Editorial: Verde

Editorial LUÍS LOPES

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.   Editorial da edição nrº 74 […]

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

 

Editorial da edição nrº 74 (Junho 2023)

Não tenho dúvida, haverá muita gente que, no seu dia a dia, actua de forma mais respeitadora do ambiente do que eu. Mas sei que, em casa e fora dela, sigo padrões de sustentabilidade acima da média. Alguns exemplos diversos: quase 90% da minha energia doméstica vem de painéis solares; as duas centenas de garrafas das provas que abro em cada mês são descarregadas no vidrão; a água da piscina nunca foi mudada em 25 anos, a evaporação é compensada pela chuva; nas deslocações inferiores a 200 km uso um carro eléctrico; o duche matinal dura três ou quatro minutos; alimento e abrigo a passarada no jardim; prefiro, sempre, bens e produtos produzidos nacional ou localmente. Podia continuar, mas já chega. Expus aqui em público, e muito a contragosto, uma parte da minha vida privada, apenas para acentuar que, no que a práticas ambientais diz respeito, acolho sempre ensinamentos, mas não aceito moralismos de ninguém.

Vamos então ao que interessa, um caso paradigmático de um certo populismo ambiental que me incomoda. Dois conceituados críticos internacionais anunciaram recentemente aos seus leitores que, de agora em diante, se recusarão a provar vinhos em garrafas de vidro “pesado”. Fica-lhes bem. De uma assentada aparecem como salvadores do mundo e apaziguam a consciência própria, também ela pesada. É que a principal fonte de receita destes dois profissionais passa por dar palestras e provas nos cinco continentes, viajando confortavelmente de avião (naturalmente) e em primeira classe (mais naturalmente ainda). Como sabemos, a aviação comercial tem o maior peso ambiental (em pegada de carbono) entre todas as actividades económicas. Já o número de garrafas “pesadas” face às “normais” ou “leves” é bastante reduzido, pois são unicamente usadas em (alguns) vinhos de topo. A título de exemplo, um produtor português que viu o seu vinho recusado por um dos críticos referidos, enche 5.000 garrafas “pesadas” num total de 2 milhões de “normais” e “leves”. Assim, poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas” seria fazer menos viagens intercontinentais. Ou, quem sabe, comer fruta da época, em vez de “fruta de avião” colhida no outro lado do oceano. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

O que quero eu dizer com tudo isto? Primeiro, que o modelo “certo” de sustentabilidade ambiental não existe; segundo, que preservar o ambiente implica sacrifícios que devemos estar preparados para fazer; terceiro, que mais importante do que ser “verde” por fora, é sê-lo por dentro, ter verdadeira consciência ambiental, com bom senso, sem radicalismos, sem hipocrisias – a manta é curta, o que tapamos de um lado destapamos do outro: queremos carros eléctricos e telemóveis, mas a mineração do lítio que seja feita bem longe, de preferência na China…

Portanto, sejamos, todos, menos propagandistas e mais consequentes nas nossas acções privadas. A garrafa pesada vai, provavelmente, desaparecer do mercado nos próximos anos: só que, como em tudo, serão os consumidores a fazer com que isso aconteça. O vidro pesado é apenas uma gota num oceano de desperdício. É aquilo que estamos dispostos a fazer, nas nossas casas e nos locais de trabalho, que, verdadeiramente, vai promover a diferença.

 

Editorial: Digital (E papel, também)

Editorial LUÍS LOPES

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na […]

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

 

Editorial da edição nrº 73 (Maio 2023)

 

O leitor da Grandes Escolhas vai ficar surpreendido (espero que positivamente) com a edição que tem agora em mãos. Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

O mês de Maio traz assim muitas novidades ao universo Grandes Escolhas. A única menos positiva, mas inevitável face ao significativo crescimento dos custos, é o aumento de €0,50 no preço da revista em papel e no “vinho de capa”. De resto, tudo coisas boas. A revista (versão papel ou digital) está bem mais arejada (e arrojada) do ponto de vista gráfico, dando às fotografias um relevo maior do que no passado. A mudança no tipo de letra possibilita também uma leitura mais fácil e confortável. Em termos de conteúdos, o novo grafismo “obriga” a textos mais curtos, mas, também por isso, mais textos, mais concisos, mais diversos e mais focados. Nada que atrapalhe uma equipa redactorial que, enquanto director, é para mim motivo de orgulho, pelo conhecimento, dedicação e profissionalismo. Aqui não houve mudanças pois, como dizem no futebol, em equipa que ganha não se mexe.

Um princípio que, na verdade, não respeitámos quando nos virámos para o website Grandes Escolhas. É que o website estava a ganhar folgadamente e, mesmo assim, mudámos e mudámos muito. Os números oficiais da Google Analytics, relativos a 2022 são, sem dúvida, impressivos para um website tão especializado: 771 mil sessões iniciadas por 533 mil utilizadores (dos quais 67% novos utilizadores!) mais de 3 milhões de páginas visualizadas, e mais de 4 páginas por sessão, com uma taxa de rejeição de apenas 1,1%. Números destes levaram-nos a fazer um grande esforço, em parceria com a Upgrade, no sentido de potenciar ainda mais esta adesão por parte dos apreciadores de vinho. O novo website, já online mas ainda a ser diariamente aperfeiçoado, está “turbinado” em todos os sentidos, na forma e no conteúdo. Permitam-me referenciar aqui apenas dois aspectos, que considero, enquanto utilizador, de grande relevância, e ambos relacionados com a pesquisa de vinhos: primeiro, a extraordinária rapidez com que chegamos ao vinho pretendido após digitarmos as primeiras letras do nome; segundo, a possibilidade de, ao clicarmos no botão “Comprar”, sermos de imediato direccionados para a página onde esse vinho se encontra nos websites de 7 das principais garrafeiras de Portugal.

