CARCAVELOS VILLA OEIRAS: O renascer de um ícone
O projecto Villa Oeiras é muito mais do que uma iniciativa de produção de vinhos de Carcavelos, uma das mais pequenas regiões vitivinícolas de Portugal. É, sobretudo, uma iniciativa de recuperação de um património único, que se poderia ter perdido se a Câmara de Oeiras não se tivesse envolvido nisso. De outra forma, seria quase […]
O projecto Villa Oeiras é muito mais do que uma iniciativa de produção de vinhos de Carcavelos, uma das mais pequenas regiões vitivinícolas de Portugal. É, sobretudo, uma iniciativa de recuperação de um património único, que se poderia ter perdido se a Câmara de Oeiras não se tivesse envolvido nisso. De outra forma, seria quase impossível impedir o avanço imobiliário sobre os espaços ainda livres deste concelho e de Cascais, onde a denominação está inserida. Como salienta o seu coordenador, Alexandre Lisboa, a autarquia está envolvida nesta iniciativa, “porque é de recuperação de um património de vitivinicultura, paisagístico e cultural, de uma região onde a Vitis vinifera, a videira europeia, está presente desde a última glaciação”. Acrescenta que é ali “cultivada há mais de dois mil anos e há relatos sobre os seus vinhos com 500 anos”.
A região aguentou a devastação causada pelo míldio, oídio e filoxera, que ocorreu em todo o país, recuperando e voltando a lançar vinhos com reconhecimento nos mercados nacional e internacional depois do início do século XX. Mas não conseguiu lutar contra o crescimento urbano sem a intervenção do estado, neste caso das Câmaras de Oeiras e Cascais, que reservaram, nos seus territórios, zonas que estão agora protegidas para a produção de Vinho de Carcavelos. Isso tem contribuído para o crescimento da área de vinha na região para os mais de 30 hectares actuais, e para a garantia que esta não vai colapsar.
Vinhas quase urbanas
Quando o projecto Villa Oeiras começou, existiam 12 hectares de vinha em produção em toda a denominação, divididos por cinco quintas diferentes. Eram microparcelas inseridas nas Quintas da Samarra, dos Pesos, Mosteiro de Santa Maria do Mar e na Estação Agronómica de Oeiras, a Quinta do Marquês do Pombal. “Era o que existia nos anos 80, mas hoje em dia há muito mais”, avança Alexandre Lisboa. Só a da Quinta do Marquês do Pombal, aquela que é gerida pela Câmara de Oeiras, tem 20 hectares, de um total de 33 que compõem toda a vinha que dá origem ao vinho de Carcavelos.
Mas, segundo o responsável, a região poderá chegar aos 41 hectares de vinha nos próximos anos, se todos os direitos de plantação forem usados. Claro que isto corresponde a um quintalinho em relação a toda a região de Lisboa, onde estão também inseridas as denominações históricas de Bucelas, a maior, e Colares, que tem actualmente cerca de 40 hectares de vinha.
Carcavelos inclui entre outros, para além da Câmara de Oeiras, a Câmara de Cascais, que começou a produzir vinhos há três anos na Quinta do Mosteiro de Santa Maria do Mar, a Quinta dos Pesos, que não está a produzir mas ainda está a engarrafar, a Quinta da Samarra, que tem 1,9 hectares, a Quinta de Valverde, que plantou dois hectares e o ex-chefe de cozinha Vitor Claro e a Adega de Belém, que compram uvas na Quinta da Ribeira e vinificam na Adega do Casal Manteiga, da Câmara de Oeiras. “São essencialmente vinhos de uvas tintas, que são transformadas na nossa adega”, conta Alexandre Lisboa, acrescentando que a sua autarquia cede as instalações porque quer que a região seja saudável e continue a produzir vinhos durante muitos mais anos. “Para que isso aconteça, abrimos as portas da nossa adega a outros produtores, para que possam transformar aqui as suas uvas e produzir Carcavelos, já que esta é a única adega a funcionar na região”, acrescenta.
