Grande Prova- Alentejo tinto Potência com elegância: afinal é possível…

Alentejo tinto

Ao pensar num topo de gama do Alentejo, imediatamente no nosso imaginário surgem vinhos poderosos, carnudos, macios e densos. A qualidade nem se coloca em causa, está lá por defeito. Entretanto, existem muito mais estilos nos vinhos que representam a crème de la crème da região. E descobrimos vários nesta prova de mais de cinco […]

Ao pensar num topo de gama do Alentejo, imediatamente no nosso imaginário surgem vinhos poderosos, carnudos, macios e densos. A qualidade nem se coloca em causa, está lá por defeito. Entretanto, existem muito mais estilos nos vinhos que representam a crème de la crème da região. E descobrimos vários nesta prova de mais de cinco dezenas de tintos alentejanos.

Texto: Valéria Zeferino Fotos: Ricardo Palma Veiga

 

Sendo o Alentejo extenso e muito heterogéneo em termos de solos e clima, a diversidade dentro da região é enorme. Para além das zonas quentes e mais áridas, tem o litoral, temperado pela influência atlântica e Portalegre, onde altitude em combinação com um clima continental, confere uma frescura própria aos vinhos. Não é por acaso que nos últimos anos assinalou-se um investimento nesta zona. As serras de São Mamede, do Mendro, de Ossa moldam as condições microclimáticas dos territórios adjacentes. A falha da Vidigueira com escarpas orientadas no sentido Este-Oeste permitem que os ventos do Atlântico empurrem o ar frio, promovendo o arrefecimento significativo do ar à noite. Luís Cabral de Almeida, responsável pela enologia na Herdade do Peso, conta que isto acontece quase todos os anos: as temperaturas de dia podem chegar a 38-39˚C e à noite caem até 15-17˚C o que tem um efeito benéfico na composição das uvas.

O calor e a água (ou falta dela)

O clima quente e seco do Alentejo, em certa medida, beneficia os produtores. Luís Cabral de Almeida que já trabalhou noutras regiões onde a Sogrape tem produção, como o Douro, Dão e até na Argentina, considera o Alentejo uma região consistente, com baixa carga de doenças. Não é por acaso que no Alentejo há muita produção biológica. As características da região e a sua fama junto do consumidor motivam alguns produtores de outras regiões a investir no Alentejo. É o caso do projecto da Symington na Quinta da Fonte Souto em Portalegre e da Costa Boal na Quinta dos Cardeais, entre os mais recentes.

Por outro lado, a seca é capaz de comprometer não apenas a quantidade e a qualidade de uma ou outra colheita, mas colocar em causa a sobrevivência das videiras, pois na falta de água esta não tem forma de buscar os nutrientes do solo e distribuí-los de forma correcta na própria planta. Por isto, a rega é indispensável em muitas partes do Alentejo, sobretudo nos solos mais pobres e com baixa retenção de água.

Contudo, a rega não visa proporcionar à videira um acesso desmedido à água. O equilíbrio da área foliar e rega controlada são essenciais, sublinha Luís Cabral de Almeida. Até à fase do pintor (quando os bagos ganham cor) dá-se água à videira (quando a chuva não vem) para obter os nutrientes do solo, e construir a área foliar para garantir actividade fotossintética. A partir do pintor, limita-se a água, para a videira investir na maturação da fruta.

Por exemplo, o enólogo Pedro Hipólito tem um sistema de rega instalado na Herdade da Mingorra, pronto para qualquer eventualidade, mas nas vinhas velhas não tem sido preciso. Tem 7 talhões que nunca foram regados.

Entretanto, no Alentejo ainda existem vinhas de sequeiro, mas estas encontram-se plantadas em áreas muito especiais. Como conta António Maçanita, há zonas na região, onde as águas freáticas ficam mais perto da superfície, permitindo que as raízes das videiras possam chegar até lá. O produtor e enólogo Luís Louro, que em 2004 iniciou o seu projecto do Monte Branco, também tem algumas vinhas em sequeiro. Estas estão implantadas em solos mais profundos e relativamente férteis, num xisto argiloso, que tem melhor capacidade de retenção do que o xisto normal.

Tudo no sítio e momento certos

As castas certas no sítio certo + momento de vindima + filosofia do produtor: é este o segredo do sucesso. Conseguir potência no Alentejo é fácil, juntar a elegância, às vezes, é um desafio. Nos topos de gama a tentação de criar vinhos poderosos é natural e as principais castas também ajudam. A triologia de Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira que predominam nos lotes de há 30 anos, proporcionam muita estrutura e potência, diz António Maçanita, enólogo e produtor com projectos em várias regiões do país. Cabernet e Syrah também ajudam à festa. As castas “mais fracas” como Castelão ou Alfrocheiro não são das mais presentes nos topos de gama. Mas há excepções.

Repetindo as palavras de Luís Louro, um vinho é um produto de vinha e filosofia. O principal foco é nas castas certas e na época de colheita. A principal preocupação é “colher maduro, mas nunca sobremaduro”.

António Maçanita partilha a sua experiência, referindo que Castelão, Tinta Carvalha e Alfrocheiro têm muita tolerância para o momento da vindima, enquanto o Moreto não. As castas tânicas como Aragonez, Alicante Bouschet ou Syrah se não forem vindimadas maduras, são verdes e difíceis.

As castas certas por vezes já se encontram numa vinha, sobretudo numa vinha velha bem adaptada ao local e que expressa o seu carácter único. Tivemos alguns exemplos interessantes nesta prova. O Chão dos Eremitas Os Paulistas, da Fita Preta, por exemplo, com as castas (curiosamente, não misturadas, o que facilita a vindima) Tinta Carvalha, Moreto, Castelão, Alfrocheiro e Trincadeira, plantadas há 50 anos.

A Vinha da Ira, da Mingorra, é uma pequena parcela de 2 ha, plantada nos anos 80. É um resultado da selecção massal  de uma vinha mãe da Vidigueira. Chamava-se o Talhão de Alfrocheiro e no início fez muita confusão, porque quando a uva chegava à adega, era óbvio que não se tratava só de Alfrocheiro, até porque tinha muita uva tintureira. Em 2004 fizeram uma biblioteca genética das castas que tinham nesta vinha e estavam lá 12 variedades misturadas, onde 50% era Alicante Bouschet, também Aragonez, Touriga Nacional entre outras. O Alfrocheiro só representa 7% da vinha. Vindima-se tudo junto e o Alicante Bouschet serve de referência para a colheita.

Na Herdade do Peso, da Sogrape, o conceito do vinho Parcelas é diferente do Reserva, ou do Revelado, que têm que ter um determinado perfil. Os vinhos da gama Parcelas podem ter um perfil próprio em função do ano, explica Luís Cabral de Almeida. Por exemplo o Parcelas Block 21 é 100% Alicante Bouschet.

Dos produtores entrevistados, há unanimidade que o futuro passa muito pelas castas de ciclo longo: Touriga Nacional, Petit Verdot, Tinta Miúda, como exemplo.

A filosofia do produtor começa na escolha de terrenos e castas e acaba na abordagem na adega e até no tempo do estágio em garrafa antes de lançar para o mercado. Os produtores como Julian Reynolds ou Luís Louro não abdicam deste estágio o que sempre se reflecte no momento da prova.

Os estilos dos tintos do Alentejo

 Normalmente fala-se de dois principais estilos de vinhos no Alentejo: um clássico (mais balsâmico, com bosque e resinas, com vegetal seco e até uma certa rusticidade) e um moderno, de grande polimento, com fruta mais imediata, mais intensa e mais presente.

Na realidade, o Alentejo é muito mais do que isto. Depois de provar mais de 50 vinhos, eu diria que existem quatro estilos: dois clássicos – um que consegue aliar potência à elegância (vinhos profundos, perfeitos em cada momento de contacto) e outro onde a potência predomina, com vinhos muito extraídos e alcoólicos, mornos e quase doces (secos tecnicamente, mas pela sensação da doçura de fruta sobremadura e muita presença de barrica). Estes últimos são bem-feitos e impactantes, impressionam ao primeiro gole, mas a partir do segundo o entusiasmo diminui.

Nos vinhos de estilo dito “moderno”, também há duas variações. Um é mais sensual e consensual, guloso, com fruta bonita, encorporando normalmente as “castas melhoradoras” no lote, como a Syrah ou Touriga Nacional. Uma espécie de Novo Mundo no Alentejo.

O outro “novo” estilo do Alentejo é uma regressão ao passado, dando protagonismo às castas antigas, com fruta simples e pura, sem o lustro da Touriga ou Syrah. Podem não ser tão consensuais, mas têm muito bom senso na sua essência, são pensados, ensaiados e bem interpretados. São elegantes com estrutura, extremamente precisos e sofisticados.

Com isto não pretendo dizer que tem que se excluir castas ou estilos. Há gostos para tudo. As tendências vêm e vão, e o que é realmente bom acaba por perdurar.

Castas: as nossas, as outras e o Alicante Bouschet

 De acordo com o cadastro da CVR Alentejo, nos últimos dez anos a área de vinha tem crescido, tendo aumentado 4.003 hectares (21%) e em 2021 ocupou 23.277 ha. As castas tintas predominam com 79%. A vinha nas sub-regiões D.O. representa 72% da área total do Alentejo e 74% da produção total de uvas da região.

Nas castas tintas é notória a importância adquirida pelo Alicante Bouschet, que aumenta em área e representatividade na região e, com menor intensidade, também a Syrah e Touriga Nacional. Em diminuição estão as castas Aragonez, Trincadeira e Castelão, que perdem área e expressão na área vitícola.

As castas dividem-se em dois polos principais: portuguesas típicas do Alentejo (Aragonez, Trincadeira) ou vindas de outras regiões como a Touriga Nacional ou Touriga Franca, e estrangeiras como o Cabernet Sauvignon, a Syrah ou o Petit Verdot.

E depois há Alicante Bouschet que é a casta estrangeira mais portuguesa. Entrou no país há mais de 100 anos e ganhou a cidadania e reconhecimento que nunca teve no seu país natal. Luís Cabral de Almeida compara o percurso do Alicante Bouschet em Portugal como o do Malbec na Argentina: ambas as castas são de origem francesa e ambas encontraram a sua expressão máxima nos países de adopção. Hoje, Alicante Bouschet é parte importante da tipicidade dos vinhos do Alentejo e está em franco crescimento na região, sendo a segunda tinta mais plantada.

Para Luís Louro, Alicante Bouschet é uma casta fantástica que conjuga potência e acidez se for colhida a tempo. Tem uma parcela na zona de sequeiro que dá óptimos resultados.

Para Luís Cabral de Almeida, Alicante Bouschet é a garantia de fruta, cor e sabor, mas há que lhe aumentar a complexidade. Considera que não adianta forçar a extracção através de remontagens, por exemplo, pois vai-se extrair o que tem de bruto e agressivo. Prefere aplicar o engaço maduro na fermentação, que confere ao vinho tanino de meio de boca, diferente do tanino da madeira que é mais lateral.

