Fernão Pires: Uva de antigamente, casta de futuro

É uma casta antiga, já conhecida no século XVIII, mencionada em 1788 no Douro, nas Beiras e Estremadura e em 1790 em Castelo Branco e Guarda. No seu trabalho “O Portugal Vinícola” de 1900, Cincinnato da Costa descreve Fernão Pires como “uma boa das castas brancas da região do Tejo” que “produz muito e as […]
É uma casta antiga, já conhecida no século XVIII, mencionada em 1788 no Douro, nas Beiras e Estremadura e em 1790 em Castelo Branco e Guarda. No seu trabalho “O Portugal Vinícola” de 1900, Cincinnato da Costa descreve Fernão Pires como “uma boa das castas brancas da região do Tejo” que “produz muito e as suas uvas dão grande rendimento em mosto”. Também refere que a casta “forma a base de alguns vinhos brancos afamados das proximidades de Lisboa e que “os vinhos extremes de Fernão Pires quando bem fabricados, dão excelentes vinhos de pasto, próprios para peixe, delgados, citrinos, de paladar e aroma delicados”.
A casta terá surgido por cruzamento natural de Malvasia Fina com uma variedade desconhecida. Para além do sinónimo oficial de Maria Gomes utilizado na Bairrada, tem outras sinonímias regionais menos conhecidas que praticamente caíram em desuso, como o Gaeiro (provavelmente por estar muito disseminada na localidade das Gaeiras, no concelho de Óbidos), Molinho na Península de Setúbal ou até Alvarinhão em Melgaço. Aguiar em 1866 descreveu uma sub-variedade desta casta com origem na freguesia do Beco, concelho de Ferreira do Zezere, chamada “Fernão Pires do Beco” com porte erecto (ao contrário do habitual semi-erecto e horizontal) e Cincinnato da Costa analisou cachos de Fernão Pires e Fernão Pires do Beco, bem diferentes entre si. Hoje tudo indica que se tratava de um clone da mesma casta.
Omnipresente mas não compreendido
É a casta branca mais presente em Portugal, ocupa 6% das plantações da vinha no nosso país. Já ocupou mais (9% em 1989 e 8% em 1999) e chegou mesmo a ser a casta mais plantada, branca ou tinta. Ficou popular pela mesma razão que a impedia de tornar-se numa estrela – a sua forte identidade aromática e produções generosas, bom grau e acidez média/baixa. É um grande componente de lote, onde contribui com aromas e volume de boca. Mas nunca foi admirada e tornou-se “démodé” quando o rumo mudou para a qualidade e perfis de vinhos mais frescos. Abriu-se a porta às castas estrangeiras e outras nacionais; não gostar da Fernão Pires tornou-se quase obrigatório por ser “demasiado alcoólica”, “chata”, “enjoativa” e “com falta de frescura”.
O que vale é que as tendências não cristalizam e agora o país lembrou-se, e bem, de dar protagonismo às castas menos compreendidas e mal-amadas por “falta disto” ou “excesso daquilo”, mostrando que no sítio certo, com dedicação certa, cada casta pode ter uma performance gloriosa. Um actor popular também pode merecer um óscar com um papel certo.
Graças a umas casas consistentes, sobretudo na região do Tejo, onde a casta é identitária, e a alguns produtores entusiastas, hoje temos excelentes exemplos de Fernão Pires em várias regiões do país.
Qual é o melhor terroir?
Trata-se de uma casta bastante flexível em termos de clima, adapta-se bem a diferentes tipos de solo, desde que haja humidade suficiente. Não se importa com calor, mas é muito sensível à falta de água – a folha fica amarela e cai, comprometendo a actividade fotossintética. Precisa de ter compromisso com área foliar significativa.
É na região do Tejo que o Fernão Pires detém maior protagonismo, ocupando mais de 35% das plantações. Mas o Tejo não é todo igual. A responsável de enologia na Falua, Antonina Barbosa, distingue o Fernão Pires da zona das lezírias (na sub-região do Campo), mais jovem e exuberante que funciona sobretudo na composição de lotes, onde contribui com a parte aromática, e o Fernão Pires de vinha mais velha e de produção muito baixa da Charneca, onde a empresa possui a já famosa vinha do Convento, com um magnífico terroir de pedra rolada. Já o Fernão Pires mais impactante da Quinta do Casal Branco fica nos solos arenosos com argila a 1-1,5 metro. É uma vinha muito velha, plantada em vaso e não regada.
Na Beira Atlântica, que inclui a DOC Bairrada, a sua versão feminina, Maria Gomes, é responsável por 21,5% das plantações. Também é muito importante na região de Lisboa, ocupando mais de 10% de encepamento. Na Península de Setúbal, Fernão Pires é a segunda casta mais plantada, com 9,4% de encepamento (até fica à frente do Moscatel de Setúbal com 8,5%).
Menos relevância tem no Minho com apenas 2,5% do total, pois com as consagradas Alvarinho e Loureiro, e o Avesso como estrela em ascensão, Fernão Pires não tem tido muito espaço. No entanto, nas novas plantações regionais, começa a aumentar a sua presença, sendo importante na estratégia vitícola da Aveleda, por exemplo. A presença mais residual é registada no Dão (1,6%), Alentejo (1,4%) e Trás-os-Montes (1,2%).
A casta Fernão Pires não é muito associada à Beira Interior, ocupando cerca de 1% de vinha. Entretanto, a produtora e enóloga Patrícia Santos ficou fascinada pela performance da casta na zona de Pinhel, onde mostra quase uma salinidade inexplicável. Compara com vinhos de Sancerre, que, feitos de uma casta aromática, naquela região revelam uma personalidade diferente.
Na Bairrada, o vinho Avó Fausto da Quinta das Bágeiras é feito 100% de Maria Gomes, mas a uva não vem sempre do mesmo sítio. Há zonas mais argilo-calcárias, outras com maior percentagem de areia, e a qualidade varia com as condições de cada ano e a capacidade de retenção de água em solos diferentes.
O produtor Daniel Afonso tem as suas vinhas na zona de Colares com forte influência atlântica e confessa que gosta da Fernão Pires porque dá sempre um volume de boca muito bom e, passado dois anos depois da vindima, quase se mastiga, sem a frescura ser prejudicada. Tem um toque exótico e consegue ser bastante complexa. Conta que quando começou a trabalhar com a casta muitas vezes ouviu: “Eh, esta casta só faz vinhos maus e chatos”. Olha que não, depende da zona!
A data de vindima também varia bastante. Na Quinta do Casal Branco, neste ano de 2023, já vindimaram Fernão Pires no final de Julho. Na bairradina Quinta das Bágeiras a vindima da Maria Gomes ocorre normalmente a 8-10 de Setembro. O importante é apanhar a casta no momento certo para o vinho que se pretende produzir com ela.
O momento de vindima é crucial
É amiga do produtor… até ao momento de vindima. É campeã em todas as fases fenológicas como o abrolhamento (é preciso podar mais tarde para evitar as geadas), a floração, o pintor e a maturação e serve de referência nacional para estados fenológicos de outras castas. Não espera por ninguém e não deixa margem de manobra nas vindimas. Obriga os enólogos a regressar de férias no final de Julho para controlar a maturação. A parte boa é que não tem problemas com as chuvas do equinócio.
