oportunidade de dirigir pessoalmente algumas das negociações mais importantes da empresa, como a entrada no sector do vinho do Porto com a aquisição da Ferreira, em 1987, a compra da Offley, em 1996 ou a aquisição da Finca Flichman, na Argentina, em 1997. Já ao leme da casa mãe, acabaria por adquirir a Sandeman, em 2002, a Framingham, na Nova Zelândia, em 2007, e Viña Los Boldos, no Chile, em 2008 e a Bodegas Lan, em Espanha (Rioja) em 2012.
Foi precisamente em 2012, já diagnosticada a doença e perceptíveis os primeiros sintomas, que enquanto jornalista lhe fiz aquela que seria, provavelmente, a sua última grande entrevista. Se a minha admiração por ele já era grande, tornou-se enorme depois de nos despedirmos. Ao longo de quase quatro horas de conversa encontrei um Salvador um pouco diferente, menos preocupado com o “politicamente correcto” e com a reserva institucional. Percebendo a sua abertura, “apertei-o” com as perguntas mais difíceis, enumerando um conjunto de casos, produtos, negócios menos sucedidos numa Sogrape que é, inquestionavelmente, um caso de enorme sucesso empresarial e de visão estratégica. A todas as questões respondeu com uma frontalidade e clareza impressionantes, sem nada esconder ou disfarçar, assumindo os erros de julgamento, as dúvidas, as apostas que não resultaram. Como se dissesse (na verdade, disse-o) que não há empresas nem pessoas perfeitas, que não se pode acudir a tudo ao mesmo tempo, que, por vezes, temos de recuar para depois avançar mais fortes, que nem sempre as coisas correm como queremos, introduzindo uma dimensão muito humana e realista numa conversa profissional. Depois, almoçámos como sempre, falando de tudo um pouco, o vinho apenas abordado para comentar o conteúdo do copo.
Não é a última imagem que guardo dele, longe disso. Várias vezes o encontrei depois na Sogrape onde, mesmo muito debilitado ao nível da fala e da locomoção, e já depois de ter deixado a presidência do grupo (entregue ao seu irmão Fernando da Cunha Guedes em 2015), continuava a ir para se inteirar de tudo e para intervir nas decisões estratégicas do grupo empresarial familiar. Mas nem só os destinos da Sogrape o preocupavam: em 2015 lançou a iniciativa “Todos Contra ELA”, criada para ajudar e encaminhar os que são diagnosticados com esta doença.
Em 2018, a Grandes Escolhas atribuiu-lhe o seu mais ambicionado prémio, Senhor do Vinho. Salvador Guedes, já sem voz e sem mobilidade, fez questão de o ir receber, pessoalmente, ao velódromo de Sangalhos, acompanhado por toda a família. Envolveu-se e participou nas mais de três horas que durou o evento, recebeu com um sorriso largo muitas dezenas de abraços e felicitações e foi levado ao palco pelo seu irmão Fernando, que leu o discurso que Salvador escreveu com a ajuda da tecnologia que lhe permitia comunicar. E ouviu, emocionado, o prolongado aplauso, de pé, que mais de um milhar de profissionais do sector do vinho, também eles emocionados, lhe proporcionaram.
Essa sim, é a última imagem que dele tenho: lutador, resistente, empenhado, participativo, capaz de gestos de enorme significado, que ficam para a vida. O abraço que então lhe dei, agradecendo-lhe o sacrifício que fez para ali estar presente, ainda hoje o sinto. E o seu sorriso aberto, como que a dizer “nada disso, o prémio é meu, vim recebê-lo”, permanece para sempre na minha memória. Adeus, Salvador, descansa em paz.
Grande Prova – Brancos do Dão
No solar do Encruzado Imaculados a nível de qualidade e frescura, cada vez mais os brancos do Dão apresentam matizes diferenciadoras entre si. Fruto da neutralidade que a casta Encruzado apresenta nos primeiros anos em garrafa e da personalidade que ganha com o tempo, surgem estilos e perfis que vão desde a mineralidade pura até […]
No solar do Encruzado
Imaculados a nível de qualidade e frescura, cada vez mais os brancos do Dão apresentam matizes diferenciadoras entre si. Fruto da neutralidade que a casta Encruzado apresenta nos primeiros anos em garrafa e da personalidade que ganha com o tempo, surgem estilos e perfis que vão desde a mineralidade pura até fruta branca e mesmo algum exotismo. Em comum têm o elevado nível geral e preços tendencialmente cordatos.
Texto: Nuno de Oliveira Garcia
Notas de prova: João Paulo Martins e Nuno de Oliveira Garcia
Nos últimos dez anos, os brancos portugueses desmistificaram quaisquer preconceitos sobre a sua enorme qualidade. Naturalmente, os vinhos à disposição dos consumidores hoje são fruto de um trabalho anterior, seja pela replantação de vinhas, ou recuperação de castas esquecidas, seja na afinação de estilos menos óbvios, como por exemplo com menos recurso a madeira nova durante o estágio. Ora, uma das regiões com melhores condições para brancos nacionais de excepção é, sem dúvida, o Dão.