Em busca do conhecimento
Em 2006, quando começou o envolvimento da Câmara de Oeiras na recuperação do património vitivinícola de Carcavelos, havia apenas um produtor, apesar de haver registo de produção todos os anos, mesmo que apenas de coisas muito pequenas, de mil, dois mil litros de vinho. “A sensação que existia e que me foi passada por todos os players da região na altura, era que não valia a pena produzir vinho de Carcavelos, já que as pessoas nem sabiam se o vinho era, ou não, bom”, conta o responsável do projecto. E é, com algum entusiasmo, que relata que apenas encontrou duas referências quando fez a primeira pesquisa no Google sobre o vinho de Carcavelos, ou seja, que não havia nada de consistente sobre o tema em 2006, quando a Câmara de Oeiras se envolveu neste projecto e que hoje “há milhares”. Na altura, aquilo que se sabia sobre os Carcavelos vinha da prova de vinhos antigos, como os da Quinta do Barão dos anos 50, ou da Quinta da Alagoa dos anos 20. “Ainda há pouco tempo provei um de 1906, um vinho extraordinário”, revela Alexandre Lisboa.
Era, pois, premente recuperar este património. A iniciativa nasceu dessa necessidade, com a visão “de produzir um vinho de Carcavelos baseado na excelência e em processos produtivos de excelência, que seja uma referência nacional e internacional de qualidade”. Foi isto que ficou escrito, em 2006, no documento base naquele que é hoje o projecto Villa Oeiras. Afinal, já que era necessário recuperar um património vitivinícola único, “o melhor era ter, como objectivo, fazer o melhor Carcavelos do mundo”, defende o responsável.
Mas isso não era possível de concretizar sem conhecimento. Por isso, os responsáveis pegaram em todo o saber que tinha sido adquirido, desde os anos 80 do século passado até 2006, pela Estação Agronómica Nacional, como base para o desenvolvimento do projecto.
Era preciso aprender a fazer o vinho de Carcavelos. Mas também definir quais as características que deveria ter o vinho acabado de fermentar, qual a aguardente mais apropriada para parar o processo, e como é que os vinhos deviam saber e cheirar quando acabados de fortificar. Foram essas as perguntas que Alexandre Lisboa fez a Estrela Carvalho, a responsável pelo projecto dos vinhos de Carcavelos desde a década de 80, as mesmas que ela tinha feito quando começou a fazer os vinhos de Carcavelos, já que pouco se sabia sobre estes temas na altura. Apenas estavam definidos os aromas e sabores dos vinhos antigos, os que tinham sido engarrafados há muito, “através das provas que foram sendo feitas de referências da Quinta do Barão, dos Pesos, da Alagoa e do Paulo Jorge”. Ou seja, não havia nada escrito em relação à prova de vinho novo e não se sabia nada sobre as características dos vinhos acabados de fermentar, e à medida que evoluíam com o tempo. Por isso, houve que investigar e experimentar, para encontrar a fórmula mais correcta para produzir o vinho de Carcavelos.
Entre a plantação das primeiras vinhas na Estação Agronómica, em 1985, e 2006, quando a Câmara de Oeiras assumiu o projecto, fez-se muita investigação e experimentação com aguardentes de origens e qualidade diferentes. Nos Villa Oeiras é só usada aguardente vínica da Lourinhã, e, para Alexandre Lisboa, é apenas essencial a sua qualidade.
