Opinião: Vinhos bons e vinhos maus

De vez em quando agitam-se as águas, o que é normal e recomendável, pois a água pura é um mito e a água estagnada é pior que um vinho mau. Mas a água, quando pura e cristalina… o vinho bom é melhor.

 Texto: Tomás Vieira da Cruz (enólogo)

Nos últimos tempos têm-se dito muitos disparates e algumas coisas certas sobre os vários géneros vínicos. Tal como o humano, há vinho, e pronto. Depois o vinho divide-se em vinho bom, e em vinho mau. Aqui difere do género humano, homens e mulheres, são todos boas pessoas, já dizia o meu avô optimista que não há rapazes maus. No género humano, o equilíbrio de uma pessoa é-lhe dado pelo conjunto dos seus defeitos e qualidades. Não compliquemos o que é simples. Não há pessoas só com defeitos, e não há pessoas só com qualidades. Já com o vinho também é simples: ou é bom, ou é mau. No género humano, não há segunda via. No vinho, não há terceira. Um defeito é um defeito, é um defeito; uma qualidade é uma qualidade, é uma qualidade.

No vinho, o equilíbrio é-lhe dado pelo conjunto das suas qualidades. E o vinho é o fermentado da uva. Mai-nada! Não lhe chamem mais nomes do que este!

O vinho presta ou não presta. É uma objectividade. E depois, gosto ou não gosto, é uma subjectividade. Posso gostar de um vinho que não presta; mas não posso dizer que um vinho não presta só porque não gosto. Se até a maior parte dos jornalistas da especialidade já passou esta barreira psicológica há muitos anos, está na altura de o comum dos mortais, seja produtor ou consumidor ou ambos, a ultrapassar também.

Há cada vez mais vinhos bons, e há cada vez mais vinhos de que não gosto, apesar de reconhecer que estão bem feitos. Há felizmente cada vez menos vinhos maus, e continuo a gostar de nenhum.

Existem características que num vinho normal, de fermentação alcoólica canónica (de Cânon, que não de Caná), serão sempre defeitos, mas que, em determinado estilo de vinhos, são feitio. Estou a lembrar-me da percepção organoléptica do etanal num vinho que esteve em véu de flor, ou da acidez volátil num vinho de podridão nobre. Aqui há um nível mais elevado de um subproduto da fermentação que faz parte do equilíbrio de um estilo específico de vinho.

Ah, que eu faço vinhos naturais e a acidez volátil dá-lhe frescura e o suor de cavalo dá-lhe complexidade! Primeiro, vinho natural não existe. E depois, se a acidez volátil está dentro do limite legal e se sente como frescura e não como acético, sim pode acontecer, ajuda ao equilíbrio do vinho e não é defeito, pode existir em qualquer vinho. Mas se se sente como acético, não é frescura nem no Polo Norte, não há álibi possível. Tal como em determinados vinhos muito estruturados, um determinado nível de aroma animal se não for dominante e não tapar as outras qualidades do vinho, não pode ser considerado defeito. Agora se ofusca tudo no vinho e se lhe altera o equilíbrio, é defeito até na Golegã!

Não há vinhos naturais e vinhos artificiais, há vinho bom, e vinho mau. Natural, é um passe tauromáquico. O seu a seu dono.

No vinho, o natural é o vinagre, e só o mau. O vinho é o produto intermédio e instável entre a matéria-prima uva e o produto final e estável que é o mau vinagre. O vinho existe porque há intervenção humana em determinado momento do processo de vinificação. O vinagre bom, também. O trabalho do vinificador é apenas e tão só acompanhar, preservando e se possível realçando, nunca deturpando, o processo de transformação do fruto do trabalho da viticultura. Se a uva for sã e madura, intervém menos; se não for, intervém mais.

Fazer vinho é a coisa mais fácil que há. Basta esmagar a uva, que o vinho naturalmente se faz. Se o homem não intervém como é natural que intervenha, naturalmente se faz o vinagre. Mas só o mau.

vinhos bonsA verdade, no vinho e em tudo

Vinho é pois naturalmente o fermentado da uva. Chamar-lhe natural é um pleonasmo. E quem assim o designa, é pleonasta. E quem o faz para colocar anátemas em quem não é pleonasta por natureza, é um eno-parasita.

Temos, portanto, vinho bom e vinho mau. Sobre o mau, estamos conversados. Nos vinhos bons temos mais ou menos tecnologia aplicada. E não há mal nenhum nisto, desde que se assuma. Sejamos claros: se temos milhões de litros de vinho bom e barato, é porque a tecnologia transforma milhões de quilos de uva mediana e medíocre em vinho bebível. E são estes milhões de quilos de uva mediana e medíocre transformados em milhões de litros de vinho bom e barato que muitas vezes pagam as contas e permitem fazer grandes vinhos que exaltam o terroir. Não há mal nenhum em dar sinais exteriores de qualidade a um vinho por processos tecnológicos. Isto é democratizar e tornar acessível a todos um vinho bem feito, que dê prazer ao consumidor e bem-estar ao produtor. E isto é que é um bom vinho.

A tecnologia só é errada quando se apresenta um vinho com sinais exteriores de qualidade como sendo um vinho que exalta o terroir que lhe deu origem. Quem faz isto é tão pleonasta e eno-parasita como os outros. O terroir não é um pleonasmo. O terroir é corpo e alma. O espírito do vinho está na exaltação das variáveis naturais solo, casta e clima pela práctica cultural que é a intervenção humana.

Pode e deve usar-se tecnologia enológica para preservar e exaltar o terroir. Pode e deve usar-se a tecnologia enológica para dar sinais exteriores de qualidade a um vinho para o tornar apelativo. Mas não se pode confundir um com o outro. O produtor tem de ser verdadeiro com o consumidor. No vinho, e em tudo.

Para finalizar, a mitologia dos produtos vitícolas e enológicos. A actividade vitivinícola é das actividades mais controladas que há. Fossem todas assim. O vinho tem uma particularidade: para o fazer não há produtos proibidos, só há produtos permitidos. Existe uma coisa chamada Codex Enológico Internacional. O que lá está, pode usar-se; o que não está não pode. E o que pode, está especificado até à exaustão na sua conta, peso e medida. Ninguém tenha dúvida de que se um produto for prejudicial à saúde do consumidor de vinho, não está no Codex Enológico, que está aliás em avaliação permanente. Acho um disparate completo os projectos de talibanização de um rótulo de vinho. A própria menção dos sulfitos, o maior Amigo do vinho, só serve para confundir o consumidor, além de ser também um pleonasmo de pleonastas. Tudo é remédio, e tudo é veneno, já dizia o Paracelso. As doses, estão no Codex.

Se há excessos e prevaricações apesar do controlo? Claro que há, e devem ser denunciadas e punidas. Mas não confundamos uma cepa com a vinha inteira.

Tem de haver uma relação de Confiança entre o produtor e o consumidor. O consumidor deve exigir verdade ao produtor. O produtor tem de saber merecer essa confiança. E a comunicação não deve confundir o consumidor com meias-verdades sobre o vinho.

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