Por um lado, existem razões relativamente óbvias para isso, sendo disso bom exemplo os invernos frios e uma significativa altitude das vinhas (frequentemente acima dos 350m ou mais do nível do mar), bem como solos genericamente compostos por areias graníticas, tudo condições que aportam frescura aos vinhos. Mas, por outro lado, e olhando mais em pormenor, no caso do Dão outra razão existe e chama-se… Encruzado. Com efeito, nos últimos 20 anos, a fama da uva Encruzado confunde-se com a notoriedade crescente do vinho branco do Dão. Não o dizemos pela presença da casta no encepamento que, sendo crescente, está muito longe de ser dominante, mas essencialmente pela qualidade e consistência dos vinhos finais que proporciona. Efectivamente, o Encruzado, em pouco mais de década e meia, passou de singelamente admirado pela crítica especializada para gozar de uma justa fama junto dos consumidores. Arriscamo-nos a dizer que essa associação de casta a um território aumentou o valor da região do Dão junto dos apreciadores de vinhos brancos. Prova disso é que nunca ouvimos um consumidor a dizer que não gosta de Encruzado; e convenhamos que é difícil não gostar…
A referida associação entre o Encruzado e a região do Dão não é, todavia, isenta de nuances. A primeira delas respeita, como referimos, à sua limitada presença no encepamento. Existe uma significativa mancha de vinha velha branca no Dão, mas curiosamente surge a casta Malvasia Fina como muitas vezes dominante, a par de muitas outras uvas, como seja o Cerceal-Branco, Fernão Pires, Bical, Verdelho, Barcelo, Terrantez e outras com os habituais nomes curiosos de Uva-Cão, Cachorrinho, ou Douradinha…. Com efeito, o Encruzado é minoritário nessas vinhas velhas, tendo sido trazido para o palco principal na sequência das provas organizadas por Alberto Vilhena nos anos 50 do século passado no seio do Centro de Estudos Vitivinícola do Dão, em Nelas. Para se ter uma noção, actualmente, na região, o Encruzado está longe de ultrapassar 300 hectares de mancha total, ou seja, praticamente 3 vezes menos do que a Malvasia Fina e 2 vezes menos do que a omnipresente Fernão Pires…
Ainda a respeito da casta Encruzado, mas o mesmo sucedendo com as variedades Barcelo e Uva-Cão (ambas com cada vez maior aceitação junto de produtores e enólogos), e por esta poder ser relativamente neutra (de aroma e sabor) nos primeiros meses após o engarrafamento, tem cabido às opções de vinificação e de enologia trabalhar e exaltar algumas matizes. Por isso, no painel de vinhos provados encontrámos desde registos mais minerais (pedra molhada, minerais quebrados e até notas de giz, por vezes sinal de alguns tipos de redução) que se aproximam melhor da pureza da casta, passando por frutados (um ou outro quase tropical até), e finalmente outros mais florais (quase sempre decorrente de estágio em barrica). Em todos os vinhos, contudo, encontrámos excelentes acidezes totais e uma positiva percepção de óptima longevidade. Aliás, mesmo nos vários casos em que a casta Encruzado não aparece a solo, o pendor mineral e fresco foi uma constante nos vinhos provados.
A dupla Encruzado-Malvasia Fina (esta última de carácter mais frutado e floral) continua a aparecer em vários lotes, mas cada vez mais encontramos, sobretudo nos topos de gama, a utilização apenas de Encruzado, quando muito com recurso à companhia de pequena percentagem de Bical. A ligação funciona muito bem, pois enquanto o Encruzado proporciona nervo e agradece a utilização de barrica, a casta Bical aporta maior riqueza aromática e finura em boca. No geral, os brancos do Dão melhoram muito com 5 ou mais anos em garrafa, essencialmente por desenvolverem maior complexidade aromática e comprimento de boca, sem oxidações precoces ou perda de frescura. Talvez por isso, poucos foram os vinhos de 2020 que entraram no painel em prova, sendo que um dos primeiros classificados é, inclusivamente, um blend formado com vinhos de vários anos.
Mas se o Encruzado não é uma das castas há mais tempo reconhecida, o mesmo não se pode dizer da região do Dão. Demarcada em 1908 tem o nome do rio que percorre parte da região, cruza alguns dos seus melhores terroirs (como seja Penalva do Castelo e Santa Comba Dão) e desagua no Mondego. Com solos generalizadamente graníticos, divide-se por 7 sub-regiões, desde a solarenga Silgueiros até à invernosa Serra da Estrela. Entre os dois rios encontramos Nelas e Mangualde com as respetivas manchas vínicas, a este Seia e Gouveia e na fronteira sul a região de Arganil. Trata-se de uma região na qual a vinha tem forte implementação no dia-a-dia (incluindo para produção e consumo próprio das populações), mas a mesma está, todavia, dispersa por floresta (tantas vezes de eucaliptos), por pequenas e grandes aldeias, e até por alguma indústria.
Por vezes conhecida como a ‘Borgonha de Portugal’, pela fineza de brancos e tintos, é curioso notar uma aproximação entre as castas Chardonnay e o Encruzado na medida em que ambas enriquecem com a fermentação e estágio em barrica… A região tem como inequívoco predicado a paternidade de duas das melhores variedades nacionais: o Encruzado nos brancos e a Touriga Nacional nos tintos. Aliás, a par de expressões muito residuais de Sémillon, Sauvignon Blanc, Pinot-Blanc e Pinot Noir, a região é plantada quase exclusivamente de castas nacionais, muitas delas locais. Na última década e meia tem beneficiado do surgimento de novos produtores, simultaneamente ambiciosos e conservadores das melhores práticas. Exemplos do que vimos escrevendo são os investimentos recentes na histórica Quinta da Passarella (destaque para a enorme recuperação das vinhas e do património edificado), mas também da Niepoort, e mais recentemente MOB e Taboadella (com a adega mais bonita da região, e não só…). Com esses investimentos vieram enólogos de outros pontos do país para a região, que se juntariam a uma nova fornada local. Tanto assim é que, hoje em dia no Dão, nomes como Paulo Nunes, Nuno Mira do Ó, Jorge Alves, Jorge Moreira, Jorge Serôdio Borges e Xito Olazabal, Luis Lopes, ou Mafalda Perdigão juntam-se a quem há mais tempo oficia por estas terras, caso de Nuno Cancella de Abreu, Carlos Lucas, João Paulo Gouveia, Osvaldo Amado, Paulo Narciso, Carlos Silva ou Anselmo Mendes, entre outros. Pois bem, pedimos a alguns destes profissionais que elencassem o que os surpreende positivamente nos brancos da região, e as respostas foram maioritariamente no sentido de enaltecer a gordura natural dos vinhos na prova de boca (sobretudo do Encruzado) que dispensa, por vezes, a operação de battonage. Outro feedback que obtivemos foi a capacidade de resistência à oxidação, mesmo em mostos e vinhos com menos utilização de sulfuroso. Alguns dos melhores vinhos em prova tiveram efetivamente longos estágios em barrica, sem ou com pouquíssimo sulfuroso, em borras finas, mas muitas vezes sem necessidade de battonage. Aliás, a este respeito, julgo não existir melhor forma de fechar este texto do que elogiar a capacidade única do Dão em proporcionar brancos naturalmente com perfis de vinhos de guarda, salinos e minerais, quase sempre centrados em aromas secundários e, se mantidos alguns anos em cave, deliciosas componentes terciárias. Há lá melhor coisa?
