Sabores: Tomate coração-de-boi

TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga É bom lembrar que os tomates têm uma época, por sinal curta, e que todos os que forem colhidos fora do período Junho-Outubro não passam de bolinhas vermelhas para enfeitar. Os tomates grandes do tipo coração-de-boi já andam aí desde Maio – e grandes e bonitos –, […]
TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga
É bom lembrar que os tomates têm uma época, por sinal curta, e que todos os que forem colhidos fora do período Junho-Outubro não passam de bolinhas vermelhas para enfeitar.
Os tomates grandes do tipo coração-de-boi já andam aí desde Maio – e grandes e bonitos –, à conta das estufas; os outros estiveram nas bancas de supermercado o ano inteiro, como se sabe. Mas ambos são imprestáveis antes da estiva. É agora, a partir de Julho, que estão no seu melhor.
A mais impressionante prova disso é o facto de o restaurante Manjar do Marquês, em Pombal, dono de um dos melhores arrozes de tomate do mundo, ter na cave uma arca frigorífica gigante onde conserva os tomates que compra no Verão para depois usá-los todo o ano no seu célebre malandrinho.
De resto, os bons coração-de-boi, com as suas pregas, dão também excelentes saladas e é assim que eu os prefiro. Sumarentos, doces mas com acidez, devem ser cortados às rodelas e espalhados numa travessa de alumínio como as das tascas, sem se sobreporem, só com pedras de sal marinho, cebola nova em meias luas e azeite. No fim, sobra um suco que é um extraordinário vinagrete para ensopar em pão ou reservar e espalhar depois por cima de basicamente tudo, seja um bife ou um peixe grelhado.
Dica: pode comprar o fruto verde (sim, comemos o fruto do tomateiro), porque ele amadurece bem fora da planta, em casa. Se quiser apressar o processo, envolva-o em papel de jornal. De resto, não guarde no frigorífico: estraga a textura e, sobretudo, o aroma.
Terá sido o Noma México a melhor refeição da década?

DEPOIS de ter conquistado o mundo, o Noma de Copenhaga encerrou portas (temporariamente), fez as malas e partiu para a península de Yucatan. Na areia caribenha de Tulum, no México, debaixo de palmeiras, o restaurante, quatro vezes vencedor do concurso O Melhor Restaurante do Mundo, assentou mesas – e reinventou outra vez a cozinha. Entre […]
DEPOIS de ter conquistado o mundo, o Noma de Copenhaga encerrou portas (temporariamente), fez as malas e partiu para a península de Yucatan. Na areia caribenha de Tulum, no México, debaixo de palmeiras, o restaurante, quatro vezes vencedor do concurso O Melhor Restaurante do Mundo, assentou mesas – e reinventou outra vez a cozinha.
Entre os poucos que conseguiram lugar para o espectáculo culinário, em exibição de 12 de Abril a 28 de Maio e esgotado duas horas depois de a bilheteira abrir (apesar dos 540 euros por cabeça), estavam alguns dos mais célebres críticos gastronómicos do mundo.
Jonathan Gold, vencedor do prémio Pulitzer, iniciou o seu relato épico para o “Los Angeles Times” com três pratos que foram, tão só, a melhor coisa que ele comeu nesse mês – e se ele come muito…
Tom Sietsema, do “Washington Post”, por sua vez, foi ainda mais exuberante nos encómios. “Poderá ter sido a refeição da década”, titulou, para depois descrever o início da experiência: “O restaurante mais hot do planeta não perde tempo a fazer-te sentir como um dos comensais mais sortudos do universo. No segundo em que te sentas, é-te servido Champanhe e os primeiros minutos são um misto de cor e descoberta (porcos brilhantes com gordura de coco! Gelado que deixa a língua em fogo!), ao mesmo tempo que um mar de gente te apresenta pratos sobre os quais, certamente, irás falar depois de o restaurante se apagar.”
Os elogios vieram também dos próprios colegas de René Redzepi, fundador e mentor do Noma. David Chang, o famoso chef de Nova Iorque, encheu o seu Instagram de fotografias e deixou a legenda: “Esmagado com o nível de detalhe. Acho que este pode ter sido o melhor pop-up do Noma, até agora. Do que consegui provar, acho que os comensais vão ter uma experiência épica. O espaço é lindo. Cheio de ciúmes da variedade de ingredientes e dos fornos de lenha. Estejam preparados para algum picante: adeus endro, olá malagueta.”
