Sugestão: Os brancos de Outono e Inverno

Mais ricos, cremosos, texturados, encorpados, concentrados. Mais ambiciosos também. Em pé de igualdade com os tintos pela capacidade de alinhar com pratos mais gordos e elaborados e de despoletar experiências sensoriais mais intensas, são assim os brancos de Outono/Inverno. Aqui deixamos 13 sugestões de primeira linha, vinhos com profundidade e longevidade, para os meses mais frios que virão.

 Texto: Valéria Zeferino  Notas de Prova: Painel de Prova GE     Fotos: D.R.

 

Em Portugal produzem-se mais tintos do que brancos, a única excepção é a região dos Vinhos Verdes. No mundo, em geral, é assim. E a sazonalidade é forte: nos brancos pensa-se mais no verão, à beira da piscina ou ao almoço leve na praia. No outono e inverno preferem-se os tintos, esquecendo-se que temos excelentes brancos para acompanhar estas estações do ano.

Antigamente, em Portugal dizia-se que “o vinho é tinto; e também há branco”, conta o incontornável produtor bairradino Luís Pato. Hoje ainda é parcialmente assim, mas muito menos. Mario Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, lembra-se que quando era menino, as pessoas diziam “bebo branco quando não há tinto” e que às vezes para vender 10 caixas de tinto, o distribuidor era “obrigado” a levar 10 caixas de branco.

As técnicas de produção de brancos também eram “muito agressivas” – partilha Manuel Vieira, responsável de enologia durante muitos anos na Quinta dos Carvalhais e agora na Caminhos Cruzados. Os cachos e as massas vínicas sujeitavam-se à acção mecânica violenta, os equipamentos usados na altura eram fonte de oxidações, as temperaturas não se controlavam… enfim… muitas vezes os vinhos não aguentavam mais de um ano em garrafa (com honrosas excepções de alguns brancos antigos que chegam aos nossos dias em perfeita saúde).

brancos outono inverno
Anselmo Mendes levou a uva Alvarinho e o terroir de Monção e Melgaço até ao topo.

No final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado a tecnologia começou a entrar nas adegas com o controlo de temperatura e cuidados no sentido de proteger o vinho contra as oxidações. Proliferação de cubas de inox e aposta na fruta primária conduziram a vinhos mais limpos aromaticamente, mas bem acabados. O nível geral de qualidade dos brancos subiu e tornou-se um padrão.

Quando Mario Sérgio lançou o seu primeiro Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, um branco mais compenetrado do que extrovertido, fermentado em tonel antigo e preparado para anos de guarda e vocacionado, foi contra a corrente. Já o Guru, da Wine & Soul, nasceu em 2004 com a ideia da Sandra Tavares e Jorge Borges de fazer um grande branco do Douro com potencial de guarda, pois na altura havia poucos.

Hoje, os produtores têm à sua disposição um vasto leque de técnicas para fazer vinhos brancos adequadas a qualquer ocasião. Com mais ou menos intervenção, fermentações expontâneas ou controladas, diferentes abordagens técnico-filosóficas, com qualidade altíssima e por vezes surpreendente, não nos podemos queixar.

Como um branco Outono/Inverno é um oposto de “leve e crocante”, procura-se criar condições para o vinho ter solidez, estrutura, textura e potencial de guarda. A intensidade dos aromas primários não é o principal objectivo, a palavra-chave é complexidade. Normalmente, recorre-se ao estágio em madeira de diferentes tipos e capacidades, tosta e tempo de uso, para dar as nuances que o produtor deseja e que a matéria prima permite. Não existe uma “receita”. A escolha das barricas depende da sensibilidade de cada enólogo e da matriz do vinho em função da casta, terroir e até o ano de produção. E esta sensibilidade e preferências podem mudar ao longo do tempo, alterando o perfil do vinho.

Fermentação e estágio em madeira

 O contacto com madeira molda o vinho de certa forma, promovendo a microoxigenação contínua (estabiliza e amacia o vinho) e modificando os seus aromas com os compostos vindos da tosta da madeira (baunilha, canela, cravinho entre outros) de maneira que a fruta deixa de ser óbvia e o vinho ganha complexidade olfactiva. Quanto maior for a capacidade do vasilhame, menos marca deixa; e quanto menor for o grau da tosta, menos aromas transfere para o vinho. A barrica nova permite mais troca gasosa por ter os poros limpos, mas também deixa a sua marca mais evidente no vinho.

