A Escolha do Mestre: Jaen, uma casta com futuro promissor

O interesse que Álvaro Palácios mostrou pelas vinhas velhas da casta Mencia, em Bierzo, no final do século passado foi o factor que ajudou catalizar o renascimento da variedade. Gradualmente seus vinhos foram recebendo atenção de profissionais e consumidores e deram início ao novo capítulo da história dessa cativante casta que em Portugal é conhecida […]
O interesse que Álvaro Palácios mostrou pelas vinhas velhas da casta Mencia, em Bierzo, no final do século passado foi o factor que ajudou catalizar o renascimento da variedade. Gradualmente seus vinhos foram recebendo atenção de profissionais e consumidores e deram início ao novo capítulo da história dessa cativante casta que em Portugal é conhecida como Jaen.
TEXTO Dirceu Vianna Junior MW
FOTOS Arquivo
A origem da casta continua sendo um mistério, mas é provável que tenha surgido não muito distante das fronteiras de Portugal, possivelmente em Salamanca, província de León, onde sua heterogeneidade morfológica é mais acentuada. Poucas referências confiáveis da casta existem antes do período da filoxera. Em Portugal, a casta era praticamente desconhecida até o final do seculo XIX, mas aparece em textos de Garcia de los Salomons em 1914. A genealogia da casta também continuou sendo outro mistério por muitos anos com textos sugerindo afinidade com Cabernet Franc e Graciano. Entretanto um estudo realizado pelo Instituto de Ciencias de la Vid y del Vino da Espanha e a Universidade de Lisboa, entre outras entidades, revelou recentemente Alfrocheiro como pai, e Patorra como mãe. A literatura sugere que a casta chegou em Portugal através de peregrinos retornando do caminho de Santiago da Compostela. De acordo com o Instituto da Vinha e do Vinho já existiam 1.101 ha plantados em Portugal em 1980. As plantações cresceram nas décadas seguintes e hoje totalizam 2.769,47 ha. Jaen adaptou-se muito bem na região do Dão onde hoje estão as maiores áreas plantadas. Aparece também no Douro, Bairrada, Lisboa, Tejo e continua a espalhar-se pelo país. O facto de apreciar os vinhos da região de Bierzo levou o renomado enólogo Rui Roboredo Madeira a plantar Jaen na Beira Interior em 2011.
Jaen no seu Terroir
Paulo Nunes, talentoso enólogo responsável pelos vinhos da Casa da Passarella, identifica principalmente a seleção do terroir como factor determinante, visto que Jaen responde positivamente quando plantada em locais que ajudam retardar o ciclo de maturação para que a fruta seja capaz de manter a acidez à medida que atinge a maturação fenólica. Para Paulo, encostas voltadas ao norte com menor exposição solar e solos que contenham argila são o melhor local. Rui Madeira estabeleceu seus vinhedos em solos argilo-xistosos com exposição sul, enquanto a altitude de 700 metros assegura amplitudes térmicas consideráveis entre dias quentes e noites frescas que auxiliam a manter o a frescura. São essas características, aliadas à contenção da produtividade, inferior a cinco toneladas por hectare, os factores que determinam o estilo e a qualidade do seu vinho. O terroir das Quinta das Maias, situado no pé da Serra da Estrela, aos 600 metros de altitude, consiste de solos porosos de areia granítica com baixa retenção de água. Em dias de verão, a temperatura poder chegar aos 40ºC mas as noites frias ajudam a vinha a descansar e reter acidez. A Jaen é capaz de adaptar-se bem a vários tipos de solo desde que não sejam demasiadamente húmidos.

Jaen no Campo
Apesar de Jaen ser amiga do viticultor, o processo de selecção do material vegetativo é vital. Paulo Nunes explica que no passado a escolha frequentemente priorizava a produtividade. Luís Lourenço, responsável pela produção na Quinta das Maias no Dão, diz que as vinhas foram plantadas usando seleções poli-clonais. Rui Madeira também optou por plantar uma selecção de múltiplos clones e mostra-se contente com o desempenho dos parâmetros qualitativos. Mas a monda verde é sempre necessária, com algumas excepções.
Para Paulo Nunes as mondas são fundamentais, especialmente em vinhas novas. Em vinhedos mais velhos não observa problemas. Além disso, a desfolha junto ao cacho, antes dos bagos começarem a crescer, também é importante pois ajuda afastar os riscos de doenças.
A planta possui porte erecto e, dependendo do solo, é vigorosa. É recomendável controlar o vigor através de poda curta e ter cuidado com a fertilização. Rui Madeira diz que um dos maiores desafios é a gestão da canópia. Dependendo do local onde está plantada Jaen é susceptível a danos com o vento. Para Luís Lourenço a gestão da parede vegetativa é relativamente fácil, ao contrário da Touriga Nacional que exige imenso trabalho.
Os cachos exibem formato cónico e compacto. O tamanho dos cachos e dos bagos, depende da seleção clonal e fertilidade do solo, mas raramente são grandes. Os bagos arredondados, de cor negro-azul e película fina demandam cuidados para evitar ataques de míldio, oídio e podridão, mas Rui Madeira observa que na Beira Interior tem produtividade regular e é pouco sensível a doenças.
Por ser uma casta cujo abrolhamento é tardio, escapa à geada primaveril diz Luís Lourenço. Jaen por regra amadurece precocemente oferecendo uma espécie de seguro de colheita, o que é importante em região como o Dão onde as chuvas de outono podem trazer certos riscos.
Hora da vindima
Na Quinta das Maias é a primeira a ser vindimada, por vezes, a par da Malvasia Fina. Luís Lourenço diz que em anos normais a colheita é feita na segunda semana de Setembro. Paulo Nunes observa precocidade similar e explica que em vinhas velhas é possível estender um pouco o ciclo passando para a primeira das castas tintas, após as brancas. Na Beira Interior, Rui Madeira revela que a colheita pode ocorrer entre a terceira semana de Setembro até à primeira de Outubro, normalmente cerca de quinze dias antes da Tinta Roriz.
O momento certo de fazer a colheita é uma decisão fundamental visto que a janela de vindima para a casta Jaen é curta. Paulo Nunes explica que colher demasiadamente cedo resulta em vinhos com rusticidade e notas vegetais. Por outro lado, colher demasiadamente tarde, pode resultar em vinhos com perfil desequilibrado, principalmente no que respeita à conservação de ácidos. Luís Lourenço analisa a maturação usando refractómetro, fazendo uso de leitura de parâmetros técnicos e levando em consideração a maturação fenólica através de sua avaliação sensorial da película, polpa e grainha. Rui Madeira aponta a maturação fenólica como um dos principais parâmetros. Luís Lourenço diz que é preciso estar alerta pois Jaen perde acidez rapidamente a partir do momento que começa a produzir mais açúcar. De forma geral, Paulo Nunes conclui que os índices polifenólicos são a matriz que ajudam decidir a data da vindima e os açúcares e componentes ácidos são os limitadores que auxiliam tomar a decisão do momento correto.
Rendimento adequado
Quando plantada em local apropriado é capaz de produzir bons vinhos para lote mesmo atingindo dez toneladas por hectare, explica Paulo Nunes. Em vinhas velhas, recomenda não exceder sete toneladas na busca de um produto de qualidade superior. Luís Lourenço confessa que na Quinta das Maia, na década de 90, quando iniciou o trabalho com o objetivo de fazer um varietal de alta gama, adotava uma abordagem conservadora, não deixando a Jaen exceder quatro toneladas por hectare. Anos de experiência os ensinou que é possível obter produções entre as seis e oito toneladas sem que haja decréscimo de qualidade. Excessos de produção resultam em vinhos diluídos, magros, acídulos e com baixo grau alcoólico.

