Editorial – Elogio da Castelão

Editorial da revista nº52, Agosto 2021 Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de […]

Editorial da revista nº52, Agosto 2021

Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de tímidas tentativas de reabilitação, está longe de ser consensual.

 

No passado mês de julho tive dois encontros marcantes com a Castelão como protagonista. Primeiro, levei para um almoço muito especial, onde só são admitidos vinhos de idade avançada, um conjunto de preciosidades da minha garrafeira, brancos e tintos, entre eles um Periquita 1986. Desgraçadamente, dos 14 vinhos diferentes que abri nessa manhã, era o único com gosto a rolha. Odeio quando isso acontece com um vinho velho, considero quase uma ofensa pessoal e uma desconsideração pelo tempo e carinho que dediquei à garrafa em questão. Por isso, como sabia ter ainda uma outra garrafa em casa, arranjei pretexto para a abrir dois dias mais tarde: estava sublime, firme, complexo, com tanino ainda presente e fantástico equilíbrio de acidez. O blend não podia ser mais original e retrata uma época e um local: Castelão, em larga maioria, com Monvédre e Espadeiro.

O segundo momento Castelão teve a ver com uma muito interessante prova organizada pela CVR do Tejo (ver página 34). Com vinhos velhos e novos, a iniciativa visou reavivar esta casta clássica regional, junto dos produtores locais e dos apreciadores.

Houve tempos, não muito longínquos, em que a Castelão era a casta tinta mais plantada em Portugal. Quando Jorge Bohm escreveu, em 2005, o seu “O Grande Livro das Castas” (obra de consulta obrigatória) já tinha deixado de o ser, perdendo a posição para a Tinta Roriz/Aragonez. Desde então foram raríssimas as novas plantações de Castelão. Ao invés, milhares de hectares desta casta foram substituídos por Syrah, Touriga Nacional ou Alicante Bouschet.

Em 1995, a Castelão ainda era a primeira ou segunda casta tinta em algumas sub-regiões do Alentejo, como Redondo, Borba e Reguengos. Há muito que deixou os lugares cimeiros, e embora continue presente em vários vinhos de entrada de gama, quase ninguém a usa nos lotes mais ambiciosos. Nas vinhas antigas de sequeiro, porém, ainda permanece, contribuindo com o seu perfume e elegância para a elaboração de alguns tintos marcantes, como o Sem Vergonha de Susana Esteban, um estreme de Castelão.

No Tejo, mantém-se a tinta mais plantada, com 1.500 hectares, e está presente na maioria dos lotes regionais. Porém, há apenas dois ou três os tintos 100% Castelão. Mas existem sinais positivos vindos de casas como Companhia das Lezírias ou Quinta da Alorna. Esta última irá lançar em breve, um belíssimo Castelão 2017 de uma só parcela.

Junto do apreciador, no entanto, o “solar” do Castelão está hoje claramente identificado com a Península de Setúbal (onde, curiosamente, a casta chegou vinda do Tejo) e em particular com os solos pobres e arenosos de Palmela. Ali encontramos diversas vinhas de sequeiro que são a base de quase duas dezenas de vinhos de Castelão, entre eles alguns de topo, que se destacam pela textura, elegância e potencial de longevidade. Segundo a CVR local, estão certificados e cadastrados 5.273 hectares de castas tintas, dos quais 3.255 ha de Castelão, um verdadeiro tesouro para quem o saiba usar.

Como já perceberam depois de toda esta conversa, gosto de Castelão. Tenho-a como uma variedade versátil (espumantes blanc de noirs, rosés, tintos) que pode originar vinhos que primam, não pela cor e pela potência, mas pela qualidade da fruta, pelo equilíbrio de acidez, pela finura. Apesar de ser utilizada sobretudo para esse fim, não é a fazer tintos bons e baratos que mostra o que vale, outras cumprirão melhor essa tarefa. Acredito que, se for bem tratada na vinha e na adega, pode tornar-se em mais uma daquelas pérolas do património vitícola nacional que, de quando em vez, resgatamos do baú do esquecimento para brilhar resplandecente e fazer toda a diferença.