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2022)
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Opinião: Vinhos bons e vinhos maus
De vez em quando agitam-se as águas, o que é normal e recomendável, pois a água pura é um mito e a água estagnada é pior que um vinho mau. Mas a água, quando pura e cristalina… o vinho bom é melhor. Texto: Tomás Vieira da Cruz (enólogo) Nos últimos tempos têm-se dito muitos disparates […]
De vez em quando agitam-se as águas, o que é normal e recomendável, pois a água pura é um mito e a água estagnada é pior que um vinho mau. Mas a água, quando pura e cristalina… o vinho bom é melhor.
Texto: Tomás Vieira da Cruz (enólogo)
Nos últimos tempos têm-se dito muitos disparates e algumas coisas certas sobre os vários géneros vínicos. Tal como o humano, há vinho, e pronto. Depois o vinho divide-se em vinho bom, e em vinho mau. Aqui difere do género humano, homens e mulheres, são todos boas pessoas, já dizia o meu avô optimista que não há rapazes maus. No género humano, o equilíbrio de uma pessoa é-lhe dado pelo conjunto dos seus defeitos e qualidades. Não compliquemos o que é simples. Não há pessoas só com defeitos, e não há pessoas só com qualidades. Já com o vinho também é simples: ou é bom, ou é mau. No género humano, não há segunda via. No vinho, não há terceira. Um defeito é um defeito, é um defeito; uma qualidade é uma qualidade, é uma qualidade.
No vinho, o equilíbrio é-lhe dado pelo conjunto das suas qualidades. E o vinho é o fermentado da uva. Mai-nada! Não lhe chamem mais nomes do que este!
O vinho presta ou não presta. É uma objectividade. E depois, gosto ou não gosto, é uma subjectividade. Posso gostar de um vinho que não presta; mas não posso dizer que um vinho não presta só porque não gosto. Se até a maior parte dos jornalistas da especialidade já passou esta barreira psicológica há muitos anos, está na altura de o comum dos mortais, seja produtor ou consumidor ou ambos, a ultrapassar também.
Há cada vez mais vinhos bons, e há cada vez mais vinhos de que não gosto, apesar de reconhecer que estão bem feitos. Há felizmente cada vez menos vinhos maus, e continuo a gostar de nenhum.
Existem características que num vinho normal, de fermentação alcoólica canónica (de Cânon, que não de Caná), serão sempre defeitos, mas que, em determinado estilo de vinhos, são feitio. Estou a lembrar-me da percepção organoléptica do etanal num vinho que esteve em véu de flor, ou da acidez volátil num vinho de podridão nobre. Aqui há um nível mais elevado de um subproduto da fermentação que faz parte do equilíbrio de um estilo específico de vinho.
Ah, que eu faço vinhos naturais e a acidez volátil dá-lhe frescura e o suor de cavalo dá-lhe complexidade! Primeiro, vinho natural não existe. E depois, se a acidez volátil está dentro do limite legal e se sente como frescura e não como acético, sim pode acontecer, ajuda ao equilíbrio do vinho e não é defeito, pode existir em qualquer vinho. Mas se se sente como acético, não é frescura nem no Polo Norte, não há álibi possível. Tal como em determinados vinhos muito estruturados, um determinado nível de aroma animal se não for dominante e não tapar as outras qualidades do vinho, não pode ser considerado defeito. Agora se ofusca tudo no vinho e se lhe altera o equilíbrio, é defeito até na Golegã!
Não há vinhos naturais e vinhos artificiais, há vinho bom, e vinho mau. Natural, é um passe tauromáquico. O seu a seu dono.
No vinho, o natural é o vinagre, e só o mau. O vinho é o produto intermédio e instável entre a matéria-prima uva e o produto final e estável que é o mau vinagre. O vinho existe porque há intervenção humana em determinado momento do processo de vinificação. O vinagre bom, também. O trabalho do vinificador é apenas e tão só acompanhar, preservando e se possível realçando, nunca deturpando, o processo de transformação do fruto do trabalho da viticultura. Se a uva for sã e madura, intervém menos; se não for, intervém mais.
Fazer vinho é a coisa mais fácil que há. Basta esmagar a uva, que o vinho naturalmente se faz. Se o homem não intervém como é natural que intervenha, naturalmente se faz o vinagre. Mas só o mau.
Vinho é pois naturalmente o fermentado da uva. Chamar-lhe natural é um pleonasmo. E quem assim o designa, é pleonasta. E quem o faz para colocar anátemas em quem não é pleonasta por natureza, é um eno-parasita.
Temos, portanto, vinho bom e vinho mau. Sobre o mau, estamos conversados. Nos vinhos bons temos mais ou menos tecnologia aplicada. E não há mal nenhum nisto, desde que se assuma. Sejamos claros: se temos milhões de litros de vinho bom e barato, é porque a tecnologia transforma milhões de quilos de uva mediana e medíocre em vinho bebível. E são estes milhões de quilos de uva mediana e medíocre transformados em milhões de litros de vinho bom e barato que muitas vezes pagam as contas e permitem fazer grandes vinhos que exaltam o terroir. Não há mal nenhum em dar sinais exteriores de qualidade a um vinho por processos tecnológicos. Isto é democratizar e tornar acessível a todos um vinho bem feito, que dê prazer ao consumidor e bem-estar ao produtor. E isto é que é um bom vinho.