Saber esperar pelo vinho
Quando a câmara se envolveu no projecto foi necessário comprar pipas novas. “E fizemos isto porquê?”, interroga-se Alexandre Lisboa, explicando que não havia, naquela altura, qualquer estudo sobre o comportamento de madeiras em vinhos fortificados desta região. “E não podíamos perder a oportunidade de o fazer”, afirma. E, assim, os primeiros vinhos foram estagiados em madeiras de carvalho francês Limousin e Allier, carvalho nacional e castanho, com tosta média e forte. Como é evidente, ficaram marcados pela madeira e eram muito pouco apelativos no início, o que obrigou a espera prolongada e muitas provas para se ir avaliando a sua evolução, não só para se saber que tipo de vinhos originavam cada um destes tipos de madeira, mas também para identificar o período mínimo de estágio para o seu lançamento. Isso levou ao adiamento do lançamento de vinhos, mas, em paralelo, à aquisição de conhecimento sobre a melhor forma de fazer e envelhecer vinhos de Carcavelos, primeiro brancos e, algum tempo mais tarde, também tintos, porque o processo destes foi mais difícil de definir.
Depois de descoberto, de novo, o processo que dá origem à produção do vinho de Carcavelos, era necessário comunicar a região e os seus vinhos, não só para criar apetência no mercado, mas também para envolver mais produtores, como tem estado a acontecer. Primeiro foram publicitados os vinhos em cartazes por todo o concelho de Oeiras. Depois, foram feitas feiras temáticas como o “Há Prova em Algés”, que, este ano, já vai na 10ª edição, e outras.
“Temos também participado em feiras de vinhos um pouco por todo o país, de uma forma quase institucional, e concorrido em várias competições”, revela Alexandre Lisboa. Em 2021, a revista Grandes Escolhas classificou o Colheita Tinto 2009 como o Melhor Fortificado português, a par de dois vinhos do Porto, um Tawny 40 anos e um Vintage 2018. Classificações como estas também contribuíram para o projecto marcar posição no mercado e “para o reconhecimento da excelência do trabalho feito até hoje”. Segundo Alexandre Macedo, todos os anos o Villa Oeiras vende cerca de 50 mil garrafas, número que deverá crescer com o aumento da área de vinha. São vendidas em Portugal e exportadas para 15 países, sobretudo para os Estados Unidos, Brasil, Espanha e Reino Unido.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)
Howard’s Folly lança vinho DOC Carcavelos
É o projecto mais exclusivo do produtor sediado no Alentejo, em Estremoz. A Howard’s Folly acaba de lançar um vinho Carcavelos, uma colheita de 1991 que agora surge nesta “rara” Denominação de Origem de vinho fortificado. A ideia surgiu em 2015, quando o enólogo-chefe da Howard’s Folly, David Baverstock, surpreendeu Howard Bilton, fundador, com uma […]
É o projecto mais exclusivo do produtor sediado no Alentejo, em Estremoz. A Howard’s Folly acaba de lançar um vinho Carcavelos, uma colheita de 1991 que agora surge nesta “rara” Denominação de Origem de vinho fortificado.
A ideia surgiu em 2015, quando o enólogo-chefe da Howard’s Folly, David Baverstock, surpreendeu Howard Bilton, fundador, com uma garrafa sem rótulo de algo “muito especial”, sem lhe revelar o conteúdo. Uma hora depois, a garrafa estava vazia e David descortinou o segredo: tinha-se deparado com barricas de vinho de Carcavelos na adega da Quinta dos Pesos, em Caparide, São Domingos de Rana. Esta é uma das duas únicas adegas a produzir vinho Carcavelos. Os três anos seguintes foram passados a negociar barris de vinho velho para se chegar ao blend do Howard’s Folly Carcavelos 1991 (85% de 1991 e 15% de 1992).
Este vinho é feito de Arinto, Galego Dourado, Boal, Rabo de Ovelha, João Santarém e Espadeiro Tinto, e foi envelhecido em cascos de carvalho de 700 litros. Com um p.v.p. de 50 euros, está à venda no site da Howard’s Folly e em algumas garrafeiras do país, distribuído pela Wine Concept.
O regresso do ‘filho pródigo’
Esta é a história de um tonel muito especial. Uma história com muitas estórias pelo meio. Mas aqui vamos contar apenas a parte da chegada de uma espécie de filho pródigo, mais de um século depois. TEXTO António Falcão FOTOGRAFIAS Ricardo Palma Veiga A história começa no Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, por […]
Esta é a história de um tonel muito especial. Uma história com muitas estórias pelo meio. Mas aqui vamos contar apenas a parte da chegada de uma espécie de filho pródigo, mais de um século depois.