O que (realmente) bebemos

Editorial da revista nº51, Julho 2021 Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as […]

Editorial da revista nº51, Julho 2021

Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as tendências vínicas vão mudando, na hora de “fazer figura”, o tipo de vinho que escolhemos não muda tanto assim.

 

Façamos o seguinte exercício. Perguntemos às amigas e amigos que entendem e apreciam vinhos de qualidade, qual a garrafa que levavam para a (inevitável) ilha deserta. Aposto que as respostas irão: primeiro, privilegiar os vinhos brancos; segundo, Borgonha e Champagne à cabeça, ou talvez (os mais patriotas) Dão Encruzado ou Monção e Melgaço Alvarinho ou Pico Verdelho. Muito poucos irão referir um tinto do Alentejo ou do Douro, um Bordéus ou Barolo clássicos, ou mesmo um Porto Vintage. Coloquemos então a questão de outra forma, mais directa: qual o perfil de vinho que mais apreciam? Garanto que 99% dos apreciadores inquiridos irão apontar para a santíssima trindade dos atributos vínicos: leveza, elegância, frescura.

Agora deixemo-nos de exercícios e passemos à realidade. Cenário: um lauto jantar entre cinco amigos, na casa de um deles, onde foi pedido a cada um que levasse uma garrafa. Atenção, não se escolhe uma garrafa qualquer para um jantar entre gente que sabe de vinho. É preciso algo que não se beba todos os dias, que impressione, que nos permita sair no final com a sensação, mesmo que enganadora, de que o “vinho da noite” foi o nosso. Então, dito isto, e depois dos espumantes/champagnes de entrada, que vinhos estiveram na mesa? Um branco “vin jaune” de Jura invulgarmente bom (pelo menos para mim, que não sou fã da região) e quatro tintos, todos eles de elevadíssimo nível: um Rioja “moderno”, um “super toscano”, um Toro “tradicional” e um Bairrada “clássico”. O que estes vinhos tinham em comum? Ainda que a nenhum faltasse frescura e alguns manifestassem mesmo uma certa elegância, nenhum deles encaixava propriamente no estereotipo de “leve, elegante e fresco”.

Onde é que eu quero chegar com tudo isto? Apenas salientar que, apesar de em nossas casas (e falo por mim), preferirmos beber vinhos mais leves no álcool e mais vivos na acidez, quando queremos mesmo impressionar, arrasar a “concorrência”, mandamos o vinicamente correcto às malvas e vamos buscar a artilharia pesada. E isto, note-se, entre pessoas que têm acesso a vinhos ultra premium. Se olharmos para o que bebe a esmagadora maioria dos consumidores do mundo, consumidores comuns que não têm de “esnobar” (deliciosa expressão brasileira!) ninguém, a cor, a concentração, a opulência e, em muitos casos, o álcool, são os maiores atributos.

Então, em que ficamos? Poder ou elegância? Respondo com um excerto de um editorial que escrevi no longínquo ano de 2002. “Quem possui algum interesse pelos grandes vinhos do mundo, já provavelmente ouviu falar na dicotomia ‘Bordéus-Borgonha’, como exemplo de dois estilos de vinho completamente opostos: de um lado o poder e a concentração, do outro lado a elegância e a finura. Normalmente, os apreciadores procuram colocar-se de um lado ou do outro, defendendo a sua ‘dama’ com diversos tipos de argumentos. É uma discussão fútil, quanto a mim, porque o poder e a elegância não são incompatíveis. Ou seja, o grande vinho é quase sempre, ao mesmo tempo, poderoso e elegante.“

Já agora, para aquele jantar, fui eu que levei o Bairrada clássico. O vinho, Baga de vinhas velhas, tem 14,5% de álcool, garra, tanino, acidez, muito sabor e frescura. A elegância também virá, com o tempo em cave. E, claro, em minha opinião, como não podia deixar de ser, foi o vinho da noite.

Tanto Douro

Editorial da revista nº50, Junho 2021 Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para […]

Editorial da revista nº50, Junho 2021

Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para exibirem toda a paleta do arco-íris.