A tecnologia só é errada quando se apresenta um vinho com sinais exteriores de qualidade como sendo um vinho que exalta o terroir que lhe deu origem. Quem faz isto é tão pleonasta e eno-parasita como os outros. O terroir não é um pleonasmo. O terroir é corpo e alma. O espírito do vinho está na exaltação das variáveis naturais solo, casta e clima pela práctica cultural que é a intervenção humana.
Pode e deve usar-se tecnologia enológica para preservar e exaltar o terroir. Pode e deve usar-se a tecnologia enológica para dar sinais exteriores de qualidade a um vinho para o tornar apelativo. Mas não se pode confundir um com o outro. O produtor tem de ser verdadeiro com o consumidor. No vinho, e em tudo.
Para finalizar, a mitologia dos produtos vitícolas e enológicos. A actividade vitivinícola é das actividades mais controladas que há. Fossem todas assim. O vinho tem uma particularidade: para o fazer não há produtos proibidos, só há produtos permitidos. Existe uma coisa chamada Codex Enológico Internacional. O que lá está, pode usar-se; o que não está não pode. E o que pode, está especificado até à exaustão na sua conta, peso e medida. Ninguém tenha dúvida de que se um produto for prejudicial à saúde do consumidor de vinho, não está no Codex Enológico, que está aliás em avaliação permanente. Acho um disparate completo os projectos de talibanização de um rótulo de vinho. A própria menção dos sulfitos, o maior Amigo do vinho, só serve para confundir o consumidor, além de ser também um pleonasmo de pleonastas. Tudo é remédio, e tudo é veneno, já dizia o Paracelso. As doses, estão no Codex.
Se há excessos e prevaricações apesar do controlo? Claro que há, e devem ser denunciadas e punidas. Mas não confundamos uma cepa com a vinha inteira.
Tem de haver uma relação de Confiança entre o produtor e o consumidor. O consumidor deve exigir verdade ao produtor. O produtor tem de saber merecer essa confiança. E a comunicação não deve confundir o consumidor com meias-verdades sobre o vinho.
Editorial: Tempestade perfeita (mesmo)
Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho. Editorial da edição nº60 (Abril 2022) Após ter mostrado […]
Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho.
Editorial da edição nº60 (Abril 2022)
Após ter mostrado notável resiliência à pandemia em 2020, e ainda mais extraordinária recuperação em 2021, o sector da vinha e do vinho em Portugal depara-se, hoje, com factores estruturais e conjunturais que, associados, constituem um enorme desafio às suas capacidades. Porque abordo este assunto numa revista orientada, sobretudo, para os consumidores? Pela simples razão de que, ao contrário das ameaças óbvias do covid-19 ao negócio do vinho (encerramento de pontos de venda, enoturismos, lojas e restaurantes), os efeitos que esta “coligação negativa” está a ter nos produtores passam despercebidos aos apreciadores. A “tempestade” resulta de um conjunto de circunstâncias, das quais destaco três: aumento astronómico dos custos de produção, escassez de mão-de-obra e, claro, Rússia.
No que a alguns custos diz respeito, o consumidor está avisado, pois também os sofre na pele. Sabe que gás, electricidade e combustíveis aumentaram e já percebeu que vai pagar mais caro a carne, o leite, os legumes. Mas desconhece, por exemplo, que os produtos para a vinha (de adubos a fungicidas) aumentaram mais de 200% num ano. Não imagina que caixas de papel e madeira, rótulos, cápsulas, garrafas, rolhas, aumentaram em média, no mesmo período, 30 a 45%. Ou que os fretes de exportação inflacionaram entre 300 a 400%. Além da energia, claro. Dizia-me outro dia o enólogo de uma empresa que produz a sua própria aguardente que, há um ano, por 24 horas de destilação pagava €1500 de gás; agora paga €2200. Tudo o que é necessário para que uma garrafa de vinho chegue ao consumidor não está apenas muito mais caro: também não está disponível. Há muitos produtores a atrasarem engarrafamentos por não haver garrafas; e diversos outros têm exportações firmadas, mas não sabem quando haverá contentores.
O que vai sentir quem compra uma garrafa no supermercado? A curto e médio prazo, provavelmente, nada. O vinho no supermercado está demasiado barato e assim irá continuar. Enquanto houver um produtor desesperado disposto a substituir outro, mesmo vendendo abaixo do preço de custo, continuará a haver vinho bom e barato nas prateleiras. Mas é importante que o consumidor saiba o que está por trás dos €2,19 que paga por uma garrafa. Quanto aos vinhos mais ambiciosos, será talvez menos difícil reflectir parte do aumento de custos no preço final. Mas estes vinhos representam uma pequena fatia do mercado.
Depois, a escassez de mão-de-obra. É um problema transversal a todos os sectores de actividade, como sabemos. Mas é ainda mais grave no sector agrícola, em geral, e no vitivinícola, em particular. Boa parte das vinhas portuguesas não são inteiramente mecanizáveis, desde a poda até à colheita. E, para alguns vinhos de topo, essa mecanização nem é desejável. Mas onde estão as pessoas disponíveis para trabalhar? Neste momento, os podadores são tão raros que se vão buscar equipas a centenas de quilómetros de distância. Se a colheita de 2022 for abundante ou a vindima longa e com interrupções, haverá uvas que ficam nas videiras por não haver quem as apanhe ou não compensar apanhá-las. Ou vão ser colhidas demasiado tarde, com reflexo na qualidade dos vinhos.
Finalmente, a insanidade da guerra. A exportação para a Rússia estava a crescer e, para muitos produtores, o país era o segundo ou terceiro mercado. Agora, acabou, e a escassez e custo dos fretes dificultam o desvio das atenções para novos mercados.
O sector do vinho já provou ser um “navio” com elevada resistência ao mar tempestuoso. Agora, de novo, vai ter de mostrar tudo o que vale.
Melhores do Ano: celebrar 2021
Luís Lopes Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar. Editorial da edição nº59 […]
Luís Lopes
Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar.