Frederico Rosa Santos sublinha que as uvas de Alicante Bouschet têm de estar bem maduras e muitas vezes só amadurece a parte fenólica com o grau alcoólico alto. Não se dá bem em todo o lado. Mais a sul de Beja é demasiado quente para o Alicante e a ondas de calor em Julho ou Agosto fazem com que não amadureça. Fica bem de Estremoz para cima.

Das castas portuguesas, Aragonez continua a ser a uva mais plantada (com 23% de encepamento), mas não é de todo a mais amada. Muitos produtores reconhecem as suas limitações, começando por ser altamente sensível à produção. Se não for controlada, não consegue amadurecer a parte fenólica e apresenta taninos verdes e duros. Também precisa de amplitudes térmicas significativas.

Pedro Hipólito, enólogo da Herdade da Mingorra, conta que quando temperatura se mantém durante algum tempo acima dos 35˚C, a videira fecha os estomas e deixa de funcionar. Ainda por cima, como se sabe, o Aragonez com o stress hídrico sacrifica folhas o que faz difícil a sua maturação posterior.

Usar o clone certo também é importante. Frederico Rosa Santos conta que quando decidiram plantar Aragonez na propriedade da família, foram buscar o clone de Tinta de Toro num viveirista em Navarra. A vinha, no seu máximo, produz 4 tn/ha.

A Trincadeira, outrora muito popular, mantém-se em 3º lugar com 14,9% de encepamento, mas está a perder posição. Os enólogos são da opinião que com produções elevadas, perde todo o carácter e torna-se muito vegetal, fazendo lembrar um “mau Cabernet do Alentejo”. É capaz de produzir excelentes vinhos mas tem que se descobrir o seu ponto de equilíbrio. A casta também não gosta do stress hídrico, embora o aguente melhor que o Aragonez mas, se for preciso, vai buscar água aos bagos desidratando-os.

Já Luís Louro defende esta casta polémica, afirmando que cada vez gosta mais dela. No lote com Alicante Bouschet tira-lhe a brutalidade. Basta 15% e já se nota a diferença, diz.

A Touriga Nacional é a 5ª casta mais plantada no Alentejo, ocupando 8% de encepamento e com tendência a crescer. Há muitos argumentos a favor, começando por ser de maturação longa o que traz vantagens no Alentejo. Frederico Rosa Santos reconhece que a casta aguenta muito bem a seca, e o bago está sempre túrgido. Aromaticamente agradável, mas às vezes no Alentejo torna-se um pouco enjoativa, com violetas em excesso e canela.

Ainda se fala pouco da Tinta Miúda que representa apenas 0,5% de encepamento da região, mas já há produtores atentos a esta casta. Luís Louro gosta dela porque é poderosa, com concentração e intensidade, é menos rústica do que o Alicante Bouschet, tem classe.

Das castas estrangeiras mais recentes destaca-se claramente a Syrah, cujas plantações têm vindo a crescer e que hoje em dia fica no 4º lugar com 12%.

Frederico Rosa Santos não tem dúvidas que Syrah se dá bem em todo o lado, variando em estilo. Pedro Hipólito repara que até num ano bem difícil como este, teve uma boa evolução. Luís Louro reconhece que é uma casta fácil, melhoradora, mas acha que se impõe muito e tira a identidade aos vinhos. António Maçanita admite que Syrah em monocasta pode expressar o terroir e é capaz de ser interessante, mas no lote marca demasiado. Melhora sim, mas desvirtua o perfil, como a Touriga Nacional.

Embora o Cabernet Sauvignon tenha chegado ao Alentejo mais cedo do que a Syrah e ocupe uma área significativa (4,4% do encepamento, 7ª casta mais plantada) a sua presença está lentamente a diminuir. Faz parte de muitos lotes, mas não identifica a região.

Pedro Hipólito explica isto pelo ciclo do Cabernet Sauvignon ser relativamente curto para o Alentejo. Com um tipo de taninos próprio e o lado herbáceo, a casta necessita de tempo de maturação. E no Altentejo os ciclos estão a encurtar. Antigamente vindimava-se de Setembro até quase início de Outubro e agora começa-se no início de Agosto. O Cabernet pode ter 15% de álcool e continuar vegetal o que de todo não se enquadra no perfil dos vinhos que procuram. Por isto, na Herdade da Mingorra, que fica a 15 km a sul de Beja, numa zona muito quente, acabou-se com o Cabernet Sauvignon.

Frederico Rosa Santos sempre teve reticências relativametne ao Cabernet no Alentejo. É demasiado quente para a casta, acredita. Os bagos relativamente pequenos rapidamente transformam-se em passas. Mas reconhece que em bons anos beneficia alguns lotes.

Uma estrela em ascenção é o Petit Verdot que se dá lindamente no Alentejo e agora ocupa 1,9% da plantação. Para Frederico Rosa Santos foi uma agradável surpresa depois de a ter provado durante um estágio em Bordeaux, onde não tem condições para amadurecer bem a parte fenólica, ficando muito dura e difícil. Por cá, a casta apresenta tanino maduro, sensação de boca e corpo, fica muito mais completa e equilibrada. E pode produzir imenso sem diminuir a qualidade. António Maçanita está de acordo e diz que o Petit Verdot funciona como um relógio suíço, sem problemas sanitários, muito no registo de Alicante Bouschet, ou seja, não marca demasiado, não passa por cima do perfil da região.

Os tintos do Alentejo, como se vê, são em si mesmo um mundo. Feito de corpo, maturação, vigor, mas também elegância, finura, frescura. Os estilos abundam, a qualidade também. É bom que assim seja: nenhum apreciador sai insatisfeito.

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2022)

 

Lynch-Bages e Xisto 20 anos de união

xisto união

O justamente famoso Rei dos Leitões, na Mealhada, serviu de palco para um “confronto” amigável de dois grandes vinhos – Château Lynch-Bages de Bordeaux e Xisto da Roquette & Cazes do Douro – onde os vencedores foram todos os presentes neste jantar memorável organizado pelo Club Direct Wine. Texto: Valéria Zeferino   Foto de abertura: Anabela […]

O justamente famoso Rei dos Leitões, na Mealhada, serviu de palco para um “confronto” amigável de dois grandes vinhos – Château Lynch-Bages de Bordeaux e Xisto da Roquette & Cazes do Douro – onde os vencedores foram todos os presentes neste jantar memorável organizado pelo Club Direct Wine.

Texto: Valéria Zeferino   Foto de abertura: Anabela Trindade

Já não é a primeira vez que o Raul Riba D’Ave organiza eventos de grande nível e interesse didáctico destinados aos enófilos, como o “Barca Velha 2011 contra Vega Sicilia 2011” ou “Mini Julgamento de Paris”, onde se comparou numa prova cega 3 vinhos franceses e 3 vinhos da California. O objectivo destes eventos é abrir os horizontes, provando e desfrutando o melhor do que se faz por cá e no mundo.

Esta noite dedicada a duas grandes regiões, Bordeaux e Douro, e onde o único intruso foi o espumante de boas-vindas Sílica Super Reserva, abriu com o vinho branco orgânico Michel Lynch 2021 (90% de Sauvignon Blanc e 10% de Semillon) a acompanhar na perfeição as vieiras com salicórnia e vinagreta de maçã. Com o bacalhau com trufa e cogumelos em manteiga de alho negro alinhou o Roquette & Cazes 2019 com 18 meses em barrica de carvalho francês de 2º e 3º ano.

Mas as duas estrelas da noite, uma bordalesa e outra duriense, eram o Château Lynch Bages e o Xisto, ambos de 2018. Há muito que os une – os seus criadores, a ambição associada, o profissionalismo de quem os faz e, consequentemente, o nível de qualidade mundial. Também são evidentes os factores que diferenciam estes grandes vinhos – a região, as castas, as condições em que são feitos. Pauillac com o seu clima marítimo, solos de argila e areia misturadas com cascalho, onde se procura uma boa drenagem e o Douro Superior com clima mediterrânico continental e solos de xisto, onde a capacidade de retenção ganha importância pela falta de água, não têm mesmo nada em comum.

Raul Riba D’Ave apresentou o Château Lynch Bages que pertence à família Cazes desde o final da 2ª Guerra Mundial. A propriedade faz parte da mundialmente conhecida Classificação de Bordeaux de 1855, elaborada com base nos preços dos vinhos na altura. Os châteaux ficaram arrumados em 5 níveis, de Premières Crus com vinhos mais reputados e caros até Cinquièmes Crus no último nível do ranking. Os Grand Crus Classé correspondem apenas a 2% do vinho produzido em Bordeaux, mas fazem-lhe o nome.

O Château Lynch Bages em 1855 integrou no Cinquièmes Crus. Desde então, a Classificação mantém-se inalterada (com apenas duas modificações). É ponto assente entre profissionais e apreciadores que a hierarquia de antigamente está completamente desajustada do mercado actual e não reflecte a realidade de hoje, na qualidade e no preço.  Assim, existem châteaux no 5º nível que praticam (e o mercado aceita) os preços bem acima do seu patamar e, como é o caso do Lynch Bages ou Pontet Canet, acima de muitos Deuxièmes Crus, porque a sua qualidade e reputação supera largamente a classificação oficial.

O 2018 foi um ano bom em Bordeaux, onde o bom significa um ano quente. O lote é tipicamente bordalês da margem esquerda, com 72% Cabernet Sauvignon, 19% Merlot, 6% Cabernet Franc, 3% Petit Verdot. Depois da habitual longa maceração, estagiou em barricas de carvalho francês (75% novas) durante 18 meses.

O Château Lynch Bages 2018 é concentrado e sólido no aroma, com sugestões de mirtilo, chocolate negro e pimenta preta, deixando transparecer algumas bagas vermelhas e ervas aromáticas. Tanino magistral, corpo monolítico, muito íntegro, com textura em camadas e imensa frescura. No sabor revela nuances de eucalipto, belíssima fruta fresca, café verde um toque savory. Persiste no acompanhamento de prato, elevando-o.

Da amizade e parceria entre a família Roquette, já há muito ligada ao Douro através da Quinta do Crasto, e a família Cazes, proprietária do Château Lynch Bages em Pauillac, nasceu o projecto Roquette & Cazes em 2002. Este ano faz 20 anos. O responsável de enologia do lado português é Manuel Lobo, que também é o enólogo da Quinta do Crasto, e do lado francês, Daniel Llose, o enólogo do Lynch Bages. A ambição de produzir um grande vinho no Douro não perseguiu a ideia de fazer uma réplica de Bordeaux, mas sim, explorar o potencial do Douro Superior.

Manuel Lobo apresentou o Xisto 2018, explicando que só é feito em anos verdadeiramente excepcionais. No Douro há colheitas mais difíceis onde não é possível atingir a qualidade para um vinho de topo.