Jaen na Adega
Uma das vantagens da casta Jaen na adega é sua versatilidade. Apesar de ter pouca matéria corante e baixa acidez natural é uma casta moldável além de ser relativamente homogénea na qualidade do produto final. Luís Lourenço declara que Jaen é uma das castas mais delicadas com que trabalha e recomenda prudência. Na Quinta das Mais actualmente é feito o desengace total. No passado, não fazia diferença, pois os vinhos estagiavam entre 5 e 7 anos antes de serem comercializados. Hoje seguem ao mercado mais cedo por isso é preciso evitar taninos desarmoniosos, principalmente se o engaço ainda estiver verde. Para Paulo Nunes, o uso do engaço pode ser uma ferramenta interessante e diz utilizar com mais regularidade. Além disso, prefere apostar em maceração pré-fermentativa para privilegiar a fruta e opta por fazer vinificações mais longas. O oposto de Luís Lourenço que adianta que é comum retirar o Jaen das massas antes mesmo da fermentação terminar. Rui Madeira também opta pelo mínimo de maceração para evitar quaisquer traços vegetais.
Um dos principais desafios durante o processo de vinificação é fazer a extracção com delicadeza pelo fato da película ser frágil. É preciso cautela para não destruir as películas durante as remontagens para evitar a extração de taninos sub-maduros. Uma das soluções, segundo Luís Lourenço, é apontar a mangueira de remontagem para as laterais da cuba de fermentação para que o mosto filtre pelo perímetro do manto conseguindo a extração desejada sem comprometer a integridade da casta e o equilíbrio do vinho.
Rui Madeira observa que as fermentações espontâneas são uniformes, sem problemas nutritivos e prefere vinificação em cubas de cimento que na sua opinião causa menos stress nas leveduras. Paulo Nunes concorda com o uso de cimento e prefere cuba fechada que permite diminuir a acção mecânica e aumentar o tempo de contato com as massas vínicas. A opção preferida para Luís Lourenço é fermentar em inox buscando temperaturas entre 25º e 28º Celsius. Ocasionalmente opta por estagiar o vinho em barricas, se necessário. Nesse caso prefere barricas velhas buscando principalmente a micro-oxigenação e não que o vinho fique marcado pelos aromas e sabores associados aos barris. Paulo Nunes também facilmente dispensa barrica, mas quando necessário concorda com o uso de barricas velhas. O uso exagerado de madeira resulta na perda da definição e tipicidade da casta.
Na opinião de Luís Lourenço, Jaen é a melhor casta para arredondar lotes, seja para amaciar os taninos firmes da Touriga Nacional ou equilibrar a ríspida acidez do Alfrocheiro, mas para fazer um vinho varietal exige atenção. Um pequeno descuido pode comprometer o trabalho de um ano inteiro. Jaen é capaz de fazer vinhos que estão prontos para consumir mal acaba a fermentação, sendo ainda capaz de ganhar complexidade com estágio em garrafa.
O perfil do vinho
Com rendimento produtivo controlado, os vinhos exibem boa cor juntamente com aromas de frutos silvestres maduros como mirtilo, framboesa, cerejas e amoras. São vinhos elegantes e suficientemente macios para o consumo imediato. Os melhores exemplos possuem a capacidade de envelhecer, como é o caso do Quinta das Maias 1996 degustado durante a visita de um grupo de Masters of Wine à propriedade em 2019. Apesar da exuberância da fruta fresca se ter dissipado, o vinho foi capaz de exibir elegância e complexidade, acompanhado de um final de boca agradável e persistente. De forma geral, não são vinhos potentes mas possuem harmonia. São vinhos completos sem excesso de qualquer de seus componentes. Luís Lourenço revela que em anos mais frios o estilo pode aproximar-se de um elegante Pinot Noir. Em anos mais quentes a fruta exuberante pode fazer lembrar um Syrah, mas pode também demonstrar características que fazem recordar Cabernet Franc.
Jaen apresenta uma estrutura suave o que significa que são vinhos que podem ser bebidos ligeiramente refrescados. Seus taninos sedosos fazem da casta um parceiro ideal para harmonizar petiscos, lombo suíno, risotos, massas, pizzas, carnes grelhadas, bacalhau e também pratos apimentados da cozinha internacional de países como India e México. Sua delicadeza faz do vinho um bom parceiro para pratos da cozinha Japonesa.
Demanda de Mercado
Para Rui Madeira o consumidor que prefere vinhos encorpados, concentrados e estruturados, raramente aprecia Jaen. O facto de ser uma casta maioritariamente plantada na região do Dão e raramente aparecer como vinho varietal resulta na falta de reconhecimento por parte do consumidor Português. Quinta das Maias produz cerca de 5000 garrafas e recebe atenção de vários clientes internacionais, principalmente japoneses. Paulo Nunes também aponta Japão juntamente com Canadá como mercados de grande potencial. Com o crescimento do interesse nos mercados internacionais, certamente ajudará a receptividade pela casta no mercado doméstico no futuro.

O Futuro
Graças ao trabalho feito principalmente pelos produtores espanhóis o interesse pela casta vem crescendo e os vinhos gradualmente ganham espaço no mercado internacional. Mesmo assim, continua sendo uma casta apreciada principalmente por conhecedores. Por esse motivo é preciso continuar trabalhando na comunicação, destacando as semelhanças com Mencia mas ao mesmo tempo sublinhando as características exclusivas do terroir português. Estabelecer vinhedos em parcelas adequadas, e não em zonas menos privilegiadas como frequentemente é o caso, trabalhar visando rendimentos inferiores em busca da excelência e ter um objetivo claro com relação ao estilo desejado desde o início do processo, são alguns dos factores que certamente ajudarão desenvolver a qualidade e consequentemente a apreciação por esta casta.
Para demostrar seu verdadeiro potencial é necessário um maior número de vinhos varietais e não pensar em Jaen somente como um componente de lotes, muito menos tratar Jaen como outra casta qualquer. É preciso respeitar as particularidades da casta e fazer o trabalho de vinificação mais subtil, buscando salientar sua delicadeza, textura e elegância.
Entre os vários atributos que a casta possui, existem algumas características principais que poderão fazer dela uma das castas do futuro em Portugal. Jaen adapta-se bem ao stress hídrico portanto está bem posicionada para enfrentar as mudanças climáticas do futuro.
A mentalidade imediatista do ser humano, que cada vez mais busca soluções instantâneas, faz da casta uma boa proposta, pois está pronta para o consumo quase que imediatamente, sem exigir anos em garrafa. Esse factor também é uma vantagem para o produtor que pode capitalizar pelo seu trabalho mais cedo. Além disso, o seu perfil atraente, sedoso, é fácil de apreciar e fácil de harmonizar com a gastronomia internacional. Esses são alguns dos principais atributos que contribuirão para que a Jaen seja uma das castas do futuro.
GPS: Chegou ao seu destino

