Editorial: Água

Editorial LUÍS LOPES

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão […]

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão obrigados a agir. E o sector do vinho não é excepção.

Editorial da edição nº 65 (Setembro 2022)

De tempos a tempos, a seca e as suas consequências entram-nos pela sala dentro, nas imagens televisivas, nas páginas dos jornais. Este ano, mais do que nunca. No entanto, a esmagadora maioria dos portugueses olha para a seca como algo conjuntural, passageiro, não equacionando sequer o cenário de abrir a torneira e, durante dias (meses?), não sair água. Mas essa é uma possibilidade que pode não estar tão longe assim e que áreas do mundo dito “desenvolvido”, como a California, já experimentam. A este respeito, recomendo a leitura da novela “Seca”, de Jarrod e Neal Shusterman, uma ficção assustadora e perigosamente plausível.

Segundo a União Europeia, atravessamos um período de seca como não há memória e que, à data em que escrevo (finais de agosto), não tem fim à vista. Entretanto, arrancaram as vindimas em diversas regiões de Portugal. Em traços gerais, a coisa não está brilhante. Bagos pequenos, mirrados pela falta de água, maturações muito heterogéneas, devido ao “adormecimento” da videira pelo calor e stress hídrico, pH desequilibrado, acidez em baixa. Vinhas regadas e vinhas de sequeiro foram igualmente afectadas, variando o grau do impacto em função da localização, orientação solar, tipologia de solos, opções vitícolas. E se nada pode substituir (na vinha, na uva, no copo) a água que a Natureza entrega sob a forma de chuva, a verdade é que, a nível global, a indústria do vinho está absolutamente dependente da rega. A grande dúvida é se, num futuro próximo, vamos continuar a ter água para regar.

Porém, vejo ainda um número demasiado curto de produtores nacionais seriamente preocupados com isto. Talvez devido, precisamente, à sua dimensão, os maiores parecem estar bem mais despertos para o problema e, sobretudo, mais disponíveis para agir na busca e aplicação de soluções. Confesso que me custa muito ver, por exemplo, pequenos produtores, claramente comprometidos com o ambiente a outros níveis, de mangueiras abertas na adega como se a água fosse um recurso inesgotável. E convictos de que práticas como optimização científica da rega ou reutilização de água na adega, não são para si. Um pouco naquela de que “como produzo pouco vinho, gasto pouca água”. Só que isso não funciona assim. É o mesmo que dizer que uma casa com duas pessoas faz menos lixo do que uma com oito e que, portanto, pode fazer lixo à vontade. Na verdade, a questão não está no volume total de água gasto pelo produtor; está no que gasta por cada litro de vinho produzido.

Os cálculos relativos à pegada de água na produção de vinho estão, naturalmente, condicionados à enorme diversidade existente no sector. Ainda assim, estima-se que, a nível mundial e em média, são necessários 870 litros de água para produzir um litro de vinho (ver water footprint network). Muito menos, ainda assim, que o café (1056 l/l), sumo de maçã (1140 l/l), leite (1020 l/l), pão de trigo (1608 l/kg), arroz (2497 l/l), manteiga (5550 l/kg), carne de vaca (15500 l/kg) ou chocolate (17000 l/kg). Mas bem mais do que a cerveja (298 l/l)…

Sabe-se que, através processos de optimização na vinha e adega, é perfeitamente possível reduzir a pegada de água vitivinícola para um terço da actual. Só que é obrigatório que os produtores interiorizem essa necessidade e resolvam agir. A água é um bem limitado, e vai sê-lo cada vez mais no futuro. Utilizá-lo com a máxima eficácia, racionalidade e parcimónia na produção de vinho é um imperativo. Certamente mais impactante, em termos de cuidado ambiental e sustentabilidade, do que fazer uma vinha biológica.

Esta obrigação aplica-se a quem faz vinho mas também, é claro, a quem o bebe. Os produtores que façam a sua parte. Nós, consumidores, tratemos de ir fechando as torneiras.

Editorial: O feliz regresso do Loureiro

Editorial LUÍS LOPES

Levou tempo, é verdade. Mas temos hoje, na região dos Vinhos Verdes, um sólido conjunto de produtores a ver na casta Loureiro muito mais do que uma uva rentável. Com conhecimento técnico, talento e ambição, tiram desta casta o máximo partido, buscando a excelência. Os vinhos estão aí e têm grande qualidade, carácter e, para […]

Levou tempo, é verdade. Mas temos hoje, na região dos Vinhos Verdes, um sólido conjunto de produtores a ver na casta Loureiro muito mais do que uma uva rentável. Com conhecimento técnico, talento e ambição, tiram desta casta o máximo partido, buscando a excelência. Os vinhos estão aí e têm grande qualidade, carácter e, para espanto de muitos, longevidade.

Editorial da edição nº 64 (Agosto 2022)

“Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei pra aqui chegar”

A lírica da canção de José Mário Branco, nas suas múltiplas interpretações, aplica-se na perfeição à variedade Loureiro e aos vinhos que dela nascem, tema de capa desta edição da Grande Escolhas. Desde logo pela antiguidade da casta. Com origens na Galiza (Rias Baixas e Ribeiro) e no noroeste de Portugal, em 1790 era já classificada por Lacerda Lobo (chamava-lhe Loureira) como muito antiga e localizada em Melgaço e Vila Nova de Cerveira. Menos de um século depois (1875), o Visconde de Vila Maior situava-a já, sem margem para dúvidas, naquele que é hoje considerado o seu terroir de eleição, o vale do Lima. Para quem, como eu, sempre associou Loureiro ao Lima, não deixa de ser intrigante perceber que passou primeiro (e, ainda por cima, sem deixar rasto!) pelo vale do Minho. Mas, se pensarmos bem, faz sentido: sendo uma casta tradicional na Galiza, seria estranho que “saltasse” por cima do rio Minho para “aterrar” no rio Lima. As variedades de uva, como bem sabemos pelos exemplos Baga e Alicante Bouschet, entre outros, nem sempre atingem o seu máximo potencial nos locais onde nasceram.  Ainda por cima, ao contrário da sua conterrânea Alvarinho (que dá o seu melhor na terra mãe, Monção e Melgaço, mas mostra muita classe em diferentes solos e climas), a uva Loureiro, é mais picuinhas quanto ao local onde é plantada. E a parte mais atlântica da região dos Vinhos Verdes é, claramente, a sua praia.