O lote é típico duriense com Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz – todas vinificadas em separado em cubas troncocónicas para promover a extração mais homogénea em todas as partes da manta quando fazem a délestage. Procuram concentração e complexidade com elegância. O estágio decorreu em barricas de 225 litros do fornecedor do Château Lynch Bages durante 20 meses.

Tudo isto resultou num vinho com aroma profundo de amora madura, eucalipto, esteva, notas terrosas, algum couro e leve cogumelo. Refinado de sabor e corpo possante com polimento magistral, fruta pura e madeira perfeitamente integrada. Com este gabarito todo, não peca por falta de frescura a acompanhar a refeição, termina expressivo e muito longo.

Ambos os vinhos se fizeram grandes aliados ao prato principal de saboroso cordeiro com queijo de cabra e pimentos. Finalizámos com um belíssimo Sauternes de Château Siduiraut 2010, feito também por Daniel Llose, a acompanhar a sobremesa – créme brulée com alperce e merengue.

Dedicada à distribuição de vinhos internacionais e portugueses, com um grande portefolio a contar com referências das regiões mais emblemáticas do Velho e do Novo Mundo, a Direct Wine também atua na área de formação WSET até ao nível 3. Já o Club Direct Wine idealizado por Raul Riba D’Ave reúne os entusiastas do vinho em torno de novas experiências. A diferença de preço entre as duas estrelas da prova reflecte, sobretudo, a notoriedade internacional de cada marca e região: o Château Lynch Bages anda entre €180 e €200€ e o Xisto custa cerca de €80, um valor já bem acima da média dos vinhos de topo em Portugal.

(Artigo publicado na edição de Outubro 2022)

Editorial: Turismo no Douro, ilhas na paisagem

Editorial

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que […]

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que um destino turístico ambicioso deveria ter.

Editorial da edição nº 67 (Novembro 2022)

Não me interpretem mal, adoro o Douro. De tal forma que, apesar de visitar a região, em trabalho, várias vezes por mês, ainda lá regresso nas férias com a família para passar uns dias. Mas a questão é mesmo essa. Dificilmente “aguento” mais do que dois ou três dias a olhar a paisagem, com pouco mais para ver e fazer.

Deixem-me despachar a heresia de uma vez, para ficar o assunto arrumado. As quintas do Douro são hoje, no seu conjunto, a mais impactante oferta enoturística que temos em Portugal. A paisagem vinhateira, classificada Património da Humanidade desde 2001, o rio e seus afluentes são, só por si, motivo mais do que suficiente para que centenas de milhar de turistas ali acorram em cada ano e, cada vez mais, em todas as estações do ano. Muitos destes polos de enoturismo estão no patamar da excelência, pelo cuidado e profissionalismo colocado no espaço e na oferta (provas, visitas guiadas, passeios, etc.), num modelo que, em vários casos, se estende à gastronomia e hotelaria de qualidade. Estas quintas procuram, geralmente, ser autossuficientes em termos de “ementa turística”, para que o visitante não sinta a necessidade de dali sair. E, na verdade, a única justificação turística para sair de uma quinta é ir visitar outra quinta.

Atentemos na seguinte situação. Cheguei a uma propriedade esplendorosa, com uma oferta enoturística de primeira linha. Fiz as provas acompanhado por guias competentes, passeei pelas vinhas, visitei a adega, comprei na loja, já dormi a sesta no quarto do hotel. Ao fim da tarde, sento-me numa espreguiçadeira, frente ao rio, com um livro na mão e descanso os olhos no monte que se avista na outra margem enquanto aguardo pelo jantar. Lindo. No segundo dia, repito o programa, com algumas variantes: subo até ao ponto mais alto da vinha, onde ainda não tinha estado, faço uma outra prova, mas agora com Porto e, antes do jantar, sento-me novamente na espreguiçadeira com o livro, o rio e o monte em frente. Ao terceiro dia, para mim, chega. Quero ir petiscar fora, usufruir de uma bonita esplanada ou jardim, conversar com os locais, passear por ruas pitorescas, comprar pão e queijos, visitar um museu, um castelo, um atelier de artesanato, jantar num bom restaurante com comida local e regressar à quinta/hotel sem sobressaltos. O problema: tudo o que acabei de elencar, e que qualquer enoturista tem como garantido a cada passo na Toscana, no Loire, em Rioja… ou no Alentejo, é coisa muito, muito rara no Douro.

As quintas têm reforçado a oferta gastronómica e actividades “intramuros”, é o seu papel, mas ao mesmo tempo tornam-se cada vez mais “ilhas”, sem contacto com o exterior. Podiam (e deviam) desenvolver o trabalho em rede, para que o turista possa saltar de quinta em quinta, diversificando caras, comida, paisagem. Mas não podem inventar esplanadas, jardins, ruas pitorescas, museus, vida urbana.

Os números contrariam, evidentemente, esta visão pessimista. Nunca o Douro teve tanto turista a circular, por terra ou por água (os primeiros ainda deixam o dinheiro na região, os segundos nem isso, fica tudo nas ilhas flutuantes). Mas é preciso olhar além, a médio e longo prazo. A extraordinária paisagem vinhateira e a qualidade dos vinhos e das quintas não serão suficientes para garantir o futuro do turismo duriense se não houver autenticidade local a envolver tudo. Para que a galinha dos ovos de ouro não acabe por definhar um dia, seria bom que produtores e autarquias reconhecessem e identificassem as carências e trabalhassem em conjunto para as resolver.

 

Entrevista: Diogo Lopes, o enólogo de quem se fala

Diogo Lopes

Aos 44 anos de idade, Diogo Lopes é hoje um dos nomes mais falados e unanimemente apreciados da “moderna” enologia portuguesa, emprestando o seu talento a sete distintos projectos vitivinícolas e com mais alguns em carteira. Para comemorar a sua 20ª vindima (na verdade, são 21, contando com a actual), encontrámo-nos à mesa para conversar […]

Aos 44 anos de idade, Diogo Lopes é hoje um dos nomes mais falados e unanimemente apreciados da “moderna” enologia portuguesa, emprestando o seu talento a sete distintos projectos vitivinícolas e com mais alguns em carteira. Para comemorar a sua 20ª vindima (na verdade, são 21, contando com a actual), encontrámo-nos à mesa para conversar e abrir algumas garrafas que espelham o seu trabalho e a sua visão do mundo do vinho.

Texto e Notas de Prova: Luís Lopes      Fotos: D.R.

Lisboeta de nascimento (1978), foi o entanto o campo e não a urbe que o motivou para escolher a profissão. Entre 1999 e 2004 estudou Engenharia Agronómica no Instituto Superior de Agronomia com especialização em Viticultura e Enologia. E foi enquanto estudante que visitou o primeiro Encontro com o Vinho, então ainda realizado em Santa Apolónia, com o fito de conhecer “as pessoas do vinho” e em particular os que mais admirava, João Portugal Ramos e Anselmo Mendes. Com este último, acabaria depois por estabelecer uma estreita relação pessoal e profissional que se estende intocada até aos dias de hoje. Quando Diogo Lopes menciona o “Mestre” (assim, com maiúsculas), já toda a gente sabe a quem se refere. A primeira vindima como estagiário ocorreu em 2001, da adega dos Vinhos Borges, na Lixa. Nunca mais falhou uma: 2002 com Anselmo Mendes, em Monção; 2003 em Napa Valley, na Califórnia; 2004 na Quinta de Lourosa (propriedade do seu orientador final de curso, professor Rogério de Castro). No âmbito, precisamente, desse trabalho final de curso, passou o ano de 2004 entre a Bairrada e os Vinhos Verdes integrado no projecto Lusocastas, que visava estudar os diferentes sistemas de condução para as principais castas portuguesas nessas regiões. Rogério de Castro e Amândio Cruz foram os seus coordenadores e cimentou-se aí uma paixão pela terra, pela videira, que se desenvolveu nos anos seguinte e que marca claramente o seu trabalho enquanto enólogo. Na vertente enológica, os conhecimentos foram aprofundados com uma pós-graduação em Enologia na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica no Porto.

O percurso enquanto profissional “à séria” (ou seja, enólogo residente) iniciou-se em 2005, em Cabeção, na Sociedade Agrícola do Vale de Joana, onde Anselmo Mendes era consultor. Ficou em Cabeção até 2010, começando aí um percurso de consultorias em parceria com “o Mestre” que o levaram ao Couteiro-Mor e, mais tarde, à Adega Mãe, ainda hoje, porventura, o projecto que mais visibilidade lhe trouxe e continua a trazer. Vieram outros, entretanto, alguns de onde já se desligou (Morais Rocha, na Vidigueira e Herdade de Vale D’Évora, em Mértola) e outros onde se mantém em plena actividade e com máximo empenho: Vinhos Magma (na Terceira, Açores, com Anselmo Mendes), Cazas Novas (em Baião, na maior vinha de Avesso – 36 ha – onde trabalha em parceria empresarial com a família proprietária, Cunha Coutinho, e dois outros sócios), Herdade Grande, na Vidigueira, Kranemann Wine Estates, no Vale do Távora, Douro e Herdade do Freixo, Redondo.

Já muito com que se entreter, mas Diogo Lopes não vai ficar por aqui. O enólogo admite ter “em construção” três novos projectos: um, em Melides, “8 ha de uma vinha de sequeiro muito especial”; outro em Alvito, “20 ha de vinha numa das mais históricas propriedades do Alentejo”; e um outro na Beira Interior, “com o meu primo, no projecto Vale do Griz, 6 ha apenas com castas regionais”.

Mas quem é, na verdade, Diogo Lopes? Quais as suas referências, o que o motiva, que vinhos ainda quer fazer? Foi o que fiquei a saber após algumas horas de conversa e mais de uma dúzia de vinhos provados (e, em boa parte, bebidos…). Segue a entrevista.

O que o fez encarar a vinha e vinho como carreira profissional? 

Nasci em Lisboa mas tive uma infância com uma base rural muito forte. Na verdade, férias para mim era ir ter com os meus avós à Beira e participar nas diversas actividades agrícolas. Eles eram agricultores, faziam um pouco de tudo, mas a vinha e o vinho eram o orgulho máximo do meu avô. Eu penso que a motivação deve ter vindo daí. Estudei no Colégio Militar, ainda fui para a Academia Naval para seguir o curso de oficial de Marinha, mas após um ano, a paixão pela Agronomia era muito maior. E então resolvi ingressar no ISA. Dentro do curso, foi só após ter travado conhecimento com o professor Rogério de Castro que a decisão de apontar baterias para a Viticultura e Enologia foi tomada. Foi ele quem me conduziu à conversa com o Anselmo Mendes para fazer o primeiro estágio de enologia em 2001. E a partir daí tudo se desencadeou.