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de […]
O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de irritante entre os que os olhos vêem e o que as máquinas nos dizem. O material nem sempre tem razão.
Luís Francisco
Não sei se é uma tendência universal ou apenas mais uma das minhas manias. Considero-me uma pessoa de bom feitio, mas assumo a solene embirração que cultivo com as vozes dos aparelhos de GPS. Todas. De todos os aparelhos. Embirro tanto que evito ao máximo utilizar a tecnologia que – dizem – nos leva a todo o lado sem desnecessárias perdas de tempo, seja a decifrar pistas na desconcertante sinalética das nossas estradas, seja no contacto verbal com os locais que, as mais das vezes, muito falam e nada explicam.
Infelizmente, não nasci com capacidades de navegação nem sentido de orientação apurado que me permitam abdicar sem prejuízo das ajudas à navegação. E, portanto, de vez em quando lá tenho mesmo de escutar as directivas deterministas de quem me aconselha, “por favor”, a “abandonar a rotunda na segunda saída” – leia-se: é para seguir em frente – ou a, “dentro de 600 metros, seguir pela esquerda” na auto-estrada – que é, adivinharam, como quem diz para continuar na mesma via.
Para espiar o pecado capital de ceder à tentação da papinha feita em termos de adivinhar o caminho do ponto “a” ao ponto “b” sem passar pela casa da dúvida, obrigo-me a uma série de penitências. Primeiro, colecciono todas as histórias que me chegam ao conhecimento de gente que se perdeu ou se meteu em sarilhos por seguir cegamente o GPS, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos para o que está à sua frente. Acreditem, não são assim tão poucas como isso e algumas com consequências desastrosas. Por outro lado, anoto fervorosamente todos os erros que detecto nas infernais maquinetas. Se a 950 metros de altitude o sistema de navegação indica 976, isso quer dizer que, umas dezenas de quilómetros antes, quando a indicação era de 14 metros de altitude, na verdade estávamos abaixo do nível do mar? Não quero ser alarmista, mas com isto do aquecimento global e da subida dos oceanos, dá para desconfiar…
Mas então, perguntará o leitor que teve a paciência de me acompanhar até este quarto parágrafo, se este tipo abomina assim tanto os sistemas de navegação, por que motivo foi dar o nome “GPS” a estas crónicas? Bom, a explicação é simples. Quando surgiu a ideia de recordar histórias passadas por esse país profundo em busca dos vinhos e dos enoturismos que nos encantam, a primeira história que me veio a cabeça foi a que se passou à chegada à Fundação Eça de Queiroz, ali para as bandas de Baião. Nessa breve, mas intensa, experiência congregaram-se os dois pecados originais da “gpsdependência” humana nos dias que correm: erros da máquina e cérebro humano desligado. Isso e um motorista de autocarro com sonos atrasados. Mas já lá vamos.
Tão perto e tão longe
“Chegou ao seu destino.” A voz do sistema de navegação – não sei se já vos disse que embirro com elas todas… Já? OK, adiante – soou calma, impessoal e autoconfiante como sempre. Mas estava tudo errado. Primeiro, não tínhamos chegado a lado algum. Segundo, aquilo onde estávamos não era um destino. Nem sequer um meio. Parecia mais um fim. Do mundo. A estrada de terra batida desaparecera e a vegetação dava-nos pela altura da janela. Se isto era a Fundação Eça de Queiroz, então o Parque Nacional da Peneda-Gerês seria a Biblioteca Nacional…
Paramos o carro e respiramos fundo. Como é que deixámos esta coisa guiar-nos até ao mato profundo sem desconfiarmos de que algo estava errado? A primeira tentação foi apontar a culpa ao sono desbragado do motorista do autocarro estacionado lá em baixo na estrada nacional, mas convenhamos que nenhum dos dois ocupantes da viatura tinha idade para se agarrar a desculpas infantis… Prometo que não me esquecerei de explicar esta cena do motorista, mas primeiro convém assumir que durante um breve período a evolução da espécie homo sapiens para homo sapiens sapiens se tornou uma falácia quando confrontada com os dois espécimes que ali coçavam a cabeça no meio de uma paisagem belíssima, mas completamente destituída de qualquer sinal de civilização.
“Chegou ao seu destino” em que aspecto? Seria o nosso destino regressar às origens primitivas e tornarmo-nos caçadores-recolectores naquele prado viçoso rodeado de grandes montanhas? A Fundação Eça de Queiroz, afinal, não existia e tínhamos feito centenas de quilómetros atrás de um embuste? Ou – hipótese igualmente válida naquele momento de estupor – não estávamos a ler bem a paisagem e havia mesmo ali uma casa, vinhas e muitas histórias para descobrir? Na dúvida, o melhor era sair do carro e descobrir.
Saímos. E logo percebemos que, à nossa frente, para lá da estrada nacional que de repente voltamos a descobrir, havia um desvio que descia para um vetusto conjunto de edificações em pedra, coberta por heras e rodeada de vinhas e árvores. À nossa frente, mas uns 20 metros abaixo do local onde nos encontrávamos… O erro do GPS tinha sido minúsculo, mas a barreira vertical era intransponível. Há pouco tínhamos passado naquela mesma estrada, lá ao fundo, e falhado o desvio. Seguiu-se uma bem-intencionada tentativa do GPS para nos fazer dar a volta, enviando-nos por uma estrada secundária, primeiro, depois por ruas estreitas numa aldeia deserta e, finalmente, por picadas cada vez mais residuais até ao esquecimento total do mato.
O sono dos justos
Após uma audaz inversão de marcha, regressámos à estrada e entrámos então no desvio para a Casa de Tormes, onde Eça de Queiroz remoeu saudades dos salões de Paris e escreveu algumas das melhores prosas da sua obra imortal. O caminho era óbvio e até estava sinalizado. Como fôra possível falhá-lo na primeira passagem? E então lembrámo-nos do motorista do autocarro.
Menos de 500 metros antes do desvio, à saída de uma curva do caminho, estava um autocarro estacionado na berma, o compartimento das bagagens aberto. De lá saíam as pernas de alguém que ali encontrara uma sombra para repousar. Tudo bem, quem somos nós para recusar a alguém o direito inalienável de passar pelas brasas? O problema é que, com o tronco metido dentro do compartimento, aquela alma sofredora acabara por estender as pernas, que agora invadiam o asfalto. A guinada do nosso carro terá sido silenciosa, ou então o sono era muito pesado, porque quando olhámos pelo retrovisor ele não se mexera, ignorando completamente o facto de que, instantes antes, poderia ter ficado umas dezenas de centímetros mais baixo…
Comentámos o incidente entre o divertido e o alarmado, debatemos brevemente a hipótese de voltarmos para trás para avisar o homem, fizemos piadas sobre a eventual graduação dos vinhos de Tormes. Enfim, distraímo-nos por completo, falhámos o desvio e confiamos cegamente nas indicações do GPS. E lá fomos parar ao fim do mundo. Sem podermos sequer invocar a desculpa de termos passado pelas brasas no processo.
Artigo da edição nº37, Maio 2020
Bechamelo: A importância de ser restaurador

Estamos em plena era dos chefs, são muito poucos os que na juventude decidem ir formar-se para ser empregados de mesa e quase nenhuns a querer simplesmente ser restauradores, com tudo o que vem com a profissão. É no, entanto, aí que está o ponto fulcral da operação e êxito de um restaurante. Como é […]
Estamos em plena era dos chefs, são muito poucos os que na juventude decidem ir formar-se para ser empregados de mesa e quase nenhuns a querer simplesmente ser restauradores, com tudo o que vem com a profissão. É no, entanto, aí que está o ponto fulcral da operação e êxito de um restaurante. Como é que se inverte esta tendência?
Fernando Melo
Sempre venerei as segundas linhas, assim como sempre me impressionaram mal as ribaltas prematuras. Penso que decorre da natureza de qualquer profissão exercida de corpo e alma, preferir o trabalho à fama, assim como procurar a excelência em todos os detalhes. A profissão de restaurador – o melhor termo que encontrei até hoje – é além do ponto de convergência de todas as funções na operação de um restaurante, a mais importante de todas elas. As atribuições mais importantes são justamente aqueles por que ninguém dá, à excepção de quem tem muitos anos de experiência na área. E essa é a primeira grande razão para a falta de vocações, bem mais grave que a falta de cozinheiros ou empregados de mesa.
Quando se pensa num restaurante a partir do zero, junta-se normalmente uma equipa de especialistas para trabalhar conjuntamente no projecto. Tenho visto e acompanhado alguns desde o início dos inícios, com reuniões em chão de cimento cru e pontos de água e gás a brotar do chão sem perceber exactamente para quê. Há um arquitecto que trata de layouts de sala, iluminação, cores e mobiliário, que trabalha – quase sempre mal – juntamente com um projectista de cozinhas de produção, que juntos vão engendrando um orçamento que nunca se fica pelos números previstos; excede duas ou três vezes o que se pensava. E foi sempre porque não existia a figura do restaurador. Do homem que não espera pelo parecer do arquitecto; antecipa-se-lhe e faz o programa – é assim que se diz – para o espaço. Culpa-se frequentemente o arquitecto pelos desmazelos encontrados na exploração de um restaurante, quando o que aconteceu foi simplesmente o programa não ter sido pensado por alguém com experiência de facto. A pessoa de quem falamos é a única que pensa em tudo, e a quem depois se pede contas de tudo, sobretudo erros. É quem tem o peso da responsabilidade. Quantas vezes aspectos triviais de conforto tais como ruído, som e reverberação só são olhados depois da abertura, com custos brutais acrescidos? E a qualidade do som, quem a pensou? É um de mil pormenores de que invariavelmente todos os envolvidos se demitem, dizendo simplesmente que ninguém lhes disse. É por isso que não só não é fácil ter um restaurante como não querendo entrar por essas especificidades é melhor nunca chegar a ter.
São muito raros os chefs que têm esta percepção global e ao mesmo tempo minuciosa das frentes de operação de um restaurante. Os seus conhecimentos quando muito são úteis na definição inicial da cozinha, copa e espaços adjacentes, e mesmo assim nem sempre têm conhecimentos suficientes para as decisões que tomam. A figura do gestor – restaurador – é muito importante, é uma espécie de timoneiro que sabe sempre para onde está o barco a ir. Fico sempre muito nervoso quando vejo um chef na televisão num daqueles programas que aceitaram fazer, a opinar sobre a luz, o conforto, os equipamentos e até a salubridade, muitas vezes sem saber bem o que estão a dizer. Digo isto porque infelizmente nem os aspectos culinários fundamentais estão bem dominados e às vezes é de deitar as mãos à cabeça, tal a impreparação. De nada adianta encenar – é de encenação que se trata – aberturas dramáticas de câmaras frigoríficas com tudo podre e o chef aos gritos para impressionar, até porque nesse ponto já não há nada a fazer, para além de deitar tudo para o lixo, limpar e repor stocks. Pelo menos tem solução; a falta de cultura de restauração não. E o meu pensamento enquanto estou a ver esses programas vai para os restauradores, proprietários, directores, chamem-lhe o que quiserem, que sustentam a verve e o topete com que os chefs falam em tom de julgamento. Acho que está tudo mal.
O bom restaurador é não só uma pessoa com experiência e solidez de conhecimentos, como também e principalmente um motivador. Enternece-me o carinho que vejo na forma como grandes profissionais da nossa restauração promover os que trabalham consigo. E na operação na sala é muito fácil perceber isso, sobretudo pela coreografia com que se movimentam, mas sobretudo pela empatia que revelam ter. O chef tem de estabelecer os standards de serviço de cada prato e isso tem de ser reavivado todos os dias, talvez até antes de cada serviço, o chef de sala tem de governar o trabalho todo de serviço e fluxos de trabalho, mas mesmo perante as brigadas mais brilhantes, a figura do nosso restaurador é determinante. Não há dois dias iguais e as pessoas não são autómatos; tem de existir o “middleman” para adaptar o serviço à sala, e a cozinha ao serviço. A formação é a um tempo a tábua de salvação de uma casa e a garantia de regeneração. Escolher dois ou três colaboradores e ir com eles a outros restaurantes, chamando-lhes a atenção para pormenores e puxando pelo seu sentido crítico para que vão dizendo o que lhes parece. Viajar é outro aspecto crítico que na medida do orçamento disponível deve ser posto em prática. Não há formação específica nas escolas de hotelaria para esta figura especial que afinal é aquela de quem falamos quando falamos das casas onde nos sentimos bem. Agora já sabemos como se chama: restaurador.
Artigo da edição nº43, Novembro 2020
Online

