CARCAVELOS VILLA OEIRAS: O renascer de um ícone

CARCAVELOS VILLA OEIRAS

O projecto Villa Oeiras é muito mais do que uma iniciativa de produção de vinhos de Carcavelos, uma das mais pequenas regiões vitivinícolas de Portugal. É, sobretudo, uma iniciativa de recuperação de um património único, que se poderia ter perdido se a Câmara de Oeiras não se tivesse envolvido nisso. De outra forma, seria quase […]

O projecto Villa Oeiras é muito mais do que uma iniciativa de produção de vinhos de Carcavelos, uma das mais pequenas regiões vitivinícolas de Portugal. É, sobretudo, uma iniciativa de recuperação de um património único, que se poderia ter perdido se a Câmara de Oeiras não se tivesse envolvido nisso. De outra forma, seria quase impossível impedir o avanço imobiliário sobre os espaços ainda livres deste concelho e de Cascais, onde a denominação está inserida. Como salienta o seu coordenador, Alexandre Lisboa, a autarquia está envolvida nesta iniciativa, “porque é de recuperação de um património de vitivinicultura, paisagístico e cultural, de uma região onde a Vitis vinifera, a videira europeia, está presente desde a última glaciação”. Acrescenta que é ali “cultivada há mais de dois mil anos e há relatos sobre os seus vinhos com 500 anos”.
A região aguentou a devastação causada pelo míldio, oídio e filoxera, que ocorreu em todo o país, recuperando e voltando a lançar vinhos com reconhecimento nos mercados nacional e internacional depois do início do século XX. Mas não conseguiu lutar contra o crescimento urbano sem a intervenção do estado, neste caso das Câmaras de Oeiras e Cascais, que reservaram, nos seus territórios, zonas que estão agora protegidas para a produção de Vinho de Carcavelos. Isso tem contribuído para o crescimento da área de vinha na região para os mais de 30 hectares actuais, e para a garantia que esta não vai colapsar.

CARCAVELOS VILLA OEIRAS
Vinha Villa Oeiras, Vinho de Carcavelos. Estação Agronómica, Oeiras.

Vinhas quase urbanas
Quando o projecto Villa Oeiras começou, existiam 12 hectares de vinha em produção em toda a denominação, divididos por cinco quintas diferentes. Eram microparcelas inseridas nas Quintas da Samarra, dos Pesos, Mosteiro de Santa Maria do Mar e na Estação Agronómica de Oeiras, a Quinta do Marquês do Pombal. “Era o que existia nos anos 80, mas hoje em dia há muito mais”, avança Alexandre Lisboa. Só a da Quinta do Marquês do Pombal, aquela que é gerida pela Câmara de Oeiras, tem 20 hectares, de um total de 33 que compõem toda a vinha que dá origem ao vinho de Carcavelos.
Mas, segundo o responsável, a região poderá chegar aos 41 hectares de vinha nos próximos anos, se todos os direitos de plantação forem usados. Claro que isto corresponde a um quintalinho em relação a toda a região de Lisboa, onde estão também inseridas as denominações históricas de Bucelas, a maior, e Colares, que tem actualmente cerca de 40 hectares de vinha.
Carcavelos inclui entre outros, para além da Câmara de Oeiras, a Câmara de Cascais, que começou a produzir vinhos há três anos na Quinta do Mosteiro de Santa Maria do Mar, a Quinta dos Pesos, que não está a produzir mas ainda está a engarrafar, a Quinta da Samarra, que tem 1,9 hectares, a Quinta de Valverde, que plantou dois hectares e o ex-chefe de cozinha Vitor Claro e a Adega de Belém, que compram uvas na Quinta da Ribeira e vinificam na Adega do Casal Manteiga, da Câmara de Oeiras. “São essencialmente vinhos de uvas tintas, que são transformadas na nossa adega”, conta Alexandre Lisboa, acrescentando que a sua autarquia cede as instalações porque quer que a região seja saudável e continue a produzir vinhos durante muitos mais anos. “Para que isso aconteça, abrimos as portas da nossa adega a outros produtores, para que possam transformar aqui as suas uvas e produzir Carcavelos, já que esta é a única adega a funcionar na região”, acrescenta.

CARCAVELOS VILLA OEIRAS

Em busca do conhecimento
Em 2006, quando começou o envolvimento da Câmara de Oeiras na recuperação do património vitivinícola de Carcavelos, havia apenas um produtor, apesar de haver registo de produção todos os anos, mesmo que apenas de coisas muito pequenas, de mil, dois mil litros de vinho. “A sensação que existia e que me foi passada por todos os players da região na altura, era que não valia a pena produzir vinho de Carcavelos, já que as pessoas nem sabiam se o vinho era, ou não, bom”, conta o responsável do projecto. E é, com algum entusiasmo, que relata que apenas encontrou duas referências quando fez a primeira pesquisa no Google sobre o vinho de Carcavelos, ou seja, que não havia nada de consistente sobre o tema em 2006, quando a Câmara de Oeiras se envolveu neste projecto e que hoje “há milhares”. Na altura, aquilo que se sabia sobre os Carcavelos vinha da prova de vinhos antigos, como os da Quinta do Barão dos anos 50, ou da Quinta da Alagoa dos anos 20. “Ainda há pouco tempo provei um de 1906, um vinho extraordinário”, revela Alexandre Lisboa.
Era, pois, premente recuperar este património. A iniciativa nasceu dessa necessidade, com a visão “de produzir um vinho de Carcavelos baseado na excelência e em processos produtivos de excelência, que seja uma referência nacional e internacional de qualidade”. Foi isto que ficou escrito, em 2006, no documento base naquele que é hoje o projecto Villa Oeiras. Afinal, já que era necessário recuperar um património vitivinícola único, “o melhor era ter, como objectivo, fazer o melhor Carcavelos do mundo”, defende o responsável.
Mas isso não era possível de concretizar sem conhecimento. Por isso, os responsáveis pegaram em todo o saber que tinha sido adquirido, desde os anos 80 do século passado até 2006, pela Estação Agronómica Nacional, como base para o desenvolvimento do projecto.
Era preciso aprender a fazer o vinho de Carcavelos. Mas também definir quais as características que deveria ter o vinho acabado de fermentar, qual a aguardente mais apropriada para parar o processo, e como é que os vinhos deviam saber e cheirar quando acabados de fortificar. Foram essas as perguntas que Alexandre Lisboa fez a Estrela Carvalho, a responsável pelo projecto dos vinhos de Carcavelos desde a década de 80, as mesmas que ela tinha feito quando começou a fazer os vinhos de Carcavelos, já que pouco se sabia sobre estes temas na altura. Apenas estavam definidos os aromas e sabores dos vinhos antigos, os que tinham sido engarrafados há muito, “através das provas que foram sendo feitas de referências da Quinta do Barão, dos Pesos, da Alagoa e do Paulo Jorge”. Ou seja, não havia nada escrito em relação à prova de vinho novo e não se sabia nada sobre as características dos vinhos acabados de fermentar, e à medida que evoluíam com o tempo. Por isso, houve que investigar e experimentar, para encontrar a fórmula mais correcta para produzir o vinho de Carcavelos.
Entre a plantação das primeiras vinhas na Estação Agronómica, em 1985, e 2006, quando a Câmara de Oeiras assumiu o projecto, fez-se muita investigação e experimentação com aguardentes de origens e qualidade diferentes. Nos Villa Oeiras é só usada aguardente vínica da Lourinhã, e, para Alexandre Lisboa, é apenas essencial a sua qualidade.