Manuel Lobo que conhece bem Fernão Pires por ser o enólogo consultor na Quinta do Casal Branco, propriedade de seu tio José Lobo de Vasconcelos, diz que o próprio bago da casta é muito expressivo e reflecte a qualidade. Se se trincar o bago no momento de perfeita maturação é uma explosão de sabor. “Passado apenas 1-2 dias a acidez cai a pique e os aromas já não são tão atraentes”. Manuel lembra-se que, no início, foi difícil explicar às pessoas que “tem de se vindimar amanhã” independentemente de ser um fim-de-semana ou acontecer uma festa local neste dia.
Antigamente quando se vindimava com calma, o açúcar subia, os ácidos degradavam e os aromas tornavam-se sobremaduros. Os vinhos eram mais alcoólicos, com falta de frescura e por vezes enjoativos. O que os safava era a possibilidade de serem loteados com vinhos de outras castas, como Arinto, por exemplo. A Quinta da Lapa faz um vinho que recupera essa história, chama-se mesmo Fernão Pirão, como se apelidava o vinho feito das uvas apanhadas tarde vinificadas com curtimenta e a temperaturas elevadas.
No entanto, a vindima no momento certo não tem que ver apenas com o nível de açúcar e com o teor de álcool provável, do género “até 12% temos acidez, depois perdemos a frescura”. Não é linear que o Fernão Pires apanhado com 11,5% seja melhor do que apanhado com 13%. No mesmo sítio talvez, mas há muitos factores em jogo, como o solo, o clima, a idade da vinha, o clone, o porta-enxerto, a produção, a variação do ano. A combinação destes factores leva ao equilíbrio próprio para cada caso. Por exemplo, Daniel Afonso, na zona de Colares, normalmente apanha Fernão Pires com 13% e 7 g/l de acidez, e em 2021 apanhou com 14% e 8 g/l de acidez. Manuel Lobo costuma ter cubas com parâmetros analíticos diferentes para depois lotear da melhor forma.
Controlar a produção
É casta bastante vigorosa e produtiva, varia de 8 a 18 tn/ha em média, existindo extremos como 25-30 tn/ha nos solos mais férteis do Campo e produções baixíssimas como na Vinha do Convento, da Falua, onde produz apenas 3-4 tn/ha, chegando a 5 tn/ha em alguns anos.
Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras, atribui grande importância à quantidade de produção. Nas vinhas dele não ultrapassa as 6-7 tn/ha. Também dá para fazer 2-3 vindimas, apanhando primeiro a uva para espumante e aguardente e, passado 15 dias já tem o equilíbrio para o vinho branco.
Na vinha velha, com mais de 70 anos, da Quinta do Casal Branco, a produção de Fernão Pires fica no nível dos 8-9 tn/ha, mas com compasso mais apertado (ou seja, com mais plantas por ha). Daniel Afonso observa que com 3 kg/planta e 15 tn/ha não tem falta de qualidade.
Abordagem enológica
A Fernão Pires é bastante plástica, tanto dá para fazer um espumante ou aguardente, como um colheita tardia. O mosto e o vinho apresentam alguma sensibilidade à oxidação, mas os produtores que trabalham com o pH mais baixo não se queixam. É uma casta de assinatura claramente terpénica, com grande número e concentração de compostos aromáticos livres (que apresentam aromas ainda nas uvas) e ligados, que podem ser libertados durante a vinificação. A maceração pelicular, por exemplo, aumenta bastante a complexidade e intensidade aromática do vinho e se a acidez for de bom nível, não apresenta o perigo de perder a frescura.
Para os vinhos mais expressivos, cada vez mais produtores apontam para fermentação com leveduras indígenas (e uvas sãs apanhadas antes das chuvas do equinócio não apresentam tanto risco). Assim faz Mário Sérgio na Quinta das Bágeiras, Manuel Lobo na Quinta do Casal Branco, Antonina Barbosa na Falua e Daniel Afonso no seu projecto Baías e Enseadas.
O estágio em madeira para Fernão Pires não é uma questão consensual, considera-se que dado o perfil aromático intenso, a barrica não lhe fica bem, sobretudo nova. Mas há excelentes exemplos de tudo.
Manuel Lobo deixa arrancar a fermentação em cuba e quando baixa os 30 pontos de densidade vai para a barrica (40% nova), onde fica 18 meses com bâtonnage. Mas uma parte fica só em cuba para compor o lote. Mário Sérgio estagia tudo em barricas bastante usadas de 500 litros e Daniel Afonso prefere as de 225 litros. Antonina Barbosa não usa barrica de todo para Fernão Pires, mas aproveita muito as borras para dar volume de boca e textura. Faz maceração pelicular, depois da prensagem, fica ainda com borras totais a baixa temperatura para criar volume e estrutura. Claro que isto tudo só é possível com pH baixo. A seguir à fermentação, sem trasfega, o vinho fica com as borras da fermentação na cuba durante mais 1 ano. Não vai para a barrica precisamente para mostrar o puro carácter da casta e do terroir.
Fernão Pires com ambição
Ao contrário da ideia generalizada de que os vinhos de Fernão Pires não justificam guarda, lembro-me de uma prova temática organizada pela CVR Tejo, onde provámos alguns vinhos de 2003, 2000, 1994 e 1983 com 12-12,5% de teor alcoólico, uma bela frescura e concentração do sabor. Isto prova mais uma vez que não devemos por todas as culpas na casta, quando não lhe damos a devida atenção.
O que falta à Fernão Pires é talvez aquela patine de casta chique, para toda a gente falar nela. A sua omnipresença não permite contar uma história do género “desencantámos uma variedade rara e salvámo-la do esquecimento”. Mas o que podemos fazer é salvar do esquecimento a sua reputação e agora já temos muitos argumentos ao seu favor. Basta olhar (e provar!) os vinhos que sugerimos nesta peça.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
-
Casa Cadaval
Branco - 2021 -
Quinta da Lagoalva
- 2021 -
Trois Curtimenta
- 2021 -
Quinta das Bágeiras Avô Fausto
- 2021 -
Falcoaria Vinhas Velhas
- 2020 -
Devaneio
Branco - -
Cabeça de Toiro Terroir
Branco - 2021 -
Baías e Enseadas Escolha Pessoal
Branco - 2021 -
Quinta da Lapa Retro Fernão Pirão
Branco - 2021 -
Casa da Atela
Branco - 2021 -
Casal das Aires Vinhas Velhas
- 2020 -
Quinta da Alorna Reserva das Pedras
- 2018 -
Falua Unoaked
- 2019 -
Encosta do Sobral Vinhas Velhas
Branco - 2020 -
Hugo Mendes
Branco - 2021 -
Rosa da Mata
Branco - 2020 -
Contracena
Branco - 2020 -
Canto do Marquês
Branco - 2020
The Yeatman: Alta gastronomia, em evolução

“Evolução de Aromas” é o nome da actual carta do restaurante Gastronómico do The Yeatman que, apenas com treze anos de existência e sob a alçada do chef Ricardo Costa, já embainhou duas estrelas Michelin, a primeira em 2012 e a segunda em 2017. “Esta carta é o resumo de toda a minha vida”, é […]
“Evolução de Aromas” é o nome da actual carta do restaurante Gastronómico do The Yeatman que, apenas com treze anos de existência e sob a alçada do chef Ricardo Costa, já embainhou duas estrelas Michelin, a primeira em 2012 e a segunda em 2017. “Esta carta é o resumo de toda a minha vida”, é a confissão de Ricardo Costa que, sendo natural de Aveiro, coloca na cozinha muitas das influências da suas origens, da salicórnia ao leitão, passando pela doce “tripa”, vendida tradicionalmente em quiosques nas praias daquela zona.