Na base desta pesquisa de vinhos estão mais de 14000 notas de prova produzidas pela equipa da Grandes Escolhas. Um património absolutamente único no seio dos vinhos portugueses, pela sua dimensão, qualidade e credibilidade, e que as ferramentas digitais nos ajudam a levar a todos os apreciadores. E desvendo aqui a próxima novidade: muito em breve iremos lançar uma app, com reconhecimento de rótulos, que permitirá a qualquer utilizador, entre outras funcionalidades, apontar o seu telemóvel para uma garrafa e obter as notas de prova e a classificação da Grandes Escolhas. No mês em que este projecto cumpre o seu sexto aniversário, acho que não poderíamos dar e receber melhores notícias.

Editorial: Do vinoso comum à mineralidade

Editorial LUÍS LOPES

O trabalho de Valéria Zeferino, publicado nesta edição, sobre o conceito de “mineralidade”, palavra hoje usada e abusada na descrição de vinhos, suscitou-me alguma reflexão sobre a natureza das notas de prova. Na verdade, entre a austeridade mais espartana e os delírios mais imaginativos, há margem para tudo.   Editorial da edição nrº 72 (Abril 2023) […]

O trabalho de Valéria Zeferino, publicado nesta edição, sobre o conceito de “mineralidade”, palavra hoje usada e abusada na descrição de vinhos, suscitou-me alguma reflexão sobre a natureza das notas de prova. Na verdade, entre a austeridade mais espartana e os delírios mais imaginativos, há margem para tudo.

 

Editorial da edição nrº 72 (Abril 2023)

Descrever um vinho pode ser extremamente complexo. Ou, ao invés, a coisa mais fácil do mundo. Depende, basicamente, do estilo e, se quisermos, da seriedade de quem o faz. O estilo varia imenso de provador para provador, sejam produtores, enólogos ou críticos. De tal forma que, quando lemos centenas ou milhares de notas de prova, acabamos por associar determinados estilos (ou até descritores) a determinados avaliadores. Lembro-me que, quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, havia um reputado provador profissional que iniciava todas descrições de vinho tinto com “cor rubi de laivos granada, espuma fugaz rosada e aroma vinoso comum”. Do mesmo modo, duas décadas mais tarde, também não precisaria de pensar muito para de imediato identificar o autor de algo como “repleto de energia, de uma mestria de aromas e sabores quase sinfónica, seduz corajosamente pela fruta farta, pela dimensão imensurável, pela alegria tensa de um final explosivo, mas supinamente elegante.” Mais recentemente, o exótico “aroma peitoral” tem também autoria segura.

Mas a verdade é que a adjectivação, quando não demasiado rebuscada, ajuda muito a descrever um vinho: sólido, elegante, gordo, leve, intenso, discreto, exuberante, são descritores que apontam para diferentes perfis de vinho. Mais complexa é a associação a determinados aromas/sabores, pois nem todos são facilmente reconhecíveis pelo provador e, sobretudo, pelo leitor/consumidor. Todos temos memória olfactiva ou gustativa de limão, menta, amora, cereja, avelã, chocolate, apenas para citar alguns exemplos mais simples. Mas ainda assim, o enquadramento geográfico ou cultural de quem lê (ou ouve) a descrição do vinho é fundamental. Quantas pessoas, em Angola, comeram amoras ou cerejas? Ou, para não irmos tão longe, quantos portugueses “da cidade” cheiraram poejos?

Talvez o caso mais típico deste desfasamento cultural seja a tão conhecida (ou desconhecida…) bergamota, quase obrigatoriamente associada à casta Touriga Nacional. Porquê dizer que um vinho cheira a bergamota quando quase ninguém em Portugal (ou no mundo) cheirou ou provou este citrino verde em forma de pêra, oriundo do sul de Itália e que serve, sobretudo, para fazer óleos essenciais? Com a confusão adicional de, na principal região vinícola do Brasil, Rio Grande do Sul, chamarem bergamota à tangerina…

Por outro lado, existem descritores que acabam por se tornar moda, utilizados para quase todos os vinhos supostamente “nobres”. É o caso do famoso “mineral”, foco do artigo que citei na entrada desta peça. Num restaurante de “fine dining”, é raro o sommelier que não enfatize a “mineralidade” do vinho que está a sugerir; do mesmo modo que é raro o “mineral” escapar à nota de prova de um branco ou tinto mais ambicioso. Se tivéssemos presente que os aromas minerais, (casos da pólvora ou do sílex, por exemplo), nada tem a ver com os minérios presentes no solo (ao contrário do que muitos pensam), e que a sensação de mineralidade na boca está sobretudo associada à acidez, talvez fossemos um pouco mais comedidos na utilização deste descritor.