CARCAVELOS VILLA OEIRASSaber esperar pelo vinho
Quando a câmara se envolveu no projecto foi necessário comprar pipas novas. “E fizemos isto porquê?”, interroga-se Alexandre Lisboa, explicando que não havia, naquela altura, qualquer estudo sobre o comportamento de madeiras em vinhos fortificados desta região. “E não podíamos perder a oportunidade de o fazer”, afirma. E, assim, os primeiros vinhos foram estagiados em madeiras de carvalho francês Limousin e Allier, carvalho nacional e castanho, com tosta média e forte. Como é evidente, ficaram marcados pela madeira e eram muito pouco apelativos no início, o que obrigou a espera prolongada e muitas provas para se ir avaliando a sua evolução, não só para se saber que tipo de vinhos originavam cada um destes tipos de madeira, mas também para identificar o período mínimo de estágio para o seu lançamento. Isso levou ao adiamento do lançamento de vinhos, mas, em paralelo, à aquisição de conhecimento sobre a melhor forma de fazer e envelhecer vinhos de Carcavelos, primeiro brancos e, algum tempo mais tarde, também tintos, porque o processo destes foi mais difícil de definir.
Depois de descoberto, de novo, o processo que dá origem à produção do vinho de Carcavelos, era necessário comunicar a região e os seus vinhos, não só para criar apetência no mercado, mas também para envolver mais produtores, como tem estado a acontecer. Primeiro foram publicitados os vinhos em cartazes por todo o concelho de Oeiras. Depois, foram feitas feiras temáticas como o “Há Prova em Algés”, que, este ano, já vai na 10ª edição, e outras.
“Temos também participado em feiras de vinhos um pouco por todo o país, de uma forma quase institucional, e concorrido em várias competições”, revela Alexandre Lisboa. Em 2021, a revista Grandes Escolhas classificou o Colheita Tinto 2009 como o Melhor Fortificado português, a par de dois vinhos do Porto, um Tawny 40 anos e um Vintage 2018. Classificações como estas também contribuíram para o projecto marcar posição no mercado e “para o reconhecimento da excelência do trabalho feito até hoje”. Segundo Alexandre Macedo, todos os anos o Villa Oeiras vende cerca de 50 mil garrafas, número que deverá crescer com o aumento da área de vinha. São vendidas em Portugal e exportadas para 15 países, sobretudo para os Estados Unidos, Brasil, Espanha e Reino Unido.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)

20 anos de Santa Cristina

Santa Cristina

Ao completar 60 anos de idade, o empresário António Pinto entendeu que era tempo de encontrar um espaço agrícola de lazer onde pudesse reunir a família e os amigos. A sua esposa, Rosa Maria Pinto, foi decisiva na escolha de Celorico de Basto e da vertente vitivinícola, herdando de seu pai, viticultor, algumas parcelas de […]

Ao completar 60 anos de idade, o empresário António Pinto entendeu que era tempo de encontrar um espaço agrícola de lazer onde pudesse reunir a família e os amigos. A sua esposa, Rosa Maria Pinto, foi decisiva na escolha de Celorico de Basto e da vertente vitivinícola, herdando de seu pai, viticultor, algumas parcelas de vinha e a paixão pelo vinho.
António Pinto não queria, no entanto, mais um Vinho Verde comum. Pretendia um produto de qualidade elevada e de que se pudesse orgulhar. Com o objectivo de fazer bem feito e mente, recorreu ao enólogo Jorge Sousa Pinto, profissional de primeira linha, com provas dadas na região. A história é contada por este último em poucas palavras: “Quando conversei com o senhor António Pinto, em plena vindima de 2004, gostei muito do projecto e do seu empenho e disse-lhe que ia ajudar no que fosse preciso. Pensava eu que era para começar no ano seguinte. Afinal era para começar a trabalhar no dia seguinte, às sete da manhã já lá estava, na cave da sua residência, a receber uvas…”
A coisa, entretanto, foi ganhando outra escala e condições. Em 2008 começaram a fazer espumante, em 2013 construiu-se uma adega moderna, com tudo o que é preciso. A “brincadeira” de António Pinto transformou-se em 50 hectares de vinha, com mais de 400 mil litros produzidos em cada ano. “Nunca pensei que isto tomasse a dimensão que tomou”, confessa António Pinto. Entretanto, a sua filha Mónica Pinto tomou a direcção do projecto, assumindo a gestão e coordenação de toda uma equipa profissional dedicada ao negócio vitivinícola. Negócio que tem vindo a crescer de ano para ano.
A Quinta de Santa Cristina situa-se no coração de Basto, sub-região dos Vinhos Verdes. Entre vinha e floresta são cerca de 60 hectares, na margem direita do rio Tâmega, um espaço rodeado pelas serras de Fafe, Marão, Alvão e Cabreira, convidando ao sossego e harmonia entre vinhos e natureza. Na verdade, e como é habitual no modelo de minifúndio minhoto, o nome Santa Cristina serve de chapéu a diferentes propriedades, dispersas por três concelhos: Celorico de Basto, Cabeceiras de Basto e Ribeira de Pena. Assim, a Quinta de Santa Cristina propriamente dita, dispõe de 8 hectares de vinha, plantada com castas brancas e tintas: Alvarinho, Fernão Pires, Sauvignon Blanc, Espadeiro, Trajadura e Padeiro de Basto. A quinta da Capela são 5 hectares, com Trajadura, Avesso e Batoca. Na Tecla estão 3,5 hectares, com Alvarinho e Chardonnay, enquanto Fermil representa 2,3 hectares exclusivamente plantados com Arinto. Juntam-se, a estas, mais três quintas (as de maior dimensão) num total de sete: quinta de Salgueiros são 11 hectares, plantados com Trajadura, Loureiro, Azal e Padeiro de Basto; quinta de Agúnchos tem 10 hectares de Arinto, Alvarinho, Vinhão e Fernão Pires; e quinta de Parada, outros 10 hectares, com Arinto, Alvarinho, Azal e Loureiro. Todas estas vinhas encontram-se assentes no típico solo granítico da região, variando as altitudes (dos 200 metros de Fermil aos 500 metros de Salgueiros, com a média a rondar os 350 metros) e a exposição solar, ainda que esta seja maioritariamente Nascente/Sul. A cintura de serras de que acima falámos protege dos ventos marítimos mais agrestes, dando a esta região atlântica alguma influência continental.

Mónica Pinto, com os pais António e Rosa Maria, gere o dia da dia da empresa. 

Batoca faz diferença
De entre a multitude de castas plantadas é de destacar a Batoca, uma casta autóctone e praticamente limitada à sub-região de Basto. Casta muito produtiva, encontrava-se sobretudo nas antigas ramadas, mas tem a vantagem, segundo Jorge Sousa Pinto, de oxidar lentamente e crescer na garrafa. Para o enólogo, a Batoca representa uma parte importante da herança vitivinícola local. “Ao longo do tempo, esta casta foi sendo esquecida e tornando-se quase extinta”, refere. “A Quinta de Santa Cristina dedicou-se à sua recuperação e preservação, e orgulhamo-nos de ser o único produtor a engarrafar esta variedade em separado.” De qualquer forma, do total plantado, 30% é Alvarinho, seguindo-se, por ordem de grandeza, Arinto, Trajadura e Loureiro. Tendo em vista os resultados alcançados por cada casta e os objectivos pretendidos, a enologia identificou já um excesso de Trajadura, que vai substituída, sobretudo, por Avesso e Arinto.
Em termos de modelo vitivinícola, foi adoptado o Sistema de Produção Integrada e Global, implicando seguir determinadas regras e boas práticas agrícolas, priorizando a preservação ambiental, a segurança e o bem-estar dos trabalhadores, a gestão de resíduos e a segurança alimentar. A título de exemplo, Jorge Sousa Pinto aponta a recuperação dos resíduos da poda, triturados e deixados no campo como matéria orgânica, reforçando o compromisso da quinta com práticas sustentáveis. A adega, construída de raiz em 2013, tem uma capacidade instalada para um milhão de litros, vinificando actualmente menos de metade, entre brancos, tintos, rosés e espumantes. Para além das incontornáveis cubas inox e sistemas de frio, Jorge Sousa Pinto e o enólogo residente, Bernardino Magalhães, contam com dois lagares de granito (com controle de temperatura) para a pisa e fermentação dos tintos mais clássicos, uma área de fermentação e estágio em barrica e ainda uma outra dedicada aos espumantes, que começaram a ser produzidos em 2008. A ideia é a marca Quinta de Santa Cristina aparecer unicamente em referências que signifiquem valor acrescentado. Diz António Pinto: “Queremos experimentar, testar, perceber o consumidor e só depois lançar no mercado um vinho que faça a diferença. Fazer bom e barato não é objectivo.” Corroborando a afirmação, é significativo que, desde 2023, todos os vinhos da Quinta de Santa Cristina, mesmo os considerados “entrada de gama”, sejam engarrafados sem qualquer adição de gás ou açúcar.