A introdução à experiência — pensada pelo chef “para ser uma evolução de aromas e sabores que despertam diferentes sensações” — dá-se no bar do hotel vínico, com três aperitivos: Suspiro de Bacalhau, recheado com molho holandês picante, ovas de bacalhau e terminado no topo com germinado de coentros; Lagostim marinado em yuzu no interior de um crocante de alga nori e arroz, com creme e pele crocante de frango de churrasco; e o Cozido Português, uma recriação do mesmo com couve portuguesa crocante, terrina do cozido ao centro e o caldo deste misturado com óleo de chouriço. É durante esta fase, antecedente à entrada no Gastronómico, que o chefe de sala Pedro Marques nos introduz ao menu e toma conta de alguma intolerância alimentar, ou outro tipo de alteração que o cliente deseje. “Isto dá tempo à cozinha de se organizar nesse sentido, para que tudo continue a fluir”, explica-nos Elisabete Fernandes, directora de vinhos do The Yeatman e responsável, entre muitas outras coisas, pelas harmonizações vínicas do restaurante, numa selecção a que chama de “Antologia”, por se tratar de uma “viagem pelas diversas regiões vitivinícolas de Portugal”. Para compor os suplementos vínicos dos menus, Elisabete dispõe de uma garrafeira com 1400 referências, na sua maioria portuguesas, e cerca de 40 mil garrafas.
Segue-se o momento em que o chef convida os comensais a visitar a cozinha, e nela desfrutar de uma ou duas criações gastronómicas, neste caso a Zamburinha, uma concha de foie gras preparada em nitrogénio espuma de iogurte fumada, gel de beterraba e croûtons de especiarias na base, terminada com pérolas de beterraba e germinado de pepino; e os Churros salgados com pó de azeite, acompanhados de uma composição de lírio marinado, nata ácida e caviar. Enquanto isso, observa-se a “valsa lenta” executada pela equipa entre as várias estações da cozinha, cronometrada e imperturbável, já habituada à presença de intrusos.
No towel, no problem
Passando à mesa, o que nos envolve é uma sala com classe, mas despretensiosa, atributos que também descrevem o serviço. Nesta altura do ano, ao fim do dia, a cidade do Porto e o rio Douro são enquadrados por um céu azul-acizentado e pelas cores quentes que os antigos dizem adivinhar bom tempo. É isto que vemos enquanto jantamos, e já faz metade da experiência. Num apontamento original, que o The Yeatman associa a um esforço no sentido da sustentabilidade, não há toalhas nas mesas, mas isso nunca se revela um problema ao longo da refeição. Pelo contrário, é confortável, dá um aspecto moderno à sala e a madeira bonita e polida do tampo conecta-nos às cores e texturas naturais dos pratos. Estes iniciam-se com a Salada de Tomate em diferentes apresentações — sorbet de tomate verde, cubo de tomate Coração de Boi, pickle de tomate cereja, gelatina de tomate assado e neve de tomate, com vinagrete de água de tomate e óleo de manjericão — acompanhado de um gin não-alcoólico com infusão de melancia, lima e hortelã, elemento que levanta a cortina a uma das novidades no campo das harmonizações, o suplemento de bebidas sem álcool, que inclui seis propostas, como kombucha feita com chá verde e notas de pétalas de rosa, uma infusão de ervas, especiarias e citrinos, ou um blend de cereja com água de tomate e mirtilos. Esta opção, juntamente com a versão 100% vegetariana do menu (outra novidade), vem reconhecer (finalmente) que há mais do que um perfil de consumidor de alta cozinha, e que é possível manter a excelência neste tipo de variações. “É uma tendência, e iremos continuar a explorar este conceito no futuro”, afirma o chef Ricardo Costa. Na versão vegetariana, “a intenção é que cada momento cumpra a mesma lógica, filosofia e experiência do menu clássico, mas sem a proteína animal”, explica o chef.
Continuando no menu “clássico”, chega a Gamba do Algarve marinada, com creme de pinhões e alho francês na base, gelatina dashi no topo, quinoa crocante e molho de salicórnia, um prato que é terminado na mesa com tremoço preparado em nitrogénio. Depois, a Santola ao Natural, cozida no momento, servida num prato impactante com a forma da dita santola, acompanhada por germinado de cerefólio e molho feito com o coral do crustáceo, e pérolas de pão frito com manteiga, numa referência às marisqueiras portuguesas. A seguir, Pregado cozinhado a baixa temperatura (“55 graus, 7 minutos”, revela o chef) terminado no sautée, com uma crosta de Bulhão Pato (coentros e bivalves), cubos de pancetta ibérica, chalota recheada com coentros e bivalves, e molho de caldo de cebola, óleo de cebolinho e percebes. Continuando no mar, entra em cena a Enguia, cozinhada a vapor e braseada, com a pele crocante, pequena salada de cogumelos Morilles, aneto, alho francês e cerefólio, e linguíni de aipo, tudo sob um molho beurre blanc com óleo de chili. Antes do Tamboril em feijoada — com as peles do peixe, filete glaceado em manteiga branca, fígado e molho do mesmo, e germinado de mostarda — vem o momento do Pão, caseiro e 100% feito de trigo barbela, com manteiga de creme de vaca e iogurte natural e azeite da Quinta de Vargellas. A fermentação que origina a manteiga é de 24h, “sendo posteriormente lavada com água gelada para retirar as impurezas”, adianta Ricardo Costa. Da memória do chef surge o único prato de carne da carta, o Leitão, concretamente barriga com pele crocante no topo, salada de alface Iceberg, creme de milho, milho frito, e pó de azeitona Kalamata (da região grega com o mesmo nome). Para partilhar, batatas insufladas temperadas com pimenta preta e molho de leitão, “feito com os sucos do leitão enquanto está a assar” e com pimenta, louro e chili.
Chegados às sobremesas (surpreendentemente sem o estômago pesado, depois deste desfile gastronómico de treze momentos), damos as boas-vindas à Ostra de Gaia, onde, numa base de creme de ovos moles com amêndoa tostada e “nitro” de ovos moles, entra uma concha preparada em nitrogénio com o mesmo creme, finalizada com pérolas de chocolate e amêndoa. Para os fãs das sobremesas frutadas e menos doces, vem também um creme de amêndoa com nectarina marinada em açafrão e baunilha, gelado de mascarpone e lima kafir, terminado com “nitro” bicolor de nectarina e caldo da mesma.
O menu “Evolução de Aromas” tem o custo de €250 por pessoa, tanto na versão “clássica” como na vegetariana. O suplementos vínicos são dois, o Prime Selection (€250) e o The Yeatman Selection (€125). Já o suplemento de bebidas não-alcoólicas custa €90 por pessoa.
No final de uma refeição preparada pelo chef Ricardo Costa e pela sua equipa, sentimos que, por trás das distinções e das estrelas, está uma grande devoção à gastronomia e à tradição, às matérias-primas e às formas. Sentimos, também, que há muito estudo e criatividade envolvidos na evolução dos processos e das técnicas, e na selecção de novos ingredientes, por vezes inéditos. E sentimos, ainda, as origens, as influências e a mão do chef, qual artesão que pega num pedaço de barro amorfo e o transforma em algo único, com identidade. Vistas as coisas por este prisma, também uma cozinha pode ser um pequeno terroir.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
Herdade de Espirra: O Castelão continua a ser aposta

Em sessão aberta à imprensa, o projecto Herdade de Espirra apresentou os vinhos Pavão de Espirra tinto 2020 e Herdade de Espirra Reserva tinto 2018. O primeiro é um vinho de entrada de gama, com um perfil assumidamente consensual, onde o aroma vivo a frutos vermelhos e um equilíbrio de corpo e taninos procura adequar-se […]
Em sessão aberta à imprensa, o projecto Herdade de Espirra apresentou os vinhos Pavão de Espirra tinto 2020 e Herdade de Espirra Reserva tinto 2018. O primeiro é um vinho de entrada de gama, com um perfil assumidamente consensual, onde o aroma vivo a frutos vermelhos e um equilíbrio de corpo e taninos procura adequar-se a momentos de consumo descontraídos e informais. O Reserva é bastante mais ambicioso. As uvas, provenientes de vinhas com mais de 40 anos, são colhidas manualmente e pisadas a pé, fermentando em lagares e beneficiando de um estágio de 24 meses em barricas de carvalho francês, a que se seguem mais doze meses em garrafa. A intenção é, como explicou Ana Varandas, mostrar a tipicidade do Castelão sem maquilhagem: fruta preta, encorpado, bons taninos. Esta casta, que atinge nos terrenos de areia de Pegões uma das suas melhores expressões, permite fazer vinhos de forte carácter e grande identidade.