Mas pouco importa. Felizmente, todos nós, profissionais ou consumidores, somos livres de descrever um vinho como muito bem nos apetecer. O vinho é isso mesmo, prazer e liberdade. Uma coisa, porém, posso garantir: se um dia ler que um vinho cheira a “erva recém cortada por carneiro velho na encosta Norte da Serra da Estrela”, vou a correr comprar uma garrafa. Não quero morrer ignorante.

Editorial: As nossas escolhas

luis lopes editorial

Como habitualmente, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. É aquele momento tão especial em que celebramos todos aqueles (vinhos, pessoas, empresas, organizações) que se distinguiram ao longo do ano que passou. Discutíveis, como todas as escolhas, estas são as nossas Grandes Escolhas. Editorial da edição nrº 71 (Março 2023) Tal como […]

Como habitualmente, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. É aquele momento tão especial em que celebramos todos aqueles (vinhos, pessoas, empresas, organizações) que se distinguiram ao longo do ano que passou. Discutíveis, como todas as escolhas, estas são as nossas Grandes Escolhas.

Editorial da edição nrº 71 (Março 2023)

Tal como a primavera que aí vem, símbolo do renascer, do novo ciclo nos campos e nas vinhas, também os prémios Grandes Escolhas celebram a nova temporada vitivinícola começando por aplaudir os vinhos e as entidades que mais se destacaram na anterior. E, felizmente, são cada vez mais e mais fortes os motivos para aplaudir o vinho de Portugal.

Enquanto apreciadores, o que mais nos surpreende é o facto de ainda conseguirmos ficar surpreendidos (passe o pleonasmo) com o consistente crescimento qualitativo dos vinhos que nos chegam à mesa de provas. Mais do que qualidade (que já se tornou tão comum que virou banal), falamos de excelência, um patamar que, há uma década, estava só ao alcance de alguns, e hoje é evidenciado por muitos. Excelência essa que, cada vez mais, se apresenta associada a carácter, uma conjugação outrora quase inexistente. Tudo isso encontramos, sobretudo, nos nossos Top30 e, em particular, nos cinco vinhos vencedores, um por cada em cada categoria vínica: o espumante Murganheira Assemblage 2005, o branco Anselmo Mendes Parcela Única Alvarinho 2019, o rosé Kompassus Tête de Cuvée Nature 2017, o tinto Casa da Passarella Vindima 2011 e o fortificado Kopke 50 anos branco.

Os vinhos são feitos para serem bebidos, quase sempre acompanhados por comida, e na área da horeca e retalho o cliente/consumidor foi muito apaparicado em 2022, ao nível da oferta, da apresentação, do serviço. E foi-o em restaurantes incontornáveis na sua categoria ou perfil (Prado, De Raiz ou Ruvida são os nossos eleitos); em enoturismos absolutamente modelares, como o da Quinta de Ventozelo; em eventos únicos e inimitáveis, como o Amphora Wine Day; e em lojas ou bares de vinho onde nos sentimos em casa, como Estado d’Alma, Pátio d’As Marias e Garage Wines. E tantos foram os vinhos e clientes que beneficiaram do luxo de serem servidos pelo grande sommelier que é Ricardo Morais!

Muitas empresas e produtores, grandes e pequenos, excederam as nossas expectativas (e, acredito, por vezes, as suas próprias). Dona Sancha foi a grande revelação, vinda da região do Dão. Já a Herdade da Lisboa, do Alentejo, confirmou em 2022 a enorme solidez dos vinhos e do projecto. Outros procuraram, através da singularidade, brilhar num universo vínico demasiado homogéneo, como a dupla de enólogos que criou o modelo Lés a Lés. Mas também houve produtores bem mais antigos que se souberam reinventar, aparecendo fulgurantes, mudados por dentro e por fora, casos da Adega Coop. de Ponte da Barca ou da Sociedade Vinícola de Palmela. E depois, claro, há aqueles, como a Aveleda, em que a própria cultura empresarial, cimentada ao longo de mais de 150 anos, busca o sucesso não numa revolução, mas num planeamento cuidado a muito longo prazo.

Empresas e projectos bem sucedidos não nascem por geração espontânea. Na sua base estão, sempre, grandes profissionais. Como o vencedor do Prémio David Lopes Ramos, Ricardo Nogueira, cujo trabalho em torno do leitão da Bairrada merece todos os encómios. Em áreas mais directamente ligadas ao conteúdo das garrafas, destacamos o saber e versatilidade de Ana Mota, que trata por tu as cepas do Douro e do Dão; e o talento puro de quem mete, literalmente, a mão na massa, espelhado pelos enólogos Johnny Graham e Diogo Lopes.

Finalizo, como sempre, com o máximo galardão, entregue unicamente a quem muito ofereceu ao vinho de Portugal, ao longo de uma vida. E quem mais merecedor do que a grande Senhora do Vinho, Leonor Freitas?