Editorial da edição nº59 (Março 2022)
Na Grandes Escolhas acompanhamos de muito perto o sector do vinho e os que indirectamente lhe estão ligados, como o comércio especializado ou a restauração, por exemplo. Experimentamos por isso quer as dificuldades, quer os momentos de superação de empresas e pessoas que, apaixonadamente, fazem deste mundo vínico o seu modo de vida. E seguimos e estudamos com afinco a dinâmica dos mercados e os padrões dos consumidores, pois produção, comércio e consumo fazem todos parte da mesma fileira, a fileira do vinho.
Nesse sentido, estamos convencidos de que 2021 foi, para todos em geral, um ano cheio de significado, pela positiva. Contrariando as incertezas e fantasmas alimentados pela pandemia, o sector do vinho mostrou extraordinária resiliência e dinamismo, superando as adversidades e voltando à senda de crescimento sustentado que caracterizou o primeiro trimestre de 2020, até o vírus nos cair em cima. O vírus aí continua, é certo, mas agora sabemos viver com ele e, sobretudo, sabemos viver apesar dele, não comprometendo a nossa forma de estar, a nossa felicidade, o nosso futuro.
Vamos, pois, celebrar 2021 através dos prémios Grandes Escolhas. Celebrar, desde logo, os vinhos. E de entre os muitos que premiámos, permitam-me que destaque aqui os grandes vencedores em cada categoria: o espumante Vértice Pinot Noir 2011, o branco Vinha dos Utras 2019, o tinto Quinta da Manoella VV 2018, o rosé Kopke Winemaker’s Collection Tinto Cão 2020, o fortificado Ramos Pinto RP30 Tawny 30 anos, todos eles merecedores dos maiores encómios.
Celebremos igualmente a estóica resistência à adversidade e a fantástica recuperação dos restaurantes em 2021. Com perfis e conceitos bem distintos, premiámos o trabalho de três casas de bem comer e bem servir: Come Prima, Cisco e Essencial. E, a propósito de serviço, talvez a mais valiosa função do sommelier, é de enaltecer a enorme categoria de Marc Pinto.
Há casas onde o vinho se sente em casa. Ou de onde o podemos levar para nossa casa. A Garrafeira Nacional, em constante adaptação e modernização, é uma referência incontornável, como também o é a loja gourmet Tradicional. O wine bar Capela Incomum marca pelo espaço e pelo que lá está dentro. E que dizer do acolhimento familiar num Alentejo genuíno que experienciamos no enoturismo da Herdade do Sobroso?
Ao nível do desempenho de empresas e produtores, apreciámos a transformação da “nova” Sovibor, a consistência da Adega de Penalva e o sólido crescimento da Costa Boal. Apostando numa filosofia muito própria, a Reynolds Wine Growers destacou-se pela singularidade associada à qualidade. A revolucionária Azores Wine Company mexeu com toda uma região, a Wine & Soul provou que, mesmo no conservador vinho do Porto, “small” pode ser “beautiful”. E a viticultura sustentável da Herdade de Coelheiros é um exemplo a seguir. Em tempo de celebração, celebremos também a solidariedade e a partilha, através da associação Bagos d’Ouro.
Finalmente, mas não por último, as pessoas que, pelo seu talento, conhecimento e obra, se destacaram. No que a enologia respeita, vibrámos com os vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva, no Douro e Lisboa, e por Pedro Sá, em Carcavelos. O chef Diogo Rocha oficia de forma inigualável nos fogões mas também na divulgação da gastronomia portuguesa: o prémio que leva o nome do grande jornalista David Lopes Ramos, está muito bem entregue.
Termino com o galardão mais ambicionado. Poucas pessoas terão, como Jorge Dias, contribuído em tantas e tão distintas áreas para o desenvolvimento e reconhecimento do Douro e do Vinho do Porto. É, sem sobra de dúvida, um grande Senhor do Vinho.
Porto Tawny: Arte e conhecimento
Os vinhos que hoje aqui abordo são dos que mais tradição têm na região do Douro e na sua extensão, Vila Nova de Gaia. Eram estes Porto Tawny que sempre se reservavam para servir a visitas ilustres, para momentos de celebração. Hoje existem em todas as gamas, perfis e segmentos de preço, desde os mais […]
Os vinhos que hoje aqui abordo são dos que mais tradição têm na região do Douro e na sua extensão, Vila Nova de Gaia. Eram estes Porto Tawny que sempre se reservavam para servir a visitas ilustres, para momentos de celebração. Hoje existem em todas as gamas, perfis e segmentos de preço, desde os mais simples e acessíveis até aos néctares mais selectos, raros e caros. E todos passam por um minucioso processo de selecção, lotação e envelhecimento, até entrarem na garrafa.
Texto: João Paulo Martins
Fotos: DR
Sempre que se fala em Tawny e Ruby – as duas grandes famílias do vinho do Porto – vem à minha memória a frase que ouvi a Rolf, pai de Dirk Niepoort, e que conheci ainda aos comandos da empresa. Dizia ele que o Porto Vintage era o Rei e o Tawny (cuja tradução é aloirado) era o presidente da República. Não lhe sendo conhecidas inclinações monárquicas, esta frase de Rolf expressava as enormes diferenças que existem entre as duas famílias: o Vintage é uma dádiva da Natureza, uma vez que não está nas mãos do Homem comandar o clima, as chuvas, as maturações, o calor. Por isso, quando tudo corre bem temos um vintage, um presente que se aceita (ou não) mas que nos chega “caído do céu”. O tawny, ao contrário, é uma construção humana, é uma escolha, não é nada que se receba já feito, tem de ser criado. Com muitos vinhos em stock, é o enólogo (antigamente o provador) que selecciona, que decide o tempo de estágio, que elabora o lote com este ou aquele perfil.