Os primeiros anos na profissão, muitas vezes, definem o modo de estar de um profissional.  Onde mais aprendeu, o que o surpreendeu, que influências teve? 

O curso de Agronomia é fundamentalmente teórico. Os meus primeiros anos a “meter a mão na massa” serviram muito e foram fundamentais para ter contacto com os aspectos práticos do trabalho como enólogo. Na verdade, um enólogo faz muito mais coisas do que só a enologia pura… Há os aspectos burocráticos com as CVR, as encomendas de materiais para engarrafar, a própria manutenção dos equipamentos, gestão do pessoal. Nos primeiros anos creio que todas as semanas aconteciam coisas que eu nunca tinha feito. Desafios pequenos, mas onde é preciso encontrar soluções práticas e rápidas.

E agora entro na parte das influências. Tenho tido a sorte de me cruzar com muita gente e “beber” muitos ensinamentos, mas tenho de relevar um nome: Anselmo Mendes. O Anselmo Mendes sempre me ajudou a criar e a ter um método que seja desbloqueador e descomplicador de situações. Isso foi uma enorme ajuda. Mas o Mestre significou muito mais do que uma primeira oportunidade. Significou testemunhar os processos de experimentação que levava, em particular, em torno do Alvarinho. De um momento para o outro dei por mim a fazer estudos de fermentação em carvalho de diferentes florestas, com diferentes tostas, à procura das expressões mais genuínas das castas. E essa ideia da experimentação e da procura do que é mais genuíno ficou para sempre; acho que define muito do que continua a ser o meu trabalho. Agora dou por mim a fazer testes e mais testes e a descobrir o potencial do Avesso, ou do incrível Viosinho de Lisboa; o Vital em madeira e no ovo de cimento; os Pinot atlânticos; o Sousão e os Potes de Barro da Vidigueira, o carácter vulcânico dos Biscoitos.

Seja porque os anos e o clima mudam, seja porque a viticultura evoluiu, seja porque temos um património brutal de castas por potenciar em Portugal, a nossa atividade de enologia é dinâmica e uma descoberta permanente. E a minha descoberta começou com o Mestre! E depois achamos que fazemos um grande vinho, metemo-nos no avião, vamos à Borgonha e a Sancerre, ou vamos à Rioja, à África do Sul, ou mesmo ao novo mundo, Oregon, Napa, Mendoza… e somos surrados por novas influências, novas inspirações, que nos motivam sempre uma experiência… As viagens “vínicas” servem para apreender imenso.

 

Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores são as regiões onde Diogo Lopes espraia o seu talento.

 

Iniciou a carreira na vindima de 2001, um ano de boas memórias. O que mais o marcou nessa vindima? 

Foi uma experiência incrível na Borges. Até ali, as minhas vindimas eram as feitas na Beira, nos lagares do meu avô. Na Borges tudo era enorme. Tudo muito mais mecânico e muito mais prático. Lembro-me que logo no meu primeiro dia, trabalhámos mais de 12 horas e adorei. O cheiro da fermentação do Loureiro é algo que nunca mais irei esquecer…

Ao longo de quase 21 vindimas feitas (contando com esta que vai a meio) quais as que lembra pela positiva e pela negativa e porquê? 

2002 pela negativa. Aquilo foi chuva sem parar durante todo o setembro. 2014 também foi muito complicado, estava tudo no ponto mas depois começou a chover e estragou muita coisa. Pela positiva, 2012 e 2017. Anos perfeitos em equilíbrio. Nestes anos só é preciso não estragar, mesmo. Isso sim, é intervenção mínima!

Trabalha hoje em diversos produtores e distintas regiões (Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores) cada uma com suas características. Do ponto de vista de enólogo, o que destaca em cada região e quais os principais desafios/dificuldades? 

É super-desafiante trabalhar em regiões tão diferentes. Cada uma tem o seu lado especial e temos de nos adaptar para sabermos tirar o melhor. Na região de Lisboa, a influência do Atlântico é talvez a característica mais diferenciadora e temos de saber aproveitá-la de modo a ter vinhos carregados de autenticidade. O maior desafio é a mentalidade dos viticultores locais que, por vezes, ainda estão muito vocacionados para produzirem volume em detrimento da qualidade. Mas essa mentalidade vai mudando aos poucos. Lisboa é, quanto a mim, a região do continente mais genuinamente atlântica e isso espelha-se na originalidade e qualidade dos seus vinhos, em particular nos brancos. Acredito que a região tem tudo para vir a afirmar-se a nível nacional (na exportação já é um sucesso, mas sobretudo com vinhos de entrada de gama) e para contribuir de forma muito consistente para a afirmação dos vinhos brancos portugueses no mundo. Assim consigamos confirmar todo o potencial existente e alavancar essa grande marca que é o próprio nome Lisboa.

No Douro, destaco a magia das vinhas velhas. As vinhas velhas são um legado que nos foi deixado pelos nossos antepassados e temos de o saber interpretar. A maior dificuldade na região, é a escassez de mão de obra. Todos os anos vejo o rancho das pessoas que vindimam connosco e vejo-o a envelhecer, não há renovação e isso é muito, muito preocupante. Trabalhar num Douro de altitude e virado a Norte (como é o caso da Kranemann) também é desafiante, temos sempre de gastar mais tempo a explicar os vinhos. São, na verdade, vinhos de um outro Douro…

O que gosto mais no Alentejo? A resposta pode chocar alguns, mas aí vai: a maturação das uvas. Contrariamente ao que se podia pensar, considero que o Alentejo tem um clima perfeito para o amadurecimento das uvas. Ficamos com vinhos com uma belíssima estrutura tânica e muito fáceis de beber. Uma das grandes ameaças, no entanto, é o aquecimento global, os fenómenos extremos são cada vez mais constantes e impactam directamente na qualidade final das uvas. A falta de água é outro desafio constante.

Na ilha Terceira e na região de Biscoitos, temos a originalidade dos vinhos vulcânicos. São vinhos verdadeiramente diferentes, com notas únicas e que nos transportam para a ilha. São os Açores em estado puro e sem qualquer tipo de máscara. Ali, a maior dificuldade tem sido a luta contra a pressão imobiliária, que nos Biscoitos é constante e tem levado a um grande abandono da vinha.  A par de Carcavelos, os Biscoitos são, certamente, a DO mais ameaçada do país.

Finalmente, na região dos Vinho Verde, a revelação está no Avesso. Mais uma casta branca portuguesa de enorme potencial, que se tem mostrado sempre muito interessante nos diferentes processos de vinificação, com e sem madeira. E que expressa uma zona muito específica, Baião, que carece também de ser valorizada. A grande dificuldade está em explicar que este é um Vinho Verde diferente, longe do “gás e açúcar” com que muitos o identificam. Mudar essa percepção nem sempre é fácil.

Com tantos projectos, regiões, vinhos são muitas as variedades de uva que lhe passam pelas mãos. Quais as que mais gosta e porquê? 

Nas brancas, o Arinto e o Viosinho. Na verdade, quase que destacava todas as castas brancas, pois é a minha convicção que temos o maior património de castas brancas do mundo, todas carregadas de originalidade.  Mas adoro a versatilidade do Arinto, é uma casta que dá para fazer quase tudo e para melhorar quase tudo. Facilita imenso o meu trabalho.

O Viosinho é talvez a variedade branca com que mais trabalho e a uva que mais expressão tem ganho nos meus projectos. Quando vindimada no ponto óptimo, enriquece muito os vinhos, com estrutura e mineralidade.

Nas tintas, a Touriga Franca, do Douro ao Alentejo, entra sempre nos lotes dos melhores tintos que faço. É uma casta desafiante e que pode originar vinhos emblemáticos. Tenho de destacar também o Sousão, a casta que mais me surpreendeu nos últimos anos, com vinhos verdadeiramente originais.

Um enólogo consultor relaciona-se com vários produtores, com diferentes dimensões, objectivos, posicionamentos de mercado e, até, personalidades, pois as empresas são, sempre, as pessoas que as compõem. Como é lidar com tudo isto no dia a dia?  

Creio que se construiu uma certa imagem do enólogo enquanto estrela do sector, uma espécie de tipo que vive apenas a parte mais glamourosa do trabalho, que não dá cavaco a ninguém, mas a realidade é outra: a nossa responsabilidade tem de ser transversal. Temos de ter a humildade de nos saber integrar nos desafios da gestão, da viticultura, da produção e das vendas, porque sem sustentabilidade no negócio não existe futuro. A competência do enólogo também se manifesta na capacidade de entender os projectos que abraça e as pessoas com que se relaciona. Superamos desafios todos os dias, partilhamos opiniões diferentes muitas vezes, mas é possível alinharmos as ideias e concretizar objetivos que realizem todas as partes. Eu tenho um certo privilégio que é poder trabalhar em equipas que funcionam muito bem. E aqui tenho de ressalvar um ponto: equipas de dezenas de pessoas (desde os que andam de enxada nas vinhas, ou de mala de viagem cheia de vinhos, perdidos em aeroportos) que estão nos bastidores, mas que são cruciais. E nós, enólogos, somos apenas mais um elemento na máquina.

Enquanto enólogo tem um estilo, um perfil de vinho que é o “seu”? E procura que esse perfil seja evidente nos vinhos que trabalha ou tem em linha de conta o terroir, o objectivo comercial (e até o gosto pessoal) do seu cliente produtor? 

Eu tento sempre que os vinhos sejam uma expressão do local de onde vêm. Acho fundamental que o enólogo tente respeitar o terroir; quando trabalhamos com diversos produtores a última coisa que quero é que se diga que os vinhos são todos iguais. Mas também admito que possa haver pontos comuns, pois enquanto técnico privilégio sempre a acidez natural e o equilibro dos vinhos e tento tomar decisões que vão ao encontro disso mesmo. E naturalmente, as decisões são sempre coordenadas com os produtores com que trabalho, pois os vinhos têm de corresponder às expectativas que eles têm.

Que vinho (tipo/categoria/região) ainda não fez e gostaria de fazer? 

Gostava muito de fazer um vinho em Colares, em chão de areia. São vinhos sempre inebriantes, salgados, com máxima expressão Atlântica. Espero um dia conseguir fazer um.

Mais tarde ou mais cedo, boa parte dos consultores acabam por tornar-se também produtores, em maior ou menor escala. A produção faz parte do seu plano? 

Sempre tive o sonho de fazer um vinho na Beira Interior, na terra dos meus avós. Foi aí que tudo começou para mim e um dia destes haverei de lá chegar. A propriedade já existe e a realização desse sonho está para mais breve do que já esteve…

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2022)

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12 Tintos para o São Martinho

tintos são martinho

Abertos na cor, cheios de fruta, leves no corpo e no álcool, macios mas com óptima frescura, assim são os tintos para o magusto do São Martinho. Perfeitos com as castanhas, claro, mas sem recusar uma boa chouriça ou morcela assadas. Aqui fica uma dúzia de sugestões:

Abertos na cor, cheios de fruta, leves no corpo e no álcool, macios mas com óptima frescura, assim são os tintos para o magusto do São Martinho.