Na ocasião foi também mostrada uma nova embalagem do Pavão de Espirra rosé 2021, num formato Bag in Tube, de três litros, rotulada com papel Navigator e produzida a partir de florestas geridas de forma sustentável e devidamente certificadas.
Estas preocupações ambientais atravessam toda a política da empresa. The Navigator Company é um produtor integrado de floresta, pasta, papel, “tissue”, soluções de packaging e bioenergia. A administração do grupo, presente neste encontro, reforçou este compromisso na sustentabilidade ambiental, nas soluções recicláveis e biodegradáveis e na diversidade de culturas e plantações patente em mais de 130 espécies diferentes de árvores e arbustos, muitas sem viabilidade económica, mas que são mantidas e financiadas para garantir a continuidade das espécies. A meta da neutralidade carbónica é uma aposta a médio prazo. A manutenção das vinhas e a produção de vinho na Herdade de Espirra são um exemplo vivo desta política. Representando um valor absolutamente residual no negócio global da companhia, esta foi herdada da anterior Portucel e integrada em 1985, sendo mantida e valorizada como mais um exemplo nessa aposta na biodiversidade. Por isso, as vinhas convivem pacificamente na herdade de Pegões com um total 1700 hectares, com outras actividades agro-florestais como a produção de pinhão, pastoreio, viveiros florestais e madeira. Apesar de, recentemente, se ter introduzido na propriedade novas castas como Aragonez, Touriga Nacional e Alicante Bouschet, o Castelão continua e continuará a ser o eixo da produção de vinho da Herdade, todo ele obtido a partir de vinhas em Produção Integrada.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
World of Wine: Nesta aula é permitido beber

A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine […]
A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine (WOW), em Vila Nova de Gaia. Esta “Escola de Vinho” inaugurou em 2021, está sempre aberta e com formações constantes, deste o WSET a workshops de curta duração, passando por muitos outros cursos, para todos os níveis de conhecimento e “carteira”.
“A nossa missão prende-se com o conceito de ‘edutainment’, ou seja, educação com entretenimento. Consideramos que o sector do vinho em Portugal é complexo e se fecha muito em si”, explica-nos José Sá, director da Escola de Vinho. Com background em Engenharia Mecânica, entrou no mundo do vinho por paixão e criou a “Wine Tellers”, um projecto onde pretendia, já na altura, comunicar o vinho de forma diferente. Entretanto, foi sommelier no hotel The Yeatman e sommelier responsável no Le Monumental Palace, ingressando, simultaneamente, especializações académicas na área dos vinhos. Voltando à sua “antiga casa”, esteve na génese do museu Wine Experience do WOW antes de assumir a direcção da The Wine School, sendo actualmente responsável por uma equipa permanente de quatro formadores.
Bilingue, com oferta em português e inglês, a Escola de Vinho do WOW dá-nos a sensação de estarmos mesmo numa escola, começando num átrio central que dá acesso a salas de aula, salas de prova e uma sala privada com cozinha, além de zonas de apoio como a cozinha e a copa. Foi construída de raíz com este propósito, por isso as condições e os vários espaços são exímios. As salas de aula e prova estão, por sua vez, equipadas com módulos independentes de ar condicionado, que têm filtros de carvão e mecanismos que colocam a área em pressão positiva, elementos que “anulam cheiros e impedem a contaminação de aromas”, explica José Sá. Também não faltam equipamentos de frio para os vinhos e outros de higienização profissional para os copos. “Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada”, refere o director.
A vertente académica
É a primeira escola em Portugal a leccionar o WSET — entidade internacional líder na educação em vinhos e bebidas espirituosas — também em inglês, além de português, nos níveis 1 e 2, no entanto, o foco não é apenas o contexto vínico internacional, mas também o vinho português e o contexto nacional. Prova disso é, a título de exemplo, o programa desenvolvido de forma original pela equipa da escola, o “Portuguese Wine Specialist” (PWS), que permite estudar em detalhe os vinhos portugueses com a mesma metodologia do WSET. Este é um programa de dois níveis, para já — “Nível 1: Saber de vinho em Portugal” (€75) e “Nível 2: Entender as regiões portuguesas” (€185) — e não obriga a participação no WSET, embora a escola tenha disponíveis packs vantajosos que juntam os dois programas.
Na certificação WSET, tentam oferecer uma experiência mais enriquecedora, indo para além dos mínimos exigidos pelo programa. “Incluímos mais 20% de vinhos do que o obrigatório nos dois níveis WSET, bem como mais uma hora no nível 1 e mais duas no nível 2”, adianta José Sá, que revela, ainda, que o nível 3 chegará à The Wine School em 2024, e que pretendem vir a ter disponível o mais recente WSET em cerveja.

“Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada.”
Mais que Uma Prova
Num registo diário e lúdico, das 11h00 às 19h00 e sem marcação obrigatória, as sessões “Mais que Uma Prova” têm o objectivo de “democratizar o conhecimento sobre o vinho”. As provas personalizadas (desde €20 por pessoa), com duração de 30 minutos, dividem-se em várias opções: selecção de três vinhos; selecção de cinco vinhos, harmonização de dois vinhos e duas trufas de chocolate; ou harmonização de três vinhos e três queijos. Já a prova “Desmistificar o Vinho” (€35) dura 45 minutos, inclui cinco vinhos, aborda um destes temas à escolha: “Como provar vinho”, “História e estilos de vinho do Porto”, “Regiões portuguesas” ou “Harmonização de vinho e chocolate”.
Cursos Práticos
Concebidos tanto para curiosos como para profissionais da área, os cursos práticos são dados a turmas pequenas e podem ser organizados de forma privada, como momentos de teambuilding ou outras ocasiões especiais. São cursos como “Introdução ao vinho e à prova” (€45 por pessoa), com duração de três horas e prova de oito vinhos; ou “Vinhos fortificados portugueses” (€185), com duração de cinco horas e prova de doze vinhos; entre outros.
Provas Exclusivas
Estas são sessões de prova personalizadas, em ambiente privado, com vinhos “excepcionais e icónicos” e garantia da “máxima atenção especializada a cada provador e a cada tema”. As sessões já desenhadas pela escola têm vários temas e preços dos €95 aos €225, consoante o número e tipologia de vinhos, mas também é possível organizar à medida. As Provas Exclusivas têm, ainda, a vantagem de poderem ser realizadas a bordo de um iate, no rio Douro.