Verdes de garrafeira
Mais significativo ainda, o lançamento da linha Cave, que tem, como propósito, introduzir valor e mostrar, a quem ainda duvida, que os Vinhos Verdes podem ser grandes brancos, vinhos que ultrapassam a prova do tempo. Ao contrário de outros produtores da região que relançam agora vinhos que já estiveram no mercado há alguns anos, os vinhos da linha Cave assentam num conceito distinto. “São especificamente feitos para crescer em garrafa e lançar com dois ou três anos de idade. Não são vinhos que ficaram para trás”, acentua Jorge Sousa Pinto. Assim, todos os anos chegarão ao mercado vinhos varietais ou de lote baseados neste modelo. E há vinhos que vão esperar dois anos e outros esperam três, quatro, cinco ou mesmo seis anos, o que diz bem da confiança do enólogo e da capacidade de António e Mónica Pinto esperar pelo retorno do investimento.
Os vinhos da Quinta de Santa Cristina estão, sobretudo, no canal Horeca. A exportação representa já 40% do negócio, com mercados como Alemanha, Inglaterra, Polónia, Holanda, Suíça, Suécia e, mais recentemente, EUA e Japão, na linha da frente.
Desde 2015 que um dos focos da empresa tem sido o enoturismo, cujo espaço foi alvo de grande reformulação em 2020, com novas infra-estruturas (incluindo cozinha industrial) e um renovado programa dos espaços arquitectónicos, criando três ambientes que interligam vinhas e adega, um espaço multiusos com capacidade para 150 pessoas, um wine-bar e uma ampla loja. Para além das provas e da experiência gastronómica, os visitantes podem desfrutar de um vasto programa de actividades, incluindo visitas às vinhas (a pé, bicicleta ou TT), adega e cave, criação de lotes, e piqueniques na vinha ou nos jardins, aproveitando a paisagem natural.
Duas décadas transformaram a Quinta de Santa Cristina de espaço privado de lazer a ambicioso produtor de Vinho Verde, uma casa que conjuga como poucos três factores fundamentais: escala, qualidade e diferença. Uma importante mais-valia para uma região que tem cada vez mais coisas boas para nos mostrar.

Santa Cristina

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2024)

 

Barca Velha 2015: Um Douro (muito) Especial

Barca Velha

Para além de ser um vinho histórico, é um vinho cheio de histórias, mais pequenas e pessoais. As histórias de como, quando, onde e em que circunstância se tomou o primeiro contacto com este mítico vinho. Variam as pessoas, os anos e as emoções criadas pelo momento, mas há um denominador comum – o primeiro […]

Para além de ser um vinho histórico, é um vinho cheio de histórias, mais pequenas e pessoais. As histórias de como, quando, onde e em que circunstância se tomou o primeiro contacto com este mítico vinho. Variam as pessoas, os anos e as emoções criadas pelo momento, mas há um denominador comum – o primeiro Barca Velha na vida não se esqueçe. Certamente muitos colegas meus têm uma história para contar. Eu tenho a minha.
Foi em 2010 quando um casal de amigos veio de Moscovo para passar cá as férias. O marido da minha amiga era um homem de negócios, considerava-se apreciador e só bebia vinhos caros italianos e franceses. Naturalmente, perguntou-me qual era o melhor vinho de Portugal, quando entrámos numa garrafeira. Contei-lhe a história do Barca Velha e expliquei que nunca o tinha provado e não posso acrescentar a experiência própria à minha recomendação. O meu amigo comprou, sem pestanejar, duas garrafas do Barca Velha 2000, uma das quais ofereceu-me e disse: “Tens que provar, é para ti.” E provei. Era bem diferente do que estava à espera: não era uma bomba de sabor cheia de potência, mas um vinho extremamente elegante e estruturado, repleto de frescura e com um final tão longo que me impressionou.

Porque é um vinho mítico?
O Barca Velha foi criado em 1952 pelo enólogo/provador da Casa Ferreirinha, Fernando Nicolau de Almeida, perseguindo um sonho de produzir um vinho tinto de alta qualidade no Douro, região onde quase exclusivamente se produzia vinho do Porto na altura. Em condições conseguiu arranjar apenas as uvas. Todo o processo de vinificação foi um enorme desafio, só ultrapassado graças ao engenho e à enorme força de vontade do criador do Barca Velha. Para uma versão completa, recomendo vivamente a leitura do livro “Barca Velha – Histórias de Um Vinho”, de Ana Sofia Fonseca.
O Barca Velha não é declarado todos os anos, pois por muita perícia e cuidados na viticultura e enologia, milagres não existem, e o ano nem sempre entrega a qualidade intrínseca pretendida para um vinho deste nível de exigência.

O estilo muda?
Sim, com certeza. Passaram mais de 70 anos desde a colheita de estreia e muita coisa mudou desde então: as vinhas e as castas que dão origem ao vinho, as práticas de viticultura, as adegas, a tecnologia e o tipo das barricas utilizadas.
Seria ingénuo pensar que o Barca Velha 1952, feito de uvas não desengaçadas (não havia desengaçadores na altura) numas tinas com gelo transportado à noite de Matosinhos para o Douro Superior e estagiado em barricas de carvalho português, bem mais poroso do que o francês, fosse igual ao Barca Velha 2015, produzido com todos os cuidados e atenção nos detalhes, desde a uva até ao mais ínfimo pormenor, em barricas escolhidas propositadamente para este vinho. A composição varietal também é ajustada para garantir a estrutura, complexidade, frescura e potencial de guarda. A Touriga Franca (43%) garante a estrutura juntamente com Touriga Nacional (40%), responsável pelo aroma e complexidade. Ambas são a espinha dorsal do Barca Velha 2015. Pela primeira vez, o Sousão entrou no lote com 10% a conferir tanino e acidez, ultrapassando o Tinto Cão (5%) e a Tinta Roriz (2%) em proporção. As uvas provêm das vinhas de altitudes e locais diferentes da Quinta da Leda e também das propriedades da Casa Ferreirinha nas zonas altas de Meda.
O que se mantém inalterável é a filosofia do vinho, a vontade e a capacidade de alcançar uma perfeição, mesmo que não seja absoluta, conceptual e contextual.

Como se decide um Barca Velha?
Em 1960 foi criado o Reserva Especial, um vinho que é declarado também em anos de excelência, quando a sua expectativa de longevidade é ligeiramente inferior ao Barca Velha.
Os primeiros indícios de um vinho excepcional surgem na vindima. Se assim for, no final do estágio em barrica (cerca de 18 meses) o lote é engarrafado em garrafas borgonhesas (ao contrário dos outros vinhos da Casa Ferreirinha, que vão para as garrafas bordalesas) e, apelidado de “Douro Especial”, inicia o seu estágio de vários anos em cave para sair de lá com o rótulo de Barca Velha ou de Reserva Especial. Ao longo deste tempo, o enólogo responsável por perpetuar o legado, Luís Sottomayor, com a sua equipa, vai provando o vinho e acompanhando a sua evolução. A decisão acaba por não ser espontânea, é antes uma convicção que se cria na sequência de muitas provas. “Às tantas, a decisão que se coloca não é ser, ou não, Barca Velha, mas qual o momento certo para o lançar” – explica o enólogo. Procura-se o momento, quando o vinho começa a ficar pronto. Cada Barca Velha à nascença tem cerca de oito anos de estágio; o 2015 teve nove.

O preço é justo?
Não existe uma resposta binária, tal como não existe uma justiça linear na relação preço/qualidade de um vinho deste gabarito e notoriedade. Neste caso, o preço não é uma transposição directa de qualidade. Há outros mecanismos que o determinam. Um deles é o próprio mercado. Espera-se que no retalho rondará, nesta primeira fase, entre os €800 e €900.
Claro que, para muitos, provar um Barca Velha continuará a ser um sonho, mas sempre há quem veja este preço como irrisório e gaste muito mais em coisas bem mais fúteis.
O Barca Velha transporta, consigo, toda a história dos vinhos tranquilos do Douro, o legado de conhecimento e aprendizagem e todo o potencial, se quiserem. Não me escandaliza o preço do Barca Velha, mesmo não sendo acessível para mim, como para a maioria dos portugueses. Escandaliza-me quando pedem um preço exorbitante para um vinho sem história e sem outro propósito para além de ganhar artificial notoriedade.

