Editorial: Do que eu não gosto

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022 LUÍS LOPES Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a […]

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022

LUÍS LOPES

Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a escrever sobre vinhos, acho que posso abrir o livro e deixar claro aquilo de que não gosto. Então aí vai.

Não gosto de colocar tudo no mesmo saco: orgânico, biodinâmico, leveduras indígenas, sustentabilidade, filtração, sulfuroso, “natural”. São produtos, práticas e conceitos diferentes e, alguns, até antagónicos. Só o Esporão, por exemplo, tem mais área de vinha orgânica do que todos os “naturais” juntos. Luis Pato faz alguns vinhos e espumantes sem adição de sulfuroso mas não é orgânico. A Casa de Mouraz é mesmo biodinâmica mas protege os seus vinhos com sulfuroso. Mário Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, nunca colocou uma levedura nos lagares ou nos toneis de fermentação. E o gigante espanhol Miguel Torres é referência mundial em produção sustentável e protecção ambiental e há muito que abandonou o modelo orgânico.

Não gosto de rótulos, a não ser nas garrafas. “Natural” por oposição a “tecnológico” é ver o mundo a preto e branco. O vinho, é tudo menos isso, é uma paleta infinita de cores, um universo de diversidade, estilos e conceitos, distintas formas de trabalhar e de transformar o fruto da videira numa bebida apaixonante.

Não gosto do primado da diferença sobre a qualidade. É fantástico quando conseguimos associar, num copo, qualidade e diferença. Mas prefiro qualidade sem diferença, do que diferença sem qualidade.

Não gosto de confundir gosto e qualidade. Gosto discute-se, qualidade não. A qualidade é imediatamente reconhecível, mesmo por quem não é especialista ou conhecedor. Se um vinho cheira mal, não há quem me convença de que cheira bem. Uma couve podre é uma couve podre, um guisado queimado é um guisado queimado. Não há volta a dar.

Não gosto de catequismos. Não sou crente, mas respeito todas as crenças. Desde que não insistam em catequizar-me. Quando um sommelier me disser, condescendente, que não aprecio um vinho que cheira e sabe mal apenas porque não estou acostumado a ele, irei responder como Susana Esteban o fez, nas mesmas circunstâncias: “pois não, estou habituado a beber vinhos bons”.

Não gosto da demonização da ciência. Rejeitar a enologia é como rejeitar a medicina. É verdade que alguns o fazem. Mas eu não queria estar na pele deles quando tiverem uma apendicite aguda.

Não gosto do elitismo. O vinho não pode ser algo apenas ao alcance de um grupo de iluminados que se acham superiores. Enquanto produto, o vinho é, e deve continuar a ser, democrático, acessível a todas as bolsas. Para poder ter preços acessíveis tem de ser feito em volumes grandes. Uma vez que estabilizar dois milhões de litros não é o mesmo que cuidar de duas barricas, existem para o efeito produtos enológicos, legalmente autorizados e fiscalizados. Bebo muitas vezes vinhos de €2,49? Raramente. Tal como raramente vou ao McDonald’s. Mas prefiro, de longe, comer um hambúrguer de carne fresca do que um robalo de mar com 15 dias de frigorífico.

Não gosto da publicidade enganosa, das aldrabices, da mentira. Exemplos? Quando se impinge a turvação de um vinho como valorizadora, apenas porque não se esperou o tempo suficiente antes de engarrafar. Quando um produtor “orgânico” apanha com um ataque de míldio e utiliza o que for preciso para salvar as uvas. Quando se inundam as redes sociais de fotos das galinhas e ovelhas nos 2 hectares de vinha biodinâmica e se compram 200 toneladas de uva aos vizinhos que até glifosato usam. Quando se afirma que o espumante é “natural” porque não levou sulfuroso, mas depois leva 7 gramas de açúcar no licor de expedição. Quando dizem “fazer” vinho e não sabem podar uma videira, quando se assumem “vignerons” e não têm vinha. Em boa verdade, há muito mais coisas de que não gosto, mas acho que já chega.