Para Além da Uva
As masterclasses (€45) ou provas (€25) “Para Além da Uva” fazem parte do calendário anual e são anunciadas nas redes sociais da The Wine School e na página da escola em wow.pt. Nestas, são convidados especialistas do sector do vinho, de outras bebidas e da gastronomia em geral, para orientar sessões aprofundadas sobre temas específicos e tendências de interesse. Os convidados podem ser, por exemplo, enólogos, produtores, chefs de cozinha, sommeliers, jornalistas, entre outros.
E muito mais…
A Escola de Vinho do WOW está também a iniciar-se na organização de Tours no segmento premium, por várias regiões vitivinícolas de Portugal. Em marcha está a construção de uma zona exterior de balcão e a introdução de pequenos momentos educativos de harmonização no átrio e no futuro balcão exterior, bem como a criação de livros originais de apoio aos cursos.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
Grande Prova: Brancos da Bairrada

A liga dos duros Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do […]
A liga dos duros
Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do país, com ligeiro pendor a norte, compreendendo os concelhos de Anadia, Mealhada, Oliveira do Bairro e também, ainda que parcialmente, os de Águeda, Cantanhede, Vagos e até Coimbra. No que diz respeito a outras regiões vitivinícolas, delimita a Norte com Lafões (não se afastando muito dos Vinhos Verdes), e a Este a região do Dão. É um território muito específico, podendo ser resumido como um planalto de baixa altitude, circunscrevido ora pelo Oceano Atlântico a Oeste, ora pelas Serras do Caramulo e Buçaco a Este, com notórias tradições gastronómicas muito próprias, do leitão ao espumante, passando pela aletria.
Mas voltemos à história recente: a explicação para tão poucos anos excelentes, no que a tintos dizia respeito, centrava-se na relação entre casta e o clima atlântico que caracteriza a região, sobretudo em anos chuvosos. Com forte propensão para precipitação no início de setembro, era habitual a casta Baga – a principal tinta da região e tardia na maturação – não estar totalmente madura aquando das primeiras chuvas, originando o perfil menos consistente e mais rústico por vezes comum na região até há duas décadas. Claro que, nos anos mais quentes e secos, a Baga amadurecia bem dando origem a tintos encorpados que, mesmo acima dos 14% vol., retinham a acidez e os taninos necessários para uma excelente prova, mais a mais mantendo os vinhos longevos por décadas. Foram, essencialmente, esses tintos que deram fama à região.
Hoje, como sabemos, o clima não é exactamente o mesmo de há três ou quatro décadas, com uma subida notória da temperatura média anual, o que provoca uma vindima mais precoce e, com isso, reduz-se o risco de uma vindima à chuva. Todavia, a Bairrada é ainda caracterizada por verões amenos, para não dizer mesmo com noites frias e neblinas marcadas pelos ventos de Oeste e Noroeste claramente vindos do Atlântico. Tanto assim o é que, no Verão e início de Outono, a amplitude térmica chega a uns impressionantes 20ºC, com destaque para o eixo entre Oliveira do Bairro e Luso (passando por Anadia e Mealhada), sendo Cantanhede ligeiramente mais quente em média. Sucede que, actualmente, com a crescente procura por vinhos mais frescos e de acidez vibrante, e com o Sul e interior do nosso país a atingirem temperaturas elevadíssimas, o perfil atlântico e pouco solarengo da Bairrada é uma vantagem evidente, em particular nos brancos, aos quais nos dedicaremos nas próximas linhas (para não falar dos espumantes, onde a Bairrada é a principal região produtora e aquela com mais tradição em Portugal).
UVAS QUE EXPRESSAM O LOCAL
Se quanto ao clima já nos referimos, importa recordar que, ao nível dos solos, a Bairrada é caracterizada por manchas e afloramentos argilo-calcários de origem jurássica e triássica, perfis reconhecidamente privilegiados para vinhos distintos (em Portugal, o perfil mais parecido será o dos terrenos calcários de Bucelas, cujos DOC são obrigatoriamente brancos). Dentro da região, os melhores locais para vinho são ainda caracterizados pelos típicos “barros”, solos argilosos, mas sempre com o teor de calcário a marcar a identidade da região. Em Cantanhede, Mealhada, Anadia e, mais a Norte, em redor de Oliveira do Bairro, podemos encontrar vários solos calcários e margas ou calcários margosos, geralmente com alguma percentagem de limo bastante poroso. Não espanta, assim que a quase totalidade dos vinhos aqui provados venham de vinhas com presença de calcários, algo que se pressente em prova pela finura e frescura que manifestam, tanto os mais vinhos mais novos, como aqueles com mais estágio em garrafa. Uma excepção é o requintado Quinta de Foz de Arouce, de uma vinha de Cercial próxima da Lousã, cuja localização, e respetivo solo xistoso, levam a que seja certificado como Beira Atlântico.
Outro factor de sucesso são as castas nacionais bem-adaptadas à região, algumas delas quase exclusivas da Bairrada. Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas. Ora, se em algum lugar no nosso país faz sentido afirmar que as castas expressam o terroir, esse lugar é a Bairrada. Com efeito, mesmo as castas mais expressivas do ponto de vista da fruta e até “maduronas” — como a Chardonnay — revigoram na Bairrada e dão lugar a vinhos finos, recatados e de acidez crocante. O Arinto, por sua vez, já de si propenso a um perfil seco e com boa acidez, marca presença em muitos lotes, sendo eleita muitas vezes a solo nos topos de gama fermentados ou estagiados em barrica, como podemos verificar na presente prova (excelente, a edição única do vinho Doravante de uma vinha de Arinto entretanto já arrancada).
Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas.
O FACTOR HUMANO
Deixámos para o fim um dos factores diferenciadores da região mais desafiador: os produtores. A típica persistência bairradina, e a lendária capacidade dos bairradinos em perpetuar as suas tradições, faz com que, em 2023, estejam a ser lançados vinhos elaborados da mesma forma que o eram há mais de 50 anos, por exemplo com fermentações em tonéis antigos de madeira. São, em muitos casos e como esta prova demonstrou, produções mínimas (por vezes, pouco mais de 500 garrafas), de vinhos lançados com vários anos em garrafa (por vezes até 5 anos). É, certamente, a liga dos duros! Com efeito, existe um punhado de produtores absolutamente “clássico”, cuja qualidade e originalidade dos vinhos brancos é elogiada internacionalmente. Nomes e marcas como Quinta das Bágeiras, Casa de Saima, Frei João (Caves São João), Sidónio de Sousa, fazem parte desse lote juntamente com outros. Esta identidade é tão marcada que, mesmo gerações mais novas e produtores mais recentes, continuam esse legado de tradicionalismo assente em vinhas velhas e enologia pouco interventiva, como é o caso dos produtores Filipa Pato & William Wouters, Niepoort Vinhos (que entrou na região há mais de uma década), Luís Gomes (Giz) ou os projectos de enólogos como V Puro e Botão, entre tantos outros. Mas não se pense que a região não tem inovadores, alguns deles, aliás, pioneiros e responsáveis durante décadas por colocar a Bairrada no mapa internacional. Caso de Luís Pato, inovador nas mondas e na utilização de meias barricas francesas; ou de Carlos Campolargo, experimentando todo o tipo de castas, das mais típicas da região às internacionais, muitas vezes em estreme; e passando pelos vinhos ambiciosos e monumentais de João Póvoa, primeiro na Quinta de Baixo e, desde 2005, no projecto Kompassus. Igualmente importantes serão outros produtores de origem local, com várias gerações de vinhos “às costas”, e que persistem em apresentar, ano após ano, vinhos cada vez melhores respeitando o ADN da Bairrada, ou seja frescura, acidez e carácter, caso de Jorge Rama, António Selas, Regateiro, entre outros.