Como é o Barca Velha 2015?
São inevitáveis as comparações com os Barca Velha dos anos anteriores. No Barca Velha 2015 Luís Sottomayor reconhece a estrutura, o volume, os taninos e a maturação de 2011 (um ano quente), bem casados com elegância, harmonia, austeridade e acidez de 2008 (um ano mais fresco).
O Barca Velha 2015, como os anteriores que tinha provado, não é sobre o equilíbrio. Este subentende-se. É sobre harmonia. Estaria enganada se dissesse que é um vinho para impressionar a qualquer um. Não é. Exige alguma experiência de prova, alguma bagagem sensorial para o entender e tirar o maior prazer da prova. E, mesmo assim, é preciso tempo de contacto e foco para permitir que o vinho evolua no copo, para o deixar falar.
Com nove anos de idade está ainda no início da sua vida. A evolução que apresenta é imperceptível como idade, sente-se como afinação. Num vinho perfeito não procuramos a perfeição, mas sim uma diferença, algo pessoal. A elegância é um termo de prova vasto, muitas vezes usado e abusado, mas é um termo bem assertivo neste caso. O Barca Velha 2015 está elegante e certamente ganhará ainda mais requinte com a continuação do estágio em garrafa. Ao mesmo tempo há algo irreverente nele, na forma como não se exibe de imediato, como o tanino ainda agarra, na acidez afiada, no corpo enxuto. Não é um vinho para mastigar. É para engolir e, de preferência, com comida. E no final, assumidamente infinito, deixa a sua presença na boca e na memória. E deixo aqui uma última observação: o Barca Velha não é excelente por ser famoso, é famoso por ser excelente. Foram produzidas 16.567 garrafas.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Domingos Soares Franco: O Homem sonha, a obra nasce…

DOMINGOS SOARES FRANCO

Nascido no seio de uma das famílias mais antigas no sector dos vinhos em Portugal, proprietária da José Maria da Fonseca, que produz Moscatel de Setúbal e o famoso vinho Periquita, Domingos Soares Franco viu a sua admissão rejeitada no Instituto Superior de Agronomia na altura conturbada do Verão Quente de 1975, devido ao seu […]

Nascido no seio de uma das famílias mais antigas no sector dos vinhos em Portugal, proprietária da José Maria da Fonseca, que produz Moscatel de Setúbal e o famoso vinho Periquita, Domingos Soares Franco viu a sua admissão rejeitada no Instituto Superior de Agronomia na altura conturbada do Verão Quente de 1975, devido ao seu apelido de família.
Foi para a Califórnia estudar Enologia e Viticultura entre 1976 e 1981, tendo terminado o curso na Universidade de Davis, não muito distante da cidade de São Francisco. Viver nos EUA foi uma verdadeira “life changing experience” tendo-lhe mudado “chip” de maneira irreversível, e, de certo modo, radical até. Todavia, quando regressou a Portugal, o seu curso não foi aceite pela Associação Portuguesa de Enologia e a respectiva equivalência não lhe foi atribuída, por motivos que não interessam agora aqui esmiuçar.
E o que fez Domingos Soares Franco?

Seguiu em frente, traçou o seu caminho, um pouco ao estilo “the American way!” E assim se passaram quatro décadas, quarenta anos (!), a liderar a enologia da empresa José Maria da Fonseca, sempre ladeado pelo seu irmão António, que ficou responsável pela vertente financeira, e assegurando um mais que merecido lugar de destaque na História e Património Vínico Português.Pelo meio fez, tentou fazer, apenas aquilo que um autor espanhol de finais do século XIX, princípios do século XX, explicava, com humor, num dos seus textos…
“–¿Y en el medio?
–¿En el medio? ¡Ese es el cuento!
– Hay que poner talento.”
Pelo meio aplicou, pois, os conhecimentos adquiridos no Novo Mundo a fazer vinho, comprou máquinas, terra, herdades e adegas, teve também alguns sobressaltos, viajou bastante, sempre na busca do seu caminho, e sempre com o objectivo de nunca perder de vista para onde se direccionava o gosto do consumidor. Continuou e ampliou a colecção ampelográfica de castas que o seu tio António Porto Soares Franco havia iniciado nos inícios de 1920, e que seu pai, Fernando Soares Franco, também havia dado continuidade e consistência, sendo este um trabalho de que se orgulha especialmente.

Não há muito que não tenha sido dito e escrito ainda sobre Domingos Soares Franco, tendo sido não há muito tempo distinguido e “Enólogo Vinhos Generosos do Ano” aqui pela nossa Grandes Escolhas, prémio de carácter mais pessoal que o sensibilizou e encheu de orgulho.

Vinhos pessoais, empresa familiar
A José Maria da Fonseca foi fundada em 1834, tendo iniciado em Janeiro de 2024 a celebração do seu 190º Aniversário.
No ano em que comemora 190 anos, decidiu renovar a imagem corporativa com um logótipo e uma nova assinatura, alusiva à data. A José Maria da Fonseca é um dos líderes nas áreas da produção e comercialização de vinhos de mesa e generosos em Portugal, estando as respectivas marcas presentes em mais de 70 países. Ao longo dos anos a demonstrar uma crescente preocupação face aos factores ambientais, a José Maria da Fonseca orgulha-se de utilizar as melhores práticas no tratamento da vinha, na gestão dos recursos naturais, na sua preservação e conservação, tendo sido a primeira empresa certificada no sector vitícola com as normas ambientais ISO 14001. No final de 2021 concluiu, com sucesso, a sua certificação em sustentabilidade segundo o referencial FAIR’N GREEN, sendo o primeiro produtor de vinho português a obtê-la. O seu portefólio engloba mais de sessenta marcas, representativas das principais regiões vitivinícolas nacionais: Península de Setúbal, Alentejo, Douro, Dão e Vinhos Verdes.

Desde a sua génese, esta é uma empresa 100% familiar, sendo a passagem de testemunho já uma realidade, sentindo-se, entretanto, Domingos Soares Franco, muito tranquilo em relação à sétima geração que já vai assumindo as rédeas da empresa.
E foi neste contexto que recentemente fomos recebidos na emblemática Quinta de Camarate, em Azeitão, para a apresentação de um quarteto de novidades da Colecção Privada Domingos Soares Franco – duas estreias com as novas referências DSF Castelão 2015 e DSF Syrah 2021; e duas novas colheitas dos vinhos DSF Moscatel Roxo Rosé 2023 e DSF Verdelho 2023. Esta gama de vinhos reflecte o caráter experimentalista do enólogo Domingos Soares Franco e traduz, na perfeição, a paixão, o espírito criativo e a dedicação que Domingos impõe nas suas criações, para uma experiência autêntica.
Situada em Azeitão, perto de Setúbal, a Quinta de Camarate foi adquirida por António Soares Franco em 1914 e é hoje propriedade de Domingos Soares Franco, tem uma área de 120 ha, 39 dos quais estão plantados com vinhas. A restante parte é utilizada para pasto das ovelhas que dão origem ao famoso queijo de Azeitão. As vinhas são plantadas em solos argilo-calcários a arenosos junto à Serra da Arrábida.