O que o Loureiro andou para aqui chegar, parafraseando o Zé Mário, pode também ser visto no sentido figurado. Lembro-me bem do que eram os varietais de Loureiro nos anos 90. É óbvio, os Vinhos Verdes, no seu conjunto, cresceram enormemente desde então. Mas, com raras excepções, os vinhos de base Loureiro que existiam na década de 90 eram demasiado medíocres, sobretudo quando comparados com os Verdes de lote (Loureiro-Arinto-Trajadura-Azal) feitos pelos mesmos produtores. O denominador comum dos Loureiro da época era a extrema facilidade com que passavam de um vinho floral e citrino a um vinho amarelado, pesadão e oxidado de aromas e sabores. Entre um estado e outro, frequentemente, distavam apenas 6 ou 9 meses. E quando não era a oxidação era o cheio a pano molhado que, logo ao nascer, tapava qualquer veleidade de a fruta se mostrar. É fácil, mas errado, imputar culpas à ausência de condições de adega. Desde meados dos anos 80 que grande parte dos produtores dos Verdes, grandes e pequenos, tinha inox e sistemas de frio instalados. Os problemas estavam na vinha, na vindima, e no desconhecimento geral de como trabalhar uma uva delicada e elegante como a Loureiro. E, acima de tudo, na falta de ambição.

A Grande Prova que apresentamos este mês, com tantos Loureiro notáveis em qualidade, carácter e longevidade, mostra uma realidade tão distinta que mais parece estarmos a falar de outra casta. Mas a uva esteve sempre lá. E casas pequenas em área de vinha, como Ameal, médias, como Anselmo Mendes ou grandes, como Aveleda, só para dar três exemplos, sabem desde há muito como tirar partido do seu elevadíssimo potencial. Entusiasmante é também perceber que, na última meia dúzia de anos, novos produtores cheios de talento e dinamismo elegeram a Loureiro como porta-estandarte.

Deixo dois indicadores significativos: nos 9 Verdes Loureiro que classificámos acima de 17,5 pontos, não havia nenhum da mais recente vindima, distribuindo-se pelas colheitas de 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015. Outro sinal de ambição: o preço médio de venda ao público destes 9 vinhos ronda os €20. A continuar assim, parece que o Alvarinho vai ter de partilhar o trono: o Loureiro está a chegar.

Editorial: Ser “vigneron”

Editorial LUÍS LOPES

Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é […]

Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é verdade.

Vem este tema a propósito de uma das peças desta edição de julho da Grandes Escolhas, a que aborda os extraordinários Garrafeiras brancos da Quinta das Bágeiras e do seu criador, Mário Sérgio Nuno. Alguém que, contra ventos e marés, criou uma marca de referência e que, teimosamente, continua a fazer os seus vinhos exclusivamente a partir das uvas que crescem nas suas vinhas. Mesmo que, para tal, abdique de vender, a bom preço, mais umas boas dezenas de milhar de garrafas por ano. A única compensação: poder, com orgulho e legitimidade, intitular-se “Vigneron” e manifestar isso mesmo nas T-shirt que usa nos eventos e provas de vinho. Mas, feitas as contas, vale a pena?

Tempos houve em que acreditei que sim. Quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, a estrutura de produção, em Portugal, estava perfeitamente definida. Havia as adegas cooperativas, que vinificavam as uvas dos cooperantes; havia os armazenistas puros, que não vinificavam (e eram muitos, acreditem!), compravam vinho feito que engarrafavam com a sua marca; havia os armazenistas “híbridos”, que faziam o mesmo que os anteriores mas também vinificavam, compravam uvas e, por vezes, até tinham algumas vinhas; havia os viticultores, que vendiam uvas e, muitas vezes, também faziam vinho para vender a granel aos armazenistas; e havia os produtores-engarrafadores que, genericamente, correspondiam aos então chamados “vinhos de quinta” que começavam a ganhar notoriedade. Este conceito de fazer vinho a partir de uvas de uma só quinta mexeu bastante com o mercado dos anos 90: eram vinhos bem mais cotados e mais caros do que os de “armazenistas”. Significava que eram melhores? Nuns casos sim, noutros não. Mas os consumidores tinham por eles mais respeito e estavam dispostos a pagar mais.

Com o tempo, tudo isto se diluiu. Hoje, para o apreciador, mesmo o mais exigente, tudo entra no mesmo saco com a etiqueta “produtor de vinho”, incluindo os “marketeiros” que assinam rótulos de vinho que nunca produziram. No entanto, a legislação existe e é bem explícita. A inscrição obrigatória, no IVV, para o exercício de atividade no sector vitivinícola, determina em que categoria, ou categorias se está. Alguns exemplos, resumidos, da lei. “Armazenista: pratica o comércio de vinho a granel ou engarrafado”; “Negociante sem estabelecimento: compra e vende vinhos engarrafados sem dispor de instalações para a sua armazenagem” (aqui caberiam muitas das marcas de nicho hoje reverenciadas em restaurantes da moda…); “Produtor: produz vinho a partir de uvas obtidas na sua exploração ou compradas” (aqui se insere a esmagadora maioria das empresas nacionais); “Vitivinicultor-engarrafador: elabora vinho a partir de uvas produzidas exclusivamente na sua exploração vitícola” (é o que, em França, se chama “vigneron”). As empresas podem inscrever-se em mais do que uma categoria, mas a lei determina que a inscrição como vitivinicultor-engarrafador é incompatível com a inscrição como armazenista ou como produtor. Ou seja, é o que tem as mãos “atadas”, sem vantagens óbvias.