 

Aviso à navegação: vou dizer algo que pode chocar as almas vínicas mais sensíveis. Se for o caso, por favor, parem de ler por aqui. Continuo? Então aí vai: durante muito, muito tempo, a prova dos melhores tintos do Douro, com trinta ou quarenta vinhos, era a avaliação mais aborrecida, monótona, física e mentalmente extenuante, do calendário anual de provas da nossa equipa. Pronto, está dito.

Agora, deixem que justifique tão singular afirmação. O desafio principal desse painel de prova assentava no facto de os vinhos serem cansativamente bons (sem os altos e baixos que facilitam avaliar grande número de amostras) e, ao mesmo tempo, insuportavelmente parecidos uns com os outros. E porquê? Porque a uniformidade de decisões de adega tomadas pelos produtores e enólogos para os tintos mais ambiciosos do seu portefólio, acabava por esbater consideravelmente a origem das uvas.

O Douro moderno, no que aos vinhos “não Porto” diz respeito, nasceu no início dos anos 90. Ramos Pinto, Niepoort, Alves de Sousa, Quinta do Crasto foram alguns desses pioneiros, seguidos no final dessa década por nomes como Vallado, Vale Meão, Quinta da Leda, Chryseia, entre outros. Na década seguinte o Douro já fervilhava. E uma nova geração de produtores e enólogos partilhava entre si conhecimentos e experiências enriquecedoras, consolidando, colheita após colheita, a qualidade dos seus vinhos, empurrados por um mercado receptivo e entusiástico. Nunca tantos e tão bons vinhos se tinham feito no Douro. Apenas um senão, aquele que acima mencionei: ao contrário dos vinhos pioneiros, que assentavam num processo de aprendizagem, e também por isso bem diferentes entre si, estes vinhos partiam de técnicas e equipamentos comuns (quase toda a gente fazia as mesmas macerações e remontagens e comprava as barricas nas mesmas tanoarias…) e eram demasiado semelhantes no conceito e no estilo.

Nos últimos nove ou dez anos, o panorama tem vindo a mudar. Resolvido o conhecimento técnico, existe agora muito mais margem de manobra para experimentar com segurança. E os profissionais durienses estão a tirar o máximo partido disso. Todos os recipientes de fermentação e estágio são válidos (lagar, inox, cimento, barro, até plástico alimentar…), a madeira não tem a preponderância de outrora, a marcação da vindima já é feita em função do estilo de vinho pretendido (encontramos belos tintos, entre os 12,5% aos 15,5%…).

Mais importante do que tudo o resto: o respeito pela origem está na primeira linha das preocupações de produtores e enólogos. Baixo Corgo, Cima Corgo, Douro Superior, vale do Tua, do Torto, do Pinhão, do Távora, do Côa, exposição solar, altitude, castas, constituem um imenso puzzle que começa agora, verdadeiramente, a fazer sentido. Já não basta dizer que o vinho é do Douro. Cada vez mais, um local concreto se expressa nos aromas e sabores do vinho, tão ou mais importante do que as decisões de vinha e adega.

Duas reportagens publicadas nesta edição sobre novos vinhos durienses constituem os melhores exemplos do que acabo de referir. A Quinta de Ervamoira exalta o Douro moderno: a vinha ao alto, a Touriga Franca e a Touriga Nacional, o carácter do Côa na suprema qualidade da fruta e polimento de taninos.

A Quinta da Manoella é um monumento ao Douro antigo: a vinha velha com inúmeras castas, o field blend, a personalidade de Vale de Mendiz na notável complexidade silvestre, terrosa e fresca.

Hoje, podemos continuar a dizer que os vinhos do Douro nunca foram tão bons. Mas devemos acrescentar que nunca foram tão diferentes e respeitadores das suas muitas origens. A região chegou, finalmente, à sua idade do ouro.