Com tantas razões para brancos de excelência, não espanta que os dados disponíveis apontem para a produção crescente destes vinhos certificados enquanto DOC Bairrada. Em 2022, foram quase 610 mil litros, um terço mais do que a média dos 10 anos anteriores. Boas notícias, portanto! Com este volume e, sobretudo, tanta qualidade a preços relativamente cordiais (os vencedores da prova custam menos de €30 a garrafa), não queira ser um daqueles a passar ao lado de alguns dos melhores brancos de Portugal…
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
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Niepoort Vinhas Velhas
- 2017 -
Luis Pato Parcela Cândido
- 2021 -
Kompassus Private Collection
- 2019 -
Casa de Saima
- 2021 -
Quinta das Bágeiras
- 2021 -
Doravante
- 2017 -
Singular
Branco - 2019 -
Sidónio de Sousa
Branco - 2021 -
Quinta dos Abibes
Branco - 2017 -
Milheiro Selas
Branco - 2018 -
Medusa
Branco - 2018 -
Rama Carvalho Grande
Branco - 2019 -
Arco d’Aguieira
Branco - 2019 -
Trabuca Cercial da Bairrada
Branco - 2020 -
Regateiro Raízes de Família
Branco - 2019 -
Encontro 1
Branco - 2015 -
Ortigão 4/16
Branco - 2017 -
Messias
Branco - 2007 -
Marquês de Marialva
Branco - 2016 -
Giz Vinhas Velhas
Branco - 2020 -
Frei João
Branco - 2020 -
Casa do Canto 3 Barricas
Branco - 2018 -
Campolargo Barrica
Branco - 2021 -
Botão Vinha das Lamas
Branco - 2021
Estive lá: A tasca gourmet do Baleal

Taberna do Ganhão A praia do Baleal, por força da importância dos desportos náuticos – surf à frente de tudo – tornou-se uma povoação híper-cosmopolita. Aqui encontra-se, ao longo de todo o ano, gente das mais diversas paragens que vem ao apelo das ondas. Não admira, assim, que a oferta de surf camps (com este […]
Taberna do Ganhão
A praia do Baleal, por força da importância dos desportos náuticos – surf à frente de tudo – tornou-se uma povoação híper-cosmopolita. Aqui encontra-se, ao longo de todo o ano, gente das mais diversas paragens que vem ao apelo das ondas. Não admira, assim, que a oferta de surf camps (com este ou outros nomes parecidos) tenha verdadeiramente explodido. Com tanta gente vinda de fora é normal que a oferta restaurativa se tenha também diversificado: hoje há restaurantes japoneses, mexicanos, italianos, casas de cozinha de autor ao lado de tascas à antiga, que servem frango assado com batata frita. Na “ilha” do Baleal (outrora ficava em ilha na maré cheia) abriu, em Junho de 2015, a Taberna do Ganhão, no espaço onde antes havia uma taberna com o mesmo nome, onde se ia atestar os garrafões de vinho e beber uma mini. Samuel Ganhão, neto, decidiu reabrir este espaço com a irmã e o cunhado, e servir petiscos. Com o sucesso, além dos petiscos serve também pratos de maior “peso”. O conceito é simples: abre às 12h30 e fecha às dez da noite, e nesse período serve tudo, a qualquer hora, porque tudo é feito ao momento. Não há reservas, serve-se por ordem de chegada. Quer almoçar às cinco da tarde? Sem problema! A lista é bem variada e, depois de muitas provas, posso afirmar que os “must” da casa são o pica-pau de atum, o polvo braseado, o camarão picante, as batatas bravas, os ovos com farinheira, e a morcela com ananás grelhado. Nos pratos de maior sustância, além do citado polvo, há caril de frango ou de camarão, bacalhau, bifes e prato vegetariano. Carta de vinhos muito alargada com preços altamente convenientes, como o espumante Baga-Bairrada rosé da Casa do Canto, que aqui custa 18 euros. Mas, repare-se, a lista vai até Guru e Quinta da Ervamoira. Digestivos a preço de saldo. O menu, pouca alteração teve desde 2017, não havendo, por isso, pratos do dia. Com a exiguidade da cozinha, seria difícil pedir mais e assim se percebe que os acompanhamentos sejam iguais em vários pratos. Sobremesas com boas sugestões. Com fecho ao domingo, a Taberna está também encerrada de 1 de Janeiro a 15 de Março.
Taberna do Ganhão
Largo dos Amigos do Baleal 1, 2520-001 Peniche
Contacto: taberna.do.ganhao@gmail.com
Quinta do Cardo: Um pioneiro da Beira Interior

Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se […]
Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se bem antes disso. Situada junto à aldeia medieval de Castelo Rodrigo, a história vitivinícola “moderna” da Quinta do Cardo tem início em 1932, com a plantação dos primeiros talhões de vinha pelo casal José António Andrade Maia e Esmeralda Aguilar Fonseca Maia, a quem seu pai tinha oferecido a propriedade. Mantida na família até ao início dos anos 80, acabou por ser perdida ao jogo (imagine-se!) e colocada em hasta pública. E assim, em 1983, os 200 hectares da quinta (dos quais 12 de vinha tradicional) chegaram às mãos de Maria Luíza Lima e do seu marido, Artur Ribeiro da Silva.
Maria Luíza e Artur não eram estranhos ao mundo do vinho, longe disso. Ambos engenheiros, ela tinha um conhecimento profundo da produção vitivinícola, enquanto profissional em empresas de topo e proprietária no Douro; e ele foi, sem dúvida alguma, um dos mais brilhantes criadores de equipamentos para a indústria do vinho nos anos 80 e 90, através da empresa Vinipal, com várias patentes registadas no curriculum.
Não espanta por isso que a nova adega, por eles construída em 1984, integrasse o que de mais moderno havia em equipamento enológico na época, incluindo, por exemplo, remontagem gasosa para vinificação de tintos, estabilização pelo frio em contínuo, prensa pneumática, pasteurização flash e cubas com atmosfera inerte. Quando, no início de 1990, a visitei pela primeira vez, a adega era um verdadeiro centro de investigação e experimentação da tecnologia do vinho.

Também a vinha foi objecto de grandes ampliações, tendo sido plantados, ao longo dos anos, mais de 40 hectares, num mix entre as castas identitárias da região (Síria, Arinto, Mourisco) e as que na vizinha região do Douro tinham provas dadas (Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Francesa). O pioneirismo da adega estendeu-se à abordagem vitícola: todas as parcelas foram instaladas em regime de proteção integrada (algo raro numa época em que o conceito de sustentabilidade ambiental era praticamente desconhecido) e com rega gota-a-gota. Inovador para aqueles tempos, foi também o facto de o casal ter encarado a vinha velha como um tesouro a preservar, tendo-a recuperado e suprido as falhas das cepas mortas. O primeiro branco com o rótulo Quinta do Cardo nasceu em 1986 e dois anos depois o primeiro tinto. A marca tornou-se famosa em muito pouco tempo, sobretudo pelos brancos, uma notoriedade que terá certamente beneficiado da conjugação entre um terroir perfeitamente adequado e uma adega onde avançados sistemas de frio imperavam. Nos melhores restaurantes de Lisboa e Porto, ouvia-se pela primeira vez falar de vinhos de Castelo Rodrigo. E jornalistas novos no ofício, como era o meu caso, estreavam-se a provar nas cubas brancos e tintos estremes de Síria, Rufete e Mourisco.