Editorial – A Bairrada do espumante

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021 Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.   Quando, […]

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021

Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.

 

Quando, em 1890, José Maria Tavares da Silva levou a cabo as primeiras experiências de espumantização na então chamada Escola Prática de Viticultura e Pomologia, em Anadia, estaria longe de pensar o efeito transformador que o seu trabalho traria para a região da Bairrada. A apresentação oficial dos seus espumantes, em 1891, desencadearia um processo de industrialização que daria o primeiro passo em 1893 com a criação da Associação Vinícola da Bairrada (produtora do apelidado “Champagne Portuguez”) e teria a sua explosão a partir dos anos 20 do século seguinte, com o nascimento de dezenas de “Caves”.

Na década de 60, as Caves davam trabalho a uma boa parte da população local e contribuíam para o sustento de milhares de pessoas: praticamente todas as famílias acumulavam um emprego (na indústria metalomecânica ou cerâmica, sobretudo) com o amanho de uma ou mais parcelas de vinha, entregando as uvas nas adegas cooperativas (que depois vendiam o vinho às Caves) ou fazendo os vinhos nas suas adegas caseiras, onde os compradores das Caves os iam depois escolher e adquirir.

Quando visitei pela primeira vez a Bairrada do vinho, no início de 1990, o espumante era um produto comum a todos os agentes económicos da fileira, grandes e pequenos. Ao mudar-me de Lisboa para Sangalhos, em 1995, reparei que a cultura do espumante era transversal a toda a população, mesmo a que nada tinha a ver com a produção de vinho: qualquer casa que visitasse me recebia com “uma tacinha de espumante”. E em qualquer refeição, a garrafa de espumante estava presente, do início ao fim. Só aí entendi que a região da Bairrada, e não apenas os profissionais do vinho, sentia e vivia espumante, numa interiorização cultural da bebida por parte das gentes locais que só encontrei paralelo em Champagne e, em menor grau, em algumas vilas da Catalunha.

De então para cá, algumas coisas mudaram. Nos anos 90, a produção de espumantes em Portugal estava quase totalmente centrada em dois grandes núcleos: Lamego e Távora-Varosa (com Raposeira e Murganheira) e a Bairrada, com as suas Caves. Hoje, são centenas os produtores de vinho nacionais, desde o Vinho Verde ao Algarve, que fazem também um espumante como complemento de gama. Ainda que, na sua esmagadora maioria, os novos produtores recorram a diversos “facilitismos” e dispensem, entre outras, três práticas que fazem a diferença entre um bom espumante e um grande espumante: leveduras livres, espumantização/estágio a temperatura baixa e constante e, sobretudo, largo tempo em garrafa sobre as borras da segunda fermentação. O genuíno método clássico (outrora chamado, não por acaso, “método champanhês”), como sabemos, não abdica de nada disto. Mas esse é tema para outra conversa.

Interessante é que, apesar da dispersão geográfica da sua produção, ainda hoje, 60% do vinho espumante produzido em Portugal é feito entre Coimbra e Aveiro. Deste, cerca de metade obtém a certificação Bairrada ou IG Beira Atlântico, e foi uma amostra desse universo que provei para esta edição da Grandes Escolhas. Preservando o estilo de cada casa e o carácter das castas utilizadas, a qualidade geral dos espumantes da região é notável.  Segredo, não existe. Ou, se quisermos, são muitos: clima, solos, castas, história, caves, conhecimento técnico, cultura, tempo. É tudo isso e muito mais que faz da Bairrada uma grande região de espumantes. A Bairrada, na verdade, respira espumante. Afinal de contas, sempre são 130 anos disto.