 

Tempo

Editorial da revista nº49, Maio 2021 Regra geral, quando chamados a associar vinho e tempo, de imediato pensamos na forma como o primeiro se comporta na garrafa com o passar dos anos, na sua curva de crescimento, na fase de aquisição de complexidade, na fase de declínio, no ponto óptimo de consumo. Mas raramente, se […]

Editorial da revista nº49, Maio 2021

Regra geral, quando chamados a associar vinho e tempo, de imediato pensamos na forma como o primeiro se comporta na garrafa com o passar dos anos, na sua curva de crescimento, na fase de aquisição de complexidade, na fase de declínio, no ponto óptimo de consumo. Mas raramente, se é que alguma vez o fazemos, reflectimos sobre a nossa própria evolução enquanto criadores ou consumidores de vinho.

 

A chamada “prova horizontal”, consiste na avaliação de várias marcas ou referências, do mesmo produtor/região e do mesmo ano, e oferece-nos uma excelente oportunidade para perceber as características específicas daquela colheita num determinado local, buscando denominadores comuns do ano vitícola e efeitos distintos consoante a casta, solo, exposição solar ou altitude, por exemplo. Neste modelo, o foco está numa colheita concreta, e é ela que nos transmite a informação que pretendemos.

Por contraponto, a “prova vertical” permite-nos avaliar a mesma referência, do mesmo produtor, ao longo de várias colheitas. “Horizontais” e “verticais” são modelos de prova totalmente diferentes e que visam objectivos distintos. Embora aprecie imenso ir de cuba em cuba, numa adega, provando os vinhos do ano acabadinhos de fazer, confesso que prefiro as provas verticais, sobretudo quando estou perante uma marca com larga história e muitas colheitas para apresentar. E a principal razão desta preferência tem a ver com o factor tempo, que pode ser abordado de múltiplas formas.

Claro que, numa primeira linha de avaliação, está o comportamento do vinho na garrafa e a forma como superou (ou não) a prova do tempo. É interessantíssimo verificar como, na grande maioria dos casos (sobretudo se estivermos perante uma marca/referência de nível superior), os vinhos (brancos ou tintos) precisam de tempo para atingir o seu auge. Mas nem sempre essa ascensão qualitativa é uniforme, ou previsível. Acontece muitas vezes enfrentarmos uma colheita jovem precocemente envelhecida e outra bem antiga e surpreendentemente jovem. É a magia do vinho a funcionar.

No entanto, numa prova vertical, gosto igualmente de imaginar o que ia na cabeça do produtor/enólogo durante vindima, qual era a sua abordagem, que vinho pretendia fazer há cinco, dez, quinze, vinte anos. Se pensarmos nas avassaladoras mudanças que o mundo do vinho tem atravessado em espaços temporais relativamente curtos, mudanças ao nível da produção (viticultura, enologia, tecnologia, conceitos) e ao nível do mercado (gosto do consumidor, comercialização, modas e tendências) facilmente chegamos à conclusão, tantas vezes evidenciada pela sequência de vinhos que temos nos copos, de que a abordagem do criador ao vinho foi mudando ao longo do tempo. O que nos leva a uma constatação ainda mais complexa: no caso de vinhos que levam vários anos em cave até chegarem ao mercado, como acontece com alguns tintos e espumantes mais ambiciosos, o perfil do vinho que acabámos de comprar na loja pode já nem sequer corresponder inteiramente àquilo que o seu produtor/enólogo entende hoje como o perfil ideal para o seu produto.

O mesmo se passa, claro, com o nosso comportamento enquanto consumidores. O tempo muda a forma como olhamos para um vinho. E fá-lo de forma tão gradual e subtil que, frequentemente, nem damos por isso.  Falo por mim: vinhos que adorei há duas décadas continuam a extasiar-me hoje, sempre que vou à cave e abro uma garrafa; e outros que avaliei bem alto há apenas 7 ou 8 anos, já pouco me dizem. Dou por mim a abrir a garrafa, provar, e despejar na pia. Não porque o vinho tenha perdido qualidades, longe disso. Embora mais velho, continua muito bom, exactamente como eu o descrevi na altura. Mas, vá lá saber-se porquê, já não me apetece, não me entusiasma, não mexe comigo, não me dá prazer. As coisas que o tempo faz…