No tawny juntam-se três artes complementares: a arte do lote, a arte da tanoaria e a arte do envelhecimento. Se recuarmos na história do Vinho do Porto encontramos um mapa muito bem definido da circulação do vinho que começava no Douro e acabava em Gaia. Os vinhos eram produzidos no Douro mas envelhecidos e estagiados em Vila Nova de Gaia onde, pela proximidade do mar, as condições de temperatura e humidade eram mais favoráveis à sua correcta evolução. Era aqui (em Gaia) que estavam os “exportadores”, era aqui que trabalhavam os “narizes” do Vinho do Porto. Lá longe, no Douro profundo, estavam os lavradores, os que faziam o vinho nos lagares e que depois vinham a Gaia no início do ano a seguir à vindima mostrar os seus vinhos e procurar comprador.
Este quadro (quase) nada tem a ver com a actualidade. Hoje há empresas de Gaia com armazéns no Douro onde envelhecem vinhos em perfeitas condições e as relações de produtor/comprador conhecem novas fórmulas. Mas, como escrevi há uns anos, em reportagem sobre os “provadores” enquanto profissão com tendência a desaparecer, havia em Gaia técnicos competentíssimos na arte da prova que nunca tinham ido ao Douro ou feito uma vindima. Eram dois mundos separados.
Hoje vamos falar dos tawnies. Eles existem desde a gama de entrada mais acessível em termos de preço – são os tawny sem outra designação – prolongam-se pelo tawny Reserva, os vinhos com indicação de idade – 10, 20, 30, 40 e 50 anos (esta uma categoria recém-criada), os Colheita e uma outra para os vinhos muito, muito velhos. O consumidor pode dizer que são muitas categorias e que é difícil orientar-se mas, sejamos justos, tem havido uma simplificação das indicações incluídas nos rótulos. Pense-se, só como exemplo, que durante décadas os vinhos com indicação de idade não a ostentavam no rótulo e só quem soubesse percebia exactamente o que estava a beber. Exemplo: um Duque de Bragança era um tawny da Ferreira, ponto. Depois é que ficámos a saber que era um 20 anos!
O ESTILO DA CASA
Com centenas ou mesmo, frequentemente, milhares de barricas à disposição, com toneis cheios, balseiros por todo o lado, cubas de inox e cimento, a tarefa do enólogo não se revela nada fácil. É preciso conhecer o stock, mantê-lo com saúde, fazer periodicamente correcções de aguardente e ter um quadro muito minucioso onde se registam as idades dos vinhos que estão disponíveis. É com este manancial de vinhos que se constrói então o lote final que se pretende. É preciso treino, muito treino de prova, é preciso dar tempo aos vinhos para que amadureçam é preciso depois ter noção de qual é o “estilo da casa”. Não é fácil definir exactamente o que é o perfil de cada marca, mas fique-se apenas com a ideia de que, com o mesmo stock, e para um vinho de determinada idade, o provador pode optar por um estilo mais leve ou mais pesado, mais vermelho ou mais “avelhado”, mais centrado na fruta viva ou nos frutos secos, com mais acidez ou mais açúcar.
Sempre houve um estilo próprio de cada uma das grandes casas do sector do Vinho do Porto e, não deixa de ser curioso que nas fusões onde alguns grupos – Sogevinus, Sogrape, Symington, Taylor’s –congregam várias antigas empresas, há a preocupação de manter o “estilo” que cada casa tinha, que era do agrado dos importadores e que tinha consumidores fiéis. É assim que um 10 anos Kopke é diferente de um Cálem (ambos Sogevinus) ou um 30 anos Offley não é semelhante ao Sandeman (ambos Sogrape).
Para esta prova escolhemos vinhos de quase todas as categorias Tawny, de Reserva até ao 40 anos e Colheita. Neste último grupo, centrei-me em vinhos Colheita já deste século. Sabe-se que várias empresas ainda têm, por exemplo, o Colheita 1937 em casco mas entendo ser mais razoável optar por vinhos mais acessíveis e facilmente disponíveis nas lojas especializadas.
Para a elaboração de tawnies das diferentes categorias, as empresas adquirem frequentemente vinhos no mercado: nas adegas cooperativas para os vinhos de entrada de gama e em produtores particulares que têm stocks de vinhos velhos para os vinhos com mais idade.
A ARTE DO LOTE
Os tawnies correntes não são tão fáceis de fazer como se poderia imaginar. Em primeiro lugar, a cor tawny, sempre um pouco mais aloirada, é difícil de conseguir quando as castas maioritariamente plantadas na região originam vinhos de cor intensa. Vinhos demasiado vermelhos não passarão na Câmara de Provadores. Por isso, como nos lembrou Ana Rosas (Ramos Pinto) é preciso escolher logo na vindima vinhos mais ligeiros, menos macerados, que depois, em casco, oxidam mais rapidamente. São também vinhos que levam muitas correcções para poderem ter o perfil desejado. Naturalmente que na categoria Reserva é mais fácil afinar a cor, pois estamos a falar de vinhos com uma média de 7 anos o que já ajuda também a que as cores se revelem com maior evolução. Vinhos mais ligeiros são mais fáceis de conseguir no Baixo Corgo do que no Douro Superior (que gera vinhos muito carregados de cor), por exemplo, e obriga a conhecer muito bem a região para saber onde ir buscar os vinhos para cada categoria.
Nas grandes casas, estas gamas de tawnies são feitas ao longo do ano conforme os pedidos do mercado. Há um modelo-base que serve para ser replicado sempre que for preciso. Os vinhos para se enquadrarem na categoria obrigam a muitas passagens a limpo e arejamento para se acelerar a oxidação. Para afinar a cor, Carlos Alves (Sogevinus) diz-nos que só com pouca extracção na vindima e com uvas brancas e tintas misturadas é que se conseguem vinhos mais abertos de cor que envelhecem mais rapidamente.