Comida à parte, o projecto foi todavia criticado pelos próprios mexicanos, que acusaram o Noma México de “colonialismo gastronómico” e recordaram que metade da população de Tulum vive na pobreza. Pratos como o polvo com molho de sementes de abóbora, as natas de coco fresco com caviar ou o ceviche de banana —três dos pratos mais icónicos do restaurante —, só puderam ser apreciados através das redes sociais pelos locais.
Redzepi justificou o preço com o custo de transferir uma cozinha inteira para o outro lado do Atlântico. E acrescentou que boa parte dos lucros foram distribuídos por bolsas para estudantes de cozinha mexicanos, produtores e fornecedores locais.
Polémica à parte, o Noma voltou aos píncaros. Mesmo num acampamento das Caraíbas, o farol nórdico continua a guiar o mundo gastronómico.

Chefs com sangue na guelra manifestam-se

Movimento quer um maior reconhecimento internacional da gastronomia portuguesa. FOTOS Cortesia Amuse Bouche NÃO foi uma manifestação de megafone e cartaz, mas houve palavras de ordem. Um grupo de chefs portugueses, gastrónomos e jornalistas da especialidade decidiu que estava na hora de definir o que é isso da cozinha portuguesa. Durante semanas, um rascunho […]
Movimento quer um maior reconhecimento internacional da gastronomia portuguesa.
FOTOS Cortesia Amuse Bouche
NÃO foi uma manifestação de megafone e cartaz, mas houve palavras de ordem. Um grupo de chefs portugueses, gastrónomos e jornalistas da especialidade decidiu que estava na hora de definir o que é isso da cozinha portuguesa. Durante semanas, um rascunho andou de email em email, de versão em versão, até se chegar ao Manifesto para a Cozinha Portuguesa 0.0.
O título tem o dedo de Miguel Poiares Maduro, ex-ministro Adjunto e reconhecido gourmet, envolvido na iniciativa desde o primeiro minuto, mas no texto participaram os 18 chefs portugueses que subscreveram o documento.
A apresentação ao público aconteceu no primeiro dia do festival Sangue na Guelra, a 5 de Maio, durante o Simpósio “Cozinha portuguesa, e agora?”. A ideia partiu das cabeças de Ana Músico e Paulo Barata, da Amuse Bouche, a agência de comunicação que criou e produziu novamente o evento.
Este ano, para além dos habituais jantares de peixe e marisco com jovens talentos, houve ainda o Blood n’Guts Lisboa Food Festival, um festival de comida de rua que teve lugar no HUB Criativo do Beato e reuniu cerca de 20 cozinheiros, a maioria gente ligada à alta cozinha, de Henrique Sá Pessoa (restaurante Alma) ao chef pasteleiro Diogo Lopes (Lab), passando por Alexandre Silva (Loco) e Ljubomir Stanisic (100 Maneiras).
Alguns deles já tinham começado a trabalhar semanas antes, em grupos de pesquisa ligados a quatro elementos essenciais: o sal, o sangue, frituras e pão. João Rodrigues, do Feitoria, por exemplo, chefiou uma equipa que andou a redescobrir salinas antigas, como as do Samouco, e a testar salmouras com fruta. Henrique Sá Pessoa, por sua vez, liderou um grupo que fez do tulicreme um tulisangue. Já da cabeça de Alexandre Silva e seus chefs nasceu um óleo aromatizado com cereais fermentados, ideia que podia muito bem tornar-se comerciável. No que respeita ao pão, o grupo onde estava José Avillez e o chef pasteleiro do Loco, Carlos Fernandes, trouxe as sopas secas de Penafiel para cima da mesa do simpósio “Cozinha portuguesa, e agora?”, onde os projectos foram apresentados.
A ideia do manifesto é “incentivar a união de toda a comunidade gastronómica em torno da cozinha portuguesa”, bem como “partilhar conhecimentos, proteger tradições e incentivar mudanças”.
O documento começa com uma demonstração de “orgulho” na cozinha tradicional, mas deixa claro que cozinhar “não se esgota na procura do bom sabor” e deve ter uma dimensão “cerebral, interventiva, criativa, subversiva”. No final, ficou uma ambição para o futuro: os subscritores consideram a cozinha tão importante para as crianças “como aprender a ler e a escrever”.