 

Editorial: O rei vai nu

Editorial LUÍS LOPES

Luís Lopes É, no mundo inteiro, uma das mais conhecidas estórias infantis. Escrita pelo dinamarquês Hans Christian Andersen foi publicada, pela primeira vez, em 1837. Desde então teve milhares de traduções e, sobretudo, versões, muitas delas afastadas do texto original. Mas o que é que isto tem a ver com vinho, perguntarão? Editorial da edição […]

Luís Lopes

É, no mundo inteiro, uma das mais conhecidas estórias infantis. Escrita pelo dinamarquês Hans Christian Andersen foi publicada, pela primeira vez, em 1837. Desde então teve milhares de traduções e, sobretudo, versões, muitas delas afastadas do texto original. Mas o que é que isto tem a ver com vinho, perguntarão?

Editorial da edição nrº 70 (Fevereiro 2023)

Na verdade, o próprio título, na versão portuguesa, foi adulterado. A tradução inglesa do dinamarquês “Kejserens nye Klæder” – The Emperor’s new chothes – ou seja, “A roupa nova do Imperador” é bastante mais fiel. Mas não é isso que importa. Certo é que a minha avó me contava esta estória na hora de ir para a cama. Convenhamos, alguns dos seus contos de embalar davam pesadelos e, hoje, seriam considerados impróprios, coisas tenebrosas, com crianças devoradas por bruxas ou a arrancarem a própria carne para pagar à águia em cujo dorso viajavam para encontrar a mãe perdida. Enfim, outros tempos. Acredito que os avós de hoje não estão nem aí para contar estórias aos netos. O canal Disney trata do assunto. Mas, novamente, me desviei do tema.

A estória, muito resumida (Hans Christian Andersen que me perdoe) passa-se assim. Em tempos que já lá vão, existia um rei muito vaidoso, que gastava grande parte do tesouro real em roupas e joias. Sabendo dessa sua fraqueza, dois vigaristas conseguiram uma audiência e, apresentando-se como alfaiates de renome, disseram-lhe ter criado um tecido muitíssimo raro, diferenciador, tão especial que só as pessoas de inteligência superior conseguiam visualizar. Com esse tecido, propunham-se confecionar-lhe uma roupa que mais nenhum monarca teria, uma roupa que exaltaria a superioridade do rei e que, ao mesmo tempo, lhe permitiria, entre os seus cortesãos, distinguir os de intelecto adequado para continuar ao seu serviço. O rei achou a ideia extraordinária e tratou de pagar vultoso adiantamento. Ao mesmo tempo, anunciou à corte e ao povo ter encomendado trajes únicos, absolutamente singulares, que só os verdadeiramente inteligentes seriam capazes de apreciar. Os supostos tecelões foram instalados no palácio, com os seus teares, e fingiram começar a trabalhar. O rei enviou ao local os seus ministros, para lhe darem conta dos trabalhos. Eles nada viam, mas não o queriam confessar, temendo passar por ignorantes. Os aldrabões, vendo-os atrapalhados, descreviam-lhes os esplendorosos tecidos. E recebiam mais dinheiro, seda e fio de ouro para completar o trabalho. Os cortesãos voltavam então ao rei anunciando trajes de cores e padrões maravilhosos. Abreviando, chegou o dia de o monarca desfilar perante o povo. O rei despiu-se e os Cavaleiros Tecelões (entretanto, já condecorados) vestiram-lhe as roupas que, nas suas palavras, eram tão leves quanto uma teia de aranha. Ataviado com as imaginárias vestes, o rei desfilou na principal avenida da cidade, seguido de toda a corte. Nas ruas e janelas, o povo aplaudia e gabava os novos trajes do rei. Até que uma criança que, na versão inglesa do original, “não tinha um cargo importante e só via o que os olhos lhe mostravam” gritou no seu espanto: “o rei está nu!”. O povo, então, caiu em si e desatou a ridicularizar o rei. Daqui para a frente, a estória de embalar diverge do que Hans Christian Andersen escreveu. Na versão infantil, o rei, envergonhado, corre a esconder-se no palácio. No original, o rei não dá parte de fraco e, impávido e sereno, marcha nu enquanto os camareiros seguram um manto invisível.

Lembrei-me desta estória a propósito de uma mensagem que alguém me enviou, pasmado por “um vinho metido em garrafões de plástico que estagiaram ao sol custar o mesmo que o Vale Meão”. Na verdade, muitos vinhos encaixam no modelo. E tal como o autor dinamarquês, também eu não aponto o dedo aos falsos tecelões. Censuro sim a vaidade e credulidade do rei, da corte, do povo que, não querendo passar por ignorantes, calam o que os olhos (e nariz, e boca) lhes mostram. Mas talvez esteja a pedir muito. Provavelmente, tal como no conto original, o rei objecto de ridículo também não se retiraria envergonhado, antes continuaria exibindo suas imaginárias vestes.

Editorial: Lisboa vestida de branco

Editorial LUÍS LOPES

Não, infelizmente, o título não anuncia a cidade de Lisboa sob um manto de neve. Parece que esse fenómeno raro aconteceu pela última vez em janeiro de 2006 e, antes disso, mais a sério, em fevereiro de 1954. Falo sim de grandes vinhos brancos da região de Lisboa. Que, felizmente, e ao contrário da neve, […]

Não, infelizmente, o título não anuncia a cidade de Lisboa sob um manto de neve. Parece que esse fenómeno raro aconteceu pela última vez em janeiro de 2006 e, antes disso, mais a sério, em fevereiro de 1954. Falo sim de grandes vinhos brancos da região de Lisboa. Que, felizmente, e ao contrário da neve, não se revestem de nenhuma raridade. Pelo contrário, são cada vez mais e melhores.