Perfeitos com as castanhas, claro, mas sem recusar uma boa chouriça ou morcela assadas. Aqui fica uma dúzia de sugestões:

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19|90 Premium Wines: Santar volta ao mapa

A 19|90 Premium Wines, divisão de vinhos topo de gama da Global Wines, assina agora o mais recente projecto de enoturismo do grupo, no Dão: WineX, um conjunto de experiências que promete fazer de Santar a nova coqueluche da região.  Texto: Mariana Lopes  Fotos:1990 Premium Wines  Quem conhece a vila e a zona de Santar, […]

A 19|90 Premium Wines, divisão de vinhos topo de gama da Global Wines, assina agora o mais recente projecto de enoturismo do grupo, no Dão: WineX, um conjunto de experiências que promete fazer de Santar a nova coqueluche da região.

 Texto: Mariana Lopes  Fotos:1990 Premium Wines

 Quem conhece a vila e a zona de Santar, até se pergunta “como é que isto não está cheio de gente?”. A resposta é simples: por muito bonita que seja a paisagem, natural e urbana, se não houver actividades interessantes e chamativas, as pessoas não chegam a saber que o sítio existe. Foi com consciência disto mesmo que a 19|90 Premium Wines — divisão de vinhos topo de gama da Global Wines, que integra as marcas Vinha do Contador e Casa de Santar (Dão), Encontro (Bairrada) e Saturno (Alentejo) — decidiu agir. Com direcção-geral de Vítor Castanheira, também administrador da Global Wines, a 19|90 contratou, recentemente, Marisol Benites para o cargo de directora da unidade de negócio e responsável de enoturismo. Contratação de peso, Marisol tem no currículo passagens por casas como o grupo Vranken-Pommery Monopole (que detém a Rozès), Symington Family Estates ou Sandeman (antes desta ser adquirida pela Sogrape), onde geriu marcas e integrou equipas de enoturismo. Sob a sua coordenação, a 19|90 Premium Wines começou a desenvolver um novo projecto de enoturismo, sério e profissionalizado, mas sobretudo adaptado ao perfil de enoturista que consome vinhos e experiências segmento premium, condizentes com o potencial de Santar. “Autenticidade com patine e requinte”, resume assim Marisol Benites as WineX (Wine Experiences), que são uma das fases de investimento da 19|90 no enoturismo, (a par da construção de um “wine center”) e nas instalações de vinificação e estágio, que serão reabilitadas gradualmente.

wines santar mapaGirando em torno das adegas e vinhas da Casa de Santar (são cerca de 113 hectares, de um total de 200 no Dão), e das vinhas e do restaurante do Paço dos Cunhas — antiga casa senhorial com quatro séculos — as WineX dividem-se pelos níveis Standard, Prestige, Gold e Platinum, e não incluem apenas as habituais provas de vinho e espumantes (da enologia de Osvaldo Amado) e visitas às adegas. Essas também há, a começar nos 20 euros por pessoa, mas as estrelas são, por exemplo, o programa Santar Gold (€90 pax), com visita guiada aos jardins do Paço dos Cunhas e à emblemática Vinha do Contador, passeio de jipe pelas vinhas da Casa de Santar e até ao alto da Vinha dos Amores, um local tão romântico quanto o nome sugere, e prova de vários vinhos Casa de Santar harmonizados com tábua beirã; o Pic-Nic Beirão (€55 pax), actividade intimista com iguarias do chef Henrique Ferreira (responsável pelo restaurante Paço dos Cunhas) que também inclui visita guiada ao Paço e passeio de jipe ao redor da Casa de Santar; ou o Almoço Beirão no Sobreiro (€120 pax, mínimo de 10), uma luxuosa, mas autêntica, refeição de 5 horas à sombra do centenário sobreiro que faz companhia às vinhas do produtor, preparada pelo chef Henrique, com o seu sub-chef Alberto Correia, que explica que este almoço é inspirado “no que se trazia para comer no trabalho da vinha, e feito com produtos locais, de fornecedores próximos”. Para servir os vinhos da 19|90 Premium Wines, entra em cena André João, sommelier e chefe de sala do restaurante Paço dos Cunhas. Igualmente, esta experiência inclui a visita e passeio de jipe, que culmina na chegada ao sobreiro.

wines santar mapaAdicionalmente, o restaurante do Paço dos Cunhas de Santar inaugurou a carta de Verão que, além das opções à carta — onde constam reinvenções das estivais Sardinhas Assadas com Pimentos, dos Peixinhos da Horta e da Bifana no Pão; ou pratos de peixe como Massa Fresca de Lingueirão à Bolhão Pato, Arroz Caldoso de Polvo e Caldeirada de Peixes; e os de carne Frango do Campo de Fricassé, Barriga de Porco com Beterraba e Couve ou Bife de Cebolada — apresenta três menus de degustação: “Origens” (€27,50 pax ou €36,50 com harmonização de vinhos), “Santar” (€35 ou €50) e o menu “Do Chef” (€57,50 ou €82,50).

“Nesta área do enoturismo, o nosso objectivo foi criar experiências que permitissem avaliar o vinho no seu contexto original, perceber as suas diferenças, a sua história e a sua personalidade, associando-o à gastronomia, ao património, à cultura e à riqueza da região. Queremos que os nossos clientes conheçam bem os nossos vinhos, associando-os a experiências inesquecíveis”, esclarece Vítor Castanheira. Também a Quinta do Encontro, na Bairrada, e a Herdade Monte da Cal, no Alentejo, foram, e serão, alvo de investimento nesta área.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2022)

 

Sugestão: Os brancos de Outono e Inverno

brancos outono inverno

Mais ricos, cremosos, texturados, encorpados, concentrados. Mais ambiciosos também. Em pé de igualdade com os tintos pela capacidade de alinhar com pratos mais gordos e elaborados e de despoletar experiências sensoriais mais intensas, são assim os brancos de Outono/Inverno. Aqui deixamos 13 sugestões de primeira linha, vinhos com profundidade e longevidade, para os meses mais […]

Mais ricos, cremosos, texturados, encorpados, concentrados. Mais ambiciosos também. Em pé de igualdade com os tintos pela capacidade de alinhar com pratos mais gordos e elaborados e de despoletar experiências sensoriais mais intensas, são assim os brancos de Outono/Inverno. Aqui deixamos 13 sugestões de primeira linha, vinhos com profundidade e longevidade, para os meses mais frios que virão.

 Texto: Valéria Zeferino  Notas de Prova: Painel de Prova GE     Fotos: D.R.

 

Em Portugal produzem-se mais tintos do que brancos, a única excepção é a região dos Vinhos Verdes. No mundo, em geral, é assim. E a sazonalidade é forte: nos brancos pensa-se mais no verão, à beira da piscina ou ao almoço leve na praia. No outono e inverno preferem-se os tintos, esquecendo-se que temos excelentes brancos para acompanhar estas estações do ano.

Antigamente, em Portugal dizia-se que “o vinho é tinto; e também há branco”, conta o incontornável produtor bairradino Luís Pato. Hoje ainda é parcialmente assim, mas muito menos. Mario Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, lembra-se que quando era menino, as pessoas diziam “bebo branco quando não há tinto” e que às vezes para vender 10 caixas de tinto, o distribuidor era “obrigado” a levar 10 caixas de branco.

As técnicas de produção de brancos também eram “muito agressivas” – partilha Manuel Vieira, responsável de enologia durante muitos anos na Quinta dos Carvalhais e agora na Caminhos Cruzados. Os cachos e as massas vínicas sujeitavam-se à acção mecânica violenta, os equipamentos usados na altura eram fonte de oxidações, as temperaturas não se controlavam… enfim… muitas vezes os vinhos não aguentavam mais de um ano em garrafa (com honrosas excepções de alguns brancos antigos que chegam aos nossos dias em perfeita saúde).

brancos outono inverno
Anselmo Mendes levou a uva Alvarinho e o terroir de Monção e Melgaço até ao topo.

No final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado a tecnologia começou a entrar nas adegas com o controlo de temperatura e cuidados no sentido de proteger o vinho contra as oxidações. Proliferação de cubas de inox e aposta na fruta primária conduziram a vinhos mais limpos aromaticamente, mas bem acabados. O nível geral de qualidade dos brancos subiu e tornou-se um padrão.

Quando Mario Sérgio lançou o seu primeiro Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, um branco mais compenetrado do que extrovertido, fermentado em tonel antigo e preparado para anos de guarda e vocacionado, foi contra a corrente. Já o Guru, da Wine & Soul, nasceu em 2004 com a ideia da Sandra Tavares e Jorge Borges de fazer um grande branco do Douro com potencial de guarda, pois na altura havia poucos.

Hoje, os produtores têm à sua disposição um vasto leque de técnicas para fazer vinhos brancos adequadas a qualquer ocasião. Com mais ou menos intervenção, fermentações expontâneas ou controladas, diferentes abordagens técnico-filosóficas, com qualidade altíssima e por vezes surpreendente, não nos podemos queixar.

Como um branco Outono/Inverno é um oposto de “leve e crocante”, procura-se criar condições para o vinho ter solidez, estrutura, textura e potencial de guarda. A intensidade dos aromas primários não é o principal objectivo, a palavra-chave é complexidade. Normalmente, recorre-se ao estágio em madeira de diferentes tipos e capacidades, tosta e tempo de uso, para dar as nuances que o produtor deseja e que a matéria prima permite. Não existe uma “receita”. A escolha das barricas depende da sensibilidade de cada enólogo e da matriz do vinho em função da casta, terroir e até o ano de produção. E esta sensibilidade e preferências podem mudar ao longo do tempo, alterando o perfil do vinho.

Fermentação e estágio em madeira

 O contacto com madeira molda o vinho de certa forma, promovendo a microoxigenação contínua (estabiliza e amacia o vinho) e modificando os seus aromas com os compostos vindos da tosta da madeira (baunilha, canela, cravinho entre outros) de maneira que a fruta deixa de ser óbvia e o vinho ganha complexidade olfactiva. Quanto maior for a capacidade do vasilhame, menos marca deixa; e quanto menor for o grau da tosta, menos aromas transfere para o vinho. A barrica nova permite mais troca gasosa por ter os poros limpos, mas também deixa a sua marca mais evidente no vinho.

Se a madeira for em excesso, pode arruinar o vinho, sobrepondo-se às suas virtudes e deixando uma sensação de secura e amargor dos taninos elágicos da madeira. Aplicada ajuizadamente, beneficia e confere complexidade.

“Bom trabalho de barrica”, “barrica bem integrada” ou “barrica de luxo” são expressões frequentes nos comentários dos enófilos e notas de prova dos vinhos. “Amadeirado”, “madeira em excesso”, “marcado pela madeira” são os epítetos do lado oposto da escala.

