Lançamento: Os Calços da Dona Matilde
São calços e são largos. Foram criados após a filoxera e mantiveram-se até hoje. Correspondem a uma forma de implantação da vinha ainda hoje muito vulgar no Douro e que veio permitir plantar mais cepas com menor presença dos patamares e respectivos muros. Nasceu assim o tinto Vinha dos Calços Largos. Texto: João Paulo Martins […]
São calços e são largos. Foram criados após a filoxera e mantiveram-se até hoje. Correspondem a uma forma de implantação da vinha ainda hoje muito vulgar no Douro e que veio permitir plantar mais cepas com menor presença dos patamares e respectivos muros. Nasceu assim o tinto Vinha dos Calços Largos.
Texto: João Paulo Martins Fotos: Quinta Dona Matilde
A quinta Dona Matilde é uma propriedade histórica, já centenária e localizada no coração do Douro, entre a Régua e o Pinhão. É nas velhas quintas que encontramos as vinhas mais antigas da região, muitas delas seculares. Hoje, ao contrário da “voragem arrancativa” dos anos 80 e 90, em que substituíram muitas vinhas velhas para plantar segundo novos moldes, hoje dizia, há uma tendência para conservar estas vinhas antigas e tirar delas o melhor proveito, nomeadamente em termos de preço de venda. Hoje todos sabemos que um vinho de vinha velha só é mesmo bom se a vinha for mesmo boa, bem localizada e se foi sendo bem tratada ao longo das décadas de vida. Na quinta Dona Matilde elas também existem, a par de vinhas mais recentes, e foi daqui, desses bardos das vinhas velhas em calços que nasceu o tinto ora apresentado.
Foi com as uvas destes calços que o produtor resolveu engarrafar pela segunda vez um tinto exactamente com esse nome, Vinha dos Calços Largos. A originalidade deste tinto assenta em dois planos: por um lado estamos a falar de vinhas muito velhas e, por outro, o vinho não teve estágio em madeira, o que é raro num vinho de topo ou que pretende mostrar as qualidades das vinhas muito antigas. Para o enólogo João Pissarra é desta forma que melhor se podem perceber as pequenas nuances que, de ano para ano, os vinhos vão tendo. Pouca intervenção na vinificação (pouca extracção, leveduras indígenas) e ausência de madeira são então os trunfos. O enólogo salientou ainda que “o equilíbrio da matéria-prima é muito mais evidente nas vinhas velhas e acho, por isso, que as vinhas velhas vão vencer a guerra das alterações climáticas”. Manuel Ângelo Barros neto do fundador e durante 30 anos administrador da empresa Barros Almeida, esteve de novo presente no evento, também para apresentar o Porto Colheita, um vinho que lhe diz muito, ele que toda a vida esteve ligado à produção e prova de vinhos do Porto. Filipe Barros, seu filho, assegura a continuidade familiar do projecto. A quinta, com uma localização espectacular e vista para o rio, tem 93 ha mas uma boa parte é de mata mediterrânica. Além da vinha possui olival, horta e pomar e tem instalações de enoturismo. Para lá do tinto agora apresentado a quinta tem outro tinto de destaque, o Vinha do Pinto, a que acrescem dois tintos e dois brancos, ente colheitas e reservas.
Dona Sancha: senhora de Silgueiros
Foi há pouco mais um ano que os consumidores se familiarizaram com este nome, um novo produtor no Dão, numa das sub-regiões que concentra um bom número de quintas. O portefólio tem-se alargado, a quinta tem muito para oferecer… Texto: João Paulo Martins e Nuno de Oliveira Garcia Fotos: Quinta Dona Sancha O nome […]
Foi há pouco mais um ano que os consumidores se familiarizaram com este nome, um novo produtor no Dão, numa das sub-regiões que concentra um bom número de quintas. O portefólio tem-se alargado, a quinta tem muito para oferecer…
Texto: João Paulo Martins e Nuno de Oliveira Garcia Fotos: Quinta Dona Sancha
O nome tem uma sonoridade antiga, tão antiga quanto a nacionalidade. Era na Idade Média que proliferavam os Sanchos, as Sanchas, tudo gente que herdava propriedades, ora por doação régia ora por heranças familiares. A que deu nome a este vinho, Dona Sancha Gonçalves instituiu em 1186 o Padroado de Santa Maria de Silgueiros. Pela data percebemos que Portugal enquanto país dava ainda os primeiros passos e nem o território estava todo conquistado aos mouros. A tarefa imediata era, então, o povoamento, atraindo pessoas que se fixassem, concedendo-lhes terras. As parcelas desta quinta terão, por certo, estado em muitas mãos até terem chegado ao actual proprietário – Rui Parente -, já de há muito ligado ao vinho, fundador da mais importante garrafeira de Viseu, a Cave Lusa. A actual propriedade resulta da junção de duas quintas: a quinta da Avarenta e a quinta do Senhor Rocha, separadas por uma faixa de terreno que tem vindo a ser adquirida e as duas quintas já constituem um bloco único.
Ao comando técnico deste projecto temos Paulo Nunes e Mafalda Perdigão, ambos com fortes raízes na região. Silgueiros, diz Paulo, será das sub-regiões do Dão a que tem mais área de vinha; além desta destaca a sub-região da serra da Estrela e, como afirmou “mais uma meia sub-região, Penalva do Castelo.” Esta será, disse, uma zona mais quente, mas que gera vinhos muito equilibrados.
A quinta tem 26 ha a produzir, onde se contam algumas parcelas que estão em processo de aquisição. Os vinhos são, ora de lote (tradição na região) ora varietais, nomeadamente um de uma casta outrora muito importante – Tinta Pinheira – outro de uma variedade menos falada, mas que conhece agora algum renascimento, a Cerceal-Branco. Mafalda Perdigão explicou que plantaram um talhão com 39 variedades, na prática todas as que estavam disponíveis no Centro de Estudos de Nelas e que iam além das clássicas. O futuro ditará quais as que poderão conhecer algum aproveitamento para futuros plantios. Mas, como se imagina, Paulo não tem grandes ilusões, “não acredito que fiquem todas.”
As castas, segundo os enólogos: a Bical poderá não ter grande futuro face às alterações climáticas porque perde facilmente a acidez; ao contrário, a Cerceal-Branco é uma casta de muito boa acidez, ainda que, por vezes, com menos expressão aromática. Será seguramente uma casta de futuro também porque tem boas produções, na casa das 7 ton/ha. Problemas idênticos à Bical tem a Malvasia Fina porque, caso exista uma situação de stress hídrico, ela não recupera e perde valia. A casta Jaen, “que deveria ser a porta de entrada na região” tem uma janela de oportunidade de colheita muito apertada, é uma casta muito produtiva que pode facilmente chagar às 11 toneladas/ha e por isso, precisa de um controle da produção e outro da maturação, “chega a ser duas vezes por dia” para que se possa colher no momento certo. Já a casta Encruzado tem a particularidade de “se sobrepor aos erros de abordagem, o que faz com que só um mau enólogo não faça um bom Encruzado”, Paulo dixit.
A Tinta Pinheira é, no conjunto das castas da região, das quem tem menos intensidade corante e por isso “sobreviveu mal à era Parker” mas tinha, segundo o enólogo, a função de “limpar os exageros das outras castas, é contida mas ajuda muito no lote” e foi durante décadas a casta tinta mais ácida da região. Na apresentação ficou a promessa de vir a surgir um tinto num patamar ainda acima destes todos. Ficamos à espera.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)
Herdade das Servas: Estreia dupla. Restaurante Legacy e Vinhas Velhas branco
Em plena estação acolhedora de Outono, a Herdade das Servas brindou o mercado com duas novidades apetitosas: um restaurante e um branco de vinhas velhas. E para harmonizar, quatro tintos de 2017, de referências já conhecidas. TEXTO: Mariana Lopes FOTOS: Serrano Mira “Considero fundamental o complemento entre a cozinha e o vinho, para compreendermos ainda […]
Em plena estação acolhedora de Outono, a Herdade das Servas brindou o mercado com duas novidades apetitosas: um restaurante e um branco de vinhas velhas. E para harmonizar, quatro tintos de 2017, de referências já conhecidas.