Quem quiser subscrever é só ir a www.sanguenaguelra.pt/manifesto/
3 restaurantes para comer o mar

Pangeia . Nazaré Instalou-se numa antiga moradia, e dificilmente é possível ter uma vista melhor para a Nazaré e para o Atlântico. O casario estende-se de um lado e ao fundo é só mar. Não vai ver as famosas ondas gigantes da Praia Norte, até porque estamos em época baixa, mas pode acontecer cruzar-se com […]
Pangeia . Nazaré
Instalou-se numa antiga moradia, e dificilmente é possível ter uma vista melhor para a Nazaré e para o Atlântico. O casario estende-se de um lado e ao fundo é só mar. Não vai ver as famosas ondas gigantes da Praia Norte, até porque estamos em época baixa, mas pode acontecer cruzar-se com Garrett McNamara, o surfista que pôs a vila no mapa mundo. Imperdível o polvo assado com azeite picante e batata doce, bem como os camarões Pangeia, com um molho de lamber os dedos. Serviço requintado e atencioso, espaço cuidado e confortável — preço a condizer: com menos de 30 euros não faz a festa.
Camilo . Lagos
Era uma barraquinha instável à beira de uma arriba da praia do Camilo, hoje é um restaurante moderno mas sem coisas supérfluas. A vista continua a ser deslumbrante, sobre o espelho cintilante do Algarve, e a comida e o serviço melhoraram com as novas condições. Peixe fresco no mostrador, serviço honesto e competente, carta de vinhos acima da média dos restaurantes de veraneio da região e servidos a temperaturas correctas. Não perca as lulinhas fritas, as ostras da Ria do Alvor, e tudo o mais que vem do mar. Por encomenda faz-se coelho frito e tamboril com ervilhas. Os preços são abaixo dos que o Algarve pratica. Com um belo peixe de mar incluído pode safar-se com 25 euros.
Adraga . Praia da Adraga, Sintra
É um dos sítios da Grande Lisboa mais consistentes a servir peixe de mar. Há quase sempre robalos e douradas, mas na vitrina à entrada aparece o que os pescadores apanham nas águas portuguesas. É apontar e escolher uma mesa junto à janela (reserva antecipada obrigatória, sobretudo aos fins-de-semana e no Verão) ou então sentar-se e esperar que lhe tragam um exemplar para que o avalie antes de o levarem para a grelha. A grelha fica numa divisão longe da vista e é uma construção artesanal gerida com rigor científico. O areal da praia da Adraga é logo ali e, não fossem os vidros, conseguia-se sentir a maresia.

Novidades Primavera-Verão

A época trouxe novos recordes no turismo, a vitória na Eurovisão, Madonna e Michael Fassbender a passear na Baixa lisboeta, mas também restaurantes a abrirem como cogumelos e algumas mudanças de jalecas. Saiba das novas mesas e escolha de acordo com a ocasião. Para subir ao Castelo (e à alta cozinha) . Leopold O […]
A época trouxe novos recordes no turismo, a vitória na Eurovisão, Madonna e Michael Fassbender a passear na Baixa lisboeta, mas também restaurantes a abrirem como cogumelos e algumas mudanças de jalecas. Saiba das novas mesas e escolha de acordo com a ocasião.
Para subir ao Castelo (e à alta cozinha) . Leopold
O Leopold, do chef Tiago Feio, com antiga residência na Mouraria, mudou-se para o Palácio Belmonte e transformou-se numa das aberturas mais aguardadas dos últimos meses. Arquitecto de formação, natural do Porto, Tiago Feio faz uma cozinha muito técnica mas de resultados simples e elegantes, bem visíveis num dos seus pratos clássicos, o ovo a baixa temperatura com cogumelos e trigo sarraceno. Já era assim no antigo Leopold, onde cabiam dez pessoas, e deverá continuar a ser assim na nova residência. As cadeiras duplicaram, os meios são outros, mas espera-se a mesma joalharia culinária, depurada e bonita, em forma de menu de degustação de oito pratos. A experiência custa 40 euros, sem bebidas. Se tiver alguma restrição alimentar avise no momento da reserva.
Para comer com estilo . JNcQUOI
Ainda no centro de Lisboa, abriu o JNcQUOI, do experiente António Bóia. Situado na Avenida da Liberdade, ao lado do teatro Tivoli, faz parte de um espaço mais amplo de moda e lazer concebido por Paula Amorim, do grupo Amorim Luxury e da sofisticada Fashion Clinic. Valentino já pôs os pés nos mármores do sítio e é provável que a beautiful people lisboeta lhe siga as pegadas. O menu mostra aliás essa sofisticação, sendo uma espécie de volta ao mundo (ocidental, vá) em oitenta pratos. Há medalhões de caranguejo do Alaska, burrata de búfala DOP, foie gras, caviar, chateaubriand, mas também canja de bacalhau, piano ou plumas de porco ibérico. Os preços, naturalmente, podem facilmente ultrapassar a meia centena de euros. À saída, não deixe de provar os macarons da Ladurée, mais em conta.