Editorial – Desafiante

Editorial da revista nº55, Novembro 2021 Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como […]

Editorial da revista nº55, Novembro 2021

Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como 2011, por exemplo…

 

Convenhamos: uma vindima perfeita, como foi 2011, só acontece uma vez em cada década, ou até mais raramente. Desde a minha estreia na escrita de vinhos assisti a 33 vindimas, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. E provei nas cubas, barricas e garrafas os seus resultados. Considero, assim, poder fazer uma avaliação global minimamente informada e realista. Portugal é, felizmente, um país muito diverso, em climas, solos e castas. Com muita frequência, uma mesma vindima é excelente numa região e apenas sofrível noutra. Quase nunca acontece uma mesma colheita ser nacionalmente considerada medíocre ou extraordinária. No primeiro caso, lembro-me de 1993 e, em parte, 2002. No segundo, sem qualquer dúvida, 2011.

Uma década passada sobre a vindima de 2011, não há produtor de vinho que não se recorde das suas circunstâncias. Maturações lentas e de regular progressão, sem excessos de calor. Uvas sanitariamente perfeitas. Ausência de chuva durante o período de colheita. Foi um daqueles anos em que as uvas amadureceram devagar, preguiçosamente, e o lavrador esperou por elas, descansado, sem stress, porque a previsão meteorológica a duas semanas nada anunciava de preocupante. Cada talhão foi colhido no momento certo e as uvas permaneceram nos depósitos todo o tempo que precisaram, sem pressa de sair para dar lugar à carga seguinte. Hoje, independentemente de alguns eventuais excessos de concentração (mais por “moda” da época do que por culpa das uvas), a verdade é que os 2011 se destacam, imponentes, em qualquer prova vertical que se faça dos vinhos de um dado produtor, de norte a sul do país.

2021 foi muito diferente. Antes da vindima, foi difícil controlar pragas e doenças. Depois, as maturações das uvas estavam globalmente atrasadas, e houve que esperar. Com as brancas, sobretudo nas zonas mais quentes, tudo correu pelo melhor e há muitos bons (e bastantes excelentes) vinhos. Com as tintas, não foi bem assim. Ainda que as maturações dos taninos se tenham antecipado (o que evitou vinhos amargos e verdes) o açúcar não estava lá, e sem uvas maduras não há aromas e sabores. As uvas tardaram muitíssimo em chegar ao ponto certo e antes de o alcançarem vieram as chuvas. A generalidade dos produtores resolveu, e bem, esperar em busca de uma aberta no tempo que permitisse aos cachos eliminar a água e reganhar concentração. Em muitos casos, assim aconteceu, uma vindima às pinguinhas, com avanços e recuos, mas que deu bons resultados. Em muitos outros, quando as uvas estavam quase prontas vinha nova chuvada e, a dada altura, só havia uma decisão possível: apanhar o mais que se puder no primeiro dia de sol e não parar a partir daí. Para os produtores, foi uma vindima muito longa e, acima de tudo, bastante extenuante, física e mentalmente. Como um enólogo me dizia, “foi uma vindima desafiante, mas desafiante com M…”

O que podemos então esperar? Provei mais de 300 amostras de vindima desta campanha e, posso dizer que, globalmente, os resultados estão acima das minhas expectativas. Não estamos perante um 2002 e, muito menos, um 1993, bem longe disso. Há mesmo muitos vinhos tintos surpreendentes pela qualidade da fruta e frescura de boca, com menos álcool que o habitual, claro, mas isso até é positivo. Mais uma vez, as pessoas fizeram a diferença. A qualidade e quantidade de profissionais de campo e adega nada tem a ver com a de há uma ou duas décadas. Prevenir, tratar, decidir, separar. Assim se conseguiram os melhores vinhos de 2021. Vindima desafiante? Porque não? Sempre é melhor do que o tão batido “vindima atípica”…

Editorial – A Serra

Editorial da revista nº54, Outubro 2021 Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São […]

Editorial da revista nº54, Outubro 2021

Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São Mamede, enquanto parte da DOC Alentejo-Portalegre, é diferente, uma unidade geográfica e uma realidade vitivinícola com uma identidade vincada e muito própria.