Se a madeira for em excesso, pode arruinar o vinho, sobrepondo-se às suas virtudes e deixando uma sensação de secura e amargor dos taninos elágicos da madeira. Aplicada ajuizadamente, beneficia e confere complexidade.

“Bom trabalho de barrica”, “barrica bem integrada” ou “barrica de luxo” são expressões frequentes nos comentários dos enófilos e notas de prova dos vinhos. “Amadeirado”, “madeira em excesso”, “marcado pela madeira” são os epítetos do lado oposto da escala.

Sandra Tavares, enóloga e produtora da Wine & Soul, conta que na primeira edição do Guru de 2004 foram utilizadas apenas barricas novas. Em 2016 a percentagem da barrica nova baixou quase para metade e o 2019 tem apenas 9% de barrica nova de 500 litros, tosta média-leve. A origem da barrica também ganhou outra importância. Agora começam a usar fudres de maior capacidade.

António Maçanita, o enólogo e produtor da Fita Preta, para o seu Chão dos Eremitas escolhe barricas de, pelo menos, terceiro uso, pois pretende-se a acção mais delicada do estágio em madeira sem ser muito óbvia. E também apenas 40% estagia em barrica, o resto fica em inox.

Se o Quinta das Bágeiras Garrafeira estagia em tonéis antigos de madeira de 2500 litros, ao Pai Abel o produtor queria dar um pouco mais de estrutura e de volume através do estágio em barricas muito usadas da Borgonha, com bâtonnage.

Já o Parcela Única de Anselmo Mendes estagia em madeira nova, mas a barrica é escolhida a dedo em função da proveniência (da floresta de Bertranges perto de Sancerre) e feita à medida, com uma tosta ainda mais leve do que é usada para os Grand Grus da Borgonha.

Ao falar da madeira, pensamos normalmente em carvalho, mas não é a única opção possível. Luís Pato, por exemplo, para o seu Vinha Formal prefere o castanho que na sua opinião não marca os brancos com baunilha. E argumenta que a madeira de castanho é mais porosa do que o carvalho, permitindo maior contacto com oxigénio durante o estágio pelo que o vinho fica mais resistente a oxidação a longo prazo; para além de ser tradicional na região e mais barato.

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Nas vinhas velhas do Chão dos Eremitas, António Maçanita descobre verdadeiros tesouros.

Normalmente o contacto com a barrica começa na fermentação, o que permite que a madeira a integre melhor. Entretanto, Manuel Vieira prefere arrancar a fermentação em inox para ter mais controlo sobre a temperatura (16˚C no início) e aos 1050 de densidade transfere o mosto para a barrica, onde acaba a fermentação e depois fica a estagiar.

Já agora, a temperatura de fermentação destes vinhos mais ambiciosos nunca é muito baixa (12-13˚C) para não evocar aromas de bananas e fruta tropical, que podem ser bem vindos nos brancos frescos de Verão, mas não transparecem nem a casta, nem o terroir. Normalmente, a temperatura de fermentação ronda os 18˚C, mais coisa menos coisa.

Outra variável importante é o tempo que o vinho permanece na barrica. Nem sempre o estágio mais prolongado resulta em vinhos excessivamente amadeirados. O Teixuga é um grande exemplo: passa 19 meses na barrica e não fica marcado pela madeira. Manuel Vieira explica que há sempre um momento durante o estágio, um pico, quando o vinho fica dominado pela madeira. Muitos neste momento tiram o vinho da barrica para o “salvar”, mas na realidade, se o vinho permanecer na barrica mais tempo, acaba tudo por integrar, afirma.

Borras e curtimentas

As borras representam a fração sólida no meio (mosto) acumulada durante a fermentação alcoólica. Numa primeira trasfega as borras mais espessas, normalmente, são removidas, deixando em suspensão os compostos mais pequenos, chamados de borras finas. São maioritariamente compostos pelas células das leveduras mortas.

Quando o vinho estagia sobre borras, a parede celular das leveduras é destruída, libertando polissacáridos, manoproteinas e outros compostos para o meio, que não só protegem o vinho contra as oxidações durante o estágio, mas também melhoram as suas características organolépticas (textura, volume, cremosidade e aromas) e faz com que a acção da madeira seja menos intrusiva no vinho.