Para um almoço de trabalho . Panorâmico
Outro restaurante acabado de estrear é o Panorâmico, de Marlene Vieira. Apesar de continuar no Mercado da Ribeira, a chef tem estado ocupada com a sua nova cozinha no Tagus Park, em Oeiras. A ideia é servir só almoços executivos com produtos sazonais e agradar às 14 mil pessoas que trabalham na zona. “Os nossos clientes querem uma refeição de conforto mas equilibrada e mais exclusiva. Não vamos servir secretos de porco com batatas fritas”, garante Marlene Vieira. O menu custa 18 euros e inclui uma entrada, um prato principal, uma sobremesa, uma bebida e café. Já foram servidos, entre outros, tártaro de salmão com pepino e maçã verde, tataki de atum, ceviche de espadarte rosa, milhos fritos com legumes grelhados e creme de tomate com ovo escalfado.
Para viajar . Cantina Peruana
Inicialmente prevista para este mês estava também a abertura da Cantina Peruana, uma aliança de José Avillez com o peruano Diego Muñoz. Em cima do fecho desta edição, a comunicação do grupo Avillez não confirmou a data, apenas adiantando que “deverá acontecer este Verão”. O espaço fica alojado dentro do Bairro Avillez, no primeiro andar, e concretiza a amizade entre os dois cozinheiros. Avillez convidou Muñoz, no ano passado, para um almoço a quatro mãos no seu Mini-bar — e a parceria pode muito bem ter nascido nessa altura. Muñoz tem um super-currículo: passou pelo Mugaritz e pelo El Bullli, tal como Avillez, e liderou a cozinha do Astrid & Gastón, em Lima.
Para depois da praia (ou antes) . Cavalariça
Fora da capital, mas não muito longe, na Comporta, está a nascer a Cavalariça. O projecto do inglês Christopher Morrel irá, como de costume, abrir para o Verão (a expectativa é abrir em meados de Junho), mas desta vez tem Bruno Caseiro ao leme. O chef trabalhou com Nuno Mendes, o homem que está a fazer furor em Londres (Taberna do Mercado), e teve uma breve experiência no D.O.M, em São Paulo, do brasileiro Alex Atala. A ideia é lá fazer “jantaradas de Verão entre família e amigos, com mesas fartas em que o desafio é escolher por onde se começa a petiscar”, diz Bruno Caseiro. Sugestão do chef: a refeição pode arrancar com umas ostras do Sado ou com uma salada de presa de porco alentejano e depois continuar para um pregado inteiro grelhado no carvão, acabando no “sundae” de morango. Ao almoço, com menu reduzido, o preço rondará os 18€, ao jantar andará entre os 35€ e 38€ (sem bebidas).
Para degustar . Casa de Pasto
No capítulo da troca de cadeiras, há também notícias. Depois de Diogo Noronha sair da Casa de Pasto (tal como Sá Pessoa, está na Multifoods, de Rui Sanches, e vai abrir um restaurante brevemente, também no Príncipe Real), no lisboeta Cais do Sodré, o chef Hugo de Castro assentou arraiais e criou um menu de degustação. Por 25 euros pode partilhar com outra pessoa três entradas e um prato principal. A ementa vai mudando consoante os produtos que o chef traz do Mercado da Ribeira, mas num deste dias comeu-se sopa de tomate fria com tosta de muxama, açorda de tomate com lagostins, corvina marinada e caldeirada.
Alhos novos

TEXTO Ricardo Dias Felner UMA das grandes dores de cabeça para os cozinheiros, amadores ou profissionais, são os alhos. Quase todas as cabeças que comprei nos últimos meses estavam velhas e bafientas, uma fatalidade. Para se ter uma ideia da tragédia, no Natal, um tacho de roupa velha acabou irremediavelmente afectado por causa de um […]
TEXTO Ricardo Dias Felner
UMA das grandes dores de cabeça para os cozinheiros, amadores ou profissionais, são os alhos. Quase todas as cabeças que comprei nos últimos meses estavam velhas e bafientas, uma fatalidade. Para se ter uma ideia da tragédia, no Natal, um tacho de roupa velha acabou irremediavelmente afectado por causa de um único bolbo e eu fui submetido à fúria de 30 familiares famintos.