Quando se fala de Portalegre numa perspectiva de vinha e de vinho, devemos visualizar (pelo menos) três realidades distintas, correspondendo a outras tantas unidades geográficas. Primeiro, o distrito de Portalegre, que coincide com o chamado Alto Alentejo, limitado a norte pela Beira Baixa. É uma vasta região que vai desde Elvas e Campo Maior, a sul, até Gavião e Nisa, a norte. Este é claramente um Alentejo mais verde na paisagem, mais ondulado na orografia e mais fresco no clima. Embora não olhemos hoje para os 15 concelhos do distrito como sendo, globalmente, de forte implantação vitivinícola (ao contrário do que acontece com muitos outros concelhos dos distritos de Évora e Beja), não podemos esquecer que aqui se situam algumas das mais antigas casas de vinho do Alentejo, desde logo Tapada do Chaves (Portalegre), Mouchão (Sousel) e, mesmo, Fundação Abreu Callado (Avis) que, embora sem a notoriedade das anteriores, engarrafa vinho desde os anos 50.

Quando apertamos o foco geográfico, chegamos então a Portalegre enquanto sub-região da Denominação de Origem Alentejo. Aqui encontramos a vinha e o vinho em todo o seu esplendor, numa expressão diferenciadora do carácter Alentejo, já de si muito diversificado em função da multiplicidade de solos, orografias, climas, castas.

A DOC Alentejo-Portalegre abrange o concelho de Portalegre e pequenas partes dos concelhos de Castelo de Vide, Crato, Marvão e Sousel. Os vinhos DOC Alentejo-Portalegre são claramente marcados pela Serra de São Mamede, que exerce a sua influência desde as explorações situadas no seu sopé até aos vinhedos localizados mas zonas mais altas. Muitas das vinhas mais antigas do Alentejo situam-se precisamente em Portalegre (como as parcelas tinta e branca da Tapada do Chaves, com registos de plantação de 1901 e 1903), para além de várias outras espalhadas pela Serra e cuja recuperação e preservação contribui decisivamente para o carácter dos vinhos aqui produzidos.

Dentro da DOC, porém, existe uma unidade geográfica mais pequena que, embora não esteja oficialmente individualizada em termos vitivinícolas (ao contrário do que é habitual noutros países europeus), revela uma forte identidade em termos dos vinhos que origina: a Serra de São Mamede propriamente dita, local mágico onde a altitude dita a sua lei. Ali, a floresta alterna com vinha, plantada, regra geral, entre os 500 e os 700 metros de altitude.

Vinhas velhas e vinhas mais recentes, produtores de perfil mais clássico ou mais moderno, juntam-se num fantástico mosaico vitivinícola e cultural, dando corpo àquilo a que podemos – por enquanto apenas “oficiosamente” – chamar, os vinhos da Serra de São Mamede. Nem melhores nem piores do que outros grandes vinhos de Portalegre ou do Alentejo, mas, sem dúvida alguma, diferentes. E, também por isso, tremendamente entusiasmantes.

Editorial – Bairrada em branco

Editorial da revista nº53, Setembro 2021 Num mercado, nacional e internacional, onde a procura de vinhos brancos de superior qualidade continua, globalmente, a crescer, é impossível ficar indiferente à oferta da Bairrada nesta categoria. A Bairrada é uma extraordinária região de brancos, e acredito que essa faceta só ainda não teve o reconhecimento que merece […]

Editorial da revista nº53, Setembro 2021

Num mercado, nacional e internacional, onde a procura de vinhos brancos de superior qualidade continua, globalmente, a crescer, é impossível ficar indiferente à oferta da Bairrada nesta categoria. A Bairrada é uma extraordinária região de brancos, e acredito que essa faceta só ainda não teve o reconhecimento que merece devido ao desempenho e buzz mediático dos seus tintos e espumantes.