E foi à mesa, sob um emaranhado lindíssimo de plantas, trepadeiras e bagas silvestres que caíam a espaços ao sabor da intensidade das brisas da tarde, que Domingos Soares Franco fez justiça à frase atribuída ao famoso berbere Ibn Battuta, nascido na cidade de Tânger no ano de 1304, que durante os cerca de 30 anos em que viajou, percorreu mais de 120.000 Km pelos lugares mais longínquos e diversos, incluídos num território que hoje abarca 44 países, numa época em que a Terra era um mistério, as distâncias eram longas e viajar era uma aventura: “Viajar – de princípio deixa-te sem fala, depois transforma-te num contador de histórias”…

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Casa da Passarella: Clássicos novos e experimentais sedutores

Casa da Passarella

Há já alguns anos que o produtor Casa da Passarella nos confidencia que os seus vinhos esgotam muito depressa, sobretudo as denominadas entradas-de-gama que, no caso deste produtor do Dão, são praticamente já gama premium, com potencial guarda e a oferecer muito prazer. Ora melhor notícia não poderia haver num país (e mundo) com uma […]

Há já alguns anos que o produtor Casa da Passarella nos confidencia que os seus vinhos esgotam muito depressa, sobretudo as denominadas entradas-de-gama que, no caso deste produtor do Dão, são praticamente já gama premium, com potencial guarda e a oferecer muito prazer. Ora melhor notícia não poderia haver num país (e mundo) com uma imensidão de marcas, e logo para um produtor do Dão, região que, apesar da sua notoriedade, não tem sentido o apelo comercial de outras regiões.
Na verdade, a Casa da Passarella é uma história, e um farol, de sucesso: com um histórico de 130 anos na produção de uvas e vinhos de grande qualidade, no século passado para outros produtores da região e fora dela, a atual fase do projeto é, sem dúvida, ainda mais consistente e, porque não dizer, gloriosa. Com efeito, tudo em torno do projeto está pensado ao pormenor, desde a reabilitação das construções na propriedade à reestruturação de vinhas, passando pelo website no qual se pode ler uma verdade indesmentível: que a história da Casa da Passarella se cruza com a própria história do Dão! Brevemente abrirá um hotel que promete dar muito que falar e pôr a propriedade “de novo nas bocas do Mundo”, não fosse este um dos lemas do projeto.

Vinhos de nicho
Mas, para o enófilo, são sobretudo os vinhos que mais importam. E neste campeonato é mais que seguro dizer que todos os vinhos da Quinta da Passarella (e todos a partir de produção própria, diga-se) merecem prova atenta, com alguns deles a terem excelente relação preço-qualidade (destaque, neste tema, para as marcas A Descoberta e Abanico).
Por outro lado, e no que se refere a topos de gama, existem já verdadeiros best-sellers, caso do Villa Oliveira Encruzado (sobretudo na versão branco) e do ícone Casa da Passarella, um dos melhores tintos nacionais. Parte capital deste sucesso deve-se ao enólogo Paulo Nunes, há muito ligado à propriedade e ao Dão (ele que começou no Douro e oficia ainda na Bairrada, Trás-os-Montes e, mais recentemente, em Estremoz no Alentejo). Com efeito, Paulo Nunes tem conseguido potenciar, por um lado, a produção de vinhos a partir das muitas vinhas velhas da propriedade junto à Serra da Estrela e, por outro, a produção e lançamento de vinhos quase experimentais de nicho, em alguns casos como resultado de substituição de anteriores plantações. Talvez o melhor exemplo seja a casta Tinta Roriz que tem sido progressivamente expurgada da propriedade dando lugar, muitas vezes por enxertia, a outras castas como a Baga. Naturalmente, estes ensaios proporcionam uma dupla condição: permitem ao enólogo conhecer melhor o comportamento da casta e comprovar o acerto do perfil de vinificação escolhido, enquanto possibilita que o consumidor mais curioso vá provando vinhos únicos e muito originais.

Futuro risonho
Sob a chancela O Fugitivo, no passado foram lançados, e provados, edições de Tinta Pinheira, Bastardo e Uva-Cão, bem como um espumante de Baga e um branco de curtimenta, sendo agora lançados uma coleção de três tintos, um Tinta-Amarela, um Tinto Cão e um Baga. Com o passar dos anos, Paulo Nunes assume já ter um significativo conhecimento das vinhas da Casa da Passarella, pelo que o futuro não pode ser outro que não risonho. Difícil mesmo é superar o nível já alcançado!

(O autor escreve segundo o acordo ortográfico)

Artigo publicado na edição de Julho de 2024

Harmonias: Delícias (muito) doces disponíveis para casar

Harmonias

Tarte de maçã Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, […]

Tarte de maçã
Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, e tem mil variáveis. Agora toda a gente faz a receita da Bimby – que é boa e funciona – como se fosse um salvo conduto para apresentar perante os pares, em jeito de competição. Eu nunca fui competitivo quanto a culinária. É um total desperdício de tempo. Exceptuando a maravilhosa tarte de maçã em massa folhada que se fazia na incrível Machado, em Caldas da Rainha, trata-se de uma tarte com maçã laminada no topo e base massuda de composição variável. Após algumas investidas no assunto harmonização, aponto com alguma segurança o branco de curtimenta – vulgo orange – como campeão. A maçã está muito exposta e a fruta secundária e oxidativa do vinho adora brincar com ela. A melhor experiência foi com Avesso de Baião, corpo e conteúdo a mostrar muito boa adequação.

Pastel de nata
Se a vida dá muitas voltas, a história não faz sequer intervalos. Em 1834, como é sabido, foi decretada a extinção das ordens religiosas, seguindo-se a expropriação e expulsão de religiosos e religiosas. Nos Jerónimos, a pequena ventura que ali grassava e que era a venda dos pequenos pastéis de nata inspirados nos pastéis de leite da Infanta Dona Maria, tornou-se rapidamente sustento da comunidade monástica. Em 1837 viria a nascer a Real Fábrica dos Pastéis de Belém, aproximadamente no mesmo local onde a encontramos hoje. Aspectos técnicos e um concurso de contornos difusos impedem-me de opinar sobre se serão ou não verazes e conforme a receita de então. Mas certo é que se trata de um bolo que perdurou até aos nossos dias. Representa hoje um ícone da diáspora portuguesa em todo o mundo. Sendo a massa folhada da taça que suporta a custarda feita com manteiga e levada a mais de 380ºC, o resultado tem destino marcado com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Copioso em açúcar e com uma acidez pronunciada, consegue a um tempo corte e harmonia. Madeira Malvasia poderá ser também hipótese a considerar.

Pão de ló
O pão de ló é um caso muito sério e, tal como o pastel de nata, o original, o primeiro de todos, perde-se nas brumas do tempo. As variantes hoje já incluem o de chocolate e quase todos levam doce ovos ou outra espécie de recheio. O meu padrão é aquele sobre o qual me debruço e é seco, fofo e foi feito em forno de lenha, exactamente como o de Margaride. De receita secular, configura standard forte do grande “sponge cake” português. Desde muito novo é o meu favorito, e com os anos fui fazendo experiências de harmonização com vinho e outras bebidas. Antes de avançar para a maridagem, há que identificar alguns aspectos determinantes para a bondade da ligação entre vinho e comida. O forno de lenha confere complexidade ao bolo pelas notas fumadas e de caruma seca que introduz, e os ovos fazem-se sentir. Além disso, existe um fundo de manteiga neste e na maioria das variantes da receita, o que lhe dá um gosto especial. Não hesito em recomendar a ligação com um estreme novo da casta Chardonnay, pelo património de pastelaria e notas amanteigadas que a casta oferece. Comece as suas experiências com vinhos pouco elaborados e depois vá “complicando”. Esperam-no anos de boas surpresas.

Duchesse
Também conhecido entre nós como duchese, é um bolo que está na linha do famoso Paris-Brest e consta de massa choux recheada com chantilly, decorado com maior ou menor intensidade com fios de ovos. Nas pastelarias tradicionais tem invejável procura e são raros os apreciadores que não os coloquem no topo das suas preferências. Tem tudo para ser comido à mão mas, na verdade, é mais indicado para comer com um garfo, pelos imprevistos que podem surgir. Confesso que é dos bolos que mais me intriga pela popularidade. Os portugueses não são muito dados a lanchar longamente numa pastelaria e vejo muitas vezes um duchese ao lado de um expresso, tanto na mesa como ao balcão. Curiosamente, o café é belíssima companhia, pelo óbvio contraste de texturas e pelo equilíbrio da doçura com os amargos do café. Excelente fica também com um rosé estruturado da região dos vinhos verdes ou de outra região que lhe garanta mineralidade e frescura. A minha melhor experiência aconteceu há pouco tempo, com o transmontano Valle Pradinhos, um rosé pronto para muitos desafios e o duchese é um deles.