Ao contrário do que, até junho de 2019, era obrigatório colocar nas cápsulas de todos vinhos franceses (R de “recoltant” ou N de “negociant”) e que ainda hoje se mantém em diversas AOC, como Champagne (aqui até de forma bem mais rigorosa), em Portugal essa obrigatoriedade nunca existiu. Resultado: os poucos “vigneron” que ainda existem entre nós vão fazendo contas à vida e percebendo que não compensa insistir nesse ideal romântico, mas pouco rentável, de usar só as uvas que criam. São vinhos melhores do que os outros? Não necessariamente. Mas num mercado que, tantas vezes, paga irracionalmente a diferença, esta é uma diferença que merece ser paga.

Editorial da edição nº 63 (Julho 2022)

Editorial: A cor do vinho

Luís Lopes

Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas […]

Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas ou erradas?

Editorial da edição nº 62 (Junho 2022)

A cor, enquanto atributo qualitativo na avaliação de um vinho, não é uma coisa recente. Na cultura do vinho do Porto, por exemplo, a intensidade de cor foi, durante séculos, o primeiro indicador qualitativo na apreciação de um vinho, só depois vindo o aroma e sabor. Ainda hoje, muitos provadores ao olharem para um Porto Vintage condicionam desde logo a sua avaliação pela intensidade da cor. Tão importante era (ou é) este factor que se tornaram famosos os “concentrados” de baga de sabugueiro que alguns lavradores durienses tradicionalmente juntavam aos seus vinhos para lhes aumentar a cor e, consequentemente, o seu valor junto dos compradores de Gaia.

Mas a obsessão pela intensidade corante não se resumia ao negócio do Porto. Nos anos 60 e 70 do século XX, sobretudo, também os vinhos de mesa transacionados a granel por todo o país eram frequentemente “tintados” para aumentar o seu valor. Nem sempre foi assim, porém. No final do século XIX e durante a primeira metade do século seguinte, a forte influência da cultura francesa junto das elites nacionais, levou a que muitos agentes com responsabilidades no sector do vinho privilegiassem a delicadeza em detrimento da potência, colocando no lugar mais elevado do podium vinhos com pouca cor natural, como os tintos de Colares, do Dão ou de Lafões, os palhetes (mistura de uvas brancas e tintas) ou os sofisticados claretes, estes últimos o mais próximo que havia dos famosos tintos abertos que Bordéus sempre fez até ao advento da “parkerização” dos anos 80 e 90.

Demos um salto na história até aos dias de hoje. E o que encontramos? No que aos tintos respeita, podemos assumir que a importância conferida à cor varia em função do segmento de preço em que o vinho se insere. Os vinhos mais simples e baratos são oriundos de produções vitícolas com elevados rendimentos por hectare e, portanto, necessariamente menos concentrados e com menos cor. Mas o consumidor que paga €3 ou €4 por uma garrafa valoriza bastante a cor, que associa de imediato a vinhos mais ambiciosos. Portanto, um vinho de cor intensa nesse segmento de preço tem sucesso garantido, sobretudo se tiver também macieza e doçura, claro.

A cor continua a ser muito importante nos segmentos superiores, de €10, €20, €30 ou acima, mesmo que muitos consumidores não o admitam. Cor é concentração, concentração é qualidade, acredita-se. Porém, à medida que a escala de preço sobe, a importância da cor atenua-se. E começam a aparecer tendências vitícolas e enológicas que, embora orientadas para mercados de nicho ou super nicho, mostram desenvolvimento crescente e sustentado. Uma delas assenta na colheita mais precoce, fugindo assim das sobrematurações. Outra, actualmente com bastantes seguidores junto dos produtores de topo, aposta na menor e mais suave extracção das componentes corantes e fenólicas das uvas, fazendo, por exemplo, menos remontagens nas cubas (em alguns casos mais extremados, abandonando-as por completo) e macerações menos prolongadas.

Outra ainda, cada vez mais notória, passa pela reabilitação de castas antigas e abandonadas por, entre outros motivos, terem “falta de cor”. É o caso de variedades como, por exemplo, Bastardo, Rufete, Alvarelhão, Tinta Carvalha, Tinta Francisca, Moreto e até, em certa medida e dependendo da origem, Jaen e Castelão. Junte-se a isto a recuperação de métodos de vinificação ancestrais (como a talha de barro) e percebe-se que a intensidade de cor, nos vinhos tintos, não é hoje motivo de preocupação junto de enólogos/produtores, em particular nas gamas mais altas da pirâmide de marcas.

Já no que aos brancos respeita, a conversa é outra. Seja qual for o segmento de preço, os brancos com mais cor do que o “socialmente aceitável” estão votados ao ostracismo. Isso significa que o vinho branco de cor mais intensa, a rondar o limão maduro, é imediatamente percepcionado pelo consumidor como estando demasiado evoluído, cansado, oxidado, fora de prazo. É uma preocupação adicional para os enólogos, sobretudo os que trabalham em regiões mais quentes ou com castas brancas que, naturalmente, retiram mais cor da película na prensagem. Muitos são obrigados, apenas por causa da cor “incorrecta”, a utilizar produtos enológicos descorantes, aí sim, com efeitos colaterais negativos na estrutura do vinho.

Mas também nos vinhos brancos há, felizmente, lugar aos super-nichos. É o caso dos brancos de curtimenta, fermentados total ou parcialmente com as películas e que acabam por ficar com a tal cor de limão maduro. E estes vinhos podem mesmo ser objecto de uma abordagem mais extremada através de oxidação controlada para produzir os conhecidos “orange wines”, bem alaranjados. Portanto, enquanto o mundo dos tintos aceita, progressivamente, diferentes gradações de cor, o mundo dos brancos é altamente polarizado: a quase totalidade dos consumidores quer vinhos com muito pouca cor e uma minúscula aldeia de irredutíveis rebeldes paga o que for preciso por um vinho laranja.

Ainda mais estranho, inexplicável mesmo à luz de tudo o que é racional, é o que se passa com os rosés. Há 10 ou 15 anos, havia dois tipos de rosés: os rosés de bica aberta, com muito pouco contacto pelicular, e de cor mais aberta, em diferentes gradações de rosa; e os rosés obtidos a partir de sangria de cubas de tintos, com cores de cereja, quase a rondar o palhete.