 

Faz algum sentido avaliarmos o padrão das nossas opções vínicas em função do espaço que cada região ou tipo de vinho ocupam nas nossas garrafeiras. E digo “algum sentido” e não “todo o sentido”, porque frequentemente, a oportunidade, a proximidade geográfica, ou o preço, têm um peso importante nas nossas compras. Abstraindo-me dessas nuances, e admitindo que as minhas escolhas de garrafeira se norteiam exclusivamente pela qualidade intrínseca, potencial de longevidade e gosto pessoal, no que a brancos diz respeito, logo a seguir a Monção e Melgaço, são as garrafas de Bairrada que mais “área de prateleira” tomam em minha casa. Acho que isto diz do apreço que tenho pelos vinhos brancos desta região.

Mas vou mais longe. Ando nisto há mais de três décadas, e conservo vinhos desde, pelo menos, meados dos anos 80, abrindo frequentemente garrafas com mais de 10, 15 ou 20 anos. Por isso, se me centrar apenas no critério longevidade (importante para saber o que guardar sem sobressaltos) posso avaliar com relativa precisão a capacidade que os brancos de cada região têm para envelhecer com nobreza. E aí, salvaguardadas as devidas excepções (brancos longevos existem em todas as regiões), não tenho qualquer dúvida em afirmar que os melhores brancos de garrafeira são, em primeiro lugar, Bairrada, seguida de muito perto pelo Dão, com Monção e Melgaço a fechar o pódio.

Curiosamente, porém, quando o apreciador, mesmo o mais esclarecido, pensa em Bairrada, no seu “top of mind” estão invariavelmente tintos (em particular os Baga) e espumantes. Muitos, provavelmente, pensarão que o grande Bairrada branco é coisa residual. Mas está longe de o ser, como se vê no elevadíssimo nível médio dos brancos bairradinos provados por Mariana Lopes para esta edição. Por outro lado, a cada vez maior utilização de uvas tintas Baga nos espumantes, associada à progressiva valorização dos brancos tranquilos (já existem muitos exemplos acima dos €15, €20, €30…), tem permitido “libertar” maior quantidade de uvas brancas para fazer vinhos de topo. E novas referências surgem, vindima após vindima.

Desde há muito que Luís Pato (pioneiro e referência incontornável) afirma com veemência que, no seu entender, Bairrada é, sobretudo, região de brancos. Apesar da minha ilimitada paixão pelos tintos Baga, tendo a dar-lhe razão. É que, enquanto apenas uma minoritária parte da Bairrada vinícola (solos de argila e calcário, em encosta, com boa exposição solar) consegue originar Baga de excelência, as mais nobres uvas brancas utilizam todos os recursos da região em seu proveito: argila, calcário, areias e, claro, o fresco clima atlântico. Não fora o facto de, tradicionalmente, para as uvas brancas estarem reservados os piores terrenos (espumante obriga…) e o esplendor dos brancos bairradinos seria ainda mais evidente.

Espantosa é igualmente a capacidade que a Bairrada tem de imprimir a sua marca qualitativa a uma grande diversidade de castas, clássicas ou “modernas”. Em que outro lugar se faz Maria Gomes (Fernão Pires) com 14% de álcool e 7,5 de acidez? E que dizer do Bical que ali atinge elegância inigualável? Junte-se o polivalente e seguríssimo Arinto, o Cerceal (absoluta estrela em ascensão), o raro e enigmático Sercialinho ou, se quisermos sair da tradição, Alvarinho, Chardonnay e Sauvignon Blanc, e percebemos que, na Bairrada, não falta matéria para atingir a máxima grandeza. Os vinhos aí estão, para dissipar dúvidas e preconceitos.

 

Editorial – Elogio da Castelão

Editorial da revista nº52, Agosto 2021 Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de […]

Editorial da revista nº52, Agosto 2021

Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de tímidas tentativas de reabilitação, está longe de ser consensual.