A agitação das borras com um bastão – bâtonnage – mantêm-nas em suspensão e homogeniza a sua acção, intensificando os efeitos mencionados. Geralmente, as borras são levantadas com maior frequência no início do estágio, abrandando ou até mesmo cessando mais tarde.

O Alvarinho no Parcela Única estágia com borras totais. Desta forma Anselmo Mendes providencia uma maior quantidade de biomassa para garantir a melhor protecção do vinho da acção da madeira nova. “Juntar potência com elegância” – diz o mestre. Em sua opinião, isto não funciona com castas como o Chardonnay ou o Sauvignon Blanc, porque reduzem bastante nestas condições, mas o Alvarinho aguenta-se bem. A frequência da bâtonnage é feita com grande precisão em função do consumo de oxigénio no vinho durante o estágio.

Já António Maçanita não fez bâtonnage no Chão dos Eremitas, mas prefere manter as cubas, onde estagia 60% do vinho, na horizontal para, desta forma aumentar a distribuição das borras.

Para além do estágio em madeira existem outras formas de realçar as características sensoriais do vinho. A curtimenta é uma delas e agora esta técnica está na moda. Mas Paulo Nunes conta que até aos anos 80 do século passado, na Casa da Passarella os brancos habitualmente faziam-se como os tintos – fermentavam-se com películas. E na altura não se chamavam “orange wine”…

No Casa da Passarella O Fugitivo Curtimenta as uvas não são desengaçadas, pois Paulo Nunes vê o benefício na transferência de algum tanino na percepção organoléptica, procurando mais sensação táctil, de “textura e até algum amargo para contrastar com vinhos muito limados”.

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Na Quinta das Bágeiras, o Pai Abel fermenta em barricas muito usadas vindas da Borgonha.

Castas e regiões

 A região de origem, na realidade, não é grande indicadora do estilo do vinho – em todas as regiões de Portugal podemos encontrar vinhos brancos estruturados e sérios. E a casta nem sempre define inequivocamente perfil. Um Chardonnay da California com estágio em barrica nova, amanteigado e untuoso, não tem nada a ver com um Chablis, feito da mesma casta. No nosso caso, Arinto ou Alvarinho vinificados em inox serão mais leves e crocantes do que os seus homólogos que passaram uma boa parte da sua vida em barrica, por exemplo.

Felizmente, temos muito por onde escolher em termos da região e das castas. No Dão, Encruzado presta-se particularmente bem para vinhos com dimensão. Manuel Vieira trabalha com esta casta já há mais de 30 anos. Quando entrou na Quinta dos Carvalhais em 1990, resolveu fazer um branco “à borgonhesa”, com fermentação em barricas de carvalho e estágio sobre borras. Fez uns ensaios de vinificação com cinco castas do Dão em separado, e foi o Encruzado que se mostrou melhor por não se deixar “comer” pela madeira.  Os grandes brancos da Bairrada são, geralmente, feitos do Bical, Maria Gomes e Cercial em várias combinações. No Douro, um típico blend inclui Viosinho, Gouveio, Rabigato, Códega e outras castas em proporções diferentes.

No Alentejo, Antão Vaz e Arinto, por regra, funcionam bem em conjunto. O Alvarinho também já marca a sua presença nesta região. Nós escolhemos aqui uma casta diferente, pouco conhecida, de propósito para mostrar que qualquer variedade pode brilhar se for bem trabalhada. Alicante Branco (aka Boal de Alicante ou Boal Cachudo), foi uma variedade importante no Alentejo antes da filoxera. António Maçanita teve o contacto com esta casta quando começou a explorar uma parcela plantada em 1970 com várias castas (um field blend organizado) sem rega. Como muitas outras variedades do Sul, tem acidez baixa e um perfil aromático neutro o que despertou o interesse do produtor para uma experiência, adaptando o processo de vinificação à casta.

Na região de Lisboa, obviamente, brilha o Arinto e ultimamente, a casta Fernão Pires, oriunda do Tejo, tem surpreendido bastante na região vizinha. Na região dos Vinhos Verdes, o Alvarinho e o Loureiro com estágio em barrica, são os principais protagonistas para a nossa selecção de brancos para acompanhar as almoçaradas e os serões outonais.