Macarron
Estamos na zona da alta pastelaria quando falamos destas delícias de duas metades e recheios diversos. Tudo o que pensava saber sobre o assunto, com experiências diversas em pastelarias famosas pela Europa fora, fui forçado a rever com severidade quando conheci a Marbela, em Esposende. O grande chef pasteleiro Rui Costa tem ali o seu quartel e é de uma criatividade a toda a prova. Passar uma manhã com ele é uma grande instrução, pois trabalha com a maior naturalidade as soluções mais complexas que se possa imaginar e os macarrons são de antologia. Conheci-o há cerca de 15 anos e nunca mais perdi o contacto. Inesquecível a vez em que o assunto foi macarrons. Comparei com muitos outros e os dele tinham duas particularidades: duração e sabor. A massa de amêndoa de que as metades são feitas bate, em resultados, todas as outras e no seu caso coloca o recheio e aromáticos em primeiro plano sempre com crocância irrepreensível. Um Colheita Tardia do Tejo – do Casal Branco – faz uma ligação maravilhosa.

Pudim do Abade de Priscos
Começo pelo detalhe do presunto que, segundo a receita original, tem de ser “gordo, do de Chaves”. O dito presunto difere de todos os outros pelo facto de ser curado enguitado e não pendurado, ficando por isso com gordura entremeada mais rica e forte. Cinquenta gramas dessa gordura é tudo o que o pudim exige, além de 15 gemas de ovo, 500 gramas de açúcar amarelo, vidrado de um limão, pau de canela, um cálice de vinho do Porto e a arte culinária para o fazer na forma perfeita. A proteína animal é determinante e tem o incrível efeito temperador e integrador dos restantes ingredientes. É surpreendente a força e, ao mesmo tempo, a sublimidade do pudim. Quem o provou bem feito nunca mais esquece a experiência feliz. Experimentei com vários tipos de vinho do Porto e a minha preferência vai para o branco velho, o mesmo que gosto de utilizar para fazer o pudim. A ligação é sublime e a recombinação de sabores e aromas é surpreendente à medida que vamos explorando a sobremesa. Apesar de ser tido como altamente calórico, quando é bem feito fica equilibrado e aprecia-se-lhe o recorte elegante, sem excessos.

Harmonias

Pavlova de morango
A pavlova nasceu na Nova Zelândia há cerca de cem anos, criação do chef pasteleiro do hotel onde ficou hospedada a bailarina russa Ana Pavlova. Em jeito de homenagem à sua leveza, como se perfumasse o ar que graciosamente agitava ao dançar, assim nasceu esta sobremesa, hoje replicada no mundo inteiro e declinada das mais diversas formas. A estrutura merengada de suspiro, associada a frutos frescos, foi a imagem que surgiu na mente do chef de que nunca saberemos o nome. Sobretudo quando a canícula se faz sentir, a dicotomia doce-fruta tem um efeito particularmente refrescante. O suspiro e o morango reagem bem um com o outro e quase se podia dizer que uma outra sobremesa se cria no palato. O resultado é surpreendente pela forte textura sentida. Por outro lado, a acidez dos morangos pronuncia-se e pede complemento copioso. A harmonização correcta passa por um rosé igualmente copioso. Das diversas experiências feitas, a mais clara e acertada foi com o rosé da Quinta do Monte d’Oiro, produzido a partir de uvas da casta Syrah. Equilíbrio perfeito, aniquilação recíproca.

Crista de galo
Os livros de receitas dos conventos estão repletos de notas e mão de obra de pessoas que estavam em funções durante o dia e de tarde e de noite estavam em suas casas. São por isso repositórios de conhecimentos, detalhes e saberes que viviam tanto fora como dentro do complexo monacal. O corolário bom desta itinerância foi a secularização crescente do receituário, o que é em si mesmo já uma explicação para a disseminação rápida das delícias fora de portas. A Casa Lapão em Vila Real tem uma longa história e tem origem no convento de Santa Clara de Vila Real. No início do séc. XX, Miquelina Cramez, amassadeira, casa com Francisco Delfim, de alcunha Lapão por ser atarracado e bochechudo como os naturais da Lapónia. Criaram juntos a padaria Lapão. A costureira que os visitava tinha uma irmã no convento e, extinto este, conservou os segredos da doçaria que ali se praticava. Miquelina dedica-se desde logo à produção das verdadeiras Cristas de Galo e outras delícias que ainda hoje se fazem. A ferramenta com que se cortam tem mais de duzentos anos, e o melhor vinho para as comer é um bom moscatel de Favaios. Excelente acidez e perfil único, especialmente os que a Adega de Favaios está a fazer.

Marron glacé
Pode parecer capricho, mas não é. Somos terra de soutos, o mesmo é dizer de castanheiros e até tonéis e pipas para fazer e armazenar vinho outrora se faziam em castanho. A castanha é, além disso, primordial na nossa alimentação. Há que não esquecer que a batata é assunto recente no Velho Mundo. Tanto assim é que muitos pratos da grande tradição são ainda acompanhados por castanha e batata no mesmo tacho. O marron glacé – castanha glaceada – é a maior homenagem que se pode fazer a essa pérola antiga e ainda continua a ser francamente popular em França e até se vende em caixas como se de bombons se tratasse. Por cá a história é mais tímida, mas não é por isso que deixo de lhe fazer as loas. Há que escolher a variedade certa. É importante que tenham dureza e corpo para aguentar a cozedura ligeira e o tratamento posterior. Nunca consegui fazer de forma satisfatória, mas conheço mãos que as fazem com a maior naturalidade. Podem levar vários banhos em calda de açúcar, em dias sucessivos e o resultado é sublime. Maridagem competente oferece o abafado Five Years da Quinta da Alorna. Impossível comer apenas um.

Torrão real de Portalegre
O convento de São Bernardo em Portalegre foi fundado no início do séc. XVI, pelo Bispo da Guarda, para albergar “jovens sem dote” mas de muita virtude. Desenvolveu-se ali muito receituário, algum ainda por desbravar mesmo após a conversão em monumento nacional, em 1910, e com os livros de receitas devidamente salvaguardados. Conheci Ana Tomás numa hora feliz em pleno estúdio da RTP. Ela havia sido contemplada com um prémio pelo desempenho com os rebuçados de ovo de Portalegre, autêntico trabalho de chinês que aparentemente conseguia fazer na perfeição às centenas. Conheci melhor o seu trabalho em encontros diversos e dei com o seu torrão real, autêntica obra de arte, resultado do talento e de muito estudo e experimentação. Gemas, natas, amêndoa e açúcar estão no coração do torrão real de Portalegre e são vários os que tentam a sorte na produção do dito, mas o melhor para mim permanece o que sai das mãos de Ana Tomás. Pede harmonização valente e viril, e confirma toda a sua glória com um vinho Madeira Bual de 40 Anos.