A dada altura, a “onda Provence” foi subindo de sul para norte, a partir do Algarve, com a pressão dos turistas estrangeiros, primeiro, e dos consumidores nacionais, depois, a exigir a cor que caracteriza os vinhos rosados daquela região francesa. Primeiro, foram apenas os rosés de topo, mais caros e ambiciosos, a adoptar a cor Provence, bem mais exigente em termos de colheita e prensagem das uvas. Mas rapidamente quase todos os outros produtores, mesmo para os rosés mais simples e baratos, foram obrigados a seguir o modelo. Frequentemente, é preciso descorar o vinho para afinar a cor. E, por vezes, o zelo é tanto que o vinho se confunde com água. Também aqui, porém, existem excepções. A mais notável é, sem sombra de dúvida, a do icónico Mateus. O rosé mais famoso do mundo não vai em ondas e mantém a cor, hoje “fora de moda”, que sempre o caracterizou. E, ao que parece, o mercado não queixa, com as vendas a continuarem em alta. Também, aqui e ali, começam a aparecer produtores a fazer rosés caros e corados. Talvez tenham chegado à conclusão de que, se a cor Provence deixou de ser distintiva, uma vez que todos a seguem, então mais vale destacar-se pela diferença voltando às cores de antigamente.

A grande, incontornável verdade, é que cor nada tem a ver com qualidade. Está tão dependente da origem do vinho, das variedades de uva, dos métodos de produção, do perfil do enólogo ou produtor, que procurar uma relação entre a cor e a excelência de um vinho é tarefa fútil e insensata. A cor pode dar-nos sinais, isso sim, sugerir-nos maior ou menor concentração, maior ou menor evolução, climas mais quentes ou mais frios, castas mais ou menos coradas. Mas um tinto de Rufete não é inferior a um outro de Alicante Bouschet apenas por ter menos cor.

O vinho tem tantas cores quanto aromas e sabores. E desde que nos dê prazer a beber, não existem cores certas e cores erradas.

Editorial: Uma oportunidade para os rosés

Luís Lopes

LUÍS LOPES “Give peace a chance”, a famosa frase/canção de John Lennon é hoje, infelizmente, mais actual do que nunca. Mas permitam-me que a tome emprestada para evidenciar um tema muito menos sério: os vinhos rosados. Vinhos que, incensados em público, desvalorizados em privado, também precisam de uma oportunidade. Editorial da edição nº61 (Maio 2022) […]

LUÍS LOPES

“Give peace a chance”, a famosa frase/canção de John Lennon é hoje, infelizmente, mais actual do que nunca. Mas permitam-me que a tome emprestada para evidenciar um tema muito menos sério: os vinhos rosados. Vinhos que, incensados em público, desvalorizados em privado, também precisam de uma oportunidade.

Editorial da edição nº61 (Maio 2022)

O tema de capa desta edição da Grandes Escolhas é o vinho rosé. No caso, através de um trabalho de Nuno de Oliveira Garcia (NOG) que procura, com a apresentação e prova de 46 rosados, mostrar que esta categoria de vinhos pode, e deve, ser encarada pelo consumidor mais exigente com o mesmo respeito com que encara brancos e tintos. O que, convenhamos, não é tarefa fácil. Para tal, NOG propõe-se, através de bem fundamentada argumentação (ou não fosse o autor, na sua vida profissional, um dos mais ilustres advogados fiscalistas da nossa praça) desmontar os quatro “dogmas” ou, diria eu, preconceitos, que limitam a ascensão dos rosés ao mais elevado grau de respeitabilidade vínica: são feitos com menos cuidados; têm origem em uvas ou castas menos nobres; evoluem mal e mostram menor qualidade absoluta; são, sobretudo, vinhos baratos e bons para beber no Verão.

A argumentação e prova dão inteira razão ao NOG: produzimos neste momento em Portugal, numa grande diversidade de regiões, um conjunto de vinhos rosados capazes de ombrear com o que de melhor fazemos em brancos e tintos. Os rosés de superior ambição não existem em grande número, é certo, mas acredito que, ano após ano, serão cada vez mais.

A desvalorização do rosé não é, longe disso, um problema exclusivo do mercado português. Nunca mais me esqueço das palavras que ouvi, há quase duas décadas, de um famoso jornalista nórdico: “não há nada que um rosé faça que um branco ou um tinto não possam fazer melhor.” Confesso que, enquanto fervoroso consumidor de rosés, a frase me chocou de início. Mas depois, e ao longo de vários anos, dei-lhe razão. Dissecando o meu consumo de rosés, percebi que os encarava como um vinho de momentos. Bom para um aperitivo; bom para um salmão, uns enchidos, umas sardinhas; bom para relaxar numa tarde de Verão; bom para isto ou aquilo, bebido com frequência, mas nunca encarado como verdadeiramente “grande”. Que diabo, se os rosés fossem assim tão bons, porque é não representavam nem 2% da minha garrafeira?

O que é que mudou desde então, para hoje olhar para os rosés com outros olhos? Na verdade, quase tudo, a começar pelos vinhos em si. Primeiro, a qualidade média subiu muitíssimo, em todos os segmentos de preço. Depois, no patamar mais elevado do mercado, em preço e ambição, surgiram em Portugal rosés de grande categoria. Finalmente, diversos produtores começaram, eles próprios, a valorizar o que produziam, posicionando o seu rosé de topo, pelo menos, ao nível do seu branco de topo (os tintos continuam, regra geral, no cimo da pirâmide de marcas).

Na verdade, os rosés nacionais valem tudo isso. Por vezes, até valem mais do que isso. Sobretudo quando comparados com os sobrevalorizados Provence que, acreditem, na sua grande maioria, estão muito abaixo dos seus congéneres portugueses que custam menos de metade do preço.

O que falta, em resumo, para que o mercado, como um todo, valorize os rosés nas lojas, nos restaurantes, em nossas casas? Provavelmente, apenas tempo. Tempo para os rosés fazerem o seu percurso natural no comércio; tempo para os produtores testarem castas e clones na vinha e diferentes técnicas na adega; e, talvez mais importante do que tudo, tempo de estágio em casa dos apreciadores. Somente ultrapassando a prova do tempo, um vinho, branco, rosé ou tinto, pode denominar-se grande.