TEXTO: Mariana Lopes FOTOS: Serrano Mira
“Considero fundamental o complemento entre a cozinha e o vinho, para compreendermos ainda melhor o que se faz na adega”. Esta é a grande premissa de Luís Serrano Mira, mentor e proprietário da Herdade das Servas, que está na base da criação do novo restaurante da propriedade localizada junto a Estremoz. Legacy Winery Restaurant é o nome, por uma razão só, como explicou o produtor na apresentação do espaço: “Ao fazermos este novo restaurante decidimos chamar-lhe Legacy Winery Restaurant. Temos uma sub-marca, chamada Family Wine Growing Legacy, e o nome do restaurante vem exactamente daqui. O Legacy, ‘legado’ em português, é tudo o que a família nos deixa, e foi isso que procurámos estabelecer aqui, como marco gastronómico para a Herdade das Servas”.
E é precisamente a família que está na origem deste projecto vitivinícola alentejano. Luís Serrano Mira acompanhou, desde sempre, as actividades familiares na produção de vinhos, antes de fundar, em 1998, a Herdade das Servas no modelo que hoje conhecemos. Com muita dedicação, precisamente, ao seu legado, investigou, com a ajuda de um historiador, toda a ligação dos Serrano Mira ao vinho. Surpreendentemente, sabe-se que a família produz vinho desde 1667, ano de fabrico das duas talhas que hoje estão expostas na herdade. Actualmente, Luís Serrano Mira representa a parte familiar do projecto — que gere com sócios externos — e que abrange cerca de 350 hectares de vinhedos, repartidos por oito vinhas de idades muito diferentes, entre a Serra d’Ossa e a Serra de São Mamede: Azinhal, Louseira, Cardeira Nova, Cardeira Velha, Pero Lobo, Judia (a mais antiga, com 65 anos), Monte dos Clérigos e Servas, sendo esta última a da propriedade principal, onde está a adega, com cerca de 70 hectares. O encepamento, por sua vez, passa pelas tintas Alfrocheiro, Alicante Bouschet, Aragonez, Cabernet Sauvignon, Castelão, Merlot, Petit Verdot, Syrah, Touriga Franca, Touriga Nacional e Trincadeira: e pelas castas brancas Alvarinho, Antão Vaz, Arinto, Encruzado, Roupeiro, Sauvignon Blanc, Sémillon, Verdelho e Viognier. Importa referir que, e segundo Luís Serrano Mira, “todos os vinhos da Herdade das Servas são feitos com uvas próprias”. Também em jeito de novidade, juntou-se recentemente, à equipa da casa, o enólogo Renato Neves.
Para fazer par com o Vinhas Velhas tinto, que já existia desde a edição de 2005, surge agora o Herdade das Servas Vinhas Velhas branco, que se estreia na colheita de 2020, com apenas 5 mil garrafas. O lote tem na sua maioria Arinto, de uma vinha com 32 anos, e 10% de Roupeiro, cujas uvas vêm da Vinha da Judia, de 65 anos, onde esta casta é a única branca ainda presente. O Vinhas Velhas tinto, por exemplo, tem origem totalmente nesta vinha, sendo este 2017 um lote de Alicante Bouschet (45%), Trincadeira (30%), Touriga Nacional (20%) e Petit Verdot, com fermentação em lagares de mármore e cubas de inox, estágio em barricas novas de carvalho francês, durante 18 meses, e de dois anos em garrafa. Quanto à vinificação do Vinhas Velhas branco, este passa também por lagar e inox, para fermentar, mas estagia parcialmente em ânforas de barro (italianas, com tampa, uma beleza!), além da barrica. Ambos foram sujeitos a maceração pré-fermentativa. Já os três monovarietais de 2017 — Petit Verdot, Touriga Nacional e Alicante Bouschet — nascem na Vinha das Servas, e todos fermentam, total ou parcialmente, nos lagares de mármore. Estes lagares, disse o produtor, estão reservados precisamente para os vinhos de topo da Herdade das Servas. O trio estagia sempre 12 meses em barrica e 24 em garrafa.
No Legacy Winery Restaurant, a cozinha é moderna mas os ingredientes alentejanos e a inspiração na cultura da região, estão lá. Na verdade, a Herdade das Servas já teve um restaurante, homónimo, mas em modelo de concessão, que cessou em meados de 2020. O Legacy, em oposição, é totalmente “próprio”, e o local foi totalmente remodelado, da cozinha à sala, que tem capacidade para 42 pessoas. “Quando a pandemia começou, iniciámos as obras para remodelar e abrir o nosso próprio restaurante. Actualizámos o conceito, entendemos não ir por uma cozinha muito tradicional, como era a da antiga concessão, mas mais de ‘fine dining’”, esclareceu Luís Serrano Mira. A autoria do menu é do chef Luciano Baldin, e inclui 23 pratos, entre entradas, principais e sobremesas. “Queremos, aqui, utilizar ao máximo os produtos locais, que temos mesmo aqui ao nosso redor, e com eles interpretar, de forma diferente, os pratos alentejanos”, avançou o chef. Falamos de exemplos como ovo cremoso com couve-flor, crocante de broa e paia de toucinho ou bife tártaro mertolengo, nas entradas; carré de borrego de pasto com batatas assadas, castanhas e romesco ou polvo braseado com migas de tomate e acelgas, nos principais. Há ainda opções vegetarianas, como húmus de ervilhas fumadas com legumes assados, cogumelos portobello e grão frito. Claro que não falta uma selecção bem completa dos vinhos Herdade das Servas, a copo e garrafa, complementada por vinhos da Casa da Tapada (o projecto Serrano Mira na região dos Vinhos Verdes), por espumantes Vértice e Champagne Ruinart.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)
Quinta da Gaivosa: Um caminho de três décadas
“Pioneiro do Douro moderno”. Assim classifiquei Domingos Alves de Sousa numa das várias peças que publiquei sobre o projecto Quinta da Gaivosa ao longo das últimas décadas. E quando se comemoram 30 anos sobre a colheita do vinho com que tudo começou, a frase mantém-se mais actual do que nunca. Também por isso se justifica […]
“Pioneiro do Douro moderno”. Assim classifiquei Domingos Alves de Sousa numa das várias peças que publiquei sobre o projecto Quinta da Gaivosa ao longo das últimas décadas. E quando se comemoram 30 anos sobre a colheita do vinho com que tudo começou, a frase mantém-se mais actual do que nunca. Também por isso se justifica revisitar Gaivosa e a sua história, escrita com vinhos, no caso, nove, três por cada década.
TEXTO: Luís Lopes FOTOS: Domingos Alves de Sousa
Lembro-me bem do impacto que em mim teve, na época, o primeiro Quinta da Gaivosa, um tinto de 1992 que me impressionou. O vinho tinha madeira a mais, claro, como praticamente todos os tintos ambiciosos dos anos 90. Mas disso só me vim a aperceber quando o voltei a provar mais tarde, talvez sete ou oito anos depois, que nisto da apreciação de vinhos não apenas não se nasce ensinado como o nosso palato vai mudando com o tempo.
Absolutamente certo é que, quando o Quinta da Gaivosa nasceu, muito poucos vinhos do Douro ambicionavam tão longe em qualidade e notoriedade. Barca Velha e Quinta do Côtto eram clássicos reverenciados, mas o Douro moderno, no que aos vinhos não fortificados respeita, estava ainda por construir e marcas como Duas Quintas e Quinta da Gaivosa definiam o caminho para os que viriam a seguir.
Cheguei à Quinta da Gaivosa e a Domingos Alves de Sousa pela mão de Anselmo Mendes, na altura enólogo consultor na casa. Casa essa onde permaneceu até 2013, passando então, por inteiro, a pilotagem enológica a ser feita por Tiago Alves de Sousa, da nova geração da família, que já trabalhava ao lado de Anselmo há uma década, e com quem este partilhava a sua enorme experiência e conhecimento. Os vinhos da Gaivosa vão reflectindo estas mudanças e são também, tal como a vida, marcados por ciclos, não apenas os da Natureza mas também os das ideias e conceitos.
Na base de tudo, esteve e continua a estar Domingos Alves de Sousa, pedra basilar do projecto. Foi ele que, logo em 1992, determinou que o tinto Quinta da Gaivosa só sairia à rua nos anos de qualidade superior. Assim, depois da colheita estreante, vieram 1994 e 1995, esta última a que colocou a Gaivosa, definitivamente, “no mapa”. A seguir 1997 e 2000, todos eles elaborados a partir da vinificação conjunta das melhores parcelas desta propriedade situada na margem direita do rio Corgo, a poucos quilómetros de Santa Marta de Penaguião. Hoje com 25 hectares de vinha, já na altura havia muito por onde escolher, desde vinhedos bem antigos a mais recentes, abarcando todo o tipo de altitudes e exposição solar.