Com propriedade e marca tão apetecíveis, Maria Luíza Lima e Artur Ribeiro da Silva acabariam por não resistir à proposta da Companhia das Quintas que em 1999 iniciava o seu ambicioso projecto de instalação nas principais regiões de Portugal. Foi esta empresa que concluiu a plantação das novas vinhas e ampliou a adega tendo em vista o aumento da produção. Em 2009 todos os vinhedos do Cardo passaram ao sistema de produção biológico, certificado pela Sativa, tornando-se assim no primeiro produtor nacional a fazê-lo naquela escala. Em 2014, a certificação bio estendia-se a todos os vinhos da Quinta do Cardo.
Com o aproximar do final da década, os problemas financeiros que a Companhia das Quintas atravessava levaram a forte limitação dos investimentos nas propriedades, primeiro, e posterior desagregação da estrutura produtiva. Depauperada, quase sem actividade, a Quinta do Cardo seria então adquirida pelo casal Artur Gama e Eva Moura Guedes, que trouxeram para a sociedade outro membro da família, António Mexia. E assim, a mais histórica referência da Beira Interior ganhava uma nova vida e uma segunda oportunidade.
Uma nova vida
Artur Gama e Eva Moura Guedes já sabiam o que custa produzir vinho e colocar uma marca a rodar no mercado. Afinal de contas, desde 2015 que tinham em mãos a Quinta da Boa Esperança, na região de Lisboa, a que se soma a vasta experiência de Artur no trading de vinhos. Mas porquê, agora, a Quinta do Cardo? “Foi resultado de uma oportunidade, mas também de um ‘amor à primeira vista’. Quando percorremos o caminho que nos levou à quinta, ficámos desde logo marcados pela beleza, pela história, pelo silêncio, pela relação das pessoas com estas terras altas”, revela Artur Gama. O potencial para as práticas sustentáveis foi outro factor de decisão. “A localização do Cardo, o seu clima, altitude e natureza do terroir, tornam este projecto vinícola particularmente adaptado às alterações climáticas e à consequente necessidade de reduzir o consumo de água e de adoptar métodos de agricultura regenerativa, permitindo o desenho de vinhos de grande qualidade, amigos do ambiente e, ainda, das novas tendências em termos de consumo”, explica o produtor.
A experiência e os resultados obtidos pelo modelo de produção integrada na Quinta da Boa Esperança (situada numa região bem mais difícil para estas práticas, devido à humidade) ajudaram a fortalecer a convicção dos sócios de que a Quinta do Cardo só faria sentido com a aposta “numa visão sustentável integrada – nas vertentes ambiental, económica, social e cultural.” A história pioneira da Quinta do Cardo na agricultura biológica era igualmente trunfo a não desperdiçar.
Não foi nada fácil, porém, colocar a propriedade de novo em marcha. Quando da sua aquisição, em 2021, a Quinta do Cardo estava praticamente inoperacional. A vindima de 2020 não chegou a ser feita, o sistema de rega estava desactivado, a vinha sem cuidados, o parque de máquinas não existia, a adega tinha muitos problemas infra-estruturais e tecnológicos. Foi preciso intervir rápido e estabelecer prioridades: “reparar” a vinha e recuperar equipamentos de adega, para garantir a vindima de 2021. Após estas intervenções urgentes que devolveram a operacionalidade da Quinta, fizeram-se os primeiros investimentos estratégicos. Assim, em 2022 foram plantados 10 hectares com Síria, Arinto e Malvasia Fina, sobretudo, e também Rufete. Uma nova captação e sistema de irrigação automatizou parte significativa da vinha existente. Ao mesmo tempo, adquiriram-se tractores, alfaias agrícolas, uma bateria de cubas para vinificação de brancos e reestruturou-se o parque de barricas. “Todas as intervenções feitas até agora tiveram como propósito aprofundar a dimensão da sustentabilidade, nos seus quatro pilares, e valorizar o contexto extraordinário da Beira Interior para a exploração vinícola e para a produção de vinhos”, diz Artur Gama.
“O Futuro da Quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos
Um território único
A Quinta do Cardo merece, na verdade, todo o carinho que lhe possam dar. E, dando-lhe oportunidade, ela retribui com vinhos que expressam um território pleno de singularidades. A começar pelo clima. A serra da Marofa e Castelo Rodrigo, ali ao lado, ajudam a suavizar os ventos continentais e limitam a ocorrência de granizo. A uma altitude média de 750 metros, os Invernos são rigorosos, os abrolhamentos tardios, as maturações lentas (preservando a acidez das uvas), com grandes amplitudes térmicas no Verão, favorecido com noites frescas. As vinhas do Cardo estão plantadas em solos profundos, com pouca matéria orgânica, enorme prevalência de argila, com pH ácido e rocha-mãe de granito quartzítico a mais de 2 metros de profundidade.
A área actual de vinha ronda os 80 hectares, com destaque para algumas parcelas “históricas”. É o caso da Vinha do Lomedo, plantada no início dos anos 70. São cerca de 10 hectares de Síria, a uva branca identitária da Beira Interior, onde nascem consistentemente vinhos de excelência, tornando-a uma verdadeira referência regional e nacional desta casta. A Vinha do Pombal, com mais de 25 anos, é outra parcela estreme: exclusivamente Touriga Nacional, 4 hectares de cepas plantadas com compasso apertado, dá origem a alguns dos melhores tintos da casa. Já a Vinha do Castelo, plantada em 1999 com Tinta Roriz, está a ser trabalhada para, no futuro, originar também ela um vinho de parcela. Para além destas, encontramos noutros talhões Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, além de pequenas parcelas de Tinto Cão, Alicante Bouschet, Merlot e Caladoc.
Tirando a vinha plantada em 2022 com Síria, Arinto, Malvasia Fina e Rufete, foi isto que os enólogos Jorge Rosa Santos e Rui Lopes encontraram quando foram convidados a “tomar conta” da produção da quinta. “Chegámos em Agosto de 2021”, recorda Jorge, “e felizmente a vindima apenas começou em meados de Setembro, o que nos deu tempo para programar a colheita, fazer revisões na adega e, na medida do possível, conhecer as vinhas, muito com a ajuda do Sr. Ermindo Coelho o feitor da casa, que aqui já fez 35 vindimas.” Jorge e Rui têm apenas duas vindimas na Quinta do Cardo (quando escrevo estas palavras estarão à beira da terceira que, segundo eles, “promete imenso”), mas dois anos são suficientes para perceberem o que têm em mãos. “A quinta tem um potencial tremendo”, refere Rui Lopes. “Logo na vindima de 2021, e com a vinha no estado em que estava, foi possível produzir brancos de enorme finura, precisão, mineralidade e elegância e tintos expressivos e genuínos, com taninos firmes e marcadas nuances balsâmicas”, acentua.