A boa notícia é que, por esta altura, o drama acaba. Desde Maio que já se encontram em alguns mercados uns alhos extraordinários, acabados de apanhar. A maioria terá sido plantada em finais de Outubro, estando agora em fase de amadurecimento ou secagem. Há quem lhes chame alhos jovens ou novos, e são identificáveis por terem umas riscas arroxeadas e o interior da rama ainda esverdeado. No bolbo, os dentes são bem mais fáceis de descascar do que os dos alhos secos, uma vez que a pele é uma membrana grossa. Na boca, nota-se um picante fresco, menos amargos, sendo por isso recomendáveis em cru, para todo o tipo de saladas de petisco (experimente com batatas novas, ervilhas tortas e pimenta da terra) ou para terminar um bife com um fio de bom azeite. Procure, prove. E lave bem os dentes.
Pão nosso de cada dia

Pão é sinónimo de comida. Pão é sinónimo de vida. Há uma fórmula mágica que transforma a farinha e a água em pão. O pão é um sinal de civilização. Em Portugal, explode agora o culto do pão, num regresso a modos mais antigos e renovar de tradições. TEXTO Luis Antunes FOTOS Ricardo Palma […]
Pão é sinónimo de comida. Pão é sinónimo de vida. Há uma fórmula mágica que transforma a farinha e a água em pão. O pão é um sinal de civilização. Em Portugal, explode agora o culto do pão, num regresso a modos mais antigos e renovar de tradições.
TEXTO Luis Antunes FOTOS Ricardo Palma Veiga
O trigo é o cereal mais fácil de panificar, logo seguido pelo centeio. A razão é o muito temido glúten, uma ligação entre proteínas, mais presente no trigo. É o glúten que torna o pão mais macio, arejado, volumoso e fácil de mastigar. A mastigação e a digestão são as principais razões para fazer pão, em vez de comer o trigo de outra maneira, como massas ou papas.
O trigo é moído em farinha, da qual se separa depois o farelo. Ao misturar farinha e água começam as reações bio-químicas que levam à fermentação. Ao fim de cinco dias em condições adequadas obtém-se a massa-mãe. Seja com a massa-mãe, seja com fermento de padeiro (uma levedura isolada e seca), eles são adicionados à mistura de farinha e água e provocam o arranque da fermentação da massa. Esta fermentação é na verdade uma fermentação alcoólica, na qual os açúcares são transformados em álcool, com libertação de gás carbónico. Quanto ao álcool, ele perde-se por evaporação na cozedura. Já o gás, as suas bolhas são capturadas pela rede formada pelo glúten, dando ao pão o seu volume e maciez.
Já temos aqui os fundamentos do pão, em particular os seus ingredientes: farinha, água, fermento. É costume usar sal como o quarto ingrediente. Mas a fermentação é um processo complexo, que tem muitas nuances, e nem sempre converge, razão aliás pela qual há muito misticismo aliado ao pão (rezas, sinais da cruz, etc.). Por isso ao longo das últimas décadas apareceram uma série de aditivos e melhorantes que simplificam o processo e o tornam mais robusto (uma espécie de “fermentação para totós”). O problema é que o pão ficou assim mais descaracterizado, mais industrializado, guiado por parâmetros algo superficiais: é mais fofinho, quentinho sabe muito bem, mas parece borracha mal arrefece, tem o miolo mais branco, graças a farinhas muito peneiradas, tem ainda alguns outros aditivos para o conservar, torna as digestões mais pesadas e é menos rico do ponto de vista nutricional.
A massa-mãe
Mas o mister de fazer pão foi sendo preservado por pessoas teimosas, e nesta minha busca conheci várias. Mouette Barboff é antropóloga e fez o seu primeiro trabalho sobre pão em 1983. Ao longo dos anos escreveu vários livros sobre o pão, e acaba de lançar o “Pão das Mulheres” (Âncora editora), um resumo da sua extensa tese de doutoramento. Mouette interessou-se em Portugal pelo pão caseiro, um fenómeno que não existe na sua França natal (mas lá em França já escreveu sobre os pães regionais). Segundo ela, é a melhoria das condições de vida que causa o desaparecimento do pão caseiro, mesmo em Portugal ela notou que após a Revolução dos Cravos os salários subiram e as mulheres deixaram de amassar o pão, passaram a comprá-lo. E quando veio a crise voltaram a amassar. As mulheres passavam o conhecimento sobre o pão de mãe para filha. Aliás, quando as filhas se casavam as mães davam-lhes o primeiro isco para elas iniciarem a sua própria massa-mãe.