Manjar branco
Termino o elenco doceiro à procura de casamento feliz com a delícia mais delicada: manjar branco. Juntamente com outra doçaria típica de Portalegre, não leva ovos e a história funde-se com a prática secular da mantença sustentável. O nome não podia estar mais correcto, pois é feito a partir de galinha e respectivo caldo, portanto sobras de cozinhados que em vez de ir para o lixo ganham glória e atingem pináculos de sabor. Entre os ingredientes estão ainda arroz ou farinha de arroz, leite e açúcar. As aparas de galinha são brevemente cozidas para depois se passar por água fria e desfiar fininho. Em lume muito brando, leva-se tudo a cozer mexendo sempre e quando começa a engrossar apaga-se o lume e continua a mexer-se até arrefecer. Coloca-se e serve-se em tacinhas esta maravilha e na hora de servir polvilha-se com açúcar. A versão mais feliz desta receita foi-me proporcionada pela mãe do chef José Júlio Vintém, de enorme talento culinário. Um doce feito a partir de proteína animal que nos leva ao céu. Como ligação vínica, proponho um Arinto de Portalegre com mais de três anos.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Quinta do Carvalhido: Um projecto de família

Quinta do Carvalhido

O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua perto de Abreiro, é encantador. É isso que se sente quando se observa a paisagem a partir da sala e da varanda da casa principal da família proprietária da Quinta do Carvalhido, parcialmente voltada para jusante do curso de água e para as […]

O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua perto de Abreiro, é encantador. É isso que se sente quando se observa a paisagem a partir da sala e da varanda da casa principal da família proprietária da Quinta do Carvalhido, parcialmente voltada para jusante do curso de água e para as colinas de encostas, plantadas sobretudo com vinha e oliveiras e cobertas de mato. Fica longe, muito longe mesmo, a mais de quatro horas da capital, mas sabe bem estar ali, bem longe dos ruídos e da balbúrdia dos grandes centros urbanos. Terá sido certamente esta uma das razões que levaram Maria de Fátima Mendonça e Moura e o seu marido, Pedro Drummond Borges, a decidir investir na sua recuperação, quando a primeira recebeu a propriedade em herança da família, que é da região, em 2013.
“Nessa altura eu e a minha mulher fomos muito claros com os nossos filhos, quando lhes dissemos que queríamos investir nela, mas avançámos com a concordância de todos”, conta Pedro Drummond Borges, homem de negócios com vários franchisings da McDonalds desde 1997. Conta que, na altura, não tinha nenhum conhecimento de agricultura, mas como toda a sua vida tinha sido movida pela sua curiosidade em aprender, e pelo espírito empresarial que leva à construção de coisas, decidiu envolver-se na recuperação da propriedade, que tinha inicialmente 20 hectares, dos quais 5,4 de vinha e três de olival.
Os trabalhos começaram pela parte agrícola da quinta, com o apoio do viticólogo José Miguel Telles, que fez um projecto com tudo o que teria de ser feito para tentar recuperar algumas vinhas velhas e reconverter outras, que foi sendo desenvolvido entre 2014 e 2017. Neste último ano começaram a reconversão das vinhas, já com o apoio do consultor de enologia, Francisco Baptista. “Quando falei com ele, fui muito claro”, conta Pedro, dizendo que lhe comunicou que estava muito interessado em entrar no mundo dos vinhos, desde que conseguisse estar na parte superior da qualidade. “Nessa altura nem tinha grande quantidade de uva, pois tinha de cumprir o benefício legal de Vinho do Porto e sobrava pouca área de vinha para produzir vinhos DOC Douro”, conta.

Quinta do Carvalhido
O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua, é encantador.

As primeiras experiências
A primeira experiência de produção de vinhos decorreu com uvas da colheita de 2017. Resultou num tinto produzido com as castas Touriga Nacional e Touriga Franca, engarrafado em 2019. Foram 1500 garrafas, as mesmas das duas colheitas seguintes, feitas sobretudo para procurar perceber se o perfil e a qualidade dos vinhos se mantinham ao longo dos anos. No final desse tempo, a equipa chegou à conclusão que estava preparada para dar o salto em termos comerciais, porque a qualidade vinho estava no segmento alto, aquele que tinha sido pré-determinado para o negócio da Quinta do Carvalhido.
Os vinhos das três primeiras colheitas tinham sido vendidos com facilidade, “o que não era difícil, porque a quantidade era muito pequena”, comenta Pedro Drummond Borges. Então foi necessário repensar a forma de a empresa e os seus vinhos estarem no mercado, já que isso implicavam novos investimentos, que avançaram, de novo, após decisão familiar.
Entretanto foi lançado um branco Quinta do Carvalhido, de 2021, e foi introduzida uma gama Colheita, de entrada, com a marca Carvalhido, lançada a partir de 2022, que inclui um branco, um rosé e um tinto. “Foi mais uma forma de despertarmos a atenção do mercado para a nossa marca”. E foi assim que a produção passou das 1500 garrafas nos primeiros três anos para as seis mil, em 2022 e 10 mil, no ano passado.
Em 2023, foi criada mais uma marca, para se posicionar entre a referência de topo e a de base, a Quinta do Carvalhido Concrete, cujos vinhos foram os primeiros a ser feitos na adega da quinta, um branco, um rosé e um tinto que estagiam em cubas de cimento. “Considerámos que o mercado estava com apetência para este tipo de vinhos e achámos que era uma boa forma de criar alguma diferenciação em relação ao que já estava a ser feito, embora outros produtores já tenham elaborado vinhos desta forma”, explica Pedro Borges. Diz, depois, que a sua empresa entrou agora em fase de amadurecimento, já que as três gamas lhe permitirão mostrar os vinhos que faz, e trabalhar para alcançar o reconhecimento do mercado.

Quinta do Carvalhido

 

Em 2023 foi criada a marca Quinta do Carvalhido Concrete, com vinhos estagiados em cubas de cimento.

 

Imagem e comunicação
“Temos tido o cuidado de explicar aquilo que estamos a fazer a todas as pessoas com que vamos interagindo, na distribuição, nas garrafeiras e na restauração e fizemos investimentos que considerámos importantes na selecção dos formatos e na rotulagem das garrafas”, explica Tiago Drummond Borges, filho de Pedro e “chief operating officer” da Quinta do Carvalhido, acrescentando que tudo é cuidado para realçar o posicionamento alto da marca. “É onde queremos que ela seja reconhecida e é para esse tipo de consumidores que queremos falar”, defende. “Claro que isso depende também do nosso trabalho de aproximação ao mercado”, salienta o pai. Para de investimento em comunicação, construíram um site e estão a implementar uma rede de distribuição em Portugal.
“Optámos por ter distribuidores pequenos, mais focados nas marcas que têm, por região do país, para ir trabalhando com eles com uma proximidade maior, de forma a percebermos como é que o mercado vai respondendo aos nossos produtos”, conta Tiago, acrescentando que foi assim que fecharam o Algarve, Porto, Leiria e Coimbra, e Lisboa com mais dificuldade. “É um mercado muito competitivo, onde se vendem 60-70% dos vinhos em Portugal”, explica, acrescentando que se foi apercebendo, com as apresentações que foi fazendo nas empresas de distribuição da capital, “que estas estão muito mais preocupadas com o preços do que as outras, devido à concorrência, o que fez com que este processo na capital levasse mais tempo”, conta Tiago, acrescentando que hoje têm o país praticamente coberto.
A Quinta do Carvalhido deverá vender 15 mil garrafas em 2024, uma evolução contida e assente com os “pés no chão”. “Não podemos ser demasiado ambiciosos, porque não temos capacidade ainda para responder a grandes aumentos de procura”, defende Pedro Drummond Borges. “Com a agência de comunicação, o site e as empresas que nos tratam das redes sociais, temos ido pé ante pé a todas as áreas, para criar curiosidade em relação à nossa casa e às nossas marcas”, conta o gestor, salientando que o objectivo, para o futuro, “daqui a dois a três anos”, é dar o salto e partir para outros voos, como a exportação. “Mas é, para mim, muito importante, ter um negócio sustentável em Portugal, antes de ir para fora”, diz. “Tenho de ter o mínimo de reconhecimento antes de avançar nesse sentido”, afirma.