Vamos então dar uma oportunidade aos rosés? Não porque o Verão esteja a bater à porta. Apenas porque são muito bons.

Editorial: Tempestade perfeita (mesmo)

Luís Lopes

Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho. Editorial da edição nº60 (Abril 2022) Após ter mostrado […]

Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho.

Editorial da edição nº60 (Abril 2022)

Após ter mostrado notável resiliência à pandemia em 2020, e ainda mais extraordinária recuperação em 2021, o sector da vinha e do vinho em Portugal depara-se, hoje, com factores estruturais e conjunturais que, associados, constituem um enorme desafio às suas capacidades. Porque abordo este assunto numa revista orientada, sobretudo, para os consumidores? Pela simples razão de que, ao contrário das ameaças óbvias do covid-19 ao negócio do vinho (encerramento de pontos de venda, enoturismos, lojas e restaurantes), os efeitos que esta “coligação negativa” está a ter nos produtores passam despercebidos aos apreciadores. A “tempestade” resulta de um conjunto de circunstâncias, das quais destaco três: aumento astronómico dos custos de produção, escassez de mão-de-obra e, claro, Rússia.

No que a alguns custos diz respeito, o consumidor está avisado, pois também os sofre na pele. Sabe que gás, electricidade e combustíveis aumentaram e já percebeu que vai pagar mais caro a carne, o leite, os legumes. Mas desconhece, por exemplo, que os produtos para a vinha (de adubos a fungicidas) aumentaram mais de 200% num ano. Não imagina que caixas de papel e madeira, rótulos, cápsulas, garrafas, rolhas, aumentaram em média, no mesmo período, 30 a 45%. Ou que os fretes de exportação inflacionaram entre 300 a 400%. Além da energia, claro. Dizia-me outro dia o enólogo de uma empresa que produz a sua própria aguardente que, há um ano, por 24 horas de destilação pagava €1500 de gás; agora paga €2200. Tudo o que é necessário para que uma garrafa de vinho chegue ao consumidor não está apenas muito mais caro: também não está disponível. Há muitos produtores a atrasarem engarrafamentos por não haver garrafas; e diversos outros têm exportações firmadas, mas não sabem quando haverá contentores.

O que vai sentir quem compra uma garrafa no supermercado? A curto e médio prazo, provavelmente, nada. O vinho no supermercado está demasiado barato e assim irá continuar. Enquanto houver um produtor desesperado disposto a substituir outro, mesmo vendendo abaixo do preço de custo, continuará a haver vinho bom e barato nas prateleiras. Mas é importante que o consumidor saiba o que está por trás dos €2,19 que paga por uma garrafa. Quanto aos vinhos mais ambiciosos, será talvez menos difícil reflectir parte do aumento de custos no preço final. Mas estes vinhos representam uma pequena fatia do mercado.

Depois, a escassez de mão-de-obra. É um problema transversal a todos os sectores de actividade, como sabemos. Mas é ainda mais grave no sector agrícola, em geral, e no vitivinícola, em particular. Boa parte das vinhas portuguesas não são inteiramente mecanizáveis, desde a poda até à colheita. E, para alguns vinhos de topo, essa mecanização nem é desejável. Mas onde estão as pessoas disponíveis para trabalhar? Neste momento, os podadores são tão raros que se vão buscar equipas a centenas de quilómetros de distância. Se a colheita de 2022 for abundante ou a vindima longa e com interrupções, haverá uvas que ficam nas videiras por não haver quem as apanhe ou não compensar apanhá-las. Ou vão ser colhidas demasiado tarde, com reflexo na qualidade dos vinhos.

Finalmente, a insanidade da guerra. A exportação para a Rússia estava a crescer e, para muitos produtores, o país era o segundo ou terceiro mercado. Agora, acabou, e a escassez e custo dos fretes dificultam o desvio das atenções para novos mercados.

O sector do vinho já provou ser um “navio” com elevada resistência ao mar tempestuoso. Agora, de novo, vai ter de mostrar tudo o que vale.

Melhores do Ano: celebrar 2021

Luís Lopes

Luís Lopes Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar. Editorial da edição nº59 […]

Luís Lopes

Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar.

Editorial da edição nº59 (Março 2022)

Na Grandes Escolhas acompanhamos de muito perto o sector do vinho e os que indirectamente lhe estão ligados, como o comércio especializado ou a restauração, por exemplo. Experimentamos por isso quer as dificuldades, quer os momentos de superação de empresas e pessoas que, apaixonadamente, fazem deste mundo vínico o seu modo de vida. E seguimos e estudamos com afinco a dinâmica dos mercados e os padrões dos consumidores, pois produção, comércio e consumo fazem todos parte da mesma fileira, a fileira do vinho.

Nesse sentido, estamos convencidos de que 2021 foi, para todos em geral, um ano cheio de significado, pela positiva. Contrariando as incertezas e fantasmas alimentados pela pandemia, o sector do vinho mostrou extraordinária resiliência e dinamismo, superando as adversidades e voltando à senda de crescimento sustentado que caracterizou o primeiro trimestre de 2020, até o vírus nos cair em cima. O vírus aí continua, é certo, mas agora sabemos viver com ele e, sobretudo, sabemos viver apesar dele, não comprometendo a nossa forma de estar, a nossa felicidade, o nosso futuro.

Vamos, pois, celebrar 2021 através dos prémios Grandes Escolhas. Celebrar, desde logo, os vinhos. E de entre os muitos que premiámos, permitam-me que destaque aqui os grandes vencedores em cada categoria: o espumante Vértice Pinot Noir 2011, o branco Vinha dos Utras 2019, o tinto Quinta da Manoella VV 2018, o rosé Kopke Winemaker’s Collection Tinto Cão 2020, o fortificado Ramos Pinto RP30 Tawny 30 anos, todos eles merecedores dos maiores encómios.

Celebremos igualmente a estóica resistência à adversidade e a fantástica recuperação dos restaurantes em 2021. Com perfis e conceitos bem distintos, premiámos o trabalho de três casas de bem comer e bem servir: Come Prima, Cisco e Essencial. E, a propósito de serviço, talvez a mais valiosa função do sommelier, é de enaltecer a enorme categoria de Marc Pinto.