Editorial da edição nrº 69 (Janeiro 2023)

Brancos de Lisboa é o tema da Grande Prova que este mês apresentamos aos nossos leitores, pela pena de Nuno de Oliveira Garcia. Se há região portuguesa que, pelo menos em teoria, tem tudo para nos presentear com vinhos brancos de primeira linha, essa é a região de Lisboa. Razões para isso, são muitas. Desde logo, históricas. Integrada na área vitivinícola de Lisboa está a única denominação de origem nacional exclusiva para vinhos brancos, Bucelas. Já para não falar de outra das mais antigas DOC’s portuguesas, Colares, que ainda que mais famosa pelos tintos não deixa os pergaminhos dos seus brancos (como se viu nesta prova) por mãos alheias. Mas existem, igualmente, razões climáticas por trás do “potencial branco” desta região. A sua configuração geográfica, uma faixa estreita que se estende desde a cidade capital até acima de Leiria, correndo ao longo do oceano atlântico, beneficiando assim de noites e manhãs frescas no verão, é propícia à criação de uvas com refrescante acidez. E todos sabemos que acidez equilibrada é factor decisivo para a elaboração de vinhos brancos de qualidade superior.

Chegado a este ponto, quem lê estas linhas está à espera que fale de castas. Lá chegarei. Antes, quero mencionar um outro elemento, frequentemente esquecido quando se elencam as virtudes de uma qualquer região, e que está na base da “revolução” ocorrida nos vinhos brancos de Lisboa: as pessoas. Pessoas que, na região de Lisboa, são sinónimo de empreendedorismo. Desde os finais do século XIX até aos tempos modernos, produtores e negociantes locais, como os pioneiros João Camillo Alves e Abel Pereira da Fonseca, sempre estiveram em absoluta sintonia com o mercado, ou melhor, os mercados, antecipando-se às necessidades do consumidor daquém e dalém mar. E quando o consumidor, hoje, também quer brancos de topo, Lisboa está a postos para os oferecer.

Falemos então das variedades de uva branca. O empreendedorismo que acabei de referir fez da região de Lisboa um caldeirão de experimentação “cozinhado” por grandes profissionais, onde o pragmatismo prevaleceu sobre a tradição, e onde, historicamente, sempre se plantaram as castas mais adequadas aos objectivos, definidos pelo mercado alvo num dado momento. Das muitas actualmente usadas, deixem-me abordar apenas as duas variedades que, por razões distintas, considero mais significativas para o futuro próximo dos melhores brancos de Lisboa. Primeiro, naturalmente, Arinto. Uma casta que atravessou épocas e gerações, sobrevivendo aos ventos de mudança. Acantonada no seu berço, em Bucelas, pôde de novo expandir-se quando a procura de qualidade se sobrepôs ao apelo da quantidade, transformando-se em bandeira regional. A sua inigualável plasticidade, adaptabilidade e polivalência torna-a, para mim, na melhor casta branca portuguesa. Durante décadas lamentei que em Lisboa, e sobretudo em Bucelas, não lhe dessem a atenção que merece. Hoje, finalmente, e apesar do muito ainda por explorar nesta uva preciosa, as minhas preces vínicas parecem ter sido ouvidas.

Depois, uma casta que veio do Douro para iluminar Lisboa, a Viosinho. De agradável surpresa a segura confirmação, mostrou nos frescos ares atlânticos qualidades insuspeitas no vale duriense, sobretudo ao nível da intensidade, elegância, equilíbrio ácido e, pasme-se, longevidade. Vai ser, seguramente, um esteio transversal aos brancos de topo produzidos nesta região.

História, clima, empreendedorismo, castas. Por esta ou outra ordem, são a base dos mais ambiciosos vinhos brancos de Lisboa. E que bons que eles são!

 

Editorial: O Douro das vinhas velhas

Editorial LUÍS LOPES

A chamadas “vinhas velhas” do Douro constituem elemento de notoriedade e qualidade que muitos dos melhores e mais conceituados vinhos da região partilham, um denominador comum, portanto. Mas nem sempre nos damos conta que essas mesmas vinhas são também aquilo que, primeiramente, os diferencia, definindo a sua singularidade e identidade. Editorial da edição nrº 68 […]

A chamadas “vinhas velhas” do Douro constituem elemento de notoriedade e qualidade que muitos dos melhores e mais conceituados vinhos da região partilham, um denominador comum, portanto. Mas nem sempre nos damos conta que essas mesmas vinhas são também aquilo que, primeiramente, os diferencia, definindo a sua singularidade e identidade.