A massa-mãe é acarinhada pelos padeiros da nova geração como um muito querido animal de estimação. Mário Rolando é professor de panificação na Escola Profissional da Pontinha, talvez o principal centro de ensino de panificação em Portugal. A sua massa-mãe já tem 3 anos e meio, e todos os dias tem que ser alimentada e acarinhada. Mário faz um pão que usa partes iguais de massa mãe e de farinha, o que é, mesmo assim, raro.
José Leitão, padeiro de quarta geração de Montachique e que foi fazer um curso com Mário para sistematizar melhor os seus saberes ancestrais, faz um pão com melhorantes na sua panificadora, mas à medida que vai experimentando e conhecendo melhor o processo, vai tendo o desejo cada vez mais forte de lançar o que ele chama um Pão d’Antanho. Faz todos os dias 500kg de farinha para o seu pão normal (que eu provei e é bom), e está a panificar 20kg de farinha em Pão d’Antanho (que eu provei e é excepcional). Para isso, tem 2kg de massa-mãe (que eu provei e sabe a uma espécie de iogurte de pão, com tons cítricos e uma acidez suave e complexa), guardadas a 2ºC para que a fermentação seja lenta e controlada. Para fazer 20kg de farinha junta à massa-mãe 2kg de farinha e 2 litros de água. Obtém assim 6kg de massa-mãe, da qual usa 4kg para o novo pão e deixa 2kg para isco do dia seguinte.
A fermentação com massa mãe é mais lenta, e nessa lentidão está o segredo dos processos bio-químicos que tornam o pão mais rico do ponto de vista nutritivo e organoléptico. José Leitão coze o pão depois de 24 horas de fermentação, cuidando que a massa esteja 18 horas a 2ºC e depois tirando-a algumas horas antes, para tender o pão e dar-lhe a forma final. Estas paragens depois de amassar chamam-se “estancas” e José faz três. O pão é depois cozido num forno de alvenaria, a lenha, alimentado por uma espécie de “maçarico gigante” de pellets. Leitão, como a maior parte dos padeiros, defende o pão “bem cozido”, com a relação mais equilibrada entre o miolo – que deve estar esburacado mas não oco – e a côdea: a côdea tem mais tostados, amargos, doces e queimados, graças às reacções de Maillard, deve ser estaladiça, tudo depois a harmonizar-se com o miolo suave, macio e suavemente adocicado.
Proteger os cereais antigos
Tanto José Leitão como Mário Rolando e Diogo Amorim admitem que 80% dos clientes preferem o pão mal-cozido. Mas dizem que já foi pior, 90% ou mais. Diogo Amorim é o mais jovem de todos, abriu há poucos meses a padaria Gleba, perto da Praça da Armada, em Lisboa. O seu pão é de trigo com 90% de farelo, quase integral e fermentado com 20% de massa-mãe ao longo de 24 horas.
Diogo estudou cozinha e estagiou no Fat Duck, onde desenvolveu o gosto pelo pão. Neste momento amassa cerca de 100kg de farinha nos dias de semana, e mais ao fim-de-semana. Quer fazer um pão tradicional, um regresso às raízes, mas sempre prático, não “lírico”. Por isso, no pequeno espaço que tem em Alcântara, tem um forno eléctrico, não a lenha, mas que lhe garante uma boa capacidade térmica. O seu pão é cozido 20 minutos a 250ºC e depois mais 40 minutos a 210ºC. Sempre bem cozido, com uma cor escura quase queimada, exibe o caramelizado que garante o tal equilíbrio com o miolo. O seu pão é assim mais saudável, com mais micro-organismos que asseguram uma degradação pré-digestão, mantendo mais nutrientes, entre os quais vitaminas sintetizadas pelas leveduras da massa-mãe.
Para Diogo, é fundamental que a pegada ecológica seja contida, por isso privilegia os cereais cultivados localmente, entre os quais espécies de trigo tradicionais em Portugal, que estavam à beira da extinção. É o caso do Trigo Barbela, a principal espécie que usa, e que tem um maior conteúdo de óleo, o que se nota logo no amassar e eventualmente é responsável pelo miolo macio e fofo. Algo que noutras paragens exigiria melhorantes e outros produtos, e é aqui garantido pelo próprio trigo. Aliás, para Diogo, a qualidade do pão começa logo pela moagem, que na Gleba é feita localmente com uma pequena mó de pedra. O trigo moído e amassado imediatamente preserva todas as componentes aromáticas, dando origem a um pão mais rico e complexo.