Há casas onde o vinho se sente em casa. Ou de onde o podemos levar para nossa casa. A Garrafeira Nacional, em constante adaptação e modernização, é uma referência incontornável, como também o é a loja gourmet Tradicional. O wine bar Capela Incomum marca pelo espaço e pelo que lá está dentro. E que dizer do acolhimento familiar num Alentejo genuíno que experienciamos no enoturismo da Herdade do Sobroso?

Ao nível do desempenho de empresas e produtores, apreciámos a transformação da “nova” Sovibor, a consistência da Adega de Penalva e o sólido crescimento da Costa Boal. Apostando numa filosofia muito própria, a Reynolds Wine Growers destacou-se pela singularidade associada à qualidade. A revolucionária Azores Wine Company mexeu com toda uma região, a Wine & Soul provou que, mesmo no conservador vinho do Porto, “small” pode ser “beautiful”. E a viticultura sustentável da Herdade de Coelheiros é um exemplo a seguir. Em tempo de celebração, celebremos também a solidariedade e a partilha, através da associação Bagos d’Ouro.

Finalmente, mas não por último, as pessoas que, pelo seu talento, conhecimento e obra, se destacaram. No que a enologia respeita, vibrámos com os vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva, no Douro e Lisboa, e por Pedro Sá, em Carcavelos. O chef Diogo Rocha oficia de forma inigualável nos fogões mas também na divulgação da gastronomia portuguesa: o prémio que leva o nome do grande jornalista David Lopes Ramos, está muito bem entregue.

Termino com o galardão mais ambicionado. Poucas pessoas terão, como Jorge Dias, contribuído em tantas e tão distintas áreas para o desenvolvimento e reconhecimento do Douro e do Vinho do Porto. É, sem sobra de dúvida, um grande Senhor do Vinho.

Editorial: Porto sentido

Luís Lopes

LUÍS LOPES Como português e apaixonado pelo vinho do Porto, não posso deixar de ficar triste com a forma como o vinho pátrio de maior notoriedade mundial foi recentemente notícia na comunicação social, dentro e fora de fronteiras. Mas a verdade é que nos pusemos a jeito. Editorial da edição nº58 (Fevereiro 2022) “E é […]

LUÍS LOPES

Como português e apaixonado pelo vinho do Porto, não posso deixar de ficar triste com a forma como o vinho pátrio de maior notoriedade mundial foi recentemente notícia na comunicação social, dentro e fora de fronteiras. Mas a verdade é que nos pusemos a jeito.

Editorial da edição nº58 (Fevereiro 2022)

“E é sempre a primeira vez
Em cada regresso a casa
Rever-te nessa altivez
De milhafre ferido na asa”

A letra da famosa canção de Rui Veloso/Carlos Tê data de 1986 e é uma verdadeira declaração de amor à cidade do Porto, à cidade velha, histórica, orgulhosa, mas também, à época, algo abandonada e decadente, como “milhafre ferido na asa”. Ferido também ficou, na sua honra e estatuto, o nosso vinho do Porto, com as recentes notícias.  Para quem passou ao lado da informação, aqui vai, resumida ao essencial. A Universidade de Groningen, na Holanda, realizou um estudo de datação, com base no isótopo carbono-14, aplicado a um conjunto de vinhos do Porto com indicação de idade, nomeadamente 10 e 20 anos. Os resultados do estudo indicaram que, dos 20 vinhos investigados, 14 tinham idade diferente da mencionada no rótulo, sendo 4 mais velhos e 10 mais jovens (um deles, muito mais jovem). O caso foi objecto de notícia na televisão holandesa e de reportagem no jornal Expresso de 14 de janeiro, repercutida depois nos canais televisivos nacionais. Na sequência, quer o Instituto do Vinho do Douro e Porto (IVDP), que tutela a região, quer a Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), emitiram comunicados repudiando veementemente a forma como as notícias foram veiculadas e o estudo que lhes deu origem, e reafirmando a qualidade dos vinhos e do seu processo de certificação. 

A meu ver, ambos os comunicados, importantes e necessários, sem dúvida, afastam-se do essencial. É que, apesar das notícias (e, sobretudo os títulos sensacionalistas) terem lançado um absurdo manto de suspeita sobre o vinho do Porto, não está causa, de modo algum, a excelência dos vinhos, a idoneidade das casas produtoras ou a capacidade do IVDP para assegurar a qualidade, genuinidade ou conformidade legal dos mesmos. No fundo, o que está em causa é a adequabilidade da legislação que rege o Porto Tawny com indicação de idade: 10, 20, 30 e 40 anos. E saber se esta lei serve os interesses do vinho do Porto e dos modernos consumidores.

Simplificando, o que a lei diz, é que para ostentar um rótulo de Tawny 10 anos, por exemplo, o vinho deve ter as características de cor, aroma e sabor adequadas à categoria. Como se sabe, os Tawny com indicação de idade são obtidos a partir da lotação (mistura) de vinhos de diferentes idades, uns mais jovens outros mais velhos, até se chegar ao perfil pretendido por cada casa. Assim sendo, em termos legais, não é a média de idades que é avaliada e certificada, mas sim se a prova do vinho corresponde ao que se espera de um vinho com essa idade na rotulagem. Ou seja, por outras palavras, 10 anos (ou 20 ou 30) não é uma idade, mas um estilo. 

Agora, tentem explicar isto a um consumidor americano, brasileiro ou holandês. Sei do que falo, porque ao longo da minha vida profissional já o fiz muitíssimas vezes em acções de formação. Quando descrevo como se faz um Tawny com indicação de idade, há sempre alguém na plateia que pergunta: “então, 20 anos, é a idade média dos vinhos que compõem o lote?” E eu lá sou forçado a responder, algo como, “não é bem assim, mas quase, é mais ou menos isso”, e dou a volta à questão falando dos vários tipos e métodos de envelhecimento, vasilhas e temperaturas de estágio, etc. E fujo à pergunta porque, sinceramente, não tenho a lata de dizer que “20 anos não é idade, é um tipo de vinho, um estilo”. Arriscaria que alguém retorquisse: “Ah, então um Porto 20 anos é um vinho que não é, apenas parece ser”. E parecer, em vez de ser, é uma facada tremenda na reputação de um vinho com mais de 300 anos de história.