Sandra Tavares, enóloga e produtora da Wine & Soul, conta que na primeira edição do Guru de 2004 foram utilizadas apenas barricas novas. Em 2016 a percentagem da barrica nova baixou quase para metade e o 2019 tem apenas 9% de barrica nova de 500 litros, tosta média-leve. A origem da barrica também ganhou outra importância. Agora começam a usar fudres de maior capacidade.

António Maçanita, o enólogo e produtor da Fita Preta, para o seu Chão dos Eremitas escolhe barricas de, pelo menos, terceiro uso, pois pretende-se a acção mais delicada do estágio em madeira sem ser muito óbvia. E também apenas 40% estagia em barrica, o resto fica em inox.

Se o Quinta das Bágeiras Garrafeira estagia em tonéis antigos de madeira de 2500 litros, ao Pai Abel o produtor queria dar um pouco mais de estrutura e de volume através do estágio em barricas muito usadas da Borgonha, com bâtonnage.

Já o Parcela Única de Anselmo Mendes estagia em madeira nova, mas a barrica é escolhida a dedo em função da proveniência (da floresta de Bertranges perto de Sancerre) e feita à medida, com uma tosta ainda mais leve do que é usada para os Grand Grus da Borgonha.

Ao falar da madeira, pensamos normalmente em carvalho, mas não é a única opção possível. Luís Pato, por exemplo, para o seu Vinha Formal prefere o castanho que na sua opinião não marca os brancos com baunilha. E argumenta que a madeira de castanho é mais porosa do que o carvalho, permitindo maior contacto com oxigénio durante o estágio pelo que o vinho fica mais resistente a oxidação a longo prazo; para além de ser tradicional na região e mais barato.

brancos outono inverno
Nas vinhas velhas do Chão dos Eremitas, António Maçanita descobre verdadeiros tesouros.

Normalmente o contacto com a barrica começa na fermentação, o que permite que a madeira a integre melhor. Entretanto, Manuel Vieira prefere arrancar a fermentação em inox para ter mais controlo sobre a temperatura (16˚C no início) e aos 1050 de densidade transfere o mosto para a barrica, onde acaba a fermentação e depois fica a estagiar.

Já agora, a temperatura de fermentação destes vinhos mais ambiciosos nunca é muito baixa (12-13˚C) para não evocar aromas de bananas e fruta tropical, que podem ser bem vindos nos brancos frescos de Verão, mas não transparecem nem a casta, nem o terroir. Normalmente, a temperatura de fermentação ronda os 18˚C, mais coisa menos coisa.

Outra variável importante é o tempo que o vinho permanece na barrica. Nem sempre o estágio mais prolongado resulta em vinhos excessivamente amadeirados. O Teixuga é um grande exemplo: passa 19 meses na barrica e não fica marcado pela madeira. Manuel Vieira explica que há sempre um momento durante o estágio, um pico, quando o vinho fica dominado pela madeira. Muitos neste momento tiram o vinho da barrica para o “salvar”, mas na realidade, se o vinho permanecer na barrica mais tempo, acaba tudo por integrar, afirma.

Borras e curtimentas

As borras representam a fração sólida no meio (mosto) acumulada durante a fermentação alcoólica. Numa primeira trasfega as borras mais espessas, normalmente, são removidas, deixando em suspensão os compostos mais pequenos, chamados de borras finas. São maioritariamente compostos pelas células das leveduras mortas.

Quando o vinho estagia sobre borras, a parede celular das leveduras é destruída, libertando polissacáridos, manoproteinas e outros compostos para o meio, que não só protegem o vinho contra as oxidações durante o estágio, mas também melhoram as suas características organolépticas (textura, volume, cremosidade e aromas) e faz com que a acção da madeira seja menos intrusiva no vinho.

A agitação das borras com um bastão – bâtonnage – mantêm-nas em suspensão e homogeniza a sua acção, intensificando os efeitos mencionados. Geralmente, as borras são levantadas com maior frequência no início do estágio, abrandando ou até mesmo cessando mais tarde.

O Alvarinho no Parcela Única estágia com borras totais. Desta forma Anselmo Mendes providencia uma maior quantidade de biomassa para garantir a melhor protecção do vinho da acção da madeira nova. “Juntar potência com elegância” – diz o mestre. Em sua opinião, isto não funciona com castas como o Chardonnay ou o Sauvignon Blanc, porque reduzem bastante nestas condições, mas o Alvarinho aguenta-se bem. A frequência da bâtonnage é feita com grande precisão em função do consumo de oxigénio no vinho durante o estágio.

Já António Maçanita não fez bâtonnage no Chão dos Eremitas, mas prefere manter as cubas, onde estagia 60% do vinho, na horizontal para, desta forma aumentar a distribuição das borras.

Para além do estágio em madeira existem outras formas de realçar as características sensoriais do vinho. A curtimenta é uma delas e agora esta técnica está na moda. Mas Paulo Nunes conta que até aos anos 80 do século passado, na Casa da Passarella os brancos habitualmente faziam-se como os tintos – fermentavam-se com películas. E na altura não se chamavam “orange wine”…

No Casa da Passarella O Fugitivo Curtimenta as uvas não são desengaçadas, pois Paulo Nunes vê o benefício na transferência de algum tanino na percepção organoléptica, procurando mais sensação táctil, de “textura e até algum amargo para contrastar com vinhos muito limados”.

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Na Quinta das Bágeiras, o Pai Abel fermenta em barricas muito usadas vindas da Borgonha.

Castas e regiões

 A região de origem, na realidade, não é grande indicadora do estilo do vinho – em todas as regiões de Portugal podemos encontrar vinhos brancos estruturados e sérios. E a casta nem sempre define inequivocamente perfil. Um Chardonnay da California com estágio em barrica nova, amanteigado e untuoso, não tem nada a ver com um Chablis, feito da mesma casta. No nosso caso, Arinto ou Alvarinho vinificados em inox serão mais leves e crocantes do que os seus homólogos que passaram uma boa parte da sua vida em barrica, por exemplo.

Felizmente, temos muito por onde escolher em termos da região e das castas. No Dão, Encruzado presta-se particularmente bem para vinhos com dimensão. Manuel Vieira trabalha com esta casta já há mais de 30 anos. Quando entrou na Quinta dos Carvalhais em 1990, resolveu fazer um branco “à borgonhesa”, com fermentação em barricas de carvalho e estágio sobre borras. Fez uns ensaios de vinificação com cinco castas do Dão em separado, e foi o Encruzado que se mostrou melhor por não se deixar “comer” pela madeira.  Os grandes brancos da Bairrada são, geralmente, feitos do Bical, Maria Gomes e Cercial em várias combinações. No Douro, um típico blend inclui Viosinho, Gouveio, Rabigato, Códega e outras castas em proporções diferentes.

No Alentejo, Antão Vaz e Arinto, por regra, funcionam bem em conjunto. O Alvarinho também já marca a sua presença nesta região. Nós escolhemos aqui uma casta diferente, pouco conhecida, de propósito para mostrar que qualquer variedade pode brilhar se for bem trabalhada. Alicante Branco (aka Boal de Alicante ou Boal Cachudo), foi uma variedade importante no Alentejo antes da filoxera. António Maçanita teve o contacto com esta casta quando começou a explorar uma parcela plantada em 1970 com várias castas (um field blend organizado) sem rega. Como muitas outras variedades do Sul, tem acidez baixa e um perfil aromático neutro o que despertou o interesse do produtor para uma experiência, adaptando o processo de vinificação à casta.

Na região de Lisboa, obviamente, brilha o Arinto e ultimamente, a casta Fernão Pires, oriunda do Tejo, tem surpreendido bastante na região vizinha. Na região dos Vinhos Verdes, o Alvarinho e o Loureiro com estágio em barrica, são os principais protagonistas para a nossa selecção de brancos para acompanhar as almoçaradas e os serões outonais.

Selecionar sempre

A idade das vinhas e as particularidades da parcela podem influenciar as características da matéria-prima e proporcionar vinhos diferenciados. Como a concentração é bem-vinda nestes vinhos, muitas vezes preferem-se as uvas das vinhas velhas, onde a produção é reduzida naturalmente pela idade das videiras. É o caso do Guru, proveniente de uma vinha com 70-80 anos em Porrais, na zona de transição de xisto para o granito e com muito quartzo. Sandra Tavares considera que o xisto dá estrutura e tensão, enquanto o granito e o quartzo – pureza e final de boca mais fino.

Entretanto, para fazer o Pai Abel branco, Mário Sérgio optou pela vinha nova (que agora tem cerca de 30 anos), mas reduzindo drasticamente a produção – fazendo a primeira colheita mais cedo para espumante.

A precisão na escolha da matéria-prima não se limita pela idade das vinhas, o terroir também entra em jogo. Luís Pato escolheu o Bical da Vinha Formal, que comprou em 1998, plantada em solo argilo-calcário na encosta de Óis do Bairro. As uvas desta zona sempre davam vinho de melhor qualidade, destinado à exportação, chamado no século XIX “Vinho de Embarque”.

O Parcela Única de Anselmo Mendes é autoexplicativo, vem de uma parcela de 4,5 ha da Quinta da Torre, que dava sempre vinho vibrante, que não cheirava muito e tinha uma óptima acidez. Nesta zona o solo é de textura mediana composta por argila, limo, pedra e areia mais grossa. São terraços fluviais, ricos em minerais e com capacidade de retenção. E mesmo dentro da melhor parcela, a selecção de cachos é muito rigorosa. É feita na vinha na altura da vindima em função da fisiologia da videira e não no tapete de escolha, quando já é tarde. Colhem-se apenas os cachos da base e das varas bem atempadas. Como é óbvio, para uma vindima tão precisa é necessário ter o núcleo duro do pessoal experiente.

brancos outono inverno
Na Quinta da Teixuga, da Caminhos Cruzados, os vinhos reflectem um Dão moderno.

No caso do Curtimenta, a casta deixa de ter importância, sobretudo a nível de aromas varietais, porque a técnica de vinificação anula a componente aromática. Mas a selecção de uvas certas para este vinho é importante. Paulo Nunes vai buscar a uva das vinhas onde muitas castas têm acidez elevada – Uva Cão, Cerceal Branco, Terrantez, para dar equilíbrio à estrutura e a dimenção de boca dos vinhos de curtimenta.

Na mesa

 Mencionamos no início que o que chamamos de brancos de Outono/Inverno, corresponde sempre a vinhos extremamente gastronómicos. Como tal, deixamos algumas sugestões de boas parcerias à mesa.