Os tawnies 10 anos são elaborados todos os anos e, frequentemente várias vezes por ano. Dessa forma, consegue-se que estejam sempre no mercado vinhos com mais frescura, o que não aconteceria se as quantidades colocadas fossem enormes e que demorariam depois muito tempo a serem renovadas. Aqui falamos sempre de um lote de vinhos que irá, em média, dos 8 aos 12 anos. As quantidades produzidas variam muito de casa para casa, em função da maior ou menor presença e visibilidade no mercado. A Ramos Pinto produz 60 000 garrafas/ano nesta categoria. No Vallado são cerca de 20 000 litros, comercializados em garrafa de ½ litro, onde entram vinhos entre os 7 e os 13 anos. Fazem um único lote por ano. Os vinhos são parcialmente guardados em madeira mas também em inox para assim se conseguir, no lote final, um bom balanço entre estrutura e frescura. Estes vinhos têm teores variados de doçura mas não se afastam muito dos 100/120 gramas açúcar por litro. Na categoria 10 anos há também muito abastecimento fora de portas, sobretudo em cooperativas.
OS TAWNY VELHOS
Já nos tawnies mais velhos as casas são muito ciosas dos seus stocks. Também adquirem fora, mas, por exemplo, o 20 anos da Ramos Pinto não pode aumentar de volume porque como é um vinho da Quinta do Bom Retiro, a propriedade não dá para mais. Na Sogevinus é também muito clara a distinção dos stocks que se destinam às várias marcas. A Kopke, por exemplo, inclui sempre vinhos mais estruturados que depois se combinam com lotes mais elegantes para fazer o vinho no modelo final, o tal que se quer fiel à marca e ao estilo da casa.
No caso dos vinhos mais velhos, quer o Vallado quer a Ramos Pinto vão muitas vezes ao mercado comprar a lavradores vinhos muito velhos. Mas, como nos diz Francisco Ferreira, do Vallado, “é cada vez mais difícil encontrar vinhos de muita qualidade, guardados e mantidos em boas condições”. Por vezes as quantidades adquiridas são mínimas o que leva a que, na Sogevinus, sejam usados micro barris de 20 ou 30 litros para guardar estas essências. De seguida estes vinhos adquiridos na lavoura têm de ser “educados” e trabalhados para poderem entrar em lotes finais. Quanto mais velhos os tawnies, mais trabalho de “alquimia” se pede/exige ao enólogo. Há vinhos que podem entrar com 1% no lote final e fazem toda a diferença. Ana Rosas conta-nos: para fazer um lote de tawny 30 anos começa-se a trabalhar nele 3 anos antes; parte-se de uma base do vinho anteriormente no mercado, põe-se num balseiro com outros vinhos de 24 a 27 anos de idade e alguns bem mais velhos. No segundo ano passa para cascos (cerca de 10 cascos) e começa-se então a adicionar pequenas quantidades de vinhos muito velhos. No terceiro ano leva então os toques finais a conta-gotas. Numa barrica de 660 litros pode levar, por exemplo, 2,4 litros de um vinho com mais de 100 anos. “Nem se imagina a diferença que fazem essas pequenas quantidades no lote final”, diz-nos.
Os tawny 30 e 40 anos são engarrafados em quantidades muito pequenas. Mesmo empresas grandes, como a Sandeman, só engarrafam uma pipa por ano do seu 40 anos. São vinhos naturalmente caros mas que, pela enorme classe que apresentam e pelos anos de stockagem que exisgem, têm um preço muito ajustado. No caso dos brancos velhos, a palavra tawny não é aplicável por uma mera razão jurídico/burocrática: não está previsto na lei que se apelidem tawnies os brancos velhos, apenas os tintos têm direito ao designativo. Logo que se mude a lei, tudo poderá ser diferente…
Na prova que fizemos foi surpreendente a qualidade em todas as categorias (mais surpreendente nas mais baixas, naturalmente) e os consumidores ficam com um leque de escolhas muito interessante. Não ficam com obra de Deus, têm de se contentar com obra dos Homens. E que obra!
O CARÁCTER DOS COLHEITA
O Porto Colheita, diferentemente do Tawny, é um vinho elaborado a partir de uma só vindima e que passa, no mínimo, 7 anos em casco. Tem por isso um carácter muito próprio, que reflecte integralmente as características do ano em que nasceu. Recentemente, a legislação alterou-se e favoreceu muitos produtores que tinham vinhos em casa mas que não podiam declarar Colheita. Expliquemo-nos: até 2020, os lotes destinados a Colheita, e que só podiam ser comercializados após 7 anos de casco, tinham uma conta corrente própria para Colheita, onde a empresa ia dando baixa à medida que ia engarrafando. Por norma e tradição, cada empresa coloca uma certa quantidade no mercado com engarrafamentos anuais. É por esta razão que é sempre conveniente tomar em atenção a data indicada na garrafa. Se dizemos que há ainda 1937 no casco, podemos imaginar que existirão no mercado 30 ou 40 engarrafamentos diferentes do 37, feitos em anos diferentes e portanto, com diferentes idades de casco e diferentes características. Não restam dúvidas: o que foi engarrafado mais recentemente é incomparavelmente melhor do que o outro que, sendo da mesma Colheita, foi colocado na garrafa há 20 anos.
A modificação que entretanto se operou na lei, permite que, desde que os produtores/empresas tenham vinhos de um determinado ano em conta corrente, possam engarrafar um Colheita. Deixa assim de haver uma conta específica para esta categoria o que, acredita Carlos Alves, vai fazer com que comece a surgir mais Porto Colheita no mercado.
A mais recente proposta de modificação (ainda não aprovada no Instituto do Vinho do Douro e do Porto à data da escrita deste trabalho) assenta na criação de duas novas categorias de Tawny: “50 anos” e “Very, Very Old” para tawnies com mais de 80 anos. Muito provavelmente, isso significará que os tawny 40 anos deixarão de exibir no rótulo “Over 40 years” ou “+ de 40 anos” como até aqui.
Independentemente, da categoria onde se insere, o Porto Tawny é um vinho que espelha, talvez como nenhum outro, o trabalho dos profissionais do sector, no Douro ou em Gaia, e o seu profundo conhecimento e talento. Uma arte, portanto.