A validade do estudo de Groningen pode até revelar-se bastante discutível (custa-me muito acreditar, por exemplo, que um vinho apresentado como 10 anos passe na Câmara de Provadores do IVDP se tiver apenas 3 anos de idade média, como ali foi apontado…). E até posso admitir a possibilidade de a datação por carbono-14 não ser adequada às especificidades de um vinho de lote de várias colheitas, podendo apresentar resultados inconsistentes. Mas, de novo, essa não é a questão. A questão é apenas uma, clara, esmagadora, incontornável: um consumidor que compra uma garrafa de um vinho que no rótulo diz 10 anos, espera que esse vinho tenha, no mínimo, 10 anos. Se esse vinho não tem a idade referida na rotulagem, então o consumidor está a ser induzido em erro.

Esse mesmo consumidor, quando numa loja compra um Queijo DOP Ilha de S. Jorge com 12 meses de cura, espera que tenha 12 meses. Dir-me-ão, e com alguma razão, que o queijo resulta de uma ordenha feita num determinado dia/semana e não numa mistura de vinhos de diferentes anos. Falemos então de vinho. Na DO Setúbal, um Moscatel de Setúbal com indicação de idade (de 5 a +40 anos) também é feito a partir de lotes de várias colheitas. Mas só pode indicar essa idade na rotulagem se o vinho em causa, ou cada uma das parcelas do lote que o originou, tiver, no mínimo, a idade indicada. Ou seja, o vinho mais jovem que integrou o lote de um Setúbal 10 anos deverá ter, pelo menos, 10 anos. O mesmo se passa, por exemplo, num Scotch Whisky, feito a partir de múltiplas origens e destilações: num 12 anos, o destilado mais jovem do blend é obrigado a ter, no mínimo, 12 anos. Nestes vinhos e destilados, a legislação traduz a percepção do consumidor: um produto designado como 10, 12 ou 20 anos deverá ter a idade que ostenta no rótulo.

Este modelo da idade mínima da mais jovem componente do lote contraria as práticas e tradições de mais de 300 anos de vinho do Porto? Talvez, ainda que as diversas formas de condicionar o envelhecimento (dimensão e tipo de vasilhame, temperaturas, etc.) colocados à disposição dos produtores confiram suficiente margem de manobra para manter a consistência do lote em cada engarrafamento. Mas, se não for este o caminho, produtores e reguladores deverão, em conjunto, encontrar outro, que pode passar pela média de idades do lote ou outra qualquer que a experiência, talento e arte dos profissionais do sector definam como adequada. Não podemos é continuar a deixar que aquela que (para mim, pelo menos), é a mais complexa e singular categoria de vinho do Porto, o Tawny com indicação de idade, assente as suas bases num modelo legal que não faz sentido para o consumidor. 

Além de que, convenhamos, as práticas e tradições, por muito seculares que sejam, não são imutáveis, são dinâmicas, adaptam-se aos tempos e às necessidades. Há 200 e tal anos o Porto não era um vinho doce fortificado com aguardente para parar a fermentação; os vinhos do tipo LBV começaram a fazer-se nos anos 60; durante anos e anos e até 1970, muito Vintage foi exportado em pipas para Inglaterra, onde era engarrafado mais tarde do que os dois a três anos hoje regulamentares; há 20 anos, não havia Porto Colheita branco nem Porto rosé. E, já agora, a lei que estabelece e rege a própria categoria dos Tawny com indicação de idade (10, 20, 30 e +40 anos), só entrou em vigor a 1 de janeiro de 1974. Portanto, se é preciso mudar a lei, mude-se.

Em resumo, nada há de errado com a qualidade e genuinidade dos vinhos ou o rigor do processo de certificação. Errado está o enquadramento legal dos Tawny com indicação de idade, confundindo e baralhando quem quer conhecer melhor este já de si complexo mundo do vinho do Porto. E muito pior do que confundir, originando no consumidor infundadas suspeitas de que está a ser enganado.

Do formador mais qualificado ao funcionário da empresa que, em Gaia, dá os vinhos a provar aos turistas, há décadas que os profissionais sabem que apresentar um 10 ou 20 anos como um estilo e não uma idade, um parecer em vez de ser, é absolutamente incompreensível para o consumidor. Esta foi, pois, uma tempestade há muito anunciada e previsível. Agora, é limitar os danos e mudar o que tem de ser mudado, para que o vinho do Porto continue a ser grande entre os grandes, um vinho sublime não apenas na excelência que está na garrafa mas também na confiança que transmite a quem a compra.

Editorial: Do que eu não gosto

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022 LUÍS LOPES Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a […]

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022

LUÍS LOPES

Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a escrever sobre vinhos, acho que posso abrir o livro e deixar claro aquilo de que não gosto. Então aí vai.

Não gosto de colocar tudo no mesmo saco: orgânico, biodinâmico, leveduras indígenas, sustentabilidade, filtração, sulfuroso, “natural”. São produtos, práticas e conceitos diferentes e, alguns, até antagónicos. Só o Esporão, por exemplo, tem mais área de vinha orgânica do que todos os “naturais” juntos. Luis Pato faz alguns vinhos e espumantes sem adição de sulfuroso mas não é orgânico. A Casa de Mouraz é mesmo biodinâmica mas protege os seus vinhos com sulfuroso. Mário Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, nunca colocou uma levedura nos lagares ou nos toneis de fermentação. E o gigante espanhol Miguel Torres é referência mundial em produção sustentável e protecção ambiental e há muito que abandonou o modelo orgânico.

Não gosto de rótulos, a não ser nas garrafas. “Natural” por oposição a “tecnológico” é ver o mundo a preto e branco. O vinho, é tudo menos isso, é uma paleta infinita de cores, um universo de diversidade, estilos e conceitos, distintas formas de trabalhar e de transformar o fruto da videira numa bebida apaixonante.

Não gosto do primado da diferença sobre a qualidade. É fantástico quando conseguimos associar, num copo, qualidade e diferença. Mas prefiro qualidade sem diferença, do que diferença sem qualidade.