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Editorial da revista Nº43, Novembro de 2020
A internet aumentou desmesuradamente o seu peso nas nossas vidas profissionais (e pessoais!) desde março de 2020. No sector do vinho, a verdade é que o online, não resolvendo nada e, muito menos (longe disso), substituindo a interação pessoal, atenua os efeitos que o distanciamento social nos impõe. E em algumas áreas, quando bem usadas, as soluções online são de tal forma eficazes que, acredito, nunca mais voltaremos a trabalhar como antes da pandemia.
Luis Lopes
Reuniões, apresentações, vendas, muito do que fazemos hoje deixou de ser presencial e passou a virtual. No meu caso, nunca acreditei naqueles que, quando o covid-19 dinamitou os negócios, apontaram o e-commerce como solução milagrosa. Hoje, a grande maioria dos produtores de vinho portugueses possui uma loja online ou trabalha com um parceiro nessa área, mas quase todos confessam que as vendas são residuais.
No que respeita à comunicação produtor/líderes de opinião ou produtor/consumidor, também, confesso, desconfiei da eficácia do online. As muitas apresentações de vinhos a que assisti através das habituais plataformas (Zoom, Teams…) reforçaram essa desconfiança. Algumas foram absolutamente patéticas, com produtores calados e estáticos enquanto meia dúzia de jornalistas e sommeliers provavam, igualmente sisudos, o vinho que fora enviado para casa, interrompendo o desconfortável silêncio com uma ou outra pergunta do tipo “que grau tem este vinho?” mostrando que nem a ficha técnica do produto se tinham dado ao trabalho de consultar.
No entanto, no meio de tudo isso, uma ou outra apresentação dinâmica, bem conseguida, interventiva, sugeriu-me que o online poderia funcionar como ponte de comunicação, desde que bem utilizado. Recentemente, dois eventos completamente distintos, derrubaram as minhas dúvidas e revelaram-me o enorme potencial da ferramenta que temos em mãos.
Num deles, participei como convidado na adega de um produtor, enquanto através do Zoom era feita a apresentação de um vinho para um grupo de 20 jornalistas e sommeliers de topo no Brasil. Não foi uma apresentação vulgar. Espalhados pela gigantesca metrópole de São Paulo, esses 20 profissionais receberam, ao mesmo tempo, um kit composto por um prato de bacalhau elaborado por um famoso restaurante de cozinha portuguesa e um frappé selado com garrafa e gelo.
Na adega, um ecrã de grande formato revelava as caras dos participantes, incluindo o importador local. O almoço decorreu como se estivéssemos todos na mesma sala. O produtor, e eu próprio, fomos bombardeados com perguntas interessantes e interessadas, ouvidas e respondidas mais facilmente do que se nos encontrássemos numa comprida mesa. Saí dali a pensar que: primeiro, a acção deve ter saído muito mais barata ao produtor do que se tivesse voado para São Paulo e pago a refeição num restaurante; segundo, muitas daquelas pessoas nem sequer iriam comparecer no restaurante e ali estavam todas, confortavelmente, em suas casas; terceiro, nenhum deles se vai esquecer nem do momento nem do vinho.
O outro evento foi muitíssimo mais ambicioso, na escala e nos meios envolvidos. Nunca, no mundo, se fez algo como o Vinhos de Portugal, realizado nos dias 23, 24 e 25 de outubro e transmitido online para os domicílios de quase 1100 pessoas, que compraram os bilhetes (com a opção de packs de vinhos) no Brasil e em Portugal. O evento dos jornais Público, O Globo e Valor Económico, em parceria com a Viniportugal, e em que tive o privilégio de participar como um dos orientadores das sessões, realizou 62 lives/entrevistas de 25 minutos com produtores e 16 provas temáticas de 60 minutos. A milhares de quilómetros do local da acção, grupos de amigos e famílias abriam as garrafas recebidas, assistiam às provas, questionavam oradores e produtores.
O enorme sucesso desta iniciativa substitui o contacto pessoal e a interacção numa sala de provas? Não, definitivamente. Mas evidenciou-se como um modelo alternativo, agora, e complementar, no futuro. O online é uma ferramenta, como um martelo ou um automóvel. Posso estragar uma parede quando queria pregar um prego ou atropelar alguém quando apenas pretendia levar-me a um local. No fundo, o online não é mais do que o reflexo das pessoas que o usam.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/1″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][divider line_type=”Full Width Line” line_thickness=”1″ divider_color=”default”][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/3″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_column_text]
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A Escolha do Mestre: Syrah, uma casta em ascensão

É, muito provavelmente, a casta estrangeira mais bem sucedida em Portugal, mostrando-se como aquela que reúne amplo consenso entre viticultores, enólogos e consumidores. Muito adaptável a diversos tipos de solo e clima, bastante consistente na qualidade colheita após colheita, a Syrah tem tudo para dar certo. TEXTO Dirceu Vianna Junior MW A Syrah destaca-se com […]
É, muito provavelmente, a casta estrangeira mais bem sucedida em Portugal, mostrando-se como aquela que reúne amplo consenso entre viticultores, enólogos e consumidores. Muito adaptável a diversos tipos de solo e clima, bastante consistente na qualidade colheita após colheita, a Syrah tem tudo para dar certo.
TEXTO Dirceu Vianna Junior MW
A Syrah destaca-se com sucesso em diversas regiões produtoras do mundo. É uma casta fácil de cultivar e possui capacidade de se adaptar a condições distintas. Retém o carácter da varietal e ao mesmo tempo é capaz de expressar as diferenças do terroir. Além de oferecer flexibilidade com relação ao estilo é capaz de atingir alto padrão. Vinhos clássicos como Hermitage fortalecem a associação com vinhos de alta qualidade e servem como fonte de inspiração e referência. O facto de ser uma casta produtiva atende o interesse financeiro do produtor e por originar vinhos frutados, harmoniosos e fáceis de apreciar contribui com o apelo que possui perante ao consumidor. O nome da casta aparece no rótulo como Syrah ou Shiraz, mas também é conhecida como Antourenein noir, Balsamina, Candive, Biône, Entourneréin, Hermitage, Hignin noir, Marsanne Noir, Serine, Sérine, Serinne Sereine, Sérène, Sira, Sirac, Sirah, Syra, Syrac e Schiras.