Onde tudo começa

Editorial da revista nº48, Abril 2021 Terra, pedra, textura. Vale, encosta, planalto. Vento, chuva, escaldão, geada. Podar, empar, vigiar, tratar. Enfrentar o frio e o calor, provar os bagos para avaliar sabor, açúcar, acidez, taninos. Regressar triste ou contente, desalentado ou entusiasmado. Será que o tempo aguenta até à vindima? É ali, na vinha, que […]

Editorial da revista nº48, Abril 2021

Terra, pedra, textura. Vale, encosta, planalto. Vento, chuva, escaldão, geada. Podar, empar, vigiar, tratar. Enfrentar o frio e o calor, provar os bagos para avaliar sabor, açúcar, acidez, taninos. Regressar triste ou contente, desalentado ou entusiasmado. Será que o tempo aguenta até à vindima? É ali, na vinha, que tudo tem início. Quem não sente a videira, não pode verdadeiramente sentir o vinho.

Em mais de três décadas a escrever sobre vinhas e vinhos já assisti a muitos ciclos de produção e comercialização. Quando comecei, em 1989, a esmagadora maioria das marcas existentes no mercado correspondiam a vinhos que não tinham sido feitos pela empresa que os engarrafou. Em muitos casos, o proprietário da marca, sobretudo as de maior volume, não tinha sequer ideia da origem do vinho que comprou e que depois vendeu com o seu rótulo. Salvo honrosas excepções, vinha, vinho e marca eram três mundos separados que só se relacionavam através de transações comerciais. Algumas casas entre as grandes possuíam adegas e vinhas próprias, é certo. Mas estas representavam uma parte irrisória das suas necessidades de uvas e vinho. E, mesmo dentro de casa, a vinha era algo longínquo para quem estava na adega e na sala de provas. Em muitas empresas, o enólogo chefe raramente sujava as botas na vinha e, quando o fazia, não era com prazer.

Entretanto, o consumidor foi-se tornando mais conhecedor e exigente. E, a dada altura, deu-se um momento de viragem, quando encontrou valor acrescentado nos chamados “vinhos de quinta”. As empresas maiores sentiram então a necessidade de ter mais controlo sobre a matéria-prima que recebiam. Começaram a aumentar a sua área de vinha, a profissionalizar a vertente agrícola, a valorizar os conhecimentos dos técnicos de viticultura.

No início no século XXI, cresceu entre o apreciador a vontade de saber mais, de chegar até à origem do vinho, de visitar a vinha onde este nasceu. Ao mesmo tempo, já não lhe bastava aceder a um bom produto, o vinho tinha também de ser diferenciador, de ter uma história para contar. Aliada esta vontade do mercado à necessidade de manter a consistência das marcas, as grandes casas reforçaram o seu investimento em terra, em vinha e nos recursos humanos que lhe estão associados. Hoje em dia, é quase impensável para as empresas de maior dimensão, e com marcas em diversos segmentos de preço, não controlar a maioria das uvas, seja nas vinhas próprias, seja nas dos fornecedores.

Curiosamente, porém, nos últimos dois ou três anos, tenho vindo a assistir a algo que, até há pouco, julgaria impensável: o nascimento de marcas de nicho alicerçadas num nome “cool” e num rótulo atractivo, e potenciadas pelas redes sociais. Marcas sem vinha, sem adega, sem vinho (!), protagonizadas por pessoas oriundas de outras áreas de actividade que se insinuam junto de um produtor e que, perante dez ou doze amostras que lhe colocam à frente, escolhem uma para vender com o seu nome. E depois, apesar de nunca terem pegado numa tesoura de poda, enchido uma cuba, colocado uma rolha, contam no Facebook uma história sobre uma vinha que não conhecem e sobre um vinho que “ajudaram a fazer”. Alguns, não têm vergonha de acentuar que até “ensinaram” o enólogo a melhorar o lote. E vendem essas garrafas como vinho “de autor”, cinco vezes mais caro. Só cai quem quer, é verdade, e gente com talento para tomar como seu o trabalho dos outros sempre houve em todas as áreas de negócio. O que me espanta, no entanto, é que são precisamente os apreciadores que valorizam a genuinidade e a diferença que vão no logro, e compram esta falsa exclusividade a um preço muito acima do seu valor qualitativo.