De um modo geral, têm que ser pratos com alguma estrutura, textura e intensidade. Os crustáceos mais densos podem ser uma boa opção – santola ou sapateira, lavagante ou lagosta. Não esquecemos o arroz de polvo ou de marisco. Peixe grelhado ou no forno, bacalhau assado, migas de bacalhau, açorda ou sopas elaboradas, como a sopa de pedra, são harmonizações a experimentar. Outras alternativas podem ser pratos de galinha, perdiz ou peru. Embora tradicionalmente seja acompanhado com espumantes ou colheitas tardias, eu também não excluia foie-gras pela intensidadde de sabor, gordura e textura.

Agora só faltam os queijos! Paulo Nunes, recorda que na Serra da Estrela o queijo com o mesmo nome era muitas vezes acompanhado com vinhos brancos, com alguma idade. E faz todo o sentido.

Os vinhos brancos com estas características não devem ser servidos muito frios. A temperatura de serviço pode ser entre os 10˚C e 12˚C, tendo em conta que o vinho vai sempre aumentar no copo 2-3˚C o que, no caso dos vinhos mais complexos até vai trazer benefícios. Ajuda abrir a complexidade aromática e apreciar a textura.

E para finalizar, chamar-lhes “brancos de Outono/Inverno” é uma força de expressão: bebem-se lindamente noutras estações do ano, basta querer e combinar com a comida certa.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2022)

 

Guimaraens: o outro Vintage da Fonseca

Guimaraens vintage fonseca

A Fonseca, tal como muitas outras casas de vinho do Porto, declara dois tipos de Vintage, o “clássico” – nos anos de excelência – e uma segunda marca que pode ou não ser de uma única quinta. No caso dos Vintage Fonseca Guimaraens, está desde há muito assumido que só têm edição nos anos não […]

A Fonseca, tal como muitas outras casas de vinho do Porto, declara dois tipos de Vintage, o “clássico” – nos anos de excelência – e uma segunda marca que pode ou não ser de uma única quinta. No caso dos Vintage Fonseca Guimaraens, está desde há muito assumido que só têm edição nos anos não clássicos. Nascidos nos anos 30, são sempre vinhos gulosos, têm muita qualidade e um preço bastante conveniente. A vertical em que estivemos presentes demonstrou isso tudo. E alguns mistérios ficaram por resolver…

Texto: João Paulo Martins  Fotos: The Fladgate Partnership

guimaraens vintage fonseca
O enólogo David Guimaraens, com Adrian Bridge, CEO da The Fladgate Partnership.

O sector do vinho do Porto tem uma tradição que merece grande aplauso: as casas têm de manter um histórico dos vinhos, único garante da valia de tudo o que os antepassados fizeram. Essa tradição remonta quase ao séc. XVIII embora as garrafas existentes dessa época sejam em número muito reduzido. O mais interessante desta história é que essas garrafas, religiosamente guardadas nas caves de Gaia, resistiram a tudo. Por lá há algumas do tempo da monarquia exilada no Brasil (1804 da Real Companhia Velha ou 1815 da Ferreira), por lá há garrafas que resistiram a guerras civis, à queda da monarquia, às Guerras Mundiais e ao 25 de Abril. Dizer que é notável, é pouco. O povo bem que pode ter gritado na rua os “morras” e os “abaixo o grande capital”, o que é certo é que as garrafas lá continuaram em seu sossego. Provavelmente só mesmo num país de brandos costumes isto foi possível.

De tempos a tempos, chega o momento da prova destas preciosidades. Por antiguidade nestas lides, e por sorte, temos estado presentes em muitas destas verticais, com destaque para Ferreira (esta remontou ao séc. XIX…), Taylor’s, Ramos Pinto, Niepoort, Croft, Cockburn’s, Graham’s e da Dow’s (esta em Londres) ou a monumental prova dos Vintage do séc. XX que abrangeu muitas casas. Uma vertical de Vintage Guimaraens é um acontecimento, já que, pelo menos nos últimos 40 anos, nunca foi realizada. A história dos Guimaraens sem til, essa, merece ser conhecida.

Para chegarmos à fundação da Fonseca – nome incontornável no sector do vinho do Porto – teremos de recuar a 1822, já que foi então que Manoel Pedro Guimaraens fundou a empresa, após compra da Fonseca & Monteiro (criada em 1815), então uma pequena firma do sector, como tantas outras que à época existiam. Em Portugal viviam-se tempos politicamente difíceis, com o país dividido entre liberais e absolutistas, algo do tipo esquerda e direita dos nossos dias. A diferença é que, então, os assuntos se discutiam de armas na mão e os conflitos culminaram na guerra civil (1832-34) que foi dura e devastadora. Manoel Pedro, liberal dos quatro costados, viu-se obrigado a partir para o exílio, escondido num casco vazio de vinho do Porto. Foi para Inglaterra e terá sido lá que, para facilidade de compreensão dos locais, mudou o seu apelido, retirando-lhe o til. Por lá ficou e o regresso a Portugal deu-se em 1827, seguramente quando sentiu que não correria perigo por ser um adepto do liberalismo. Esse apego à causa liberal valeu-lhe a Ordem de Cristo em 1834, a maior honra então atribuível a um cidadão.

A importância e fama da empresa cresceram e em 1840 a Fonseca já era a segunda maior exportadora de Porto. Nessa sequência lançou em 1847 o seu primeiro Vintage Fonseca, então exportado para Inglaterra que era o mercado principal dos melhores vinhos do Porto jovens, também conhecidos como “Novidade”. Com a vitória do liberalismo em 1834, vários ingleses ligados ao sector vieram para Portugal, como foi o caso de John Fladgate que chegou ao Porto em 1836. Tinha na altura 28 anos. No ano seguinte, juntamente com Joseph Taylor e em 1844 com Morgan Yeatman formou a empresa conhecida como Taylor, Fladgate and Yeatman. Para a história que aqui nos interessa é Fladgate o centro das atenções; teve um filho (que se associou à empresa) e quatro filhas. Todas se casaram com personagens do sector: com James Forrester (Offley), com Albert Morgan (Morgan Brothers), com Charles Wright (Croft & Ca.) e com Pedro Gonçalves Guimaraens (M P Guimaraens, actual Fonseca Guimaraens). Percebe-se assim a ligação secular que existe entre estas duas empresas (Taylor e Fonseca), que integram a The Fladgate Partnership, onde actualmente também incluímos a Croft, a Delaforce, a Romariz e a Wiese & Krohn. A estrutura familiar continua a ser a espinha dorsal da Fonseca. David Guimaraens, actual responsável da enologia da Fladgate é tetraneto do fundador da empresa, Manoel Pedro que, após colocar a Fonseca “no mapa”, veio a falecer em Londres em 1858. No séc. XX, todos os Vintage da Fonseca foram da responsabilidade de apenas quatro enólogos: Frank Guimaraens (desde o 1896 até ao 1948), Dorothy Guimaraens (Vintage 1955), Bruce Duncan Guimaraens (de 1960 a 1991) e actualmente David, desde o Vintage de 1992. Dorothy foi assim a única profissional (ao que consta era exímia provadora…) responsável pelo único Vintage clássico dos anos 50, uma década madrasta para o sector do vinho do Porto: aos anos fracos juntaram-se as enormes dificuldades para sobreviver à devastação pós 2ª Guerra Mundial e à consequente estagnação dos mercados. A Fonseca, em especial, atravessou momentos muito difíceis e, sem crédito na banca, acabou por ser adquirida pela Taylor, a sua associada que lhe estava a suprir as dificuldades financeiras. Assim, em 19 de Maio de 1949, a Taylor passou a proprietária da Fonseca, tendo-se mantido a individualidade de cada casa, em termos de fornecedores e stocks.

As quintas, as uvas e os fornecedores delas

Foi no tempo de Bruce Guimaraens que a Fonseca adquiriu as propriedades que tem hoje. Até aos anos 70 poucas eram as empresas que tinham quintas no Douro; a Croft tinha a Roeda, a Taylor’s tinha Vargellas, a Ferreira tinha algumas quintas herdadas de Dona Antónia (Vesúvio, Meão, Valado, entre outras) mas eram casos isolados; a esmagadora maioria dos vinhos eram adquiridos aos lavradores e chegavam a Gaia já feitos e prontos. Os exportadores, como eram conhecidos os homens das empresas do vinho do Porto (únicas autorizadas a exportar), poucas razões tinham então para sair de Gaia: era ali que provavam e aprovavam os lotes, era ali que os vinhos estagiavam e envelheciam nos cascos e era dali que eram exportados em pipa. Ir ao Douro era uma odisseia tal que era de evitar a todo o custo. Não se estanha assim que a Fonseca, apesar de ter grandes vinhos, não tivesse acesso, durante mais de 150 anos, a uvas próprias. Estamos mesmo em crer (suposição nossa) que os homens de Gaia não conseguiriam saber de que castas eram os vinhos que lhe chegavam, tal como não sabiam o compasso da vinha, a técnica da poda, as re-enxertias e outras páticas vitícolas. Até 1963, era seguro que eram todos feitos em lagar com pisa, uma vez que as cubas auto-vinificadoras, de cimento, só surgiram na região em 1964. Se os vinhos que chegavam a Gaia fossem de pequenos lavradores, continuariam certamente a ser vinhos feitos em lagar. Os provadores – personagens com uma tremenda importância no sector durante décadas e décadas – decidiam então, em Gaia, o destino dos vinhos que lhes chegavam: para Vintage e Tawnies com indicação de idade iam os melhores lotes; para as restantes gamas iam os vinhos de menor valia. Este foi o mundo da Fonseca até finais dos anos 70. Foi então que o sector percebeu – face à enorme procura internacional, nomeadamente de Vintage – que só controlando todo o processo, da vinha à adega, seria possível assegurar a alta qualidade dos vinhos produzidos. Deu-se assim um retorno ao Douro, agora com intenção de adquirir propriedades que pudessem suprir as necessidades ou, pelo menos, assegurar a melhor qualidade possível para os vinhos de topo.

Chegou então o momento da Fonseca se aventurar no Douro. A primeira propriedade adquirida foi a Quinta do Cruzeiro, em 1973. Situada em Vale Mendiz, a propriedade tem 21 ha, dos quais 13 com vinhas. A quinta já era fornecedora de uvas à empresa desde 1870 e desde 1912 que os vinhos do Cruzeiro entravam nos lotes dos Vintage. Após a morte do proprietário, a Fonseca adquiriu esta quinta que conhecia muito bem. Desde então as suas uvas – e de algumas vinhas adjacentes – são a espinha dorsal dos Vintage Fonseca.

Em 1978 a Fonseca comprou a Quinta do Panascal, situada nas margens do Távora, afluente da margem sul do Douro. Também daqui já seguiam vinhos para a empresa; desde a compra que a renovação dos vinhedos do Panascal tem sido uma actividade constante e é hoje uma propriedade em modo de produção bio.

Em 1979 foi adquirida a Quinta de Santo António, vizinha do Cruzeiro; tem 8,8 ha de área e cerca de 6 ha de vinhas, todas renovadas no moderno sistema de plantio introduzido pelos técnicos da empresa, com direcção de António Magalhães.