Editorial da edição nrº 68 (Dezembro 2022)

A região do Douro foi a primeira a colocar ordem no uso da designação “vinhas velhas” na rotulagem, corrigindo um verdadeiro escândalo de publicidade enganosa. Em dezembro de 2020, o IVDP criou a menção tradicional “Vinhas Velhas”, regulamentando-a. Desde então, em traços muito gerais, para colocar o designativo na rotulagem, um produtor deverá cumprir as seguintes condições: a vinha ter mais de 40 anos de idade (avaliada pela idade média das videiras mais velhas da parcela); o rendimento por hectare não exceder 50% do máximo fixado anualmente para DOC Douro; a vinha ter, pelo menos 5.000 cepas por hectare (com tolerância de 30% para falhas – videiras mortas – e excepção das parcelas com armação pré-filoxérica, com menor densidade); apresentar um mínimo de 4 castas, com 3 delas a representar um mínimo de 25% do total; e o vinho proveniente destas vinhas ser aprovado na câmara de provadores do IVDP com nota mínima de nível 2 (equivalente a Reserva). Para além destes requisitos, o viticultor tem a obrigatoriedade de comunicar anualmente todas as alterações verificadas nestas parcelas, nomeadamente replantações ou reenxertias.

A meu ver, dever-se-ia ter ido mais longe, nomeadamente na nota mínima (passar a nível 3, equivalente a Grande Reserva, seria sensato), na idade (para a realidade vitícola do Douro, 40 anos é curto) e no número mínimo de castas existente no “field blend”. Mas este já foi um passo bastante significativo que veio acabar com grande parte do abuso. Um abuso que, curiosamente, só existe porque o consumidor associa, quase como sinónimos, “vinha velha” e qualidade acrescida. Algo que está muito longe de corresponder à realidade.

Na verdade, o que mais há no Douro são vinhas velhas de má qualidade: mal localizadas, mal tratadas, com predominância de castas de fraco valor enológico. Mas, nos casos em que “os astros se conjugam”, a vinha velha oferece qualidade e carácter inigualáveis. Os motivos são vários e conhecidos, mas aqui elenco, de forma muito simplista, os principais: inexistência de rega, originando um stress hídrico benéfico; raízes profundas, que absorvem outro tipo de nutrientes e minerais; produção muito menor, conduzindo a mais concentração em cada cacho; muitas décadas de adaptação de cada cepa ao solo, ao clima, à exposição solar – a videira “conhece” o território onde está; maior resiliência a condições climatéricas adversas; colheita e fermentação das castas misturadas, em diferentes fases de maturação, originando maior complexidade de aromas e sabores.

No entanto, bem mais do que a qualidade (uma vinha velha com 30 castas não produz obrigatoriamente melhor vinho do que uma vinha com 20 anos de idade e Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinto Cão, por exemplo), o que me fascina nas vinhas antigas do Douro é a sua singularidade. A diversidade de “field blends” que encontramos num conjunto de parcelas dispersas, com 60 ou mais anos, é absolutamente incrível, variando imenso o número de castas, suas percentagens e até a casta predominante. O resultado são vinhos imensamente distintos uns dos outros, cada um expressando a identidade da vinha onde nasceu. Juntemos a isto os vinhos de vinhas “modernas” e obtemos uma pintura duriense multicolor.

A prova de Douro tinto de topo que faz capa desta edição espelha tudo o que acima descrevi. Manoella, Vale Meão, Poeira, Quinta Nova, Duorum, Boavista, Noval, Xisto, Vale D. Maria, Leda e tantos, tantos outros, só possuem em comum duas coisas: a origem geográfica (que se traduz em alguns marcadores de aroma e sabor que nos remetem para uma dada região) e a excelência do vinho. Em tudo o resto são diferentes. E esse é o maior elogio que se pode fazer ao Douro de hoje.

Editorial: Turismo no Douro, ilhas na paisagem

Editorial LUÍS LOPES

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que […]

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que um destino turístico ambicioso deveria ter.

Editorial da edição nº 67 (Novembro 2022)

Não me interpretem mal, adoro o Douro. De tal forma que, apesar de visitar a região, em trabalho, várias vezes por mês, ainda lá regresso nas férias com a família para passar uns dias. Mas a questão é mesmo essa. Dificilmente “aguento” mais do que dois ou três dias a olhar a paisagem, com pouco mais para ver e fazer.

Deixem-me despachar a heresia de uma vez, para ficar o assunto arrumado. As quintas do Douro são hoje, no seu conjunto, a mais impactante oferta enoturística que temos em Portugal. A paisagem vinhateira, classificada Património da Humanidade desde 2001, o rio e seus afluentes são, só por si, motivo mais do que suficiente para que centenas de milhar de turistas ali acorram em cada ano e, cada vez mais, em todas as estações do ano. Muitos destes polos de enoturismo estão no patamar da excelência, pelo cuidado e profissionalismo colocado no espaço e na oferta (provas, visitas guiadas, passeios, etc.), num modelo que, em vários casos, se estende à gastronomia e hotelaria de qualidade. Estas quintas procuram, geralmente, ser autossuficientes em termos de “ementa turística”, para que o visitante não sinta a necessidade de dali sair. E, na verdade, a única justificação turística para sair de uma quinta é ir visitar outra quinta.