Tenho para mim que, quanto mais ambicioso e oneroso for um vinho, mais fácil deverá ser para o consumidor seguir as suas pegadas até à origem. E a origem de um grande vinho é terra, é vinha, é gente. É verdadeiramente ali que tudo começa. Sem essa rastreabilidade, o vinho é apenas uma marca, mais uma.

O que guardar de 2020

Luís Lopes

Editorial da revista nº47, Março 2021 Como fazemos todos os anos, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, os agentes económicos, os projectos, as organizações que em 2020 deixaram marca junto de profissionais e consumidores. E hoje, talvez mais do que nunca, este reconhecimento é merecido […]

Editorial da revista nº47, Março 2021

Como fazemos todos os anos, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, os agentes económicos, os projectos, as organizações que em 2020 deixaram marca junto de profissionais e consumidores. E hoje, talvez mais do que nunca, este reconhecimento é merecido e necessário. 

Luís Lopes

Que 2020 não foi um ano normal (nem 2021 o está a ser), já todos o sabemos. Fiquemos por aqui. Recuso-me, nestas linhas, a utilizar as palavras que leio e oiço todos os dias, as palavras que devoram todas as outras como se mais nenhumas houvesse para escrever ou dizer. Não as irão ler nesta página. 

Prefiro falar do que de bom aconteceu em 2020. Dos belíssimos vinhos que provámos e bebemos (e foram tantos!); das pessoas que deram o máximo do seu talento e conhecimento, realizaram sonhos, lançaram marcas, recuperaram tradições, comunicaram histórias de sucesso, transformaram produtos da terra e do mar em vinhos e comidas que vieram alegrar as nossas mesas; das empresas que se dinamizaram, inventaram ou reinventaram, criaram ou mantiveram empregos, contribuíram para o desenvolvimento regional ou nacional, levaram mais longe o nome da qualidade “made in Portugal”. Vamos, pois, falar de coisas boas. 

Permitam-me que comece pelos vinhos e que, entre os muitos que premiámos, destaque apenas quatro, os eleitos para liderar cada categoria. E que grandes vinhos são o espumante Murganheira Vintage 2011, o branco Guru NM, o tinto Quinta das Bágeiras Pai Abel 2015 e o fortificado Sandeman Vintage 2018! 

Não foi por 2020 ser 2020 que deixámos de poder apreciar e avaliar a excelência na cozinha, na mesa, ou na sala. E muito impressionados ficámos com o trabalho dos restaurantes Toca da Raposa, Marmoris Narcisus Fernandesis e JnCquoi Asia. Conceitos e estilos bem distintos, o mesmo empenho e arte. Arte que não falta ao esmerado e competentíssimo serviço de vinhos de Fernando Ruas. Nem à escrita de Alexandra Prado Coelho que, todas as semanas, e sem precisarmos sair do ninho, nos transporta para um mundo de prazeres gastronómicos, como tão bem o fazia o mestre das letras David Lopes Ramos que dá o nome ao prémio com que foi distinguida.  

Em 2020 visitámos espaços de referência onde os vinhos se sentem em casa, como a garrafeira Wines 9297 e a Enoteca 17.56 (curiosa coincidência, esta coisa dos números), ou onde o vinho é a casa, como o World of Wine. E mesmo um espaço virtual que entra em nossa casa, como a loja gourmet online Unique Flavours. 

No lado das empresas e organizações também há muitos motivos para aplaudir. Desde o salto, nos números e no mercado, por parte da região do Tejo, para o qual a Comissão Vitivinícola Regional muito contribuiu, até ao elevado desempenho da Vercoope, um dos motores dos Vinhos Verdes e da Sogevinus, referência no vinho do Porto. Sentimos e aplaudimos a fantástica revolução e dinâmica operadas na Quinta do Gradil (Lisboa) e Falua (Tejo). E que dizer da recuperação da mais profunda matriz cultural e vinícola do Alentejo, materializada nas ânforas da Adega José Piteira, na Amareleja, e da XXVI Talhas, em Vila Alva? Ou do enorme impacto da nova estrela do Dão, a Taboadella 

