A gente que faz o vinho

Editorial da revista nº41, Setembro 2020

No dia em que escrevo estas linhas já as uvas estão a ser colhidas um pouco por todo o país. Em algumas regiões, a vindima vai em velocidade de cruzeiro, noutras cortam-se os primeiros cachos. Este tempo de colheita faz-me pensar no trabalho dos muitos profissionais, produtores, viticólogos, enólogos, que têm agora a sua “prova de fogo”, o momento por que esperaram ao longo de um ano inteiro.  

Luís Lopes

A vindima é feita de gente. Em nenhum outro período do ano há tamanho movimento de pessoas numa propriedade vitivinícola. No meio das vinhas, de tesoura na mão ou caixa às costas, nos tractores e atrelados, nas máquinas de vindimar, descarregando as uvas nas prensas, puxando mangueiras na adega, medindo mostos no laboratório, vigiando as fermentações. Muitas destas pessoas só ali vão uma vez por ano, precisamente nestas semanas em que se cortam os cachos e se transformam em vinho. Outras, estão no local praticamente todos os dias, ajudando as videiras no seu percurso até à vindima seguinte ou acompanhando os vinhos que se fizeram na colheita anterior. 

Onde há pessoas existe pensamento e acto, reflexão e decisão. Sendo um fruto da natureza, o vinho não é feito por ela, é produto exclusivo da intervenção humana.  As uvas que agora se colhem são tanto o resultado das condições do ano vitícola como das opções que foram seguidas para mitigar, em alguns casos, ou potenciar, noutros, a obra da natureza.   

Muitas dessas decisões aconteceram bem antes da vindima. Já nem falo das que estiveram na base da criação da vinha e que resultam de opções estratégicas de longo prazo: onde, quando, como, o que plantar. Bastam-me todas aquelas operações que ocorrem ao longo do ciclo vegetativo da videira e que implicam processos de ponderação e decisão quase diários: podas, empas, tratamentos, desfolhas, correções de solos, rega, mondas, a lista é infindável. O ano de 2020 foi especialmente desafiante nesse sentido, com ataques de míldio e oídio difíceis de controlar e tudo isto num contexto agravado pela pandemia e os cuidados a ter na gestão do espaço e do movimento das pessoas. O trabalho do viticólogo e da sua equipa vai a exame agora, à medida que os cachos entram na adega. Não sei o que passará pela cabeça do chamado “pessoal de campo”: ansiedade, sentimento de dever cumprido, ou aquele misto de preocupação e alívio que os pais sentem quando um filho se emancipa e sai de casa?  

O fruto que uns entregam fica agora a cargo de outros, a gente da enologia, na adega. E, de novo, as decisões sucedem-se, frequentemente sem tempo para reflectir o suficiente antes de as tomar. Prensagens, pisas, fermentações, remontagens, desencubas, lagares, cubas, barricas. Em muitos casos, fruto do histórico de anos anteriores, as uvas que chegam à adega já têm um destino específico, esperam-se que origine um vinho concreto. Umas vezes cumprem, outras não. Nunca esqueço o que o enólogo Michel Rolland me disse, há quase 20 anos: partindo das mesmas uvas, a diferença entre um vinho muito bom e um grande vinho está nos detalhes. Ou seja, de cada vez que, pressionados pelas circunstâncias, decidimos por um compromisso, facilitamos num detalhe, descemos um degrau na escada que leva à grandeza.   

Opções são tomadas minuto a minuto enquanto os mostos fermentam. Assentes na experiência e no saber empírico, ou alicerçadas no conhecimento científico, são essas decisões que, somadas às que aconteceram na vinha, vão definir os vinhos que agora nascem e que vamos beber dentro de alguns meses ou daqui a muitos anos 

Neste tempo de vindima, enquanto apreciador e profissional da escrita, agradeço sentidamente a todos aqueles que fazem o vinho acontecer. O vinho tem, obviamente, uma base natural que não dominamos. Não está nas nossas mãos criar um terroir de excelência onde ele não existe, não conseguimos evitar um granizo ou um escaldão. Do mesmo modo que um pescador não domina o mar onde pesca. Mas ao contrário do peixe, o vinho é um produto transformado, fruto de decisões humanas. E é muito bom saber que algumas coisas ainda dependem de nós. 

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