Atentemos na seguinte situação. Cheguei a uma propriedade esplendorosa, com uma oferta enoturística de primeira linha. Fiz as provas acompanhado por guias competentes, passeei pelas vinhas, visitei a adega, comprei na loja, já dormi a sesta no quarto do hotel. Ao fim da tarde, sento-me numa espreguiçadeira, frente ao rio, com um livro na mão e descanso os olhos no monte que se avista na outra margem enquanto aguardo pelo jantar. Lindo. No segundo dia, repito o programa, com algumas variantes: subo até ao ponto mais alto da vinha, onde ainda não tinha estado, faço uma outra prova, mas agora com Porto e, antes do jantar, sento-me novamente na espreguiçadeira com o livro, o rio e o monte em frente. Ao terceiro dia, para mim, chega. Quero ir petiscar fora, usufruir de uma bonita esplanada ou jardim, conversar com os locais, passear por ruas pitorescas, comprar pão e queijos, visitar um museu, um castelo, um atelier de artesanato, jantar num bom restaurante com comida local e regressar à quinta/hotel sem sobressaltos. O problema: tudo o que acabei de elencar, e que qualquer enoturista tem como garantido a cada passo na Toscana, no Loire, em Rioja… ou no Alentejo, é coisa muito, muito rara no Douro.

As quintas têm reforçado a oferta gastronómica e actividades “intramuros”, é o seu papel, mas ao mesmo tempo tornam-se cada vez mais “ilhas”, sem contacto com o exterior. Podiam (e deviam) desenvolver o trabalho em rede, para que o turista possa saltar de quinta em quinta, diversificando caras, comida, paisagem. Mas não podem inventar esplanadas, jardins, ruas pitorescas, museus, vida urbana.

Os números contrariam, evidentemente, esta visão pessimista. Nunca o Douro teve tanto turista a circular, por terra ou por água (os primeiros ainda deixam o dinheiro na região, os segundos nem isso, fica tudo nas ilhas flutuantes). Mas é preciso olhar além, a médio e longo prazo. A extraordinária paisagem vinhateira e a qualidade dos vinhos e das quintas não serão suficientes para garantir o futuro do turismo duriense se não houver autenticidade local a envolver tudo. Para que a galinha dos ovos de ouro não acabe por definhar um dia, seria bom que produtores e autarquias reconhecessem e identificassem as carências e trabalhassem em conjunto para as resolver.

 

Editorial: Alentejo, origens e estilos

Editorial LUÍS LOPES

Os vinhos do Alentejo são definidos por um vasto conjunto de factores, desde logo, a sua origem ou, mais correctamente, origens. Mas também pelo seu estilo, ou perfil particular. Num e noutro caso, em maior ou menor grau, a intervenção humana tem papel primordial. Editorial da edição nº 66 (Outubro 2022) Os vinhos do Alentejo, […]

Os vinhos do Alentejo são definidos por um vasto conjunto de factores, desde logo, a sua origem ou, mais correctamente, origens. Mas também pelo seu estilo, ou perfil particular. Num e noutro caso, em maior ou menor grau, a intervenção humana tem papel primordial.

Editorial da edição nº 66 (Outubro 2022)

Os vinhos do Alentejo, cujos tintos são tema de capa desta edição, constituem, muito provavelmente, o conjunto DOC (Denominação de Origem Controlada) mais diverso que existe em Portugal. Uma boa parte dessa diversidade tem a ver com a origem (origem, sim, terroir é algo muito mais raro e geograficamente preciso). Numa região enorme, que vai da costa atlântica ao interior fronteiriço e que pelo meio abarca colinas, planícies e serras, com vinhas plantadas numa vasta tipologia de solos, das areias aos granitos, do xisto aos mármores, das argilas aos calcários, tem, necessariamente, de existir um pouco de tudo. No que à origem respeita, o papel do produtor é naturalmente mais restrito. Mais ainda que não possa mudar o clima, pode intervir, de diversas formas, nas qualidades do solo, através de movimentação de terras, mobilização, arrelvamentos, adubação, entre muitas outras práticas. Ao nível da viticultura, o produtor intervém de forma ainda mais decisiva, desde o modelo adoptado (convencional, produção integrada, orgânico, etc.) – e aqui é justo referir o avanço que o Alentejo leva, face as outras regiões nacionais, em termos de práticas sustentáveis certificadas na vinha e na adega – até à cultura da videira propriamente dita, da poda à condução da planta, da dotação de água até à escolha dos porta-enxertos e castas.

No Alentejo, as castas selecionadas pelo produtor determinam boa parte da forma como ele e os seus vinhos se definem. Em regiões clássicas, como Douro, Dão ou Verdes, a categoria IG/Regional (Duriense, Terras do Dão, Minho) tem muito pouca expressão e é até sujeita a alguma desvalorização no mercado, o que “obriga” (e bem!) os produtores a focarem-se em meia dúzia de variedades “tradicionais”. Já no Alentejo, DOC Alentejo e Regional Alentejano equivalem-se em notoriedade e preço junto do apreciador. Sem esse constrangimento, o leque de castas legalmente colocado à disposição do produtor é imenso, entre variedades mais antigas ou mais recentes na região. O que, se de algum modo promove a diversidade e até, em certa medida, a qualidade (em teoria, pelo menos, uma casta “de fora” só se justifica se trouxer valor acrescentado…) de algum modo há que reconhecer que não favorece uma identidade regional mais assertiva.