 

No passado mês de julho tive dois encontros marcantes com a Castelão como protagonista. Primeiro, levei para um almoço muito especial, onde só são admitidos vinhos de idade avançada, um conjunto de preciosidades da minha garrafeira, brancos e tintos, entre eles um Periquita 1986. Desgraçadamente, dos 14 vinhos diferentes que abri nessa manhã, era o único com gosto a rolha. Odeio quando isso acontece com um vinho velho, considero quase uma ofensa pessoal e uma desconsideração pelo tempo e carinho que dediquei à garrafa em questão. Por isso, como sabia ter ainda uma outra garrafa em casa, arranjei pretexto para a abrir dois dias mais tarde: estava sublime, firme, complexo, com tanino ainda presente e fantástico equilíbrio de acidez. O blend não podia ser mais original e retrata uma época e um local: Castelão, em larga maioria, com Monvédre e Espadeiro.

O segundo momento Castelão teve a ver com uma muito interessante prova organizada pela CVR do Tejo (ver página 34). Com vinhos velhos e novos, a iniciativa visou reavivar esta casta clássica regional, junto dos produtores locais e dos apreciadores.

Houve tempos, não muito longínquos, em que a Castelão era a casta tinta mais plantada em Portugal. Quando Jorge Bohm escreveu, em 2005, o seu “O Grande Livro das Castas” (obra de consulta obrigatória) já tinha deixado de o ser, perdendo a posição para a Tinta Roriz/Aragonez. Desde então foram raríssimas as novas plantações de Castelão. Ao invés, milhares de hectares desta casta foram substituídos por Syrah, Touriga Nacional ou Alicante Bouschet.

Em 1995, a Castelão ainda era a primeira ou segunda casta tinta em algumas sub-regiões do Alentejo, como Redondo, Borba e Reguengos. Há muito que deixou os lugares cimeiros, e embora continue presente em vários vinhos de entrada de gama, quase ninguém a usa nos lotes mais ambiciosos. Nas vinhas antigas de sequeiro, porém, ainda permanece, contribuindo com o seu perfume e elegância para a elaboração de alguns tintos marcantes, como o Sem Vergonha de Susana Esteban, um estreme de Castelão.

No Tejo, mantém-se a tinta mais plantada, com 1.500 hectares, e está presente na maioria dos lotes regionais. Porém, há apenas dois ou três os tintos 100% Castelão. Mas existem sinais positivos vindos de casas como Companhia das Lezírias ou Quinta da Alorna. Esta última irá lançar em breve, um belíssimo Castelão 2017 de uma só parcela.

Junto do apreciador, no entanto, o “solar” do Castelão está hoje claramente identificado com a Península de Setúbal (onde, curiosamente, a casta chegou vinda do Tejo) e em particular com os solos pobres e arenosos de Palmela. Ali encontramos diversas vinhas de sequeiro que são a base de quase duas dezenas de vinhos de Castelão, entre eles alguns de topo, que se destacam pela textura, elegância e potencial de longevidade. Segundo a CVR local, estão certificados e cadastrados 5.273 hectares de castas tintas, dos quais 3.255 ha de Castelão, um verdadeiro tesouro para quem o saiba usar.

Como já perceberam depois de toda esta conversa, gosto de Castelão. Tenho-a como uma variedade versátil (espumantes blanc de noirs, rosés, tintos) que pode originar vinhos que primam, não pela cor e pela potência, mas pela qualidade da fruta, pelo equilíbrio de acidez, pela finura. Apesar de ser utilizada sobretudo para esse fim, não é a fazer tintos bons e baratos que mostra o que vale, outras cumprirão melhor essa tarefa. Acredito que, se for bem tratada na vinha e na adega, pode tornar-se em mais uma daquelas pérolas do património vitícola nacional que, de quando em vez, resgatamos do baú do esquecimento para brilhar resplandecente e fazer toda a diferença.