Selecionar sempre

A idade das vinhas e as particularidades da parcela podem influenciar as características da matéria-prima e proporcionar vinhos diferenciados. Como a concentração é bem-vinda nestes vinhos, muitas vezes preferem-se as uvas das vinhas velhas, onde a produção é reduzida naturalmente pela idade das videiras. É o caso do Guru, proveniente de uma vinha com 70-80 anos em Porrais, na zona de transição de xisto para o granito e com muito quartzo. Sandra Tavares considera que o xisto dá estrutura e tensão, enquanto o granito e o quartzo – pureza e final de boca mais fino.

Entretanto, para fazer o Pai Abel branco, Mário Sérgio optou pela vinha nova (que agora tem cerca de 30 anos), mas reduzindo drasticamente a produção – fazendo a primeira colheita mais cedo para espumante.

A precisão na escolha da matéria-prima não se limita pela idade das vinhas, o terroir também entra em jogo. Luís Pato escolheu o Bical da Vinha Formal, que comprou em 1998, plantada em solo argilo-calcário na encosta de Óis do Bairro. As uvas desta zona sempre davam vinho de melhor qualidade, destinado à exportação, chamado no século XIX “Vinho de Embarque”.

O Parcela Única de Anselmo Mendes é autoexplicativo, vem de uma parcela de 4,5 ha da Quinta da Torre, que dava sempre vinho vibrante, que não cheirava muito e tinha uma óptima acidez. Nesta zona o solo é de textura mediana composta por argila, limo, pedra e areia mais grossa. São terraços fluviais, ricos em minerais e com capacidade de retenção. E mesmo dentro da melhor parcela, a selecção de cachos é muito rigorosa. É feita na vinha na altura da vindima em função da fisiologia da videira e não no tapete de escolha, quando já é tarde. Colhem-se apenas os cachos da base e das varas bem atempadas. Como é óbvio, para uma vindima tão precisa é necessário ter o núcleo duro do pessoal experiente.

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Na Quinta da Teixuga, da Caminhos Cruzados, os vinhos reflectem um Dão moderno.

No caso do Curtimenta, a casta deixa de ter importância, sobretudo a nível de aromas varietais, porque a técnica de vinificação anula a componente aromática. Mas a selecção de uvas certas para este vinho é importante. Paulo Nunes vai buscar a uva das vinhas onde muitas castas têm acidez elevada – Uva Cão, Cerceal Branco, Terrantez, para dar equilíbrio à estrutura e a dimenção de boca dos vinhos de curtimenta.

Na mesa

 Mencionamos no início que o que chamamos de brancos de Outono/Inverno, corresponde sempre a vinhos extremamente gastronómicos. Como tal, deixamos algumas sugestões de boas parcerias à mesa.

De um modo geral, têm que ser pratos com alguma estrutura, textura e intensidade. Os crustáceos mais densos podem ser uma boa opção – santola ou sapateira, lavagante ou lagosta. Não esquecemos o arroz de polvo ou de marisco. Peixe grelhado ou no forno, bacalhau assado, migas de bacalhau, açorda ou sopas elaboradas, como a sopa de pedra, são harmonizações a experimentar. Outras alternativas podem ser pratos de galinha, perdiz ou peru. Embora tradicionalmente seja acompanhado com espumantes ou colheitas tardias, eu também não excluia foie-gras pela intensidadde de sabor, gordura e textura.

Agora só faltam os queijos! Paulo Nunes, recorda que na Serra da Estrela o queijo com o mesmo nome era muitas vezes acompanhado com vinhos brancos, com alguma idade. E faz todo o sentido.

Os vinhos brancos com estas características não devem ser servidos muito frios. A temperatura de serviço pode ser entre os 10˚C e 12˚C, tendo em conta que o vinho vai sempre aumentar no copo 2-3˚C o que, no caso dos vinhos mais complexos até vai trazer benefícios. Ajuda abrir a complexidade aromática e apreciar a textura.

E para finalizar, chamar-lhes “brancos de Outono/Inverno” é uma força de expressão: bebem-se lindamente noutras estações do ano, basta querer e combinar com a comida certa.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2022)

 

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