Lendas românticas e evidências científicas
Existem várias teorias sobre a origem da casta. Uma versão diz que Syrah é proveniente da antiga cidade persa de Shiraz, actual Irão. Outra indica que a civilização Grega poderia ter trazido a uva para a colónia fundada ao redor de Marselha, enquanto alguns acreditam que ela poderia ter sido trazida para a França do Chipre por guerreiros retornando do Oriente Médio após as cruzadas no século XIII. Há especulações de que a variedade foi trazida de Siracusa pelas legiões do imperador romano Probus após o ano 280. Todas essas teorias foram descartadas após o estudo realizado por Carole Meredith, pesquisadora do Departamento de Viticultura e Enologia da Universidade da Califórnia, que através de estudos de DNA concluiu-se que Syrah é descendente de uma varietal tinta chamada Dureza, originária de Ardèche, e uma branca nativa da região de Savoie chamada Mondeuse Blanche. Não há registos de que essas varietais tenham sido cultivadas juntas em outros locais, o que fortalece a hipótese de que o cruzamento tenha de facto ocorrido na região dos Alpes do Ródano. Além disso, o cientista suíço José Vouillamoz descobriu uma relação genética de segundo grau entre Syrah e Pinot Noir. A descoberta dos pais e a ligação com Pinot Noir fortalecem a crença de que a origem da casta seja mesmo francesa.
Fácil de cuidar na vinha
Syrah adapta-se muito bem às encostas ensolaradas e quentes, mas não suporta calor em demasia. Prefere solos não excessivamente férteis e bem drenados, especialmente granito e solos pedregosos. A vinha é vigorosa, mas o porte erecto facilita a condução da parede vegetativa diz Amílcar Salgado, proprietário da Quinta de Arcossó em Trás-os-Montes. A forma de condução varia dependendo das condições edafo-climáticas, mas é recomendável assegurar que a planta esteja bem arejada para evitar doenças de fungos. Na Quinta do Monte d’Oiro, em Alenquer, região de Lisboa, Francisco Bento dos Santos, director geral, explica que Syrah é pouco vulnerável a doenças. Amílcar Salgado concorda e diz que a planta raramente é afectada pelo míldio ou oídio, pelo que dois tratamentos anuais geralmente são suficientes. Em condições mais frias é aconselhável retirar as folhas do lado nascente e expor os cachos para optimizar a acção do sol da manhã, mas deixar as folhas do lado poente para evitar que a fruta sofra escaldão com os raios mais intensos da tarde. Em climas quentes, especialmente em solos que emitem calor durante a noite, é recomendável afastar a fruta da superfície do solo em busca de condições mais frescas. É necessário ter cuidado especial na seleção de porta-enxertos pois Syrah é sensível à clorose. Em solos ricos em cálcio, são preferíveis R110 e SO4. Além disso a Syrah é sensível ao ataque de ácaros e pode sofrer morte prematura devido uma infecção que ocorre na junção entre a planta e o porta enxerto. O facto de Syrah abrolhar tarde diminui o perigo de perdas com geadas, explica Amílcar Salgado. O amadurecimento ocorre no meio período que na Quinta de Arcossó coincide com a maturação da Touriga Nacional, mas a janela de oportunidade para efectuar a colheita é reduzida e os bagos logo tendem a murchar. Por isso, é importante não colher a fruta demasiadamente tarde para evitar sobrematuração e consequentemente vinhos pesados, alcoólicos e sem frescura alerta Manuel Lobo, enólogo chefe da Quinta do Crasto, no Douro. Na Quinta do Monte d’Oiro, Francisco Bento dos Santos diz que estudos feitos inicialmente revelaram semelhanças com as condições com o vale do Ródano. A quinta localizada na freguesia da Ventosa faz lembrar as condições impostas pelo afamado vento Mistral, um dos motivos pelo qual não hesitaram em plantar Syrah e Viognier. O excesso de produção pode resultar em mostos com pouca expressão. Produtores que visam qualidade frequentemente optam em fazer a monda em verde para diminuir o rendimento. Amílcar Salgado explica que o volume de produção ideal para fazer um vinho varietal de Syrah de excelente qualidade na Quinta de Arcossó gira em torno de 1,5 a 2 kg por planta, cerca de 50 hl/ha. Na Quinta do Monte d’Oiro, Francisco Bento dos Santos trabalha com produções baixas, na casa dos 40 hl/ha, para os vinhos de entrada e para os vinhos de topo procura não exceder 20 hl/ha. Manuel Lobo acredita que Syrah não é uma casta difícil de lidar. O segredo para atingir excelência, na Quinta do Crasto, é praticar viticultura de precisão prestando atenção aos pequenos detalhes, principalmente na hora da colheita.

Consistente na adega
O método de vinificação varia de acordo com o estilo desejável, da filosofia do enólogo e condições climáticas. Amílcar Salgado, da Quinta de Arcossó, explica que Syrah oferece muita riqueza fenólica e é de fácil extração. Métodos de vinificação variam entre tradicional e moderno com alguns produtores optando por fazer maceração carbónica parcial buscando vinhos leves e frutados. O uso de engaços está se tornando mais amplamente utilizado pois adiciona estrutura e uma impressão de frescor ao vinho. Temperaturas elevadas, além de acelerar o processo, resultam em maior extracção, mas exageros na hora da vinificação tornam os vinhos duros e agressivos. Por outro lado, temperaturas inferiores e extrações delicadas podem comprometer a cor, plenitude aromática e a estrutura dos vinhos. Na Quinta de Arcossó, Amílcar Salgado prefere vinificar em lagar e a extração é feita à moda antiga, com o pé. Para Francisco Bento dos Santos o segredo, além de controlar o rendimento, é preservar aromas durante a vinificação, vigiar a nutrição das leveduras, controlar a temperatura e prolongar as fermentações. Syrah, é uma casta redutiva e a falta de oxigênio pode comprometer a limpidez e resultar em aromas como borracha queimada ou, em casos extremos, ovo podre. Syrah responde muito bem ao envelhecimento em barricas de carvalho, tanto francês como americano, revelando notas de cravo, baunilha, coco, café e especiarias. Além de responsável por excelentes vinhos varietais a casta é utilizada em lotes. Ajuda a acrescentar cor e corpo a Grenache nos vinhos do sul do Ródano. Pode aparecer também ao lado de Mourvèdre e Cinsault. Na Austrália frequentemente aparece ao lado da Cabernet Sauvignon. A casta responde muito bem quando acompanhada com uma proporção minoritária de Viognier, a qual contribui com notas florais e ajuda melhorar a textura. Além disso a natureza fenólica da Viognier ajuda o Syrah, que é rico em antocianinas, a estabilizar a sua cor. A grande maioria dos vinhos monocastas estão prontos para beber assim que lançados, embora os melhores exemplos envelheçam por décadas desenvolvendo notas de ervas secas, tabaco, fumaça, carne curada, bacon, terra molhada, couro, alcatrão e trufas.
Syrah ou Shiraz?
A casta dá origem a vinhos expressivos e oferece ampla diversidade de perfis, dependendo do clima e do solo onde está cultivada, bem como das decisões tomadas pelo enólogo. Produtores de regiões de clima mais frio, tanto no Velho Mundo quanto no Novo Mundo, tendem a identificar seus vinhos como Syrah. Os vinhos rotulados como tal possuem um perfil semelhante aos estilos clássicos do norte do Ródano. Em geral, esses vinhos possuem cor profunda. No palato tendem a ser esbeltos, exibem acidez viva, níveis moderados de álcool, entre 13 e 14% e estrutura firme. Os aromas elegantes mostram complexidade através de notas de frutas vermelhas e frutas negras, pimenta preta, ervas, fumaça, bacon, notas florais e podem revelar um toque de salinidade.
A casta é capaz de interpretar o terroir revelando características precisas e distintas. Um vinho de Hermitage, por exemplo, é firmemente estruturado, tânico, com caráter mineral, frutas negras e toques animais, de especiarias e torrefação. Côte-Rôtie é um vinho mais esbelto, refinado com notas de pimenta e violetas. Saint Joseph revela um estilo mais leve. Os vinhos de Cornas são mais rústicos enquanto os vinhedos de Crozes-Hermitage, ao redor da denominação de Hermitage, fazem vinhos mais acessíveis e oferecem excelente relação entre custo e benefício.
No sul do Ródano, Syrah é mais frequentemente usada como uma uva de lote para adicionar cor e estrutura aos vinhos de Châteauneuf-du-Pape, Gigondas e Côtes du Rhône. Na França, Syrah também aparece nas denominações de Costières de Nîmes, Corbières, Fitou, Faugères, St-Chinian, Languedoc (Pic St-Loup) e Minervois (La Livinière). Entre os melhores exemplos estão J. Chave, Paul Jaboulet Aîné La Chapelle ou Chapoutier Le Pavillon. No Novo Mundo, esse estilo pode ser encontrado no AVA de Walla Walla nos Estados Unidos, Hawkes Bay na Nova Zelândia e San Antonio, no Chile, para citar apenas alguns.