Com o 2000 encerrou-se um ciclo, para se abrir outro com o Quinta da Gaivosa 2003. Nesse ano, um esforço adicional possibilitou finalmente a vinificação isolada das pequenas parcelas, identificando as características de cada uma e selecionando com maior rigor os vinhos que viriam a fazer parte do lote final. Deste trabalho vieram também a surgir outros tintos de renome, como Vinha de Lordelo ou Abandonado, mas isso é outra história, para outro momento. Para o que agora nos interessa, bastará saber que todos os Gaivosa que se seguiram obedeceram já a um trabalho de lote a partir das barricas onde os vinhos de cada parcela descansavam sem misturas. Nasceram assim os Quinta da Gaivosa que faltam: para além do já citado 2003, também 2005, 2008, 2009, 2011, 2013, 2015, 2017 e, agora, 2019.
São 14 vinhos lançados no mercado ao longo de três décadas, não se pode dizer que tenham abusado. Entretanto, importa referir que a concorrência apertou, sobretudo a partir de 1999, quando excelentes vinhos que se tornaram referência no Douro se impuseram num mercado de topo, onde deixaram de estar apenas meia dúzia de marcas. O Gaivosa, porém, não se amedrontou nem mudou o rumo nem o estilo, assente mais na elegância do que na concentração. A família Alves de Sousa preocupou-se, isso, sim, em garantir o futuro desta e das outras marcas, sobretudo ao nível vitícola. Assim, para além da preservação das vinhas antigas, verdadeiros cofres onde o património genético das videiras é guardado e acarinhado, foram plantadas vinhas novas a partir de conceitos diversos. Grande parte da propriedade (45%) assenta em vinhas tradicionais, com as castas misturadas e idades que vão dos 45 aos 120 anos; mas existem também vinhas ao alto, patamares e aquilo a que Tiago Alves de Sousa tem devotado muito do seu tempo e paixão e a que chama “vinhas tradicionais novas”. Este modelo, que se tornou regra na Gaivosa a partir de 2014, replica as vinhas antigas procurando preservar a topografia natural da encosta, mantendo os antigos muros de xisto, com as videiras plantadas segundo as curvas de nível, em alta densidade (8.000 pés/ha), condução em Guyot duplo e mistura “organizada” das castas, com diferentes variedades co-plantadas por parcela e organizadas por linhas. Mais de 50 castas tintas e 20 brancas fazem hoje parte deste património.
Mas deixem-me, para finalizar, voltar ao Quinta da Gaivosa tinto, de onde me desviei por instantes, até porque ainda vão passar uns bons anos até as vinhas novas terem idade e estatuto para entrar na sua garrafa. Houve um terceiro ciclo na já longa história da marca, que ocorreu a partir da vindima de 2016 com a construção da nova adega. Mais e melhores condições ao nível da vinificação e estágio significam poder dar mais atenção aos vinhos que estão a fermentar nas cubas ou a estagiar nas barricas. E, sobretudo, significa não os apressar. Lançar agora o Quinta da Gaivosa tinto de 2019, quando várias prestigiadas marcas do Douro já foram “obrigadas” pela pressão do mercado a apresentar os 2020, é também uma forma de Domingos Alves de Sousa mostrar ao mundo que não tem pressa. E, na verdade, para quem faz Gaivosa há 30 anos, o tempo tem outro significado.
(PROVA VERTICAL DE REFERÊNCIAS QUE JÁ NÃO ESTÃO NO MERCADO)
18 A
Quinta da Gaivosa tinto 1992
Ano de maturação tardia, que gerou vinhos mais delicados, com menos álcool (12,5%). Estagiou em barricas de carvalho português. A evolução é notória, mas está surpreendentemente bem, notas de musgo, tabaco, balsâmicos, erva seca. Muito polido, com notável frescura de boca, cheio de equilíbrio, dá muito prazer a beber. Talvez a melhor garrafa desta colheita que bebi nos últimos anos.
19 B
Quinta da Gaivosa tinto 1995
Vindima de boas maturações, colheita precoce, um vinho que impressionou vivamente quando foi lançado. Estagiado em carvalho francês em vez do nacional, mais de duas décadas depois mantém o nível de excelência que apresentou na época, ainda com fruta no aroma, musgo, taninos presentes a dar estrutura. Muito fino, muito impactante, com belíssima frescura, um vinho histórico que, ainda hoje, continua a fazer história.
17,5 A
Quinta da Gaivosa tinto 1997
Vindima quente e concentrada, mas equilibrada. Ao contrário do que aconteceu com o 1992, esperava mais deste, sobretudo no aroma, muito balsâmico e apimentado, com bela evolução mas fruta mais apagada. Melhora muito na boca, fresco, equilibrado e apetecível.
18,5 B
Quinta da Gaivosa tinto 2000
Nevou na Gaivosa em janeiro, num ano heterogéneo, em que a natureza foi compensando frio com calor, seca com chuva. Estava tudo no ponto na vindima e o vinho revela essa fruta de excelente qualidade, ainda bem presente, bagas e morangos, notas fumadas. O equilíbrio ácido é perfeito, magnífica presença de conjunto.
18,5 B
Quinta da Gaivosa tinto 2003
O ano de estreia de Tiago Alves de Sousa na equipa de enologia foi muito quente e seco, mas a vinificação por parcela e alguma chuva em setembro permitiram esbater as agruras do clima. O vinho está belíssimo, com leves tostados, fruta muito boa, complexos balsâmicos, tabaco, alguma idade a dar complexidade tabaco. Taninos de seda, e a frescura típica da Gaivosa a equilibrar tudo.
18 A
Quinta da Gaivosa tinto 2009
Ano com dois grandes picos de calor, em agosto e setembro. Pela primeira vez, barricas usadas juntaram-se às novas. Mostra muito boa fruta madura, ainda com traços de juventude. Muita sedosidade de taninos, num registo polido, texturado, com corpo cheio, alguns amargos de esteva, amplo e envolvente.
19 B
Quinta da Gaivosa tinto 2011
Muito míldio reduziu a produção e, quando foi preciso, o verão foi ameno, com maturações lentas e preservando a acidez. A ausência de chuva fez o resto, uma vindima portentosa. Bastante jovem, concentrado como é típico do ano, menta e esteva, um tom sisudo e austero que lhe fica bem. Um portento na boca, extremamente sólido, texturado, com taninos que nunca mais acabam, ainda a precisar de tempo para se mostrar. Seco, sério, tremendo.
18 B
Quinta da Gaivosa tinto 2015
Ano generoso na quantidade e qualidade, com vindima precoce. A barrica está evidente, mas sem excessos, um tom mais maduro na fruta, bagas e mirtilos. Bastante encorpado, concentrado e intenso, sedoso, com taninos muito redondos. Sente-se um ano quente mas o vinho tem frescura, com final amplo, pontuado por notas de fruta ácida.
Favaios: Onde reina o Moscatel
Partimos de Vila Real e chegámos a terras de Alijó, mais propriamente a Favaios. Aqui a casta Moscatel Galego é rainha e domina a paisagem. Apesar de estarmos em plena zona demarcada do Douro, o generoso feito com Moscatel não pode ser considerado vinho do Porto. Mas não importa, o sucesso e qualidade dos moscatéis […]
Partimos de Vila Real e chegámos a terras de Alijó, mais propriamente a Favaios. Aqui a casta Moscatel Galego é rainha e domina a paisagem. Apesar de estarmos em plena zona demarcada do Douro, o generoso feito com Moscatel não pode ser considerado vinho do Porto. Mas não importa, o sucesso e qualidade dos moscatéis de Favaios fala por si.