Guardar e servir
Todos estes vinhos, independentemente da idade, correspondem a lotes com maior ou menor oxidação. Por essa razão estes vinhos não precisam de ser conservados deitados em nossas casas. O conselho básico é, assim, a conservação das garrafas ao alto. Nunca se deve esperar uma evidente evolução destes vinhos na garrafa. A evolução pode acontecer (nomeadamente o aparecimento daquele misterioso e difícil de definir “cheiro a garrafa”) mas o mais habitual é os vinhos perderem frescura e ficarem cansados com muitos anos de garrafa.
Todos estes vinhos são filtrados antes do engarrafamento, o que facilita o manuseamento da garrafa e não obriga a decantação prévia. No entanto há aqui dois casos a considerar: o gosto pessoal de ver um bom tawny num bonito decanter é razão mais que suficiente para se decantar o vinho; depois, caso a garrafa de tawny tenha já muitos anos (aquelas das heranças ou compradas em leilão) acabará sempre por gerar depósito no fundo da garrafa e por isso é conveniente, com muito cuidado, decantar previamente o vinho.
A indicação da data do engarrafamento que vem na garrafa é uma ajuda; deverá sempre comprar os engarrafamentos mais recentes. Mas atenção: ela só é obrigatória nos Colheita; nos outros tawnies pode, ou não, vir indicada.
A temperatura de serviço aconselhada é “ligeiramente refrescado” uma vez que a doçura e o álcool do vinho tende a torná-lo um pouco mais pesado. O melhor será colocar a garrafa no frio uma hora antes de servir. Se for para ir bebendo ao longo do serão, então um balde de água com algumas pedras de gelo será o suficiente para manter o Porto no seu ponto certo.
(Artigo publicado na edição de Janeiro 2022)
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Casa da Passarella: Novidades da Serra
Na Casa da Passarella já nos habituámos a assistir a uma busca constante de formas de conservação do património, seja pela busca de vinhas velhas, seja pela recuperação de castas antigas. Aqui relatamos mais um episódio. Texto: João Paulo Martins Fotos: O Abrigo da Passarella Paulo Nunes é o porta-voz da quinta e da empresa, […]
Na Casa da Passarella já nos habituámos a assistir a uma busca constante de formas de conservação do património, seja pela busca de vinhas velhas, seja pela recuperação de castas antigas. Aqui relatamos mais um episódio.
Texto: João Paulo Martins
Fotos: O Abrigo da Passarella
Paulo Nunes é o porta-voz da quinta e da empresa, é por ele que vamos sabendo das novidades e dos rumos que se estão a traçar nesta propriedade emblemática e muito antiga da região do Dão. Ali, além das castas que melhor caracterizam o Dão temos também outras de que ouvimos agora falar e que, ou estavam quase enterradas, ou há muito que deixaram de estar em palco, nas luzes da ribalta.
A prova desta vez iniciou-se com um branco que se tornou um caso de sucesso na empresa. Referimo-nos ao O Fugitivo Encruzado, um vinho que desde a primeira edição, em 2010, ainda nunca falhou qualquer ano e, nas palavra de Paulo Nunes, “parece um relógio suíço», uma vez que ainda que tenha comportamentos diferentes nas várias sub-regiões, a casta Encruzado, tem sempre um comportamento regular e consistente em todas as zonas do Dão. A casta precisa de acompanhamento, na gestão da canópia e na carga de cada cepa mas consegue produzir regularmente. Assim, não se estranha que tenham começado em 2010 com 2000 garrafas e agora estejam a produzir 20 000. É um vinho de grande sucesso junto do público, esgotando-se em 6 meses. Este é “um vinho de uvas, não de parcelas”, querendo Paulo dizer que vão à procuras das uvas que precisam, não vão escolher para fazer um “vinho de uma vinha”. Aqui entram uvas de diversas vinhas com idades dos 12 aos 50 anos. A fermentação decorre em barricas de 500 litros, das quais 25% novas. O vinho estagia depois em barricas ou cuba até Maio do ano seguinte. O Encruzado tem também crescido à custa de outras variedades: Paulo Nunes tem feito reenxertias e substituído a casta Bical porque esta se tem mostrado especialmente sensível às alterações climáticas.
O vinho feito com Uva Cão (a uva que guarda a vinha!) corresponde apenas a 1300 garrafas mas a intenção é estender a vinha até aos 6 ha. A uva é especialmente indicada para os novos tempos que se aproximam porque a elevadíssima acidez que apresenta será muito útil em lotes com outras variedades. O mosto é vinificado em cuba de cimento e tem depois estágio sobre borras totais em barricas usadas; esta prática, associada à curtimenta, ajudam, diz o enólogo, a aligeirar a sensação da acidez, o que a prova confirmou.
O vinho de Tinta Pinheira traz consigo uma carga de novidade; por um lado a casta é muito antiga na região mas foi durante muito tempo desprezada por gerar vinhos com pouca cor. Paulo confessa que “é uma casta que expressa muito bem o carácter do Dão” e, também por isso, plantaram mais um hectare no último ano. Foi feito em lagar com engaço parcial e gerou 3300 garrafas.
O branco Vinha do Províncio (3000 garrafas) resulta de um lote de várias castas e a fermentação inicia-se com curtimenta em barrica usada e termina depois em balseiros de 2500 litros. Foi feito em 2012 e as castas são sempre as mesmas. A vinha, com 50 anos, obriga a duas vindimas separadas porque as brancas estão misturadas na vinha com as uvas tintas.
O tinto Vinha Centenária Pai d’Aviz (2600 garrafas) inclui muitas castas tintas, algumas antigas mas raras como a Alvarelhão, Tinta Carvalha, Tinta Pinheira e Tinta Amarela. Tem origem em pequenas parcelas de vários proprietários, algumas entretanto compradas. Feito em lagar com engaço total, termina depois a fermentação em grandes balseiros. A partir desta colheita passará a chamar-se Pai d’Aviz.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2022)
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