Quando cultivada em clima quente, a terminologia usada nos rótulos é Shiraz, uma prática que se tornou popular na Austrália. Shiraz tende a descrever um vinho frutado, encorpado e expressa um estilo mais exuberante refletindo um clima mais ensolarado. A cor é tipicamente profunda ou opaca. A expressão aromática inclui amoras, mirtilos, cerejas escuras, ameixas, alcaçuz, hortelã, eucalipto, chocolate amargo e uvas passas.
Na boca oferece boa concentração, textura aveludada e taninos redondos. A acidez é equilibrada e os níveis de álcool facilmente excedem 14% podendo ultrapassar 15%. Algumas das melhores referências desse estilo são encontrados no vale de Barossa, na Austrália. Os vinhos são positivamente untuosos, encorpados, densos, alcoólicos e exibem frutas negras, chocolate e menta. O vale possui alguns dos vinhedos comerciais mais antigos do mundo, como o Langmeil Freedom plantado em 1843 e Turkey Flat plantado em 1847, o que ajuda explicar a excepcional concentração. O clima marítimo de McLaren Vale origina vinhos encorpados, com estrutura mais ampla, frutas negras, chocolate, textura sedosa, mas não deixam de ser potentes. Em Clare Valley, os vinhos combinam intensos sabores de frutas negras e alcaçuz com excelente acidez devido às noites frias que ajudam dar estrutura e assegurar que os vinhos envelheçam bem. Os vinhos de Padthaway e Coonawarra são esbeltos e exibem acidez elevada. Também nas partes mais frias do estado de Victoria, como Mount Langi Ghiran, os vinhos produzidos apresentam excelente frescor e frequentemente é possivel detectar toques de pimenta preta e menta. O clima de Hunter Valley, em New South Wales, é quente mas sem excessos. Os vinhos exibem corpo médio, acidez viva, frutas escuras e tons terrosos. Na parte oeste da Austrália os vinhos mostram boa definição, firmeza e acidez crocante, frutas escuras maduras e sumarentas. Além das diferenças no perfil a casta Syrah demonstra versatilidade devido sua capacidade de originar vinhos rosé, espumantes e fortificados de boa qualidade.
Da ascensão à fama
Syrah ganhou notoriedade através dos vinhos de Côte-Rotie e Hermitage, no norte do Ródano. Como prova uma pequena capela no topo de uma colina, nas margens do rio Rhone, com vista para a cidade de Tain-l’Hermitage, vem atraindo o interesse de enófilos por décadas, mas nem sempre foi assim. Antes das regras das denominações de origem entrarem em vigor, na primeira metade do século XIX, os vinhos de Hermitage eram frequentemente usados em lotes com o objetivo de adicionar cor e estrutura aos vinhos de Bordéus. Durante a primeira metade do século XX, devido a falta de interesse, a varietal perdeu espaço na vinha. Foi apenas nos anos 80 que artigos e avaliações de críticos ajudaram reascender o interesse e a superfície plantada ao redor do mundo aumentou para mais de 140.000 hectares (ha) nas três décadas seguintes. Estima-se que as plantações da Syrah actuais estão na casa dos 186.000 ha. França e Austrália dominam as plantações com 68.600 ha e 42.492 ha, respectivamente. Na Europa os principais plantadores de Syrah são Espanha (19.830 ha) e Itália (6.880 ha). No Novo Mundo os principais produtores são Argentina (12.245 ha), África do Sul (10.117 ha), Estados Unidos (9.308 ha) e Chile (7.994 ha).

Syrah em Portugal
Em Portugal, Syrah aparece principalmente no Alentejo, Lisboa, Tejo e Península de Setúbal. Antes do ano de 1980 apenas 10,82 ha existiam no país. Entre 1981 e 1990 foram adicionados 35,49 ha e mais 309 na década seguinte. O grande impulso veio entre 2001 e 2010 quando foram plantados 2.592 ha. Após 2011 foram somados 2.777 ha levando a área total para 5.725 ha, de acordo com António Lopes, Técnico Superior do Instituto da Vinha e do Vinho. Syrah representa 3% das plantações ocupando a décima colocação no ranking das castas mais plantadas no país. Quinta da Lagoalva de Cima foi uma das primeiras propriedades a apostar na casta, possivelmente por influência de um enólogo francês que por lá passou. A decisão foi propícia pois os solos arenosos, bem drenados e pouco férteis ajudam a controlar a produção. Os dias quentes ajudam as uvas atingir maturação fenólica necessária e ao mesmo tempo as noites frescas protegem estrutura ácida garantindo frescura ao vinho. Tal como o Tejo, a região da Vidigueira no Alentejo, com os seus dias quentes e ensolarados e noites refrescadas pela brisa, criam condições favoráveis para a maturação da casta. O produtor Cortes de Cima foi um dos pioneiros em 1991 quando Syrah ainda não era autorizada na região lançando seu varietal com a marca “Incógnito” em 1998. Apesar de ser pouco difundida no norte do país já existem produtores conceituados como Quinta do Crasto e Quinta do Noval fazendo bom trabalho no Douro. O clima quente e seco assegura maturação mais cedo praticamente no mesmo período que algumas castas brancas.
Análise de prova
Os vinhos degustados aqui representam boa expressão da casta e, de uma forma geral, mostram consistência em relação à qualidade e estilo. Comparando com vinhos de clima frio que originam vinhos mais magros, frescos com toques de pimenta e tons salgados e vinhos mais expressivos, opulentos e frutados provenientes de clima quente, o estilo do Syrah português encaixa-se entre os dois com tendência de apontar marginalmente para o estilo compatível com vinhos de clima mais quente. Ao mesmo tempo, é possível perceber diferenças regionais, através da exuberância dos vinhos do Alentejo, a frescura da Bairrada e um estilo frutado e sumarento aliando com boa acidez encontrado no Tejo. O Syrah português é acessível, fácil de entender e os vinhos estão prontos para beber assim que lançados no mercado, embora os melhores exemplos demonstrem capacidade de envelhecimento. Os produtores revelam habilidade e cuidado para não extrair excessivamente e usar o carvalho judiciosamente. Entretanto, apesar da qualidade, de forma geral, atingir alto padrão, e de haver grande consistência, ainda não chega a atingir o patamar dos grandes clássicos franceses ou melhores exemplos australianos. A prova serviu para demonstrar que potencial existe. Além disso, vinhos como Incógnito de Cortes de Cima e Tributo de Rui Reguinga, excluídos da lista de prova não por falta de mérito, mas para ceder espaço a outros produtores, fortalecem a percepção da afinidade da casta com o terroir português. Syrah adapta-se muito bem e dá bons resultados em solos pobres e terroir hostil com vento, altitude e situações adversas e mais frias. É possível que o melhor terroir essa casta em Portugal ainda não tenha sido descoberto. De qualquer forma é evidente que o Syrah português tem potencial para ir mais longe. É preciso mais ambição.