A casta, a meu ver, é o elemento de transição entre a origem (que controlamos menos) e o estilo ou perfil do vinho (onde controlamos quase tudo). É aqui, com base nas decisões que toma na vinha e na adega, que o produtor determina como se vê e como quer que o vejam a si e aos seus vinhos. Na prova de mais de 50 tintos alentejanos que Valéria Zeferino fez para esta edição da revista, a autora identifica quatro grandes estilos, ou perfis: dois “clássicos” (um que alia concentração e elegância, outro focado na concentração e potência) e dois “modernos” (um centrado na intensidade de fruta, estrutura e suavidade, outro que acaba por ser quase neoclássico, recuperando práticas e conceitos de outrora para fazer vinhos mais “light” e diferentes). Acredito que o puzzle Vinho do Alentejo é bem mais complexo, mas tendo a concordar com a Valéria na visão geral. Importante é que cada produtor saiba definir muito bem que caminho (ou caminhos) quer seguir e que o assuma na sua identidade vínica; e que cada apreciador saiba navegar no mar imenso de marcas e perfis de vinho alentejano para que, quando compra uma garrafa, acerte no estilo (ou estilos) que, realmente, o satisfazem. A Grandes Escolhas estará sempre presente para dar uma ajuda.

 

Editorial: Água

Editorial LUÍS LOPES

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão […]

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão obrigados a agir. E o sector do vinho não é excepção.

Editorial da edição nº 65 (Setembro 2022)

De tempos a tempos, a seca e as suas consequências entram-nos pela sala dentro, nas imagens televisivas, nas páginas dos jornais. Este ano, mais do que nunca. No entanto, a esmagadora maioria dos portugueses olha para a seca como algo conjuntural, passageiro, não equacionando sequer o cenário de abrir a torneira e, durante dias (meses?), não sair água. Mas essa é uma possibilidade que pode não estar tão longe assim e que áreas do mundo dito “desenvolvido”, como a California, já experimentam. A este respeito, recomendo a leitura da novela “Seca”, de Jarrod e Neal Shusterman, uma ficção assustadora e perigosamente plausível.

Segundo a União Europeia, atravessamos um período de seca como não há memória e que, à data em que escrevo (finais de agosto), não tem fim à vista. Entretanto, arrancaram as vindimas em diversas regiões de Portugal. Em traços gerais, a coisa não está brilhante. Bagos pequenos, mirrados pela falta de água, maturações muito heterogéneas, devido ao “adormecimento” da videira pelo calor e stress hídrico, pH desequilibrado, acidez em baixa. Vinhas regadas e vinhas de sequeiro foram igualmente afectadas, variando o grau do impacto em função da localização, orientação solar, tipologia de solos, opções vitícolas. E se nada pode substituir (na vinha, na uva, no copo) a água que a Natureza entrega sob a forma de chuva, a verdade é que, a nível global, a indústria do vinho está absolutamente dependente da rega. A grande dúvida é se, num futuro próximo, vamos continuar a ter água para regar.

Porém, vejo ainda um número demasiado curto de produtores nacionais seriamente preocupados com isto. Talvez devido, precisamente, à sua dimensão, os maiores parecem estar bem mais despertos para o problema e, sobretudo, mais disponíveis para agir na busca e aplicação de soluções. Confesso que me custa muito ver, por exemplo, pequenos produtores, claramente comprometidos com o ambiente a outros níveis, de mangueiras abertas na adega como se a água fosse um recurso inesgotável. E convictos de que práticas como optimização científica da rega ou reutilização de água na adega, não são para si. Um pouco naquela de que “como produzo pouco vinho, gasto pouca água”. Só que isso não funciona assim. É o mesmo que dizer que uma casa com duas pessoas faz menos lixo do que uma com oito e que, portanto, pode fazer lixo à vontade. Na verdade, a questão não está no volume total de água gasto pelo produtor; está no que gasta por cada litro de vinho produzido.

Os cálculos relativos à pegada de água na produção de vinho estão, naturalmente, condicionados à enorme diversidade existente no sector. Ainda assim, estima-se que, a nível mundial e em média, são necessários 870 litros de água para produzir um litro de vinho (ver water footprint network). Muito menos, ainda assim, que o café (1056 l/l), sumo de maçã (1140 l/l), leite (1020 l/l), pão de trigo (1608 l/kg), arroz (2497 l/l), manteiga (5550 l/kg), carne de vaca (15500 l/kg) ou chocolate (17000 l/kg). Mas bem mais do que a cerveja (298 l/l)…

Sabe-se que, através processos de optimização na vinha e adega, é perfeitamente possível reduzir a pegada de água vitivinícola para um terço da actual. Só que é obrigatório que os produtores interiorizem essa necessidade e resolvam agir. A água é um bem limitado, e vai sê-lo cada vez mais no futuro. Utilizá-lo com a máxima eficácia, racionalidade e parcimónia na produção de vinho é um imperativo. Certamente mais impactante, em termos de cuidado ambiental e sustentabilidade, do que fazer uma vinha biológica.

Esta obrigação aplica-se a quem faz vinho mas também, é claro, a quem o bebe. Os produtores que façam a sua parte. Nós, consumidores, tratemos de ir fechando as torneiras.