Para além destas, a empresa tem adquirido muitas outras quintas e parcelas vizinhas (também, por tradição, chamadas “quinta”), como aconteceu na vizinhança do Cruzeiro e Santo António. Assim, propriedades como Junco, Eira Velha, Casa Nova, Vedejosa, Vale do Bragão e Arruda, são pertença do grupo mas não estão adstritas a uma marca em particular. As uvas são assim usadas para os restantes vinhos do grupo mas não para os Vintage; esses continuam a ser das quintas tradicionais. É assim, diz David, “que se consegue manter a identidade de cada Vintage; não é por ser feito por mim ou por outro, é a expressão deste local e por isso não se deve incluir o que não tem cabimento”.

Em Janeiro de 2022, a empresa tomou posse da vinha Vale de Muros, vizinha do Panascal, uma vinha velha que corresponde à 1ª geração pós filoxera – ou seja já com recurso aos porta-enxertos – mas implantada em terraços pré-filoxéricos de apenas um bardo. Um verdadeiro monumento nacional. A parcela tem 1,6 ha. Quando chegou a hora da reforma, o anterior proprietário confessou: “preciso que seja o Panascal a tomar conta da vinha”. Dizem-nos que “foi um gosto da família toda vender à Fonseca”. Não nos custa a acreditar, tal o entusiasmo com que António Magalhães fala da vinha onde, mais do que cepas e muros vê um livro aberto sobre o modus operandi da lavoura na era pós filoxera. Sobre isso, conta-nos, “a vinha foi replantada aqui após a filoxera sem mexer nos muros e na largura dos socalcos. Só plantaram um bardo e não mais, como nos novos terraços pós-filoxera”. Então António conclui, “aqui a única diferença em relação aos tempos anteriores à filoxera é o recurso ao porta-enxerto montícola, muito rústico e que induz baixa produção mas permite que as cepas vivam mais tempo”. Tudo se percebe melhor, agora…

Gimaraens vintage fonseca
Na quinta do Panascal têm origem algumas bases para o Guimaraens.

Os novos métodos de plantio que a empresa adoptou no Douro – patamares de um bardo com 1,5m de largo que permitem acesso ao talude, e inclinação do terreno em 3% para escoar eventual enxurrada, tem tudo de novo na região, mas já o Visconde de Vila Maior, nos finais do séc. XIX, num texto verdadeiramente visionário, chamava a atenção para isso sugerindo que, quando a mão de obra escasseasse  para fazer os muros e se tivesse de optar por taludes, ter-se ia de ter em atenção a inclinação do patamar, exactamente pela razão referida. Notável! Já quanto à escassez de mão-de-obra, recordemos que é, apenas, um problema que existe desde que existe Douro e vinho do Porto…

Fonseca e Guimaraens – Vintage de prestígio

Tal como muitas outras casas do sector, a Fonseca tem dois tipos de Vintage: o Fonseca nos anos considerados “clássicos” e o Guimaraens nos anos não clássicos, também chamados pelos ingleses de “anos single quinta”. Aqui duas ressalvas: dizemos “muitas casas do sector” porque nem todas aceitam esta divisão entre clássico e single quinta, como foi durante mais de um século o caso da Ferreira, para quem “ou era Vintage ou não era”, afirmação tradicional dos enólogos da casa; e a própria designação de “clássico”, também ela muito querida às casas inglesas, mas que outros rejeitam totalmente, como o caso da Quinta do Noval. A ideia seria que “clássico” era o ano em que as empresas declaravam Vintage com a principal marca, neste caso Fonseca, noutros Graham’s, Dow’s ou Taylor’s, por exemplo. Sabemos que esta diferenciação é uma convenção criada nas empresas e que nada tem a ver com a entidade certificadora. De facto, o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) não faz aquela distinção na aprovação dos lotes, limita-se a certificar o lote em apreciação como Vintage, sem mais adjectivos.

Quanto à Fonseca a noção de “single quinta” tem aplicação relativa, uma vez que a segunda marca – Guimaraens – é também ela lote de várias quintas. Para que a vida do consumidor não fique muito facilitada, além do Guimaraens, a Fonseca tem alguns Vintage de quinta, como é o caso do Quinta do Panascal (primeira declaração em 1984) e o Quinta do Cruzeiro, muito raramente editado e de que apenas conhecemos e provámos o 1982. É tudo algo confuso, mas o sector do vinho do Porto é mesmo assim…

O Guimaraens nasceu em 1931 e na prova que fizemos provámos a partir do 1933. Na década de 30, o Guimaraens era editado nos mesmos anos que o Fonseca e o lote de cada um é que era diferente. Segundo David Guimaraens foi a partir dos anos 40 que assumiram o Guimaraens como segunda marca.

O “assunto” dos single quinta ou Vintage não clássicos é de especial interesse para os consumidores, uma vez que são vinhos de grande qualidade e aprovados como tal pelo IVDP, mas que têm um preço bem mais acessível do que os Vintage considerados clássicos. Não durarão 100 anos mas nós também não…

Para se ter uma ideia da diferença, a Garrafeira Nacional (em Lisboa) vende o Guimaraens 2018 a €42 enquanto o Fonseca 2017 custa €111…

Os Fonseca são, com frequência, verdadeiros monstros, vinhos eternos que tendiam a precisar de 30 a 40 anos para começarem a dar boa prova. O melhor exemplo será o 1985, sem dúvida, o melhor da declaração, e que só agora começa a mostrar condições para ser apreciado, mas onde notamos vigor e potência para os próximos 50 anos. As edições mais recentes têm mostrado mais elegância mesmo na juventude, mas continuando a ser vinhos de enorme estrutura. O Guimaraens é mais previsível mas o 1976 desmente tudo (ver caixa). Segundo David, é normalmente após 40 anos de garrafa que conseguimos perceber e distinguir os que são eternos e os que não são tão longevos; é o caso da comparação entre o Guimaraens 1957 e o 1965, este segundo a mostrar-se muito mais jovem e a dizer-nos que durará mais tempo em garrafa.

Guimaraens vintage fonseca
De 1933 a 2018, 85 anos de vinhos e de história.

Uma prova memorável

Começámos a vertical de Guimaraens pelo mais antigo, o 1933. Já muito ligeiro na cor mas de aroma notável, pela delicadeza, pela finura e pelo carácter de fruta em calda e licorados de grande nível (19). O 1957 apresentava uma cor mais tawny e menos rico de estrutura que o 33, mas muito fino e elegante na boca (18). O 1965 nasceu num ano com alguma chuva na vindima o que, segundo David, também distingue os anos clássicos e não clássicos, já que nos clássicos a vindima é sempre sem chuva. Este mostrou estar agora no seu melhor momento, com aromas de garrafa, uma tonalidade ainda vermelha, verdadeira “atracção fatal” no aroma. Belíssimo (19). O 1967 sofreu de um mal que durante décadas afectou alguns Vintage, o facto de nascerem a seguir a um ano declarado como clássico, neste caso o 1966, 1967 “devia ter sido declarado”, lembra David; tem aromas sedosos e bela tonalidade vermelha, uma textura macia, envolvente e cheio, ligeiramente mais curto no final que o 1965 (18,5). O 1976 (ver caixa) nasceu em ano de baixos rendimentos derivados da seca, mas gerou um Vintage absolutamente glorioso (20). Ao contrário do 1976, o 1978 surgiu em ano húmido durante quase todo o ciclo mas com vindima seca, originando um vinho aberto de cor mas muito fino na boca, elegante e com carácter. Evoluiu depressa e já há bastante tempo que está no zénite (18). O 1984 mostrou-se ligeiro na cor, muito polido de aromas, com fruta em calda, muito agradável de beber agora e já no ponto certo do consumo (18). O 1987 foi ano que, também ele, deveria ter sido declarado (o que já ouvimos em várias casas) mas esta garrafa não se mostrou à altura, com algumas (subtis mas evidentes) notas aborrachadas. A rever. O 1991 foi declarado como segunda marca num ano em que quase todos declararam clássico o que gerou imensa controvérsia. O vinho mostrou muito bom perfil, ainda cheio e com bom volume, em grande forma na boca, a dar imenso prazer na prova (18,5). O ano de 1998 prometia tudo de bom e gerou grande entusiasmo no sector mas a chuva na vindima deitou tudo a perder e as duas garrafas aqui provadas também não nos deram grande alegria. O 2001 mostrou-se com boa cor ainda que a perder alguma concentração, está muito elegante e a dar bela prova, com a doçura no ponto (18). O 2008 revelou-se espectacular de cor e aroma, com fruta vermelha e negra e especiarias de pimenta preta, taninos excelentes, com grande complexidade (18,5). O 2015 nasceu num ano de invulgar seca mas alguma chuva na vindima ajudou à qualidade final. Concentrado na cor e ainda fechado no aroma mas com enorme potencial; taninos finos bem presentes, todo ele a mostrar anos e anos pela frente (18,5).

No conjunto, uma prova rara, assente em grandíssimos vinhos e ao longo da qual percorremos 85 anos de Vintage Guimaraens. Memorável, em suma.

guimaraens vintage fonseca
António Magalhães, responsável pelas vinhas da empresa, conhece o Douro como poucos.

 

Guimaraens 1976 – o vintage mistério

Este Guimaraens foi declarado num ano em que muito poucas casas fizeram Vintage, havendo referência de um Quinta de Vargellas e um Malvedos e pouco mais. O ano anterior tinha sido “clássico” mas esse 1975 acabou por se revelar um flop na generalidade do sector, um vinho que nunca deveria ter sido declarado e que é hoje se mostra, regra geral, demasiado ligeiro e frágil, o que contraria a lógica da declaração de um “clássico”. Este 1976 Guimaraens, desde o seu lançamento, mas sobretudo desde o final dos anos 80, veio a revelar-se um “monstro” na positiva acepção da palavra. Concentrado na cor, de enorme estrutura, faltando-lhe em delicadeza o que lhe sobrava em raça e energia. Foi por isso muito apreciado pela crítica e também muito “comprado” já que o preço era muito conveniente e a disponibilidade no mercado era a que se quisesse. Recordo que, na época, nem Bruce Guimaraens nos conseguiu explicar bem a origem daquelas uvas e, assim, o 1976 ficou sempre como eterno enigma. Na prova agora levada a efeito, mostrou-se de novo grandioso e explosivo, com uma concentração de cor que só se repetiu no 1998. Neste aspecto de vigor e estrutura é para mim é um dos Vintage memoráveis do século XX, sobretudo por esse lado inexplicável que lhe estará sempre associado. Nenhum dos vinhos agora provados na vertical se assemelhou no perfil ao “monstro” de 76. Também já tive oportunidade de provar alguns 1976 menos surpreendentes mas aí entra o factor “rolha” a estragar a festa. Para sorte de todos os presentes na prova, este estava absolutamente grandioso. (JPM)

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2022)