O futuro da Syrah
A Syrah vem demonstrando a capacidade de atender às necessidades dos consumidores portugueses que procuram vinhos frutados, redondos e exuberantes. Na exportação, a casta poderá cumprir o importante papel de convidar consumidores internacionais, que ainda não descobriram os vinhos portugueses, talvez pela falta de familiaridade com as castas indígenas, a se aventurar. Em termos de custo, a maioria destes vinhos oferecem boa relação entre a qualidade e preço. Além da vantagem económica que a casta oferece ao produtor pelo facto de ser produtiva, a Syrah comprovou ao longo dos últimos anos afinidade com o terroir português. Por isso é muito provável que as plantações continuem a crescer. O facto de boa parte dos vinhedos estarem ultrapassando dez anos de idade ajudará a aprimorar a qualidade, que também será impulsionada a medida que os enólogos acumularem mais experiência e confiança em lidar com a casta. Até onde poderá chegar a qualidade desses vinhos no futuro dependerá da ambição dos produtores e da habilidade de saber equilibrar auto-confiança com humildade de continuar aprimorando-se através de troca de conhecimentos e provas comparativas com Syrah de outras partes do mundo. É indispensável abrir-se mais ao mundo, inovar e não ter medo de arriscar na hora da vinificação. Seria um triunfo conseguir surpreender consumidores e profissionais com a qualidade dos Syrah portugueses em uma prova as cegas em companhia de grandes clássicos mundiais dentro da próxima década. Julgando pela actual qualidade dos vinhos, esse é um objetivo perfeitamente atingível.
Edição nº 35, Março de 2020
O tamanho não importa

Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas. Valéria Zeferino Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de […]
Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente a outro que produz 250.000 garrafas.
Valéria Zeferino
Quer queiramos, quer não, preconceitos fazem parte da nossa vida. Na área de vinhos, então, propagam-se como míldio depois da chuva. Quantas vezes ouvimos os entusiastas vínicos a afirmar que só os produtores pequenos fazem vinhos interessantes, vinhos com alma, e as empresas grandes são apenas fábricas a produzir vinho “tecnológico”?
Os pequenos fazem vinho com paixão e muitas vezes de forma artesanal, alguns até indicam no rótulo “hand crafted wine” para que não haja dúvidas que o vinho é feito à mão (já agora, se passarem um dia numa adega, verão que por muita mecanização que haja, continua a existir muito trabalho manual que não pode ser dispensado). E os grandes, claro, só fazem contas. Tudo de forma industrial, a pensar no volume, onde a paixão não tem qualquer impacto. As adegas cooperativas, então, são aquelas que menos romantismo têm aos olhos dos enochatos.
Não tenho absolutamente nada contra os pequenos produtores, mas não dou créditos imediatos só pelo facto de serem pequenos. Acompanho alguns projectos desde o início e agrada-me ver a sua evolução. Há projectos fascinantes, feitos por pessoas determinadas, capazes com o seu conhecimento e dedicação criar grandes vinhos. Mas também vi alguns que produzem vinhos medíocres a serem vendidos caros aos turistas estrangeiros; uns que estacionam o seu carro ao pé das barricas (por mim, não é a falta de espaço, é a falta de rigor); outros que têm vinha e, não sabendo que destino lhe dar e com falta de conhecimento, produzem vinhos sem qualquer alma e conteúdo.
Ao mesmo tempo, conheço várias adegas cooperativas com estratégias bem definidas a nível de viticultura, produção e marketing.
O controlo rigoroso de higiene, equipamento renovado e até sofisticado que permite avaliar a maturação antes da vindima, fazer uma triagem das uvas que chegam à adega, condições ideais de engarrafamento, a abordagem responsável de viticultura – são hoje realidades de empresas sérias na área. As equipas de enologia são formadas por pessoas competentes e interessadas que falam com entusiasmo e paixão de cada vindima e das experiências que fazem.
Por exemplo, na Adega do Cartaxo faz-se classificação de parcelas, sendo as melhores uvas destinadas aos vinhos de topo de gama. Aplica-se um sistema de penalizações e incentivos para garantir uma constância de qualidade e sanidade da matéria prima. As grandes produções (acima dos 35 tn/ha) ficam altamente penalizadas; e se a uva chegar em estado perfeito de uma vinha com produção até 8 tn/ha, o preço sobe até 1 euro por quilo. Os funcionários da adega acompanham as vinhas dos sócios, controlam o estado sanitário e a maturação. Definem as castas a serem plantadas conforme a localização da vinha para obter o melhor resultado. Segundo o enólogo Pedro Gil, os sócios com a vinha na sub-região do Campo têm que plantar no mínimo 20% de Alicante Bouschet porque as habituais Castelão e Tinta Roriz lá não amadurecem tão bem. O Alicante Bouschet é a primeira casta a completar a maturação fenólica antes da alcoólica (pode ser com 13% já com boa maturação e grainhas maduras, enquanto a Castelão pode estar com 14% a apresentar grainha verde e tanino agressivo). Na zona do Bairro, já todas conseguem amadurecer melhor e basta só 10% de Alicante Bouschet.
Outro exemplo. Na Adega de Monção a equipa de enologia mantém a mesma liderança desde 1990. É importante em termos de consistência e conhecimento acumulado. O enólogo responsável, Fenando Moura, tem a experiência de 30 anos, que é praticamente uma vida. Falem e provem vinhos com ele, e verão o entusiasmo e a paixão nos olhos.
Aqui poderão contar-vos muito sobre a arte de blend. As uvas provêm das altitudes diferentes de 30-100 até 200-350 metros acima do mar; apanhadas em momentos diferentes; são vinificadas com e sem maceração pelicular (se forem apanhadas depois das chuvas, não fazem); com e sem micro-oxigenação; fermentam com leveduras diferentes e as temperaturas de fermentação também variam. Alguns destes vinhos têm mais corpo, outros mais acidez. Uns apresentam aromas tropicais, outros citrinos, ou florais. E tudo isto para garantir a consistência de qualidade e de características organolépticas dos seus vinhos. No total, são mais de 100 amostras. Daí sai o clássico Deu-la-Deu, o monovarietal de Alvarinho mais vendido em Portugal (cerca de 450 mil garrafas) e que é sempre uma aposta de confiança.
A Adega de Favaios é mais um exemplo de pfofissionalismo e qualidade, cuja gama de vinhos vai muito para além do seu sucesso comercial – Favaítos. Embora a casta Moscatel Galego tenha predominância, trabalham-se outras castas típicas do Douro. Mais uma vez, trata-se de profissionalismo de quem dirige e depois se traduz na equipa de enologia, com grande empenho pessoal e acompanhamento técnico dos viticultores.
É claro que nem todas as adegas cooperativas são assim. Algumas até já nem existem. Não sou pro ou contra ninguém, apenas acho que nos devemos livrar de preconceitos. Ser grande não é um defeito e ser pequeno não é necessariamente uma virtude. O facto de um produtor fazer apenas 2.500 garrafas não pode servir de argumento inquestionável da sua superioridade qualitativa comparativamente com outro que produz 250.000 garrafas, por exemplo.
A Quinta do Vale Meão produz mais de 200 mil garrafas do Meandro sem comprometer a qualidade. É um vinho que dá prazer de beber em qualquer parte do mundo. O Barca Velha tamém não é propriamente uma edição limitada: em função do ano produzem-se 16-18 mil garrafas (no universo de milhões de litros de vinhos noutras gamas). E é um vinho extraordinário de classe mundial.
Conseguir fazer muito e bem também é uma arte em aliança com profissionalismo. Sei que repeti esta palavra muitas vezes, mas, para mim, o profissionalismo vai sempre à frente do romantismo, de todo glamour que um produtor possa ter e, obviamente, da dimenção da sua produção.
O bazar de Istambul