O que (realmente) bebemos

Editorial da revista nº51, Julho 2021 Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as […]

Editorial da revista nº51, Julho 2021

Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as tendências vínicas vão mudando, na hora de “fazer figura”, o tipo de vinho que escolhemos não muda tanto assim.

 

Façamos o seguinte exercício. Perguntemos às amigas e amigos que entendem e apreciam vinhos de qualidade, qual a garrafa que levavam para a (inevitável) ilha deserta. Aposto que as respostas irão: primeiro, privilegiar os vinhos brancos; segundo, Borgonha e Champagne à cabeça, ou talvez (os mais patriotas) Dão Encruzado ou Monção e Melgaço Alvarinho ou Pico Verdelho. Muito poucos irão referir um tinto do Alentejo ou do Douro, um Bordéus ou Barolo clássicos, ou mesmo um Porto Vintage. Coloquemos então a questão de outra forma, mais directa: qual o perfil de vinho que mais apreciam? Garanto que 99% dos apreciadores inquiridos irão apontar para a santíssima trindade dos atributos vínicos: leveza, elegância, frescura.

Agora deixemo-nos de exercícios e passemos à realidade. Cenário: um lauto jantar entre cinco amigos, na casa de um deles, onde foi pedido a cada um que levasse uma garrafa. Atenção, não se escolhe uma garrafa qualquer para um jantar entre gente que sabe de vinho. É preciso algo que não se beba todos os dias, que impressione, que nos permita sair no final com a sensação, mesmo que enganadora, de que o “vinho da noite” foi o nosso. Então, dito isto, e depois dos espumantes/champagnes de entrada, que vinhos estiveram na mesa? Um branco “vin jaune” de Jura invulgarmente bom (pelo menos para mim, que não sou fã da região) e quatro tintos, todos eles de elevadíssimo nível: um Rioja “moderno”, um “super toscano”, um Toro “tradicional” e um Bairrada “clássico”. O que estes vinhos tinham em comum? Ainda que a nenhum faltasse frescura e alguns manifestassem mesmo uma certa elegância, nenhum deles encaixava propriamente no estereotipo de “leve, elegante e fresco”.

Onde é que eu quero chegar com tudo isto? Apenas salientar que, apesar de em nossas casas (e falo por mim), preferirmos beber vinhos mais leves no álcool e mais vivos na acidez, quando queremos mesmo impressionar, arrasar a “concorrência”, mandamos o vinicamente correcto às malvas e vamos buscar a artilharia pesada. E isto, note-se, entre pessoas que têm acesso a vinhos ultra premium. Se olharmos para o que bebe a esmagadora maioria dos consumidores do mundo, consumidores comuns que não têm de “esnobar” (deliciosa expressão brasileira!) ninguém, a cor, a concentração, a opulência e, em muitos casos, o álcool, são os maiores atributos.

Então, em que ficamos? Poder ou elegância? Respondo com um excerto de um editorial que escrevi no longínquo ano de 2002. “Quem possui algum interesse pelos grandes vinhos do mundo, já provavelmente ouviu falar na dicotomia ‘Bordéus-Borgonha’, como exemplo de dois estilos de vinho completamente opostos: de um lado o poder e a concentração, do outro lado a elegância e a finura. Normalmente, os apreciadores procuram colocar-se de um lado ou do outro, defendendo a sua ‘dama’ com diversos tipos de argumentos. É uma discussão fútil, quanto a mim, porque o poder e a elegância não são incompatíveis. Ou seja, o grande vinho é quase sempre, ao mesmo tempo, poderoso e elegante.“

Já agora, para aquele jantar, fui eu que levei o Bairrada clássico. O vinho, Baga de vinhas velhas, tem 14,5% de álcool, garra, tanino, acidez, muito sabor e frescura. A elegância também virá, com o tempo em cave. E, claro, em minha opinião, como não podia deixar de ser, foi o vinho da noite.