Deixei para o fim o princípio, as pessoas que pensam e moldam os vinhos. Profissionais talentosos, sabedores, criativos, que na vinha, na adega, na sala de provas, nas caves de estágio, fazem acontecer. Amândio Cruz, na viticultura, Manuel Lobo e Domingos Soares Franco, na enologia, possibilitaram aos apreciadores momentos inesquecíveis. E Anselmo Mendes, cujas qualidades humanas, capacidade de trabalho e conhecimento técnico recolhem respeito e admiração unânime entre enófilos e colegas de ofício, é o nosso grande Senhor do Vinho. 

Devemos a todas estas pessoas e entidades o nosso profundo reconhecimento, merecido e necessário, por tudo o que nos deram em 2020. E é isto, sobretudo, que devemos guardar do ano que passou. 

Red line

Luís Lopes

Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021 Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente.  […]

Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021

Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente. 

Luís Lopes

Gosto das pessoas e das coisas que são diferentes, quando são boas. Prefiro, de muito longe, algo diferente e bom do que algo apenas bom. A diferença mexe comigo, faz-me pensar, questiona-me, desafia-me. Isto é válido para tudo, da pintura ao futebol, da literatura aos comportamentos sociais, da comida ao vinho. Porém, é impossível fazer a diferença sem correr riscos. A segurança está, sem dúvida, na base da eficácia e até, admito, da perfeição. Mas dificilmente é um caminho para a singularidade 

Tenho por isso uma admiração sem limites por aqueles que arriscam e que, na sua vida ou na sua actividade, caminham na chamada red line. É uma linha muito fina, onde é extremamente difícil manter o equilíbrio. Um passo em falso, e o que podia ser brilhante transforma-se numa coisa sem préstimo. 

Deixem-me puxar pela minha paixão futebolística para fazer uma analogia com dois jogadores de vanguarda, Zlatan Ibrahimovic, sueco de ascendência bósnia e croata, e Mario Balotelli, italiano de ascendência ganesa. Dois egos do tamanho do mundo, ao ponto de um e outro, frequentemente, se compararem a deuses. Dois talentos extraordinários com a bola, duas personalidades complexas, no limite do risco na sua vida pessoal e profissional. Zlatan sempre caminhou na red line, deslizando na borda do precipício. Aos 39 anos, joga no Milan (equipa que lidera o campeonato italiano) e ainda esta época já marcou por cinco vezes dois golos numa partida. Mario, que tinha tudo para chegar ao mesmo nível e jogou nas melhores equipas do mundo, foi expulso de quase todas por comportamentos inaceitáveis recorrentes e, aos 30 anos, joga (até ver…) no Monza, segunda divisão italiana.  

Uma última analogia, esta vinda da experiência pessoal: todos os que fazem ou fizeram competição automóvel sabem que, para ambicionar resultados, é preciso arriscar e andar muitas vezes na faixa vermelha do conta rotações. Mas também conhecem as consequências de um motor partido… 

Tudo isto para, finalmente, falar de vinho. Cada vez aprecio mais vinhos diferenciadores, vinhos que me surpreendem com aromas e sabores que fogem do habitual. Para os fazer, é preciso arriscar, é necessário assumir um certo descontrolo controlado. Ao contrário do que muitos pensam e dizem, a menor utilização de produtos químicos nas videiras e nas cubas, que eu defendo em absoluto, deve corresponder sempre a uma muito maior intervenção física na vinha e na adega. A chamada “enologia de não intervenção ou intervenção mínima”, é uma irresponsabilidade que conduz, quase inevitavelmente, a maus vinhos.  

Só quem sabe muito de viticultura e enologia se pode dar ao luxo de abdicar da segurança e correr riscos. Mas só correndo riscos se criam vinhos que nos seduzem e impressionam pela sua qualidade, originalidade, personalidade. E mesmo com todo o conhecimento, talento e atenção, quem caminha na linha vermelha sabe que, por vezes, as coisas correm mal. Aí há que admitir o falhanço, descartar o vinho, e tentar de novo. Andar na red line não é para todos. Uns são Zlatan. Outros, Mario.