TEXTO António Falcão
FOTOGRAFIAS Ricardo Palma Veiga
A história começa no Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, por volta do século XVIII. Foi residência oficial de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal. Esta quinta, com mais de 200 hectares, produzia na altura diversos produtos agrícolas, incluindo uva e vinho. Como tal, possuía adega e tonéis para estágio de vinhos. A dada altura, provavelmente pela pressão urbana que foi crescendo, a quinta foi vendida e estes tonéis foram atrás. E o rasto perdeu-se…
A história é retomada muitos anos mais tarde, já nos nossos dias. O protagonista passa a ser Adriano Sérgio, um luthier português. O que é um luthier? Pois bem, é um profissional que se dedica à construção e/ou reparação de instrumentos de cordas (nota: luthier, segundo a Wikipédia, também pode ser conhecido como violeiro, guitarreiro ou luteiro). Pois bem, nos seus instrumentos, Adriano usa sempre madeiras seleccionadas e, de preferência, velhas. Um belo dia, soube que numa quinta do Ribatejo estava um conjunto de madeiras velhas e foi lá ver. Era de facto um conjunto notável de tonéis desmontados, sobretudo de mogno da América do Sul (Honduras) e algum vinhático. Seis toneladas de madeira! O proprietário não sabia ao certo o ano daquelas madeiras, mas lembrava-se dos seus antepassados afirmarem que as tinham comprado no Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras. Ou seja, contas feitas às gerações, estamos a falar de madeiras com, pelo menos, dois séculos e meio. O histórico do palácio confirma estes indícios. Ora, madeira com esta idade e com esta qualidade não é nada fácil de encontrar e é muito procurada pelas suas características ímpares.
O investimento era pesado e por isso Adriano contactou alguns colegas europeus e rapidamente se arranjou um conjunto envolvendo meia dúzia de luthiers.
A história saiu na imprensa e foi parar aos ouvidos de Alexandre Eurico Lisboa, o Coordenador Técnico do Projecto da Vinha e do Vinho da Câmara Municipal de Oeiras; este município é o proprietário do palácio e o maior produtor existente de vinhos com a denominação Carcavelos. Alexandre Lisboa contactou Adriano Sérgio e conseguiu convencê-lo a dispensar à Câmara um dos tonéis. Adriano concordou e o conjunto foi para Espinho, para a tanoaria J. Dias, onde foi totalmente restaurado. Este trabalho, disse-nos Mickael Santos, que supervisionava o trabalho de instalação, levou cerca de 3 semanas e envolveu vários especialistas. O tonel leva 7 mil litros, pesa cerca de uma tonelada e é quase integralmente feito de mogno, uma madeira que, pelos vistos, já foi usada em tempos para estagiar vinhos. No final, o tonel levou ainda uma ligeira tosta.
A colocação do tonel na cave do palácio não foi uma tarefa fácil, mas, ao fim de umas horas de manobras, lá ficou a descansar na sua morada definitiva. O plástico protector foi removido e, logo de seguida, foi cheio com vinho Carcavelos da colheita de 2018.
Do ouvido para a boca?