Já Mário Rolando tinha enfatizado esta ideia, o padeiro e o moleiro são pessoas diferentes, profissões diferentes, especialidades diferentes. Cada uma tem o seu mister, e ambas são desafiantes e difíceis. Nas modernas moagens o trigo é moído em cilindros metálicos, o que aquece a farinha ligeiramente e remove muito do seu fragrante aroma. As mós de pedra são mais respeitadoras do produto, mas também exigem uma maior especialização. Por outrolado, as moagens industriais retiram o gérmen do trigo, para aumentar a sua conservação sem rançar. A farinha de mó de pedra mantém o gérmen, é uma farinha viva, mais nutritiva. O que isto mostra é a grande complexidade do mundo do pão, um cuidado com os detalhes que se vê também no mundo do vinho.
Amorim explicou-me que só cultivamos em Portugal 1% ou menos de todos os cereais panificáveis que consumimos. Por isso, o seu trabalho de defesa dos cereais antigos como o trigo Barbela, o Almansor, o Morto-Vivo, o centeio Verde ou o milho branco acaba por ser instrumental também para reforçar a aposta na preservação destas espécies e do seu cultivo como parte de um modo de vida mais sustentável e autêntico. São todos distintos em termos aromáticos e têm tido muita receptividade junto dos clientes, que apreciam e recompensam o esforço de valorização desta herança. Já há mais agricultores a apostar em sementeiras destes cereais antigos e mais diversos. Diogo usa na fermentação cestos de vime (também local) em vez do tradicional panal (pano usado para separar os pães enquanto fermentam), o que, apesar de não ser tradição em Portugal, lhe parece mais indicado para massas mais hidratadas e também para um espaço pequeno como o seu.
Todos os padeiros concordam que a fermentação natural retarda o processo de envelhecimento do pão, que ocorre naturalmente devido à perda de humidade e ao enrijecer pela retrogradação do amido. Também por isso, preferem os pães grandes, que pelo seu porte perdem menos humidade. É fascinante pegar numa faca de serrilha e cortar uma primeira fatia de pão, ouvindo o característico barulho da crosta a estalar, e ansiosamente espreitando para finalmente vislumbrar o miolo antes escondido. Diogo Amorim recomenda que, depois de cortado, o pão seja guardado virado com a face exposta para baixo, e embrulhado num saco de papel.
Os tipos de pão
Hoje em dia há muitos tipos de pão, e muitos modos de o consumir. Mário Rolando ajudou-me a sistematizar. Há o pão da panificadora, carcaças, bolas ou maior, feito com farinhas aditivadas e melhorantes, usualmente para enfatizar o volume. Este é também o pão que se come nas grandes superfícies, que demora uma hora e meia desde o amassar até ser posto à venda. Há pães industriais (tipo Bimbo) embalados. Há ainda o pão pré-cozido e depois ultra-congelado, para ser cozido mais tarde e consumido quente, vulgar em muitos restaurantes e cafés. De entre estes, destacam-se alguns feitos por empresas com muita investigação e desenvolvimento, que conseguem manter zimotecas (bibliotecas de leveduras e massas-mãe de todo o mundo), e que procuram ter qualidade de pão artesanal reproduzível. Esta reproduzibilidade tem sido sistematizada e posta em prática por algumas das moagens industriais, que fornecem misturas tudo-em-um para fazer vários tipos de pães regionais, desde a broa de Avintes até ao pão alentejano. Aliás, disse-me um dos padeiros que em muitas padarias de pão “dito” tradicional, os padeiros têm sacos de melhorante, mas escondidos. Conclusão: os padeiros não se orgulhavam de o usar.
Mas a grande surpresa veio da visita à Padaria Carlota, em Janas, onde José Vicente e Humberto Costa fazem um pão grande que sempre me fascinou. Não há massa-mãe, apenas fermento de padeiro, pouco (1,25%), uma mistura de farinhas e um nada de melhorante (0.4%). A massa resultante faz uma fermentação lenta, mas apenas umas quatro horas entre o começar a amassar e a saída do forno.
Este é um pão “palco”, não tanto um pão “actor” na expressão feliz do meu amigo Paulo Amado, o mesmo que pegou num destes pães e com uma faca de pão o começou a desmanchar de acordo com a sua fisiologia. Uma fascinante obra de arte, e enquanto aparecia azeite, manteiga, conservas, molho picante, íamos desfrutando esta especialização do pão em partes, algo que eu muito espartanamente tinha sempre evitado. É que sobre o pão há sempre muitas regras e rezas: que não se vira ao contrário, que não se escolhe, que se corta a eito, que não se pode tirar só côdea, ou só miolo, que tem se que partir à mão.