Não gosto de confundir gosto e qualidade. Gosto discute-se, qualidade não. A qualidade é imediatamente reconhecível, mesmo por quem não é especialista ou conhecedor. Se um vinho cheira mal, não há quem me convença de que cheira bem. Uma couve podre é uma couve podre, um guisado queimado é um guisado queimado. Não há volta a dar.

Não gosto de catequismos. Não sou crente, mas respeito todas as crenças. Desde que não insistam em catequizar-me. Quando um sommelier me disser, condescendente, que não aprecio um vinho que cheira e sabe mal apenas porque não estou acostumado a ele, irei responder como Susana Esteban o fez, nas mesmas circunstâncias: “pois não, estou habituado a beber vinhos bons”.

Não gosto da demonização da ciência. Rejeitar a enologia é como rejeitar a medicina. É verdade que alguns o fazem. Mas eu não queria estar na pele deles quando tiverem uma apendicite aguda.

Não gosto do elitismo. O vinho não pode ser algo apenas ao alcance de um grupo de iluminados que se acham superiores. Enquanto produto, o vinho é, e deve continuar a ser, democrático, acessível a todas as bolsas. Para poder ter preços acessíveis tem de ser feito em volumes grandes. Uma vez que estabilizar dois milhões de litros não é o mesmo que cuidar de duas barricas, existem para o efeito produtos enológicos, legalmente autorizados e fiscalizados. Bebo muitas vezes vinhos de €2,49? Raramente. Tal como raramente vou ao McDonald’s. Mas prefiro, de longe, comer um hambúrguer de carne fresca do que um robalo de mar com 15 dias de frigorífico.

Não gosto da publicidade enganosa, das aldrabices, da mentira. Exemplos? Quando se impinge a turvação de um vinho como valorizadora, apenas porque não se esperou o tempo suficiente antes de engarrafar. Quando um produtor “orgânico” apanha com um ataque de míldio e utiliza o que for preciso para salvar as uvas. Quando se inundam as redes sociais de fotos das galinhas e ovelhas nos 2 hectares de vinha biodinâmica e se compram 200 toneladas de uva aos vizinhos que até glifosato usam. Quando se afirma que o espumante é “natural” porque não levou sulfuroso, mas depois leva 7 gramas de açúcar no licor de expedição. Quando dizem “fazer” vinho e não sabem podar uma videira, quando se assumem “vignerons” e não têm vinha. Em boa verdade, há muito mais coisas de que não gosto, mas acho que já chega.

Editorial – A Bairrada do espumante

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021 Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.   Quando, […]

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021

Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.

 

Quando, em 1890, José Maria Tavares da Silva levou a cabo as primeiras experiências de espumantização na então chamada Escola Prática de Viticultura e Pomologia, em Anadia, estaria longe de pensar o efeito transformador que o seu trabalho traria para a região da Bairrada. A apresentação oficial dos seus espumantes, em 1891, desencadearia um processo de industrialização que daria o primeiro passo em 1893 com a criação da Associação Vinícola da Bairrada (produtora do apelidado “Champagne Portuguez”) e teria a sua explosão a partir dos anos 20 do século seguinte, com o nascimento de dezenas de “Caves”.

Na década de 60, as Caves davam trabalho a uma boa parte da população local e contribuíam para o sustento de milhares de pessoas: praticamente todas as famílias acumulavam um emprego (na indústria metalomecânica ou cerâmica, sobretudo) com o amanho de uma ou mais parcelas de vinha, entregando as uvas nas adegas cooperativas (que depois vendiam o vinho às Caves) ou fazendo os vinhos nas suas adegas caseiras, onde os compradores das Caves os iam depois escolher e adquirir.

Quando visitei pela primeira vez a Bairrada do vinho, no início de 1990, o espumante era um produto comum a todos os agentes económicos da fileira, grandes e pequenos. Ao mudar-me de Lisboa para Sangalhos, em 1995, reparei que a cultura do espumante era transversal a toda a população, mesmo a que nada tinha a ver com a produção de vinho: qualquer casa que visitasse me recebia com “uma tacinha de espumante”. E em qualquer refeição, a garrafa de espumante estava presente, do início ao fim. Só aí entendi que a região da Bairrada, e não apenas os profissionais do vinho, sentia e vivia espumante, numa interiorização cultural da bebida por parte das gentes locais que só encontrei paralelo em Champagne e, em menor grau, em algumas vilas da Catalunha.

De então para cá, algumas coisas mudaram. Nos anos 90, a produção de espumantes em Portugal estava quase totalmente centrada em dois grandes núcleos: Lamego e Távora-Varosa (com Raposeira e Murganheira) e a Bairrada, com as suas Caves. Hoje, são centenas os produtores de vinho nacionais, desde o Vinho Verde ao Algarve, que fazem também um espumante como complemento de gama. Ainda que, na sua esmagadora maioria, os novos produtores recorram a diversos “facilitismos” e dispensem, entre outras, três práticas que fazem a diferença entre um bom espumante e um grande espumante: leveduras livres, espumantização/estágio a temperatura baixa e constante e, sobretudo, largo tempo em garrafa sobre as borras da segunda fermentação. O genuíno método clássico (outrora chamado, não por acaso, “método champanhês”), como sabemos, não abdica de nada disto. Mas esse é tema para outra conversa.

Interessante é que, apesar da dispersão geográfica da sua produção, ainda hoje, 60% do vinho espumante produzido em Portugal é feito entre Coimbra e Aveiro. Deste, cerca de metade obtém a certificação Bairrada ou IG Beira Atlântico, e foi uma amostra desse universo que provei para esta edição da Grandes Escolhas. Preservando o estilo de cada casa e o carácter das castas utilizadas, a qualidade geral dos espumantes da região é notável.  Segredo, não existe. Ou, se quisermos, são muitos: clima, solos, castas, história, caves, conhecimento técnico, cultura, tempo. É tudo isso e muito mais que faz da Bairrada uma grande região de espumantes. A Bairrada, na verdade, respira espumante. Afinal de contas, sempre são 130 anos disto.