Texto: João Paulo Martins Fotos: Adega Coop. de Favaios
Este é um Douro diferente, um Douro de planaltos, um Douro pouco ou nada escarpado, uma zona que permite estender o olhar por grandes distâncias. E, o que mais se vê, são vinhas. Um verdadeiro mar de vinhas. Estas são terras altas, as tais que hoje são muito procuradas, nomeadamente para plantar cepas de uvas brancas. Entre os problemas colocados pelas alterações climáticas e a apetência cada vez mais evidente do mercado por vinhos brancos, as terras de Favaios têm tudo para ser uma zona de referência. A paisagem não engana: as vinhas são a perder de vista, todas bem perto do centro da terra. Esta proximidade é excelente para os associados da cooperativa que entregam uvas na adega; e são muitos, 500 a entregar uvas e, como nos disseram, muitos outros em lista de espera. Também o enólogo fica com o trabalho muito facilitado, uma vez que, entre a apanha dos cachos e a chegada à adega podem mediar apenas alguns minutos. Estes cooperantes dispõem de 1100ha de vinhas onde a Moscatel ocupa 620 hectares, ou seja, 2,5% de toda a área da região, mas representa 5% da produção total. Assim, além daquela variedade, existem uvas para a produção de vinhos brancos, tintos e espumantes. E ainda algum Vinho do Porto.
Pode, naturalmente, perguntar-se: porquê Moscatel, e porquê aqui? Estas e outras perguntas fomos fazê-las à adega cooperativa, o grande polo vinificador da região de Favaios. Miguel Ferreira, enólogo dos vinhos generosos, ajuda na explicação, salientando a altitude que, aqui, gera condições para maturações lentas porque os estios são amenos. Amenos sim, mas com a temperatura média a aumentar; este ano foi 22ºC, quando a média anterior andava pelos 19ºC. Estamos também numa zona de boa pluviosidade, em média 1000 milímetros/ano mas este ano vitícola não passou dos 390. Curiosamente quando visitámos a adega, já em fim de vindima, chovia “a potes”, como que a dizer-nos que o futuro não era negro. “Temos então condições óptimas para brancos mas menos favoráveis para fazer vinhos tintos”, confessou Miguel.
Esta é uma zona alta, planáltica, de terrenos férteis, favorável para brancos e entre elas ganhou destaque a casta Moscatel Galego que tem várias características que se adaptam bem a este ambiente: produz bem, gera mostos com muito boa acidez, é uma variedade muito terpénica (é mesmo das poucas castas em que o sabor do bago é idêntico ao do vinho) o que torna a identificação muito fácil, mesmo em prova cega. Além destas, tem mais duas características interessantes: é resistente à seca, como ficou bem demonstrado este ano em que, apesar da falta de água, se conseguiu mais 10% de produção no Moscatel do que na edição anterior, e tem uma produção regular. A produtividade da casta tem variado entre os 5200 litros/ha em 2020 e os 6200 litros em 2022.
Para a boa produção regular muito contribuiu o trabalho de pesquisa e melhoramento da casta feito por Nuno Magalhães, um profundo conhecedor/técnico/autor, especialista em viticultura; assim, desde há 40 anos têm vindo a mudar os clones que são plantados, “não sem alguma perda da variabilidade genética” mas a produção tem-se mantido em bom nível. Hoje sabe-se que o “afunilamento clonal” é altamente negativo e é sobretudo a partir da selecção massal que agora se escolhem os garfos a plantar, assegurando assim tanta diversidade quanto possível.
Uma batalha de ontem e de hoje
A adega foi criada em 1952 e o primeiro Moscatel surgiu em 1956. Estamos, portanto, a comemorar os 70 anos da fundação. Essa foi a época da criação das adegas cooperativas, processo muito incentivado pelo Governo que, por proposta da Casa do Douro, apontava para a criação de 30 adegas cooperativas em 19 concelhos da região, em que se associassem produtores que tivessem pelo menos 10 pipas de produção. A época mais intensa de criação das cooperativas decorreu até 1964, por vezes até mais tarde, como aconteceu com a Adega Coop. de Tabuaço que só foi criada em 1993.
Os azares do generoso Moscatel remontam aos anos 30 do século passado quando, face às dificuldades que se viviam nas vendas de Vinho do Porto (que a Grande Depressão e a crise de 1929 também ajudam a explicar), se cortou o benefício nas terras mais altas (acima dos 500 metros). Favaios deixou de poder produzir Porto e, apesar da tal proibição ter sido levantada ainda nos anos 50, a verdade é que, até hoje não se faz Porto Moscatel. Porquê? Porque, ao que nos contaram, “da Câmara de Provadores do IVDP vem sempre a mesma resposta: o vinho não cheira a Porto, cheira a moscatel”. Por esta razão para os vinhos desta casta criou-se a designação Moscatel do Douro, que é demasiado vaga, como aqui nos afirmaram, uma vez que qualquer zona do Douro pode, face à lei, fazer moscatel do Douro. Essa é a batalha actual desta zona: criar a sub-região de Favaios, uma vez que as uvas daqui têm especificidades e muitas diferenças em relação às de qualquer outra zona duriense. A região tem tudo para se transformar em sub-região mas falta, ao que soubemos, mais energia na condução desse processo. Não existe uma delimitação precisa da zona de Favaios e isso seria o primeiro passo para a criação da sub-região. Também já deu entrada no Interprofissional o pedido para a produção de Moscatel Roxo, variedade que corresponde a uma mutação da Moscatel Galego, mas por enquanto ainda não é possível. Essa será também uma conquista futura.
De tudo um pouco
A cooperativa de Favaios é muito conhecida pelo Moscatel, nomeadamente o seu Favaíto, um aperitivo de moscatel que se vende no canal HORECA, em mini-garrafas de 55 ml. O sucesso deste licoroso é tal que da linha de engarrafamento saem 25000 garrafas/hora. Para além deste vinho emblemático, a cooperativa aposta em novos produtos, como seja o espumante, aqui em duas versões. A mais ambiciosa é o Grande Reserva com estágio prolongado em cave, de que só se fazem 3000 garrafas e que é produzido com Gouveio, Arinto e Viosinho. A primeira colheita foi a de 2005. Celso Pereira, enólogo com larga experiência nas Caves Transmontanas, é o consultor para espumantes e vinhos brancos DOC; a par deste espumante, a cooperativa faz pelo método Charmat, na Bairrada, em prestação de serviços, cerca de 40000 garrafas de espumante de Moscatel.
Aqui vinificam-se 6 milhões de litros/ano dos quais 3 milhões de Moscatel, não todo para generoso uma vez que da casta se faz espumante e entra também no lote dos vinhos brancos. Fazem 1 milhão de litros de branco, outro tanto de tinto e de Porto (esta zona corresponde a letras C e D); muito do Porto produzido é vendido a granel, mas também engarrafam aqui com marca própria. O Moscatel que se faz em vinho DOC não é vendido para terceiros, é todo usado para os vinhos brancos da casa. Aos lavradores a uva é paga a 95 cêntimos/quilo, bem acima da média que outras empresas pagam na região.
De tudo o que produz, a adega exporta 20% mas mantém um elevado stock que lhe permite fazer os moscatéis com idade. Em finais de 2021 a Adega tinha 9,5 milhões de litros em stock. Foi esses vinhos que tivemos oportunidade de provar.
Assim, do Moscatel Favaios sem indicação de ano de colheita fazem-se 3 milhões de litros/ano. É elaborado todo de uma vez (usa 3 a 4 colheitas no lote). O vinho mais jovem tem pelo menos 2 anos. A ideia de 3 a 4 colheitas é para tentar fazer um lote igual todos os anos. É estabilizado pelo frio e colado e filtrado para evitar a turbidez. Têm para este vinho 10 milhões de litros em stock. Não há lei do terço (como no Vinho do Porto) no licoroso Moscatel e por isso não há limite ao que se pode engarrafar. O Moscatel Reserva 2015 vai deixar de ter indicação de ano, tal como acontece no Vinho do Porto Reserva. As uvas ficam 3 dias em maceração, um antes da fermentação e dois depois. A aguardentação é feita na cuba ainda com as massas; estagia em madeira, inicialmente balseiro velho e depois barricas onde fica um ano. Deste fazem 10 000 garrafas/ano. O Moscatel 10 anos envelhece sempre em tonel, fazem quase uma solera conseguindo-se assim uma regularidade de perfil. É um lote que está sempre a ser alimentado com o que existe e tem uma média de 15 anos de idade.
Na edição comemorativa dos 70 anos foi escolhida a melhor colheita de cada uma das décadas; o mais jovem é de 2020, depois 2011, 07, 99, 80, 75 e 64 (deste foi usado vinho engarrafado). Desta edição especial foram cheias 2000 garrafas mas metade destina-se a ser oferecida aos viticultores associados. Já do Colheita 1980 existem 8000 litros em stock de barricas e enchem-se 500 garrafas por ano.