Sobre isto, contou Mouette uma história fascinante. Ao cozer uma fornada, há sempre um pão diferente dos outros todos, mais pequeno, o último a entrar e primeiro a sair. Em muitos lugares este pão tem um estatuto particular, quase sagrado: não se pode cortar com faca e deve ser partilhado ainda quente à boca do forno. O fumo deste pão quente alimenta as almas do purgatório.
O pão de Janas foi separado em várias partes, para diferentes gostos dos comensais: a côdea, a côdea mais macia que fica de lado, onde os pães se tocam, o miolo, um filete de miolo, a côdea de baixo, e sua separação de acordo com as rugas que espontaneamente se formaram. Nunca tinha vivido esta geografia do pão, este hedonismo separar as várias partes e escolher de entre elas, gulosamente, atenciosamente, reverentemente. Deixo o desafio: experimentem.
A crónica do pão não pode nem vai ficar por aqui, tantas são as histórias que deixo por contar. Cláudia Bicho deixou uma carreira de cientista para ser pasteleira e padeira no Chapitô à mesa, onde todos os dias amassa um pão diferente. Vítor Sobral já abriu uma padaria em São Paulo e vai abrir muito em breve uma em Lisboa, em sociedade com Mário Rolando. O pão tem história, histórias, e ainda vai fazer história.
O Diabo Na Cozinha

Marco Pierre White Quetzal €18,80 MARCO PIERRE WHITE é uma figura incontornável do panorama da culinária inglesa. Apesar de o nome sugerir outras origens, Marco é mesmo inglês e virou ultrafamoso exactamente por ter sido o primeiro “chef” inglês a conseguir as ambicionadas 3 estrelas Michelin. Este livro autobiográfico narra-nos o seu percurso, contado na […]
Marco Pierre White
Quetzal
€18,80
MARCO PIERRE WHITE é uma figura incontornável do panorama da culinária inglesa. Apesar de o nome sugerir outras origens, Marco é mesmo inglês e virou ultrafamoso exactamente por ter sido o primeiro “chef” inglês a conseguir as ambicionadas 3 estrelas Michelin. Este livro autobiográfico narra-nos o seu percurso, contado na primeira pessoa.
Sem grande preocupação estilística, sem o tom “picante” que os subtítulos da capa poderiam sugerir, é um livro de um caminho, de uma obsessão, de um “chef” que soube aprender com os mestres mas que foi também mentor de figuras muito conhecidas da nossa TV. Quem viu o MasterChef Austrália provavelmente viu Marco, com um ar tranquilo e pacificado com a culinária, ajudando os concorrentes no seu tirocínio. Mas também quem procurar no Youtube vai encontrar vídeos deliciosos em que se vê Marco na sua cozinha, com alguns jovens chefes à sua volta (quem sabe estagiários…) – e entre eles lá está Gordon Ramsey, então ainda e apenas um cozinheiro à procura do seu espaço.
O livro, em que o autor não esquece todos os grandes nomes da cozinha com quem se cruzou, aborda de resto as inicialmente boas relações com Gordon e mais tarde as péssimas, ao ponto de se recusarem a almoçar na mesma sala. Ao invés, percorre por todo o livro um permanente agradecimento a Raymond Blanc, o grande chefe francês que há décadas é figura primordial do ambiente culinário inglês e que também podemos ver nos programas do cabo, com episódios deliciosos e receitas de grande valia, ao alcance dos amadores.
Ao contrário de outros livros autobiográficos, como “A Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain, por aqui não passa a mesma quantidade de droga que passava nos States, aqui não existe a relação difícil mas obrigatória com os hispânicos; por aqui tudo se faz à custa de cigarros e café, os dois grandes companheiros de Marco ao longo da sua história. A velocidade a que chegou às 3 estrelas foi também amesma com que se desfez delas, tendo abandonado a corrida. O livro é, de resto, omisso em relação ao percurso após o abandono do estrelato, quase a sugerir que “isso” fica para um segundo volume. Como história de vida é um livro bem interessante, que se lê de um rasgo e pode mesmo desanimar alguns jovens chefes que gostariam de entrar neste tipo de corrida às estrelas; por outro lado, nunca se perde a noção de que é preciso cozinhar com uma doentia obsessão pela qualidade e algumas das (poucas) receitas que são explicadas no final do livro dão-nos a noção do rigor e do pormenor que um prato pode atingir. Para um leigo fica a ideia de que esta “coisa” da cozinha, dos chefes e das estrelas, é de doidos. Pois eu acho mesmo que é…
(JPM)