A promoção, o desconto, está cada vez mais enraizado no sector do vinho. Aparentemente, os elos mais visíveis da cadeia de valor – hipermercados e clientes – estão satisfeitos. Mas a produção fica completamente estrangulada e refém de um modelo de negócio que não lhe deixa margem e não promove a justa retribuição para quem […]
A promoção, o desconto, está cada vez mais enraizado no sector do vinho. Aparentemente, os elos mais visíveis da cadeia de valor – hipermercados e clientes – estão satisfeitos. Mas a produção fica completamente estrangulada e refém de um modelo de negócio que não lhe deixa margem e não promove a justa retribuição para quem criou as uvas e fez os vinhos.
Luís Lopes
“O consumidor português é um bocado viciado em promoções (…) No sector alimentar, 50% das compras são feitas em promoções. Naturalmente que, a partir de certa altura, não há milagres. A indústria defende-se, empolando os preços, para poder absorver essas promoções. Mas, de facto, é um problema cultural. Como eu costumo dizer, há uma cultura, não sei se mediterrânica, que faz lembrar o bazar de Istambul” – João Vieira Lopes, presidente da Confederação de Comércio e Serviços, em entrevista ao Público, 28 de Novembro de 2019
O autor das frases que acima reproduzo definiu de forma perfeita as raízes em que assenta este modelo de negócio. O português adora, na verdade, discutir o preço, regatear, sair de um encontro negocial com a sensação de que levou a melhor sobre a outra parte. Está-lhe no sangue. Como nas lojas modernas o cliente não tem um interlocutor físico, e a discussão do preço não é possível entre comprador e vendedor, a loja presta diligentemente esse autêntico serviço social e cultural que é simular uma negociação na qual o cliente sai vencedor e satisfeito.
E o cliente tem razões para isso. Os vinhos tabelados a €9 e vendidos €3 são, na esmagadora maioria dos casos, bons vinhos, vinhos que valem inteiramente o que custaram. Foram feitos para valer €3 e não €9, é claro, mas se o consumidor bebe um bom vinho e ainda por cima julga que fez um grande negócio, qual é o problema?
Acontece que, se no sector alimentar 50% das compras são feitas em promoções, no que ao vinho diz respeito são mais de 70%. E isso traz não um problema, mas muitos. Desde logo, problema para toda a cadeia de valor a montante. Quem produziu e engarrafou fica com pouco ou nada de margem. Por conseguinte, para não perder dinheiro (e muitos perdem), reduz ao máximo os seus custos, o que significa também pagar o mínimo pelas uvas ou vinhos que comprou. Nada sobra para investir nas marcas. E o elo mais fraco, o mexilhão da nossa estória, quem trabalha a terra o ano inteiro para manter a vinha, empobrece a cada vindima.
Depois, problema para a marca do produtor. Um vinho vendido em promoção durante 9 meses por ano tem a sua imagem colada ao modelo. No dia (e esse dia virá) em que for substituído na prateleira por outro ainda mais barato, a marca nunca mais recupera o valor. Nenhum restaurante ou garrafeira a quererá comprar. Foi-se, já era, kaputt.
Problema ainda para a cotação do vinho português. Os muitos milhões de turistas que nos visitam, se gostam de vinho e entram num hipermercado para levar uma garrafa para o seu airbnb, devem pensar que chegaram ao paraíso terrestre. E regressam a casa não se lembrando da marca que compraram, apenas que era vinho português, era muito barato e era bom. E isso torna-se a identidade dos vinhos de Portugal.
Os hipermercados fazem o seu trabalho, que é ganhar dinheiro e satisfazer o cliente, e fazem-no muito bem. O consumidor, esse, leva um bom vinho por pouco dinheiro e está na maior. Que pode fazer, então, quem produz? Colectivamente, o sector perdeu uma excelente oportunidade para subir preços, após duas colheitas sucessivas de escassa quantidade. 30 ou 40 cêntimos que fossem, fariam toda a diferença. E nesta euforia pós-troika, em que o consumidor acredita que é rico, se as garrafas de €2.49 passassem a €2.89 ninguém se iria queixar e as vendas não se ressentiriam. Mas para isso seria preciso que as associações do sector funcionassem, e não funcionam. Será cada um por si, como sempre foi. E o bazar de Istambul soma e segue.
Edição nº 34, Fevereiro 2020
Alentejo meu

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. […]
O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. Sem barreiras.
Luís Francisco
O saca-rolhas cumpre a sua função e os copos estendem-se para a garrafa acabada de abrir. O vinho corre e a conversa anima-se, ao ritmo da paisagem que desfila por baixo de nós, a linha sinuosa do rio brilhando aos primeiros raios do sol, prados, vinhas e montado numa sucessão de cores e texturas. De vez em quando, uma casa. E animais, muitos animais. Domésticos e selvagens, vagueando pela terra alheios à presença silenciosa do balão de ar quente e da meia-dúzia de seres humanos que nele se aninham.
Sim, quem nunca saboreou um copo de vinho branco bem fresquinho às sete da manhã a bordo de um balão de ar quente não sabe o que perde. Lá em cima não há medos nem sustos, só um constante maravilhamento. O balão progride suavemente ao sabor da leve brisa do amanhecer, que, por caprichos da meteorologia, sopra exactamente na direcção contrária ao que estava planeado: em vez de nos levar a sobrevoar a reserva de caça da Herdade do Sobroso na serra do Mendro, num safari aéreo que prometia emoções fortes, transporta-nos na sua almofada de sossego para Sul.
Não há tempo nem disposição para desilusões. Os sentidos estão demasiado ocupados na tarefa de tentar absorver tudo o que nos rodeia. O piloto do balão capricha numa travessia rasante sobre o espelho de água do Guadiana, elevando depois o aparelho para evitar as árvores da margem oposta. O ruído dos queimadores é, por agora, o único som que quebra o mar de silêncio em que navegamos. Bom, isso e a ocasional exclamação de espanto de algum dos presentes. E, claro, há alguns minutos, o murmúrio arrastado da rolha que saltou da garrafa de vinho…
Vida selvagem
A serra fica para trás – e, com ela, a promessa de vermos de cima o que na véspera tínhamos adivinhado num passeio de jipe: a vida selvagem pujante desta zona. Centenas de hectares da serra do Mendro albergam animais de grande porte, como gamos, muflões, javalis ou veados. E nós vimo-los todos: um enorme veado trotando pelas curvas da estrada à nossa frente, um grupo de javalis avistado ao longe junto a uma charca, um gamo espreitando pelo meio dos arbustos lá mais em cima, perto do cabeço panorâmico onde armámos um piquenique, meia-dúzia de muflões atravessando o caminho assim que deixaram de ouvir o ruído do motor.
Mas soube a pouco e hoje havia a promessa de podermos olhar de cima, pairando nos ares sem que a bicharada se apercebesse, sequer, da nossa presença… A expectativa era grande e o mini-pequeno-almoço é engolido à pressa para não perdermos tempo. Ainda deitado em terra, o tamanho do balão impressiona. A pouco e pouco, os queimadores aquecem o ar no interior e a cúpula vai subindo. Não tarda nada estamos a bordo e a aventura vai começar!
A brisa é que não está de feição e, num balão, contra isso não há engenho humano que nos valha. Aproveitemos, portanto, para gozar as emoções do voo por si só e tentar reter todos os detalhes desta viagem pelos céus de copo na mão. Pode não ser um safari, mas é uma experiência única.
E, no entanto, aquilo que ali se mexe, espantosamente a apenas algumas dezenas de metros de uma casa, parece ser… isso mesmo, é um veado! E depois outro, e mais uns quantos. Imperturbável pelos sinais de ocupação humana, a grande fauna vagueia também na margem oposta do Guadiana. Há javalis que trotam por carreiros que levam a uma pequena barragem – onde, por sinal, uma raposa caça por entre a vegetação rasteira – e parece quase surreal a visão de um veado que “estacionou” junto ao reboque de tractor parado debaixo de um grande sobreiro.
Regressar à terra
Lá se vai a teoria de que o abandono dos terrenos agrícolas é a mais forte explicação para o regresso dos grandes mamíferos selvagens… Aqui há agricultura e vida selvagem, lado a lado. Talvez a melhor explicação seja mesmo a política de gestão sustentável da reserva de caça do outro lado do rio. Mas quem vai perder tempo com estas elucubrações quando o mundo desfila aos nossos pés?
De vez em quando, o ruído dos queimadores desperta os animais do seu sossego, mas eles não conseguem perceber de onde veio o som e não lhes passa pela cabeça olhar para cima. Se o fizessem, dariam de caras com seis pares de olhos humanos que os fitam em embevecido espanto, por momentos o copo de vinho esquecido na mão. E assim se passam os minutos, ou serão horas, que nestas ocasiões o tempo é uma entidade sinuosa.
Só que a silhueta distante de casario e cabeços torna-se cada vez mais nítida e isso é uma clara indicação de que o dia já avança – o sol está mais alto e com o aumento da temperatura começam a gerar-se correntes térmicas que podem complicar a vida ao piloto do balão. O que é bom depressa se acaba, diz o povo. Está na altura de descer.
No solo, uma viatura acompanha o nosso trajecto, para nos recolher (e ao balão) assim que tocarmos o solo. O ritmo das comunicações intensifica-se. É preciso procurar um local plano, sem árvores nem linhas eléctricas, com acesso à estrada. Mesmo no Alentejo, isto nem sempre é fácil. E é preciso que o vento nos leve na direcção correcta. Aterrar um balão, portanto, não é pensar e fazer.
Ao fim de algum tempo, a bonomia do piloto acalmando as ansiedades de quem viaja a bordo, lá surge um belo prado e é lá que pousamos. Já vivemos uma eternidade neste dia e ainda nem são dez da manhã! Abre-se mais uma garrafa de vinho, enquanto se revivem as visões exaltantes da bicharada à solta na imensa paisagem alentejana. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. Com uma vantagem: o vinho por aqui é muito melhor!
Edição nº 34, Fevereiro 2020