Tanto Douro

Editorial da revista nº50, Junho 2021 Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para […]

Editorial da revista nº50, Junho 2021

Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para exibirem toda a paleta do arco-íris.

 

Aviso à navegação: vou dizer algo que pode chocar as almas vínicas mais sensíveis. Se for o caso, por favor, parem de ler por aqui. Continuo? Então aí vai: durante muito, muito tempo, a prova dos melhores tintos do Douro, com trinta ou quarenta vinhos, era a avaliação mais aborrecida, monótona, física e mentalmente extenuante, do calendário anual de provas da nossa equipa. Pronto, está dito.

Agora, deixem que justifique tão singular afirmação. O desafio principal desse painel de prova assentava no facto de os vinhos serem cansativamente bons (sem os altos e baixos que facilitam avaliar grande número de amostras) e, ao mesmo tempo, insuportavelmente parecidos uns com os outros. E porquê? Porque a uniformidade de decisões de adega tomadas pelos produtores e enólogos para os tintos mais ambiciosos do seu portefólio, acabava por esbater consideravelmente a origem das uvas.

O Douro moderno, no que aos vinhos “não Porto” diz respeito, nasceu no início dos anos 90. Ramos Pinto, Niepoort, Alves de Sousa, Quinta do Crasto foram alguns desses pioneiros, seguidos no final dessa década por nomes como Vallado, Vale Meão, Quinta da Leda, Chryseia, entre outros. Na década seguinte o Douro já fervilhava. E uma nova geração de produtores e enólogos partilhava entre si conhecimentos e experiências enriquecedoras, consolidando, colheita após colheita, a qualidade dos seus vinhos, empurrados por um mercado receptivo e entusiástico. Nunca tantos e tão bons vinhos se tinham feito no Douro. Apenas um senão, aquele que acima mencionei: ao contrário dos vinhos pioneiros, que assentavam num processo de aprendizagem, e também por isso bem diferentes entre si, estes vinhos partiam de técnicas e equipamentos comuns (quase toda a gente fazia as mesmas macerações e remontagens e comprava as barricas nas mesmas tanoarias…) e eram demasiado semelhantes no conceito e no estilo.

Nos últimos nove ou dez anos, o panorama tem vindo a mudar. Resolvido o conhecimento técnico, existe agora muito mais margem de manobra para experimentar com segurança. E os profissionais durienses estão a tirar o máximo partido disso. Todos os recipientes de fermentação e estágio são válidos (lagar, inox, cimento, barro, até plástico alimentar…), a madeira não tem a preponderância de outrora, a marcação da vindima já é feita em função do estilo de vinho pretendido (encontramos belos tintos, entre os 12,5% aos 15,5%…).

Mais importante do que tudo o resto: o respeito pela origem está na primeira linha das preocupações de produtores e enólogos. Baixo Corgo, Cima Corgo, Douro Superior, vale do Tua, do Torto, do Pinhão, do Távora, do Côa, exposição solar, altitude, castas, constituem um imenso puzzle que começa agora, verdadeiramente, a fazer sentido. Já não basta dizer que o vinho é do Douro. Cada vez mais, um local concreto se expressa nos aromas e sabores do vinho, tão ou mais importante do que as decisões de vinha e adega.

Duas reportagens publicadas nesta edição sobre novos vinhos durienses constituem os melhores exemplos do que acabo de referir. A Quinta de Ervamoira exalta o Douro moderno: a vinha ao alto, a Touriga Franca e a Touriga Nacional, o carácter do Côa na suprema qualidade da fruta e polimento de taninos.

A Quinta da Manoella é um monumento ao Douro antigo: a vinha velha com inúmeras castas, o field blend, a personalidade de Vale de Mendiz na notável complexidade silvestre, terrosa e fresca.

Hoje, podemos continuar a dizer que os vinhos do Douro nunca foram tão bons. Mas devemos acrescentar que nunca foram tão diferentes e respeitadores das suas muitas origens. A região chegou, finalmente, à sua idade do ouro.