De então para cá, a equipa de viticultura da casa tem vindo a desenvolver trabalhos que vão permitir aumentar a produtividade – tremendamente escassa, é o maior problema da quinta, afectando a rentabilidade – e a qualidade das uvas. Para tal, foram alteradas as podas em alguns talhões, com a descompactação do solo, correcção do pH, incorporação de matéria orgânica e enriquecimento do coberto natural com sementeiras. “A vinha está a reagir de forma fantástica”, exulta Artur Gama, “ela percebe quando é bem tratada…”
Orgânico é marca da casa
Como atrás referi, todas as vinhas da Quinta do Cardo são trabalhadas em modo orgânico desde 2009, um compromisso e uma forma de estar que saem reforçadas com os seus novos proprietários. Mas quais são os principais desafios colocados pela viticultura orgânica na Quinta do Cardo? Jorge Rosa Santos responde: “O modo de produção orgânico em regiões ou vinhas com chuva ou humidade frequentes pode ter consequências drásticas para a própria preservação ambiental, seja pela sobredosagem de cobre e enxofre ou gasto desmesurado de combustível no controlo da flora na linha e entre-linha. Já para não mencionar o impacto enorme na produtividade, o qual, acrescido ao modo de produção mais trabalhoso, torna o vinho mais caro ao consumidor.” Não é o caso da Quinta do Cardo, que parece talhada para o modelo bio. “Estamos a 750 metros de altitude, temos aqui um ciclo vegetativo curto, abrolhamento tardio e amplitudes térmicas enormes”, salienta Jorge. “Além disso, a precipitação média anual, tal como em toda a região do Ribacôa, é muito baixa. Ou seja, estão reunidas todas as condições para operarmos em modo produção orgânico, sem redução da produção. Em termos vitícolas, o maior desafio prende-se com o controlo da flora na entrelinha e com as intervenções na sebe, que permitam o bom arejamento”, conclui.
Existem riscos, claro, mas a equipa está preparada para eles. “Sabemos que teremos anos mais desafiantes do que outros”, diz Rui Lopes. “As vindimas de 2002, 2010, 2014 foram problemáticas. Por dedução lógica, a cada 10 vindimas, teremos talvez duas com problemas de sanidade e consequente baixa produtividade. Mas, actualmente, temos as nossas vinhas com um vigor médio-baixo, logo uma sebe bastante arejada e produtividade média-baixa, pelo que o risco é moderado. Além disso as vinhas são todas ao alto e em parcelas contíguas, o tempo de reacção para um tratamento orgânico é muito rápido”, remata o enólogo.
Para o produtor, Artur Gama, não subsistem quaisquer dúvidas: “Apesar de todos os riscos, acreditamos que nesta região a produção em modo orgânico é, neste momento e nos anos vindouros, a escolha certa. A região tem ganho espaço e reconhecimento, mas no posicionamento médio-alto continua a ter algumas dificuldades. A nossa missão é apostar nesse posicionamento e achamos que o modo de produção orgânico contribui como factor de diferenciação. Além de estar absolutamente alinhado com os nossos valores institucionais de sustentabilidade.”
“Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes
Castas e identidade
Variedade identitária da Beira Interior, a casta Síria tem lugar de destaque na Quinta do Cardo. “O futuro da quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos. “Acreditamos muito no potencial da casta a esta altitude e nestes solos. Tem enorme maleabilidade, pois aceita bem a madeira ou o estágio sobre borras em cuba de inox. E em casos especiais consegue representar muito bem a identidade da parcela, como no caso do branco Vinha do Lomedo”, acrescenta. Certamente por isso, a casta representa 90% da área de branco da Quinta do Cardo. Já nos tintos, o panorama é algo diferente. Apesar de produtor e enólogos estarem muito satisfeitos com o desempenho de variedades como Touriga Nacional ou Touriga Franca, reconhecem a necessidade de uma maior representatividade das castas autóctones no encepamento da propriedade. “Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes. “Vamos manter alguma Tinta Roriz, que tão bom resultado tem na Beira Interior e em regiões vizinhas portuguesas e espanholas. Mas, acreditamos que esta região terá também potencial para outras castas portuguesas, tal como a Trincadeira e Alicante Bouschet, esta última com excelentes resultados, numa pequena parcela que temos”, adianta. A Garnacha, amplamente plantada ali bem perto, do outro lado da fronteira, nas regiões de Arribe e de Toro, é outra possibilidade para ensaiar quando existir oportunidade.
Hoje, a Quinta do Cardo está a produzir cerca de 300 toneladas de uva/ano, mas quando a vinha plantada em 2022 entrar em plena produção, será possível atingir as 400 toneladas. A vindima de 2022 deu origem a cerca de 200.000 garrafas. O mercado nacional é o destino de cerca de 70% das vendas, com a exportação a subir tendencialmente, ampliando os principais mercados já existentes (Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa central) e abrindo outros.
Artur Gama tem uma visão muito clara do que pretende para a sua mais recente aposta vitivinícola: “Vemos a Quinta do Cardo a afirmar-se como o projecto de referência da Beira Interior e como líder nos vinhos orgânicos. No final desta década queremos ultrapassar o milhão e meio de garrafas, num posicionamento de segmento alto e muito virado para exportação, onde se valoriza a componente orgânica e a sustentabilidade global.”
Sustentabilidade que, como faz sempre questão de realçar, não deve ser apenas ambiental, mas também económica, social e cultural. Nesse sentido, há algo que o preocupa e que, infelizmente, não é novo e nem exclusivo da Beira Interior. “Estamos particularmente inquietos com a desertificação da região e com os inerentes problemas sociais e económicos criados”, diz. “Também por isso, queremos contribuir positivamente para os atenuar, estabelecendo parcerias com empresas, polos de ensino locais e com o concelho de Figueira Castelo Rodrigo, para o desenvolvimento de projectos nas áreas cultural, social e de investigação. Não tenho dúvidas: a Beira Interior será ‘the next big thing’. Tivemos a sorte de encontrar a Quinta do Cardo. Queremos partilhá-la.”
(Artigo publicado na edição de Stemebro de 2023)
Vinalda celebra parceria com a Waterford Distillery

Mark Reynier comprou em 2014, no Sudeste da Irlanda, uma moderna cervejeira e transformou-a numa destilaria topo de gama. Ali, nas margens do Suir, pôs em prática o seu conceito de whisky inspirado nos produtores de vinho dos Chateâux franceses, que acompanhou nos mais de 20 anos como negociante: Whisky Natural, orientado pela Cevada e […]
Mark Reynier comprou em 2014, no Sudeste da Irlanda, uma moderna cervejeira e transformou-a numa destilaria topo de gama. Ali, nas margens do Suir, pôs em prática o seu conceito de whisky inspirado nos produtores de vinho dos Chateâux franceses, que acompanhou nos mais de 20 anos como negociante: Whisky Natural, orientado pela Cevada e pelo Terroir.
José Espírito Santo, diretor-geral da Vinalda conta que: “na sequência de uma pesquisa de mercado intensa, ficamos maravilhados com a prova cega dos whiskies da Waterford e não descansamos enquanto não trouxemos para Portugal o Single Malt Whisky mais natural, puro e com os sabores mais profundos do mundo!”
“É um prazer trabalhar com a Vinalda e trazer o nosso whisky natural para Portugal. Esta abordagem de sabores naturais, orgânicos e biodinâmicos, apesar de ser nova para os fãs de whisky, é bem apreciada por gastrónomos, gourmets e conhecedores – tanto os amantes de vinho como os fãs de comida – por isso, estou entusiasmado por fazer esta parceria com a Vinalda, uma empresa que combina de forma semelhante a experiência e a tradição com uma perspetiva fresca e moderna”, afirma Mark Reynier, fundador e CEO da Waterford Distillery.
No solarengo Sudeste da Irlanda, aquecido pela corrente do Golfo, o ar temperado e húmido atravessa solos férteis, a empresa considera ter todas as condições para produzir “a melhor cevada do mundo”. Assim, trabalha com mais de 100 quintas locais que dão origem a três gamas de Whiskies: Single Farm Origin, que perseguem o individualismo do sabor derivado do terroir e são os blocos de construção dos Cuvée Concept, onde o todo é maior do que a soma das partes; por fim, a gama Arcadian Farm Origin exprime a intensidade do sabor resultante da exploração dos caminhos antigos – da cevada biológica, biodinâmica, Heritage e até da cevada ‘Peated’ irlandesa.