Com tudo isto, a Adega de Favaios é uma referência absoluta nos licorosos Moscatel do Douro, sendo igualmente líder no vinho licoroso Moscatel a nível nacional. Não espanta por isso que, para muitos consumidores, a menção Favaios seja sinónimo de Moscatel.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)
-
Adega de Favaios
- 1989 -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - 1975 -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - 1980 -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - 1999 -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - 2000 -
Adega de Favaios Edição Comemorativa 70 anos
Fortificado/ Licoroso - -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso - 2015 -
Adega de Favaios
Fortificado/ Licoroso -
Barrosinha: De regresso ao brilho de outrora
Após importante reorientação estratégica, a Companhia Agrícola da Barrosinha tem recuperado lentamente a sua vida agrícola, e produz arroz, pinhão, cortiça, madeira, gado e uvas para vinho. A sua albergaria deu origem a um hotel de quatro estrelas e os vinhos voltaram ao mercado. 75 anos depois de ter sido criada, muito tem mudado na […]
Após importante reorientação estratégica, a Companhia Agrícola da Barrosinha tem recuperado lentamente a sua vida agrícola, e produz arroz, pinhão, cortiça, madeira, gado e uvas para vinho. A sua albergaria deu origem a um hotel de quatro estrelas e os vinhos voltaram ao mercado. 75 anos depois de ter sido criada, muito tem mudado na vida desta emblemática propriedade de Alcácer do Sal.
Texto: José Miguel Dentinho Fotos: Ricardo Palma Veiga
Quem atravessa o rio Sado junto a Alcácer do Sal é difícil não notar o complexo de edifícios da Companhia Agrícola da Barrosinha. Criada há 75 anos para abastecer as necessidades da Abel Pereira da Fonseca, uma das mais fortes empresas comerciais de vinhos e licores do início do século 20, teve uma vida de altos e baixos que quase terminou com o fecho da maioria das suas actividades, agrícolas e outras. A sua integração no Fundo ECS Capital está a contribuir para a revitalização da empresa e da sua propriedade, incluindo a adega, que produz vinhos mais consensuais e adaptados ao mercado. Para o futuro, está prevista a construção de mais um hotel, para além do actual, e diversos aldeamentos turísticos.
Carlos Trindade, 55 anos, aceitou, há quase 10 anos, o repto de gerir todo o negócio agrícola da Sociedade Gestora de Fundos ECS Capital, proprietária da Barrosinha. “Foi um desafio muito interessante para quem estava, há 20 anos, na consultoria de gestão aplicada ao sector agrícola, principalmente de aprendizagem sobre o que é o dia a dia de um agricultor e tudo o que isso acarreta”, conta.
Com propriedades em diversas regiões nacionais, do Douro ao Algarve, o património agrícola da ECS Capital integra, entre outros, o Solar da Rede, na primeira região, que tem, segundo o gestor, sobretudo grande potencial turístico. Outra propriedade é o Morgado do Reguengo, no Algarve. Com 900 hectares de área, fica perto de Portimão e inclui dois campos de golfe e um hotel, os seus principais negócios. Mas também tem 32 hectares de vinha plantados há quatro anos. “Quando a adquirimos, a empresa proprietária tinha direitos de plantação que estavam quase a caducar, mas nós decidimos aproveitá-los”, conta Carlos Trindade, referindo que, por agora, o vinho produzido no Algarve é vendido a granel.
Dois mil hectares de área
O sector agrícola da ECS Capital engloba um pinhal de 600 hectares perto da Nazaré, diversas propriedades próximas de Reguengos de Monsaraz, que incluem montado de azinho e pastos para gado e, é claro, a Companhia Agrícola da Barrosinha, com os seus cerca de dois mil hectares de área.
A empresa nasceu em 1947, segundo Carlos Trindade como produtora de vinhos para a Abel Pereira da Fonseca, que tinha sido criada por um dos mais importantes empresários portugueses do início do século 20. O seu negócio, que se tinha expandido até ocupar quase um quarteirão do Bairro de Marvila, em Lisboa, dedicava-se inicialmente à produção e comercialização de vinhos e licores. Mas foi depois alargado a uma rede de mercearias que chegou a ter mais de 100 unidades abertas na capital.
A Barrosinha “produzia, na altura, vinho a granel, como é evidente, mas também arroz”, conta Carlos Trindade, afirmando que essa foi a época mais pujante da empresa. “Depois houve o ciclo que se iniciou com a revolução de 25 de Abril, com as ocupações, intervenção, “desintervenção” e devolução aos seus proprietários que, na época, não se mostraram interessados em permanecer, e venderam a propriedade”. Na fase posterior, que terminou após o falecimento de um dos sócios, o aparelho produtivo da companhia esteve ligado à pecuária intensiva de bovinos, suínos e aves. Houve depois uma cisão da empresa e quem ficou com a Companhia Agrícola da Barrosinha tentou implementar um projeto imobiliário que envolvia a construção de aldeamentos turísticos e mais um hotel, com um total de três mil camas, que não chegou a acontecer.
Um projeto desafiante
“O projecto entrou numa situação financeira complicada devido à crise na construção e foi por água abaixo, apesar de ainda manter o estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN)”, conta Carlos Trindade, acrescentando que a aposta no imobiliário tinha levado à descontinuação da maior parte do projeto agrícola e agroindustrial, pois a fábrica de rações e de descasque de arroz já não existiam quando chegou, tal como a suinicultura. Por tudo isto, quando Carlos Trindade começou a geri-la, a recuperação da Companhia Agrícola da Barrosinha era um projeto desafiante, não só por causa da sua dimensão, mas também por incluir muitas áreas de negócio que era preciso revitalizar.
No sector agrícola produz hoje arroz, pinhão, cortiça, madeira de eucalipto, gado bovino e vinho. Também foram reactivadas actividades adormecidas, por uma ou outra razão. Foi assim que o posto de combustível foi de novo aberto, tal como o restaurante do hotel e a taberna da propriedade, que voltou a ser lugar onde as gentes de Alcácer do Sal vão comer, pelos sabores dos seus pratos e pelos preços cómodos praticados.
Foi igualmente recuperada a antiga Albergaria da Barrosinha, hoje um hotel de quatro estrelas, com 37 quartos, e reconvertidas sete moradias para exploração turística, anexas a esta unidade. “Este é o princípio de um projecto imobiliário muito maior na Barrosinha, que inclui um plano de urbanização em fase de aprovação na Câmara de Alcácer do Sal, para a construção de um hotel e diversos aldeamentos turísticos”, conta Carlos Trindade.
A serração, que “estava moribunda”, foi recuperada e está hoje a cargo de Mircea Anghel, artista de origem romena que aceitou o desafio de se mudar, com a mulher, Joana Cabral, e os três filhos, para a Barrosinha. Muito mais do que um carpinteiro ou marceneiro, que o é, é um artista conceituado a nível internacional, com peças cotadas em dezenas de milhar de euros. Basta pesquisar um pouco na internet para o constatar.
A única indústria ainda em actividade quando Carlos Trindade começou a gerir a Barrosinha era a adega, que estava praticamente intacta, mas produzia vinhos sofríveis, vendidos a granel. Era preciso recomeçar.
Primeiro, investindo na melhoria da sua qualidade, “porque a entrada dos nossos vinhos no mercado podia trazer mais visibilidade e chamar a atenção que o público dava há 50 anos à Barrosinha, quando era uma propriedade emblemática”, explica Carlos Trindade, defendendo que isso já foi conseguido. A mudança começou sob a batuta do enólogo António Saramago, a quem foi lançado o desafio de produzir vinhos de qualidade, mas fáceis de beber. “É alguém que sabe muito bem fazê-los com capacidade para se beberem hoje ou daqui a 10 anos e nós estamos agora a usufruir disso, porque temos alguns reservas que têm essa idade e estão fantásticos”, conta o gestor. O processo implicou também uma aposta mais forte na comunicação e a mudança de imagem das garrafas e rótulos.
Revolução enológica
Há quatro anos, António Saramago, que tem actualmente 60 anos de profissão, decidiu reformar-se e diminuir a intensidade do seu trabalho. Assim, a Barrosinha contratou Felipe Sevinate Pinto e Frederico Vilar Gomes, dois experientes enólogos consultores, o que contribuiu para melhorar ainda o perfil dos vinhos. Sara Carapucinha, que entrou um pouco depois, é a enóloga residente.