Alexandre Lisboa estava radiante com o resultado, até porque este tonel (e uma generosa barrica que também veio, feita com sobras) acaba por regressar a casa, mais de um século depois. Melhor ainda, a operação acabou por sair relativamente barata à Câmara de Oeiras; a J. Dias também ajudou neste aspecto, pela faceta histórica do assunto. Ficou ainda combinado que será aqui, no Palácio do Marquês de Pombal, em Setembro, que serão apresentadas seis guitarras feitas com as madeiras dos tonéis do marquês. Cada um dos luthiers fará a sua. A de Adriano ficará com o nome de Carcavelos. Todas as suas criações têm, aliás, o nome de uma cidade portuguesa. E, espera-se que na altura já se possa provar o novo vinho em estágio…
Adriano Sérgio também estava exultante: o mogno estava em muito bom estado, à vista e ao tacto. Melhor ainda: o técnico bate suavemente com um pedaço de mogno em pedra e o som sai completamente diferente do de outras madeiras, como pinho ou carvalho. Mostrando quase uma tensão nervosa no material, um toque a sugerir o metálico. Adriano sabe do que fala: “Estas madeiras vão estabilizando ao longo dos anos; essa estabilidade (entre outras características) confere excelentes qualidades acústicas aos instrumentos”. O caso mais conhecido é o dos violinos Stradivarius, que custam uma fortuna cada. A madeira velha de boa qualidade é, definitivamente, um dos grandes segredos da qualidade do som. Agora só falta ver se este mogno velho vai transmitir a mesma excelência, mas no palato, ao vinho Carcavelos que aí vai estagiar. Afinal, são todos sentidos humanos e deverá existir sinergia. Mas, na verdade, só o tempo o poderá dizer. Nada que assuste, aliás, os bons vinhos Carcavelos, que, à semelhança dos Madeira, conseguem facilmente durar muitas décadas. Se dúvidas houvessem, bastaria provar o fantástico Villa Oeiras Colheita 2005, à venda na loja do Palácio, por 64 euros.
É notável o papel que o município de Oeiras tem realizado na defesa do seu património vínico. Diríamos mesmo ímpar em Portugal. Ao seu cuidado estão neste momento 12 hectares de vinha, que é de facto a única produção neste momento na denominação Carcavelos. Por isso, o município já começou a dar apoio a outros produtores interessados em investir na região (como na Quinta da Samarra, na freguesia de Livramento) e está aberta a qualquer outro interessado com vinha. A própria Câmara Municipal de Cascais está interessada, o que faz todo o sentido pois Carcavelos pertence ao concelho de Cascais. Como nos disse Alexandre Lisboa, “o objectivo primordial deste projecto é a recuperação do vinho de Carcavelos e de toda a sua região”.
Edição Nº22, Fevereiro 2019
BUCELAS, CARCAVELOS, COLARES: A cintura verde de Lisboa
De outros tempos mantêm o nome e o prestígio, mas onde havia tradições agrícolas dominam agora as pressões imobiliárias. Em Bucelas, Carcavelos e Colares, a vinha luta agora pela sobrevivência. Roteiro enoturístico pela cintura verde que enfrenta a maré de betão da zona metropolitana de Lisboa. TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga Em Oeiras, […]
De outros tempos mantêm o nome e o prestígio, mas onde havia tradições agrícolas dominam agora as pressões imobiliárias. Em Bucelas, Carcavelos e Colares, a vinha luta agora pela sobrevivência. Roteiro enoturístico pela cintura verde que enfrenta a maré de betão da zona metropolitana de Lisboa.
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Em Oeiras, um hectare de terra em zona urbanizável pode custar entre um e dois milhões de euros. Que ainda prosperem vinhas é quase inimaginável, mas os terrenos da Estação Agronómica Nacional resistem à pressão urbanística e é aqui que se mantém erguida a bandeira do histórico vinho Carcavelos. Em Colares, há menos de 20 hectares de vinha em chão de areia, em tempos a imagem de marca da região. Até em Bucelas os ecos da expansão urbana se fazem ouvir há já algum tempo. Pode a viticultura resistir na franja de uma grande cidade?
A resposta não é fácil, nem linear, mas os sinais apontam para que sim. Haverá até quem diga que a viticultura, em particular, e a agricultura, em geral, são indispensáveis para conter os delírios urbanísticos e preservar a identidade dos locais. Nos últimos tempos, o processo de extinção dos vinhos da periferia lisboeta parece ter sido travado. Ainda é cedo para cantar vitória, mas as notícias são animadoras.