Baga, paixão e razão

Luís Lopes

Editorial da revista nº45, Janeiro 2021 Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, […]

Editorial da revista nº45, Janeiro 2021

Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, identidade, notoriedade e valor, a produtores e apreciadores que procuram tudo isso 

Luís Lopes

A casta Baga e os vinhos que origina (sobretudo) na Bairrada está longe de ser consensual. E não é difícil perceber porquê. A forte personalidade dos seus tintos afasta-a completamente da grande maioria dos consumidores que, muito naturalmente, prefere vinhos com fruta madura e doce e sabor suave e polido. Mas esse mesmo vincado carácter atrai uma legião de fãs, dentro e fora de portas, que ali encontra aromas e sabores que saem fora do mainstream”, independentemente do estilo adoptado por cada produtor. 

Visitei a Bairrada pela primeira vez, na pele de director de uma revista de vinhos, em 1989. Numa época em que pouquíssimos consumidores sabiam o que era uma casta de uva, foi nessa visita que percebi verdadeiramente a Baga. Acostumado a vinhos com alguma idade e de perfil austero e clássico (em 1984, aos 23 anos, o meu primeiro salário de jornalista foi comemorado com uma garrafa de Pasmados!) os tintos da Bairrada foram para mim uma revelação. E nomes como Casa de Saima, Luis Pato, Quinta da Dôna, Quinta de Baixo, Sidónio de Sousa e Quinta das Bágeiras saltaram para o topo das minhas preferências vínicas. Essa paixão pelos Baga da Bairrada solidificou-se com o tempo e com o conhecimento. E ampliou-se mesmo, nos últimos cinco ou seis anos, devido a dois motivos: o aparecimento de novos produtores apostados traduzir a plasticidade da uva em diferentes interpretações, sem perder a identidade que a caracteriza; e a “explosão” dos espumantes Baga-Bairrada que vieram dar outra dimensão e popularidade à casta e, ao mesmo tempo, resolver o problema da Baga inadequada (que existe!) para vinho tinto.  

O trajecto da Baga na Bairrada não tem sido fácil. Se nos anos 90 era inquestionável, nos anos 2000 passou a ser demonizada, culpada de todos os males, acusada de estar desenquadrada das tendências de mercado e ocasionar o descalabro nas vendas dos tintos da região. Pessoas desesperadas tomam, compreensivelmente, medidas desesperadas. De um momento para o outro, a Bairrada tornou-se na Denominação de Origem portuguesa mais permissiva em termos de castas, ao ponto de hoje um Bairrada tinto poder ser feito de, entre outras, Syrah, Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot ou Pinot Noir. E, no entanto, os grandes tintos de Baga, elaborados a partir de vinhas plantadas no local certo e com produção controlada através de monda, mantiveram o seu percurso, continuaram a ganhar notoriedade e valor. Quase duas décadas passadas de uma “liberalização” que regiões como Dão ou Douro, por exemplo, nunca aceitariam, os vinhos mais reputados e valorizados da Bairrada são, hoje e cada vez mais, baseados em Baga. Para chegarmos aqui, no entanto, convém não esquecer aqueles que, rejeitando o canto da sereia dos Merlot e afins, se mantiveram irredutíveis no seu caminho, até o tempo (e o mercado) acabar por lhes dar razão. Luis Pato e Mário Sérgio Nuno, sobretudo eles, são, sem sombra de dúvida, os grandes guardiões da Baga, conseguindo através do seu exemplo de sucesso mudar práticas e mentalidades. Sem eles, a Bairrada seria outra coisa. A entrevista que publicamos nesta edição e que, pela pela primeira vez, fazem em conjunto, é bem ilustrativa do seu percurso, do que os separa, do que os une.  

Na Bairrada, a Baga nunca poderá fazer vinhos baratos e de volume. Mas pode assumir-se, enquanto casta identitária, como determinante para a valorização e notoriedade dos vinhos da região. Num mercado que busca, cada vez mais, a diferença com qualidade, a Baga pode ser, ao mesmo tempo, paixão e razão.