Como a produção de uva não estava a acompanhar, também foi preciso fazer alterações na viticultura. A Barrosinha produzia uva a partir de uma vinha de sequeiro com 100 hectares, com mais de 30 anos, cujos rendimentos estavam abaixo do desejado. Por isso, foi iniciado um processo de mudança da zona produtiva para terrenos de cota mais baixa da herdade, junto ao rio Sado, onde há disponibilidade de água para assegurar uma produção mais estável e volumosa todos os anos. A vinha nova tem actualmente 15 hectares, três dos quais plantados em areias e os restantes 12 sobre solos argilo-calcários, segundo conta Sara Carapinha. Revela também que as mudanças climáticas estão a afectar o ciclo da videira na Barrosinha, e “a vindima, que habitualmente começava em meados de Setembro, inicia-se agora um mês antes”. Para além disso, “castas que habitualmente eram colhidas no fim, acabaram por ser as primeiras”, revela. Foi o que aconteceu com a Alicante Bouschet, habitualmente a última a ser vindimada e este ano a primeira na vinha de sequeiro da Barrosinha.
A colheita iniciou-se a 16 de Agosto, como habitual pelas castas brancas e pelas tintas destinadas à produção de vinho rosé. Mas o grau álcool teimou um pouco em evoluir nestas últimas, “o que nos trouxe um sentimento de incerteza”, diz a enóloga, acrescentando que 2022 foi um ano muito atípico, completamente diferente dos anteriores, apesar de a produção dos cerca de 100 hectares de vinha ter sido de 320 toneladas de uva, volume significativamente superior ao habitual, que rondava entre 180 e 200 toneladas, valor muitíssimo baixo. A vindima na Barrosinha é feita casta a casta e à máquina, porque não é fácil arranjar mão de obra para colher as uvas. Para além do Alicante Bouschet, na vinha da Barrosinha pode encontrar-se Castelão, Trincadeira, Cabernet Sauvignon e Aragonez, entre as variedades tintas, sendo as brancas Fernão Pires, Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Moscatel.
O mais recente Grande Reserva tinto da empresa foi produzido com uvas das castas Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon “porque dão vinhos com mais personalidade, corpo e cor”, explica Sara Carapinha. Foram fermentadas em cubas argelinas, onde decorrem entre 80 e 150 remontagens durante os 8 a 10 dias em que decorre a fermentação, cuja temperatura é controlada por um tubo de refrigeração. Depois, estagia entre 16 a 18 meses em barrica, enquanto os vinhos vão sendo provados até à decisão do lote final que foi engarrafado.
Para a produção do lote do ano é sempre usado, como testemunho, o vinho do ano anterior, para que se equipare em termos de aroma e sabor, o que não significa, necessariamente, que tenha as mesmas percentagens de cada casta. “Temos clientes fiéis que não querem alterações no perfil do vinho”, explica Sara Carapinha, acrescentando que habitualmente se produzem entre 15 a 20 mil litros de Barrosinha branco e 20 a 23 mil de tinto. “O rosé é um pouco menos”. Esta e outras marcas são vendidas sobretudo nos concelhos de Alcácer do Sal e de Grândola, região onde a Barrosinha está inserida, mas também em Lisboa, sobretudo na restauração.
A casa faz também a marca dos Hotéis Nau, que pertencem ao mesmo grupo empresarial. “Depois temos a loja, que representa entre 20 e 25% das nossas vendas totais de vinhos em valor, conta Carlos Trindade, acrescentando que “foi uma conquista que aconteceu logo desde que a abrimos, porque as pessoas de Alcácer e de Grândola voltaram a comprar e beber vinhos da Barrosinha”.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Editorial: Lisboa vestida de branco
Não, infelizmente, o título não anuncia a cidade de Lisboa sob um manto de neve. Parece que esse fenómeno raro aconteceu pela última vez em janeiro de 2006 e, antes disso, mais a sério, em fevereiro de 1954. Falo sim de grandes vinhos brancos da região de Lisboa. Que, felizmente, e ao contrário da neve, […]
Não, infelizmente, o título não anuncia a cidade de Lisboa sob um manto de neve. Parece que esse fenómeno raro aconteceu pela última vez em janeiro de 2006 e, antes disso, mais a sério, em fevereiro de 1954. Falo sim de grandes vinhos brancos da região de Lisboa. Que, felizmente, e ao contrário da neve, não se revestem de nenhuma raridade. Pelo contrário, são cada vez mais e melhores.
Editorial da edição nrº 69 (Janeiro 2023)
Brancos de Lisboa é o tema da Grande Prova que este mês apresentamos aos nossos leitores, pela pena de Nuno de Oliveira Garcia. Se há região portuguesa que, pelo menos em teoria, tem tudo para nos presentear com vinhos brancos de primeira linha, essa é a região de Lisboa. Razões para isso, são muitas. Desde logo, históricas. Integrada na área vitivinícola de Lisboa está a única denominação de origem nacional exclusiva para vinhos brancos, Bucelas. Já para não falar de outra das mais antigas DOC’s portuguesas, Colares, que ainda que mais famosa pelos tintos não deixa os pergaminhos dos seus brancos (como se viu nesta prova) por mãos alheias. Mas existem, igualmente, razões climáticas por trás do “potencial branco” desta região. A sua configuração geográfica, uma faixa estreita que se estende desde a cidade capital até acima de Leiria, correndo ao longo do oceano atlântico, beneficiando assim de noites e manhãs frescas no verão, é propícia à criação de uvas com refrescante acidez. E todos sabemos que acidez equilibrada é factor decisivo para a elaboração de vinhos brancos de qualidade superior.
Chegado a este ponto, quem lê estas linhas está à espera que fale de castas. Lá chegarei. Antes, quero mencionar um outro elemento, frequentemente esquecido quando se elencam as virtudes de uma qualquer região, e que está na base da “revolução” ocorrida nos vinhos brancos de Lisboa: as pessoas. Pessoas que, na região de Lisboa, são sinónimo de empreendedorismo. Desde os finais do século XIX até aos tempos modernos, produtores e negociantes locais, como os pioneiros João Camillo Alves e Abel Pereira da Fonseca, sempre estiveram em absoluta sintonia com o mercado, ou melhor, os mercados, antecipando-se às necessidades do consumidor daquém e dalém mar. E quando o consumidor, hoje, também quer brancos de topo, Lisboa está a postos para os oferecer.
Falemos então das variedades de uva branca. O empreendedorismo que acabei de referir fez da região de Lisboa um caldeirão de experimentação “cozinhado” por grandes profissionais, onde o pragmatismo prevaleceu sobre a tradição, e onde, historicamente, sempre se plantaram as castas mais adequadas aos objectivos, definidos pelo mercado alvo num dado momento. Das muitas actualmente usadas, deixem-me abordar apenas as duas variedades que, por razões distintas, considero mais significativas para o futuro próximo dos melhores brancos de Lisboa. Primeiro, naturalmente, Arinto. Uma casta que atravessou épocas e gerações, sobrevivendo aos ventos de mudança. Acantonada no seu berço, em Bucelas, pôde de novo expandir-se quando a procura de qualidade se sobrepôs ao apelo da quantidade, transformando-se em bandeira regional. A sua inigualável plasticidade, adaptabilidade e polivalência torna-a, para mim, na melhor casta branca portuguesa. Durante décadas lamentei que em Lisboa, e sobretudo em Bucelas, não lhe dessem a atenção que merece. Hoje, finalmente, e apesar do muito ainda por explorar nesta uva preciosa, as minhas preces vínicas parecem ter sido ouvidas.
Depois, uma casta que veio do Douro para iluminar Lisboa, a Viosinho. De agradável surpresa a segura confirmação, mostrou nos frescos ares atlânticos qualidades insuspeitas no vale duriense, sobretudo ao nível da intensidade, elegância, equilíbrio ácido e, pasme-se, longevidade. Vai ser, seguramente, um esteio transversal aos brancos de topo produzidos nesta região.
História, clima, empreendedorismo, castas. Por esta ou outra ordem, são a base dos mais ambiciosos vinhos brancos de Lisboa. E que bons que eles são!
Grande Prova: Douro tinto – A classe de uma região sem igual
É impressionante, como o Douro consegue ser uma das regiões mais completas no mundo. A fama dos Porto não impediu que a região crescesse enormemente na dimensão dos vinhos não fortificados. Os DOC Douro, e em particular os seus tintos, são hoje uma referência nacional e mundial. E como como a nossa prova o demonstra, […]
É impressionante, como o Douro consegue ser uma das regiões mais completas no mundo. A fama dos Porto não impediu que a região crescesse enormemente na dimensão dos vinhos não fortificados. Os DOC Douro, e em particular os seus tintos, são hoje uma referência nacional e mundial. E como como a nossa prova o demonstra, mais uma vez, a diversidade de estilos é acompanhada por um nível de qualidade ímpar.