Vinha e olival
Hoje a empresa tem 16 hectares de vinha, dos quais 13 hectares integram a propriedade principal, a que se juntam mais três situados na Verdeana, a 10 quilómetros da Quinta do Carvalhido. O encepamento é sobretudo de tintas, das castas Touriga Nacional, a Touriga Franca e a Tinta Roriz. A percentagem de uva branca ainda é pouco elevada, e são plantações mais recentes, apesar de Pedro Drummond Borges querer plantar mais quatro hectares nas zonas mais altas da propriedade, numa área que vai ser reconvertida. O seu objectivo é chegar aos 22/23 hectares de vinha, porque acredita que vai ter sucesso com a venda dos seus vinhos e tem de ter capacidade de resposta, em termos de produção, ao acréscimo das solicitações do mercado.
No início, a área de olival tinha apenas três hectares. Mas hoje já cresceu, por força de aquisição de parcelas vizinhas, para os 10, o que obrigou pai e filho a pensar em criar mais uma linha de negócio, a do azeite. “Vou fazer, aqui, exactamente o que fiz com o vinho, ou seja, estudar, planear e procurar conhecer e perceber, até ter a certeza de que o meu azeite tem a qualidade necessária que permita fazer investimento de mercado”, diz Pedro, acrescentando que, a jusante da produção, também fará o mesmo que fez com o vinho, começando por escolher a garrafa e quem faz os rótulos. “A nossa experiência com o vinho pode ajudar-nos bastante com este caminho”, defende.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

CAZAS NOVAS: A virar a região do Avesso

Cazas Novas

A região dos Vinhos Verdes apresenta uma longa e curiosa história. Muito longe vão os britânicos tempos em que os elegantes vinhos tintos, de cor aberta, eram embarcados a partir da foz do rio Lima, em Viana do Castelo, rumo a longínquas paragens. Mais tarde, esses mesmos tintos evoluíram para colorações bem mais fechadas e […]

A região dos Vinhos Verdes apresenta uma longa e curiosa história. Muito longe vão os britânicos tempos em que os elegantes vinhos tintos, de cor aberta, eram embarcados a partir da foz do rio Lima, em Viana do Castelo, rumo a longínquas paragens. Mais tarde, esses mesmos tintos evoluíram para colorações bem mais fechadas e retintas, servidos em alvas malgas capazes de estabelecer uma melhor ligação com a característica gastronomia tradicional minhota.
Esses novos tintos “de pintar a malga”, mais ao gosto das gentes do Minho, não receberam a mesma aceitação fora da região e o seu consumo ficou mais limitado às zonas de produção. Ainda assim, com a lenta passagem do tempo, alguns produtores ganharam elevada reputação e a procura os seus vinhos era grande, sendo transacionados por quantias bem interessantes, na época.
Na década de sessenta, a tradição começou a ganhar outras colorações. As produções de vinho branco começaram a aumentar anualmente e com elas iniciou-se uma reconquista de novos mercados. Ainda assim, a produção declarada de vinho branco, nesta época, oscilou entre os duzentos e cinquenta mil e os quinhentos mil hectolitros, enquanto a dos tintos chegou a ultrapassar os dois milhões de hectolitros. A mudança estava em curso.
Vinte anos mais tarde, o prolífico e reputado agrónomo Amândio Galhano escreveu sobre a enorme reestruturação das vinhas da região e apontava para a escolha das castas brancas, como a Trajadura e a Loureiro, em detrimento das tintas, Vinhão e Brancelho. A preferência pelas primeiras estava em linha com a procura dos mercados urbanos e internacionais por vinhos com características mais acídulas e frutadas.
No início da década de noventa assistiu-se a uma verdadeira revolução, os vinhos brancos ultrapassariam, pela primeira vez na história da região, a produção dos tintos. No final desse mesmo decénio, a produção declarada de tintos representou apenas 40% do total.
No seguimento desta radical mudança assistiu-se a uma curiosa especialização e alinhamento em função dos principais vales que abraçavam os rios da região. A norte, o vale do rio Minho continuou a especializar-se na casta nobre de elevado potencial enológico, a Alvarinho. No vale do rio Lima e zonas adjacentes a Braga, Penafiel e Lousada dedicaram-se mais especificamente às castas Loureiro, Pedernã (Arinto) e Trajadura. No extremo sul da região pontifica um imponente e extraordinário rio ibérico, o Douro. Nas suas margens que integram a região sub-região de Baião predominam a Azal e a Avesso.
No ano de 2022 a revolução encontra-se absolutamente normalizada: segundo dados da CVR dos Vinhos Verdes, a comercialização dos vinhos tintos cifrou-se em apenas 4% do total.

Cazas Novas

Baião, Avesso e Cazas Novas
A sub-região de Baião é uma das nove sub-regiões dos Vinhos Verdes e localiza-se no extremo sul, na fronteira com a região do Douro. Integra os concelhos de Baião e parte dos concelhos de Resende e Cinfães. Neste território encontram-se os solos mais pobres da região que, aliados ao clima muito quente no verão e mais frio e seco no inverno, são perfeitos para a evolução da casta Avesso, conhecida pela necessidade de calor para o desenvolvimento da sua maturação tardia. Em função do tempo de colheita, as uvas da casta podem demonstrar atributos de expressão aromática, acidez, frescura e concentração, revelando potencial enológico para vinhos com capacidade de envelhecimento.
O veículo em que nos deslocámos para conhecer o projecto Cazas Novas já conhecia a longa montanha russa e o lânguido serpentear da Serra do Marão e da Estrada Nacional 101, entre a saída da A4 e o vale do rio Douro. Os muitos quilómetros percorridos nos dois sentidos desta estrada já desgastaram muitas vezes os calços de travões, pneus e a caixa de velocidades de muitos visitantes, quase sempre com as vinhas da região do Douro como destino. No entanto, desta vez o destino seria um pouco mais a jusante do que o costume.
À espera, na localidade de Mínguas, próxima de Santa Marinha do Zêzere, em pleno vale do Douro, estava Vasco Magalhães, um dos quatro sócios e responsável pelo departamento de marketing e vendas do projeto Cazas Novas.
Cunha Coutinho, outro associado e principal impulsionador do projecto vitivinícola Cazas Novas, assume-se como um empreendedor com investimentos em diferentes áreas de negócio, mas tem procurado manter a ligação ao que verdadeiramente o apaixona, a terra. A enologia está a cargo de Diogo Lopes, uma personalidade da nova geração de profissionais que se encontra igualmente envolvido em outros projectos no Alentejo, Douro, Lisboa e Açores. Por fim, o mais recente sócio da parceria, André Miranda, que aporta toda a sua experiência enquanto produtor na terra onde nasceu, mais precisamente na região dos Vinhos Verdes.
O projecto Cazas Novas, criado em 2008, tem o seu centro nevrálgico na Quinta de Guimarães, património da família Cunha Coutinho há sete gerações, referiu Vasco Magalhães. Esta propriedade, juntamente com a Quinta das Cazas Novas e ainda duas outras debruçadas sobre o Douro, a Quinta do Adro e Quinta das Tias, agregam um património florestal e agrícola superior a 100 hectares, dos quais 24 são dedicados exclusivamente à viticultura da casta Avesso.

O Avesso domina
Esta é a maior área dedicada ao encepamento desta casta branca portuguesa, revela Vasco Magalhães, um verdadeiro tesouro concentrado num local considerado como de excelência para a expressão desta variedade tão exclusiva. O seu nome é ele próprio um enigma, sugerindo uma ideia de aversão ou hostilidade a algo. A casta não está entre as mais produtivas e, é um facto, fora do seu terroir de excelência, a viticultura não é fácil. Também por aí se define a sua exclusividade.
Vasco não tem dúvidas de que esta zona de transição entre os Vinhos Verdes e o Douro, e já com o rio como influência, com vinhas de encosta em solos de granito que enfrentam amplitudes térmicas elevadas, origina vinhos únicos, sem paralelo em qualquer outra região, que se caracterizam pela sua frescura, mineralidade e potencial de evolução. É o território da Avesso, casta que a Cazas Novas pretende guindar ao patamar de excelência e reconhecimento que a Alvarinho e a Loureiro já alcançaram.
O primeiro vinho engarrafado surgiu em 2008, Cazas Novas colheita, com a curiosa soma de 3333 garrafas. A partir de 2011, já com o apoio do enólogo Diogo Lopes e de Vasco Magalhães, desencadeou-se o estudo da casta Avesso e a base para o atual projecto vitivinícola. Este desenvolvimento motivou a introdução no mercado de duas novas referências: o Cazas Novas Pure e o Cazas Novas Origem.
Anualmente, as três referências que compõem o projecto perfazem cerca de trinta mil garrafas, sendo vinte e duas mil do Cazas Novas colheita, seis mil do Cazas Novas Pure e duas mil da referência topo de gama, Cazas Novas Origem.
Os resultados, são desde já, muitíssimo prometedores. E num futuro mais ou menos próximo será muito interessante perceber até que ponto o projecto Cazas Novas está, de facto, a mudar a percepção dos vinhos desta casta, dentro e fora da região.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)