No que ao enoturismo diz respeito, a proximidade de um grande centro populacional – para mais, no centro da atenção mediática mundial – é um manancial de oportunidades. Resta aproveitar a maré humana que todos os dias desagua em Lisboa e saber cativá-la com propostas interessantes. E este processo parece estar a ser (ainda) mais lento do que o da recuperação do entusiasmo pela vitivinicultura. Normalmente, a prioridade é dada ao vinho e só depois vem o enoturismo. Mas neste cenário, as receitas e notoriedade que se garantem através dos turistas podem ser a verdadeira locomotiva para os vinhos da cintura verde da capital.A região é Bucelas, mas, para quem vai de Lisboa pela A8 ou A9, nem é preciso fazer o caminho todo: A-das-Lebres fica logo ali, junto a Loures. E a Quinta das Carrafouchas está na linha da frente, não só da actividade enoturística como também vitivinícola – num dos seus extremos já cresce uma pequena urbanização. São quatro hectares de vinha (3,5 tinta e 0,5 branca) e um mundo de surpresas que se escondem por trás da longa fachada cor-de-rosa estendida ao longo da estrada.
Entramos por uma sala de provas, com painéis de cortiça para os turistas assinarem e um balcão de madeira africana e pedra que já conta mais de 80 anos. Cá fora, uma extensão do espaço, para dias mais quentes; a seguir um salão para eventos com decoração rústica e onde as mesas redondas são, na verdade, bobinas de cabos eléctricos; no exterior, uma zona coberta limitada por paredes de vidro para apreciar a paisagem de copo na mão. Um dia, essa paisagem incluirá o rebanho de ovelhas saloias, uma espécie em risco de extinção, pastando por ali. As ovelhas já existem, o terreiro está a ser preparado.
É assim nas Carrafouchas: há sempre alguma coisa a ganhar forma. Mas também há sempre alguma coisa a acusar os efeitos do tempo. Nos últimos anos, a propriedade foi ganhando espaços funcionais para o turismo, mas o seu verdadeiro encanto está na profusão de recantos românticos que nos transportam para outros tempos. A construção actual data de 1714, mas já havia edifícios no local antes disso.
Descemos um caminho que bordeja as vinhas e damos de caras com um tanque rodeado em anfiteatro por painéis de azulejo representando as quatro estações. A água chega de uma mina encaixada num retábulo com uma enorme bacia em pedra e mais azulejos do século XVIII (num deles, são bem visíveis enormes garrafas de vinho num recipiente com água – a preocupação com as temperaturas de serviço não são uma modernice!). Mais à frente, um enorme tanque de 20x10m também semi-rodeado de muros ornamentados; colina acima encontramos uma nascente encaixada num pequeno edifício quadrangular, com azulejos, claro. Junto à casa, para lá de uma sebe de cedros, a surpresa de um jardim romântico de planta semicircular. O pátio exterior, com chão em calçada portuguesa e painéis de azulejos na varanda sobranceira. E a surpresa final da bem preservada capela.
Ainda um relance pela adega antiga, com o lagar e os velhos pipos de madeira, antes de regressar à sala de provas. Mesmo às portas de Lisboa, há muito para descobrir. Não esquecendo os vinhos, claro.
QUINTA DAS CARRAFOUCHAS
R. Francisco Franco Cannas, A-das-Lebres, Santo Antão do Tojal
Tel: 917 262 385
Mail: quintadascarrafouchas@gmail.com
Web: www.quintadascarrafouchas.com
A prova de vinhos (dois tintos e um branco, com petiscos regionais) custa 15 euros por pessoa, se incluir visita ao património da quinta o preço passa para 25 euros. Solicita-se marcação antecipada. O proprietário recebe pessoalmente, todos os dias (das 9 às 20h de segunda a sexta, das 9 às 12h e das 18h às 21h aos sábados e domingos).