Texto: Valéria Zeferino Fotos: Ricardo Palma Veiga
Desde a demarcação de 1756, praticamente tudo girava à volta do vinho do Porto (chamado na altura “vinho de embarque”, mesmo não sendo aguardentado ainda) que deu a fama à região e era uma grande fonte de rendimento para a economia nacional. Ainda nos anos 30 do século passado, o vinho do Porto representava 75% das receitas do sector do vinho português.
Os vinhos não fortificados eram produção residual e tinham designações pouco apelativas, quase de desprezo, como “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo”, não ostentando nem denominação de origem, nem regulamentação própria. Isto só aconteceu em 1982, quando “a designação “Douro” ficou reconhecida como denominação vinícola de origem, reservada aos “vinhos de consumo típicos regionais, brancos e tintos, tradicionalmente produzidos na mesma região demarcada que os vinhos do Porto”.
Antes disto existiam algumas marcas de vinhos de mesa. A Real Companhia Velha, por exemplo, tinha Grantom, Granléve e Evel (esta última marca, foi lançada em 1913 e existe ainda hoje) e Real Companhia Vinícola do Norte fazia Marquis de Soveral. Nos rótulos destes vinhos apareciam “tinto especial” ou “vinho maduro tinto” (para distinguir do Verde tinto, claro) e até “garrafeira”, mas nada de referenciar a região. Mesmo os primeiros Barca Velha também eram simplesmente “vinho tinto de mesa”.
A entrada de Portugal para a União Europeia em 1986 e o acesso a fundos comunitários deu o impulso importante aos produtores. A partir dos anos 90 e na viragem do milénio começa a moderna história dos DOC Douro, o que coincide com uma geração de novos enólogos, com formação universitária, talento e ambição e que hoje são bem conhecidos, mas na altura estavam a começar a sua aventura profissional. Jorge Moreira, Manuel Lobo, Francisco Olazabal, Tiago Alves de Sousa, Jorge Borges e Sandra Tavares da Silva, só para nomear alguns, que se vieram juntar aos pioneiros João Nicolau de Almeida ou José Maria Soares Franco, entre outros. Ao mesmo tempo, e na senda de nomes como Quinta da Pacheca ou Quinta do Côtto, aparecem os novos “vinhos de quinta”, como Quinta do Crasto, Quinta do Vale Meão, Quinta da Gaivosa, Quinta Vale D. Maria, Quinta do Vallado, Quinta da Leda, Pintas ou Poeira, muito deles tendo como mentor e impulsionador o visionário Dirk Niepoort.
O sucesso dos vinhos DOC e a crescente procura do consumidor pelos vinhos não fortificados motivaram várias casas produtoras de Porto a iniciarem-se nos vinhos de mesa. É o caso da Niepoort, Ramos Pinto, Quinta do Noval, Poças, Quinta do Vesúvio, entre outros. Mais tarde alguns pequenos produtores que forneciam uvas para o vinho do Porto aderem ao movimento e começam a criar marcas próprias.
Se no início, os vinhos do Douro entraram no palco internacional à boleia dos vinhos do Porto, ao longo das últimas décadas ganharam um lugar cimeiro alicerçado no mérito próprio. Não é de estranhar que, segundo os dados do IVDP, em 2021 a produção de vinhos com denominação de origem Douro tenha ultrapassado a produção do vinho do Porto, com 76.424.479 litros vs. 72.746.586 litros, respectivamente.
Os topos de gama com designações Grande Reserva e equivalentes representam 1,6% dos vinhos comercializados em volume e 5,7% em valor, com um preço médio de 16 euros por litro. Se bem que esta informação é relativa, porque nem todos os topo de gama do Douro ostentam estas designações de qualidade. A começar pelo próprio Barca Velha, mas também Chryseia, Quinta do Vale Meão, Poeira, Quinta do Vesúvio, Quinta da Manoella ou Pintas, entre muitos outros.
O Douro e a mudança
A mudança é inevitável e constante. Mudam as filosofias, práticas de viticultura, abordagens enológicas, hábitos de consumidores e os estilos de vinhos. E no meio disto tudo ainda acontecem as mudanças climáticas e as alterações demográficas na região que condicionam o resto.
Tiago Alves de Sousa, enólogo da nova geração da família Alves de Sousa, explica que nos anos 60 houve uma grande vaga de emigração que reduziu drasticamente a mão-de obra. O Douro precisava de soluções que passaram por mecanização, e acabámos por “adaptar a encosta à máquina”.
Nos anos 80 foi iniciado o chamados PDRITM, um programa de desenvolvimento assente em novas plantações e reestruturações da vinha existente, financiado com fundos comunitários. Mais tarde, passando o entusiasmo, ficou evidente o seu impacto ambiental negativo como a modificação de encostas, a alteração da sua cobertura vegetal e a erosão hídrica, que é um dos efeitos mais graves das plantações do PDRITM.
Há 25 anos as condições e os problemas eram outros: difícil maturação, falta de arejamento na vinha, muitas doenças – conta Jorge Moreira. “Importaram-se uma série de práticas e massificaram-nas rapidamente. A tradicional forma de condução das videiras, Guyot de tronco baixo, foi substituída pelo cordão bilateral ou unilateral. Na altura fazia sentido ter uma grande parede foliar para amadurecer cachos bem expostos. Agora não temos água para tanta folha. E temos de proteger os cachos da radiação solar e calores extremos”, continua o produtor e enólogo de Poeira, La Rosa e Real Companhia Velha. O cordão, devido a orografia e vinhas inclinadas, não permite escolher a exposição, e algumas vinhas apanham sol na mesma face do meio-dia até as 7 da tarde.
Já para Tiago Alves de Sousa, “o cordão é basicamente um painel fotovoltaico: pode ser bom para regiões com baixo nível de insolação, mas nós temos sol a mais. Com uma só camada de folhas o cacho fica mais exposto e vulnerável ao escaldão. No modelo Guyot, a vegetação envolve mais o cacho com 2-3 camadas de folhas e protege melhor.”
Para além disto, a poda em cordão implica muitos cortes na videira que são uma porta de entrada para as doenças do lenho. Exigência de produção e extensão de cordão acaba por esgotar a planta. Muitas vinhas plantadas há 20 anos nunca chegam a ser centenárias.
Alterou-se assim a forma de plantar vinha. Pelos viveiristas foram propagados os enxertos prontos para facilitar a plantação e diminuir a necessidade de mão de obra e o tempo que uma vinha leva a entrar em produção. Mas, dizem vários técnicos, parece que esta prática não ajuda ao desenvolvimento de raízes. Jorge Moreira descreve que o enxerto americano se regava cerca de 2 anos antes da enxertia, desenvolvia raízes, e esperavam-se mais 3 ou 4 anos para a formação da planta. Agora com rega em 3 anos pomos a planta a produzir. É mais rápido, mas as raízes acabam por não ser bem desenvolvidas e os exertos prontos têm maior tendência para doenças de lenho. Nas vinhas velhas não se encontram tantas.
Os porta-enxertos também são diferentes do tradicional. Segundo Tiago Alves de Sousa os porta-enxertos tradicionais (Rupestris du Lot, chamado “Montícola”) que quebra o xisto, mas induzia vigor vegetativo e a produção não acompanhava, foram substituídos por outros, que são todo-o-terreno e com maior potencial produtivo. As produções por videira duplicaram ou triplicaram, o que altera, naturalmente, as caracteristicas qualitativas das uvas no final da maturação. Para contrariar este efeito e amadurecer cachos mais abundantes, é necessária uma parede vegetativa mais ampla. E chegámos a um círculo vicioso.
Os desafios actuais
Os grandes desafios do Douro, actualmente: situações mais extremas, temperaturas mais altas, invernos mais secos que não repõem os níveis de água no solo e as precipitações mais agrupadas (cai uma grande quantidade de chuva em pouco tempo). A queda de granizo tornou-se numa constante anual. O ano de 2020 – foi continuamente seco, o 2022 também, exemplifica Manuel Lobo, enólogo da Quinta do Crasto. As vinhas velhas aguentaram-se melhor e pela primeira vez viram-se muitas videiras do PDRITM secas, não se sabendo se vão rebentar para o ano.
“A frequência e a duração de ondas de calor aumentou”, acrescenta Tiago Alves de Sousa, – “este ano não foi uma onda, foi uma maré de calor com o impacto forte nas maturações.”
Quando, no final dos anos 90 início dos 2000 se começou a falar da questão da rega, a maioria dos produtores era contra. Discutiam-se várias questões, sociais, económicas, etc., menos a questão técnica. Depois dos anos muito secos como 2015 e 2017, percebemos que temos mesmo de regar, mas outra questão se coloca agora – com que água?
Num mundo ideal, a rega é uma ferramenta poderosíssima, mas a água é um bem cada vez mais escasso. Por outro lado, a rega não é um penso rápido. Há formas de diminuir perdas de água por transpiração, por exemplo, a sombra no próprio solo diminui a evaporação. A plantação com densidade mais elevada também estimula o enraizamento, obrigando a raiz ir ao fundo por falta de espaço ao lado e ter acesso à água durante mais tempo.
Manuel Lobo explica que no Douro Superior, a vinha da Cabreira tem rega instalada que garante homogenidade produtiva e estabilidade qualitativa. Mas a viticultura de precisão é essencial. Usam sondas para obter informação e perceber qual é a capacidade de campo, quanto tempo a água se vai manter no solo e qual é a quantidade disponível para a planta e o consumo da própria planta.
“Não há uma solução universal que sirva para tudo”, – aponta Jorge Moreira. “Se seguirmos uma política mais intensiva na produção, temos que assumir que vamos ter de replantar a cada 20 anos”, refere.
Na casa Alves de Sousa, desde 2014 plantam vinha tradicional com bacelo e porta-enxerto antigo, de alta densidade em Guyot duplo, com co-plantação de castas (cerca de 15) a apontar para 8 mil videiras/ha. Uma espécie de “novas vinhas velhas”. “O factor mão-de-obra não pode ditar-nos como plantar” – defende Tiago. Plantam assim a vinha a pensar nos próximos 100 anos. A zonagem correcta é importante, considera Tiago Alves de Sousa. Há castas que estão plantadas nos sítios errados e em vez de fazer um pouco de tudo em todo o lado, tem de se prestar mais atenção às condições de cada zona específica. Ele também acredita que com desenvolvimento científico e experimental, vão surgir novas oportunidades, como por exemplo, o uso de drones agrícolas.
Vinhas e castas
A vinha na região do Douro ocupa mais de 43.000 ha, com a maior parte na sub-região de Cima Corgo com mais de 20.000 ha, cerca de 13.000 ha no Baixo Corgo e cerca de 10.000 ha no Douro Superior – dizem-nos os dados mais recentes do IVDP.
As castas tintas mais plantadas no Douro são Touriga Franca que ocupa 23% de plantação, Tinta Roriz com 16,4%, Touriga Nacional com 10,6% e Tinta Barroca com 7,4%. É um facto que as castas do Douro sempre foram pensadas na óptica do vinho do Porto. Quanto ao estudo de castas, no ultimo relatorio da Estacao Vitivinicola (então já designada por CEVD), elaborado em 1979 pelo Engº Gastão Taborda (o grande responsável pela recuperação da casta Touriga Nacional graças a inúmeros estudos experimentais que realizou sobre as castas do Douro) escreveu: “O número exageradíssimo de castas de uvas para vinho existentes na Região – mais de 130 – constitui um dos problemas mais graves e difíceis de resolver, mas que é preciso encarar a sério, dada a influência que a casta tem na qualidade do Vinho do Porto.”
A pouco e pouco, o universo das 70 castas tintas e 50 brancas foi grandemente reduzido, ao ponto de quase se resumir às 5 castas seleccionadas, que se encontram em maioria no encepamento e formam o blend típico dos DOC Douro (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão). E a verdade que as mesmas castas também produzem óptimos vinhos do Douro, complementando-se em qualidades.
A Touriga Franca, basicamente é a coluna dorsal de um lote, dá dimensão e volume. Tem uma película mais espessa, a folha é mais rugosa, o que permite aguentar melhor o stress hídrico e térmico, “só é pena não ter acidez da Touriga Nacional”, diz Manuel Lobo. Tiago Alves de Sousa acrescenta que a Touriga Franca é mais sensível ao stress térmico do que ao stress hídrico. Com o calor, pode chegar até 10-10,5% de álcool provável e de repente pára. Algumas nem com a chuva recuperam.
Já a Touriga Nacional confere frescura, elegância e também alguma estrutura. É muito flexível na adega. No entanto, exige algum cuidado com exposição solar para evitar que as folhas de base sequem e que fique com aromas sobremaduros. A Tinta Roriz nunca foi consensual. Tem um teor de tanino muito alto e quando produz em demasia, não amadurece bem e é muito dependente do terroir. Por isto raramente tem um papel a solo, mas há excepções, como é o caso da Quinta Nova e da Quinta do Portal, sendo ambos os vinhos excelentes exemplos da casta.
A Tinta Barroca é uma uva precoce, ganha açúcar elevado e perde acidez, ainda por cima, tem pouca cor. É importante para o vinho do Porto de estilo tawny, mas a sua participação nos topos de gama do Douro é muito reduzida. O Tinto Cão é o oposto da Tinta Barroca – casta muito tardia de ciclo longo e preserva bem a acidez; tem tanino notável, produz vinhos com frescura e algum potencial de envelhecimento. No entanto, nem todos os produtores apostam nesta casta. Manuel Lobo, por exemplo, acha que em termos enológicos não é muito interessante, adapta-se melhor para rosés.
As vinhas velhas com castas misturadas ainda se encontram em vários encepamentos no Douro e espelham o notável património varietal da região. E o DOC Douro foi a primeira denominação de origem em Portugal a regulamentar a designação “Vinhas Velhas” (com mais de 40 anos). A Quinta do Crasto foi a primeira no Douro a introduzir a menção Vinhas Velhas no rótulo (até chegou a ser marca registada…) e a produzir e comunicar, desde 1998, os vinhos das centenárias e famosíssimas Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa.
Hoje o Crasto faz tudo para preservar estas vinhas. Manuel Lobo conta que identificaram 54 genótipos na parcela Maria Teresa (com 111 anos). Dispõem da sua base genética e do campo de multiplicação, onde ficam os bacelos. Isto para garantir que quando é necessário substituir uma planta, o mesmo genótipo é plantado na mesma coordenada GPS.
Os vinhos das vinhas velhas são muitas vezes vistos pelo produtor e pelo consumidor como vinhos de qualidade superior pela sua autenticidade e pela história que contam. E nesta prova houve muitos belíssimos exemplos. Entretanto, é preciso lembrar que estes vinhos precisam de uma abordagem correcta nas adegas. Como muitas vezes têm castas com pouca estrutura, não aguentam muito tempo em barrica, sobretudo nova e com muita tosta. Perdem a sua autenticidade e delicadeza. Também tivemos em prova casos destes.
O estilo dos vinhos
O estilo de vinhos no Douro também está sujeito a mudanças. Já passou por uma fase de robustez, concentração e grande extracção. Basicamente, era uma versão seca dos vinhos do Porto. O uso de madeira, até há bem pouco tempo, também era excessivo. Aprendeu-se aplicar o estágio em barrica com parcimónia, e introduziram-se vasilhas de madeira de maior capacidade, para marcar menos o vinho. O momento certo de vindima em função da casta e da parcela tornou-se um ponto essencial. Os vinhos tendem hoje a ser mais frescos, mais leves, com menos extracção e concentração.
Jorge Moreira conta a sua experiência na Quinta de La Rosa e na Real Companhia Velha: “antes a extracção era total e profunda, agora cada vez mais usam bagos inteiros, cachos inteiros, prensam mais cedo, não deixam extrair tanto em macerações longas. Mesmo no seu Poeira, que começou há 20 anos e já na altura era um dos vinhos mais leves, frescos e ácidos do Douro, ele releva a diminuição da extração e acentuar frescura. As alterações no estilo e perfis dos vinhos, no entanto, devem sempre ter em conta as características da região, das suas uvas, do seu clima, do seu solo, no fundo a sua identidade, aquilo que faz os Douro cheirarem e saberem a Douro. “Não podemos exagerar e procurar fazer de um Douro um Borgonha”, alerta Manuel Lobo. E com inteira razão.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)