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2
Venda directa (máx. 3): 2
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
Há edifícios em volta praticamente em todas as direcções e lá fora, para além dos muros de pedra e dos portões (abertos), há carros a circular, gente que se apressa a caminho sabe-se lá do quê, um supermercado com grandes letreiros. Mas aqui, nos terrenos da Estação Agronómica Nacional, entre oliveiras, cedros e vinhas, um ventinho frio soprando de norte, o brilho do mar cintilando ao longe para lá das colinas, estamos noutro mundo.
Estamos em Oeiras e quase soa a bónus que nestes terrenos cresçam as uvas que mantêm viva a tradição de um vinho generoso à beira da extinção. Mas é assim mesmo. Com 12,5 hectares de vinha (castas: Galego Dourado, Ratinho e Arinto, nas brancas; Castelão e Trincadeira, nas tintas) e duas adegas funcionais, a Câmara Municipal de Oeiras é, neste momento, o único produtor com actividade continuada que faz DOC Carcavelos, o mais esquecido dos nossos grandes vinhos licorosos.
A visita começa na Adega do Casal da Manteiga, instalada num edifício de planta hexagonal que era, a um tempo, infra-estrutura produtiva (abrigava os animais de trabalho e espaços para manteigaria e queijaria) e um local de lazer (a torre que remata o edifício funcionava como pavilhão de caça para o Marquês de Pombal (também conde de Oeiras) e seus convidados. Agora, uma das alas serve de adega, a outra está repleta de barricas, em galerias onde ainda são visíveis as antigas manjedouras em pedra.
Mas é mais abaixo, no vale, que esta dupla função produtiva e de lazer se afirma de forma mais evidente, testemunhando o pensamento pragmático do Marquês e exibindo soluções arquitectónicas e conceptuais que hoje parecem evidentes, mas que teriam o seu quê de revolucionário no século XVIII. A segunda adega, a Adega do Palácio, ocupa um edifício que inclui o recuperado Lagar de Azeite e ambas as infra-estruturas são contíguas ao palácio e seus jardins românticos cruzados pela ribeira da Lage.
Com 70 metros de comprimento e orientação Norte-Sul, a adega auto-ventila-se por acção dos ventos dominantes e a frescura no Verão é assegurada pela mina de água que corre por baixo do chão. Em cima, um telhado “flutuante” deixava espaço para a secagem de cereais, o que funcionava como isolamento natural. As surpresas aparecem por todo o lado – na casa de banho das senhoras, por exemplo (uma parte das instalações alberga escritórios dos serviços da câmara), ainda são visíveis vestígios dos antigos lagares em pedra.
Entre as duas adegas, há quase 1200 barricas e é neste cenário que provamos os vinhos, com a novidade de um Carcavelos tinto (10 Anos) que em breve sairá para o mercado. Cá fora, silêncio e luz. No total, a Quinta do Marquês tem 135 hectares murados. Um oásis de verde no mar de betão.
VILLA OEIRAS
Adega Casal da Manteiga
R. da Mina, Tremês (GPS: 38º 42′ 16,04″ N, 9º 19′ 13,72″ W)
Adega do Palácio Marquês de Pombal
R. Aqueduto 222, Oeiras (GPS: 38º 41’ 34,44” N, W 9º 18’ 52,54” W)
A filosofia de animação turística do Palácio do Marquês está a mudar e, com ela, também os horários e os programas de enoturismo. Para informações actuais, consultar o site da Rota dos Vinhos Bucelas, Carcavelos e Colares (www.rotadosvinhosbcc.com), a Confraria do Vinho Carcavelos (Paulo Rocha: 912 714 554 / 924 014 860) ou a Câmara Municipal de Oeiras (www.cm-oeiras.pt).
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 1,5
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 3
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
De uma região que esteve à beira da extinção para outra que também parece ter escapado a esse destino. Em Colares, onde nunca foi fácil fazer vinho, a pressão imobiliária levou ao desaparecimento de muitas vinhas e o sector acabou reduzido a um punhado de produtores. Hoje, há menos de 20 hectares plantados em chão de areia, a imagem de marca destes vinhos feitos em cima do mar. Também aqui, tal como acontece em Bucelas e Oeiras, a natural preocupação com a sobrevivência tem deixado o enoturismo para segundo plano. Mas as coisas estão a mudar e Colares, neste particular, segue na frente.
A Adega Regional de Colares, fundada em 1931, é a mais antiga adega cooperativa do país (hoje tem cerca de 35 sócios) e um destino turístico com movimento muito significativo – são dezenas de visitantes, em média, por dia, levando os números anuais para cima dos 20.000. Mesmo quem chega sem aviso tem acesso à adega dos tonéis, que se estende a partir do espaço da loja ao longo de dezenas de metros. Estão aqui mais de 90 tonéis, o maior dos quais com capacidade para 19.590 litros – a capacidade total é de 700.000 litros. A lista de madeiras (tropicais) usadas nos depósitos é, só por si, um achado: câmbala, macaúba, vinhático…
Se é um enoturista viajado, não se espante se a visão lhe trouxer à memória o Moscatel de Setúbal – o edifício onde se encontra pertenceu, em tempos, à José Maria da Fonseca, que aqui tinha um armazém, e a traça arquitectónica é semelhante à que encontramos em Azeitão. Hoje, a Adega de Colares produz cerca de 100.000 litros anuais (só uma pequeníssima fracção provém de chão de areia, como se imagina; o resto é do chamado chão rijo, terrenos argilo-calcários) e a sua capacidade de armazenamento fala-nos de um passado em que Colares era uma generosa fonte de vinho para todo o país.
A visita guiada leva-nos pelos espaços sociais que estão a ser dinamizados (salas com capacidade para receber até 600 pessoas), pelos jardins e acessos que ligam os vetustos edifícios do complexo murado. E desagua na adega, uma verdadeira montra da evolução tecnológica do sector da vinificação – encontramos, lado a lado, equipamento técnico moderno e antigo (lagares em cimento, depósitos em inox, cubas troncocónicas em madeira com taça para remontagem automática), o que permite explicar a evolução das técnicas ao longo do tempo.
De regresso à loja, podemos optar por uma das várias provas disponíveis no cardápio e saborear o carácter único de uma região cheia de história. É uma bela forma de encerrar o périplo pela cintura verde de Lisboa, porque em nenhum outro lugar ele é tão intenso como aqui, na face Norte da serra de Sintra.
ADEGA DE COLARES
Alameda Cel. Linhares de Lima 32, 2705-351 Colares
Tel: 219 291 210
Mail: geral@arcolares.com
Web: www.arcolares.com
As visitas guiadas (com prova de dois vinhos) custam 15 euros por pessoa e estão sujeitas a marcação prévia e disponibilidade. Mas quem aparecer na loja sem aviso pode sempre dar uma volta pela adega dos tonéis e decidir depois se pretende fazer alguma das provas disponíveis, com preços que vão dos 4 aos 10,65 euros por pessoa. Horário: de segunda a sexta, das 9h30 às 12h e das 14h30 às 17h. Eventos para grupos com preços sob consulta.
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 1,5
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
ESTAÇÃO DE SERVIÇO
Não faltam opções para reconfortar o estômago neste périplo pelos arredores de Lisboa e seus sobreviventes vínicos. O carácter cosmopolita da região permite encontrar de tudo um pouco, mas escolhemos três restaurantes que simbolizam outros tantos estilos: o toque regional do Barrete Saloio, em Bucelas; a cozinha mais elaborada da Casa da Dízima, em Paço de Arcos; e a pureza dos produtos do mar do Adraga, na Praia da Adraga. Sempre com bons vinhos a acompanhar. Bom apetite!
BARRETE SALOIO – R. Luís de Camões 28-30A, Bucelas; 219 694 004
CASA DA DÍZIMA – R. Costa Pinto 17, Paço de Arcos; 214 462 965
ADRAGA – Praia da Adraga, Sintra; 219 280 028 / 961 910 833
Edição nº14, Junho 2018