Alhos novos

TEXTO Ricardo Dias Felner UMA das grandes dores de cabeça para os cozinheiros, amadores ou profissionais, são os alhos. Quase todas as cabeças que comprei nos últimos meses estavam velhas e bafientas, uma fatalidade. Para se ter uma ideia da tragédia, no Natal, um tacho de roupa velha acabou irremediavelmente afectado por causa de um […]

TEXTO Ricardo Dias Felner

UMA das grandes dores de cabeça para os cozinheiros, amadores ou profissionais, são os alhos. Quase todas as cabeças que comprei nos últimos meses estavam velhas e bafientas, uma fatalidade. Para se ter uma ideia da tragédia, no Natal, um tacho de roupa velha acabou irremediavelmente afectado por causa de um único bolbo e eu fui submetido à fúria de 30 familiares famintos.

A boa notícia é que, por esta altura, o drama acaba. Desde Maio que já se encontram em alguns mercados uns alhos extraordiná­rios, acabados de apanhar. A maioria terá sido plantada em finais de Outubro, estando agora em fase de amadurecimento ou seca­gem. Há quem lhes chame alhos jovens ou novos, e são identifi­cáveis por terem umas riscas arroxeadas e o interior da rama ainda esverdeado. No bolbo, os dentes são bem mais fáceis de descascar do que os dos alhos secos, uma vez que a pele é uma membrana grossa. Na boca, nota-se um picante fresco, menos amargos, sendo por isso reco­mendáveis em cru, para todo o tipo de saladas de petisco (experimente com batatas novas, ervilhas tortas e pimenta da terra) ou para terminar um bife com um fio de bom azeite. Procure, prove. E lave bem os dentes.

Pão nosso de cada dia

Pão é sinónimo de comida. Pão é sinónimo de vida. Há uma fórmula mágica que transforma a farinha e a água em pão. O pão é um sinal de civilização. Em Portugal, explode agora o culto do pão, num regresso a modos mais antigos e renovar de tradições.   TEXTO Luis Antunes FOTOS Ricardo Palma […]

Pão é sinónimo de comida. Pão é sinónimo de vida. Há uma fórmula mágica que transforma a farinha e a água em pão. O pão é um sinal de civilização. Em Portugal, explode agora o culto do pão, num regresso a modos mais antigos e renovar de tradições.

 

TEXTO Luis Antunes FOTOS Ricardo Palma Veiga

O trigo é o cereal mais fácil de panificar, logo seguido pelo centeio. A razão é o muito temi­do glúten, uma ligação entre proteínas, mais presente no trigo. É o glúten que torna o pão mais macio, arejado, volumoso e fácil de mastigar. A mas­tigação e a digestão são as principais razões para fazer pão, em vez de comer o trigo de outra maneira, como massas ou papas.

O trigo é moído em farinha, da qual se separa depois o farelo. Ao misturar farinha e água começam as reações bio-químicas que levam à fermentação. Ao fim de cinco dias em condições adequadas obtém-se a massa-mãe. Seja com a massa-mãe, seja com fermento de padeiro (uma levedura isolada e seca), eles são adicionados à mis­tura de farinha e água e provocam o arranque da fermen­tação da massa. Esta fermentação é na verdade uma fer­mentação alcoólica, na qual os açúcares são transforma­dos em álcool, com libertação de gás carbónico. Quanto ao álcool, ele perde-se por evaporação na cozedura. Já o gás, as suas bolhas são capturadas pela rede formada pelo glúten, dando ao pão o seu volume e maciez.

Já temos aqui os fundamentos do pão, em particular os seus ingredientes: farinha, água, fermento. É costume usar sal como o quarto ingrediente. Mas a fermentação é um processo complexo, que tem muitas nuances, e nem sempre converge, razão aliás pela qual há muito misti­cismo aliado ao pão (rezas, sinais da cruz, etc.). Por isso ao longo das últimas décadas apareceram uma série de aditivos e melhorantes que simplificam o processo e o tornam mais robusto (uma espécie de “fermentação para totós”). O problema é que o pão ficou assim mais desca­racterizado, mais industrializado, guiado por parâmetros algo superficiais: é mais fofinho, quentinho sabe muito bem, mas parece borracha mal arrefece, tem o miolo mais branco, graças a farinhas muito peneiradas, tem ainda al­guns outros aditivos para o conservar, torna as digestões mais pesadas e é menos rico do ponto de vista nutricio­nal.

A massa-mãe
Mas o mister de fazer pão foi sendo preservado por pes­soas teimosas, e nesta minha busca conheci várias. Mou­ette Barboff é antropóloga e fez o seu primeiro trabalho sobre pão em 1983. Ao longo dos anos escreveu vários livros sobre o pão, e acaba de lançar o “Pão das Mulhe­res” (Âncora editora), um resumo da sua extensa tese de doutoramento. Mouette interessou-se em Portugal pelo pão caseiro, um fenómeno que não existe na sua França natal (mas lá em França já escreveu sobre os pães regio­nais). Segundo ela, é a melhoria das condições de vida que causa o desaparecimento do pão caseiro, mesmo em Portugal ela notou que após a Revolução dos Cravos os salários subiram e as mulheres deixaram de amassar o pão, passaram a comprá-lo. E quando veio a crise volta­ram a amassar. As mulheres passavam o conhecimento sobre o pão de mãe para filha. Aliás, quando as filhas se casavam as mães davam-lhes o primeiro isco para elas iniciarem a sua própria massa-mãe.

A massa-mãe é acarinhada pelos padeiros da nova gera­ção como um muito querido animal de estimação. Mário Rolando é professor de panificação na Escola Profissional da Pontinha, talvez o principal centro de ensino de pani­ficação em Portugal. A sua massa-mãe já tem 3 anos e meio, e todos os dias tem que ser alimentada e acarinha­da. Mário faz um pão que usa partes iguais de massa mãe e de farinha, o que é, mesmo assim, raro.

José Leitão, padeiro de quarta geração de Montachique e que foi fazer um curso com Mário para sistematizar me­lhor os seus saberes ancestrais, faz um pão com melho­rantes na sua panificadora, mas à medida que vai experi­mentando e conhecendo melhor o processo, vai tendo o desejo cada vez mais forte de lançar o que ele chama um Pão d’Antanho. Faz todos os dias 500kg de farinha para o seu pão normal (que eu provei e é bom), e está a pani­ficar 20kg de farinha em Pão d’Antanho (que eu provei e é excepcional). Para isso, tem 2kg de massa-mãe (que eu provei e sabe a uma espécie de iogurte de pão, com tons cítricos e uma acidez suave e complexa), guardadas a 2ºC para que a fermentação seja lenta e controlada. Para fa­zer 20kg de farinha junta à massa-mãe 2kg de farinha e 2 litros de água. Obtém assim 6kg de massa-mãe, da qual usa 4kg para o novo pão e deixa 2kg para isco do dia seguinte.

A fermentação com massa mãe é mais lenta, e nessa len­tidão está o segredo dos processos bio-químicos que tor­nam o pão mais rico do ponto de vista nutritivo e organo­léptico. José Leitão coze o pão depois de 24 horas de fer­mentação, cuidando que a massa esteja 18 horas a 2ºC e depois tirando-a algumas horas antes, para tender o pão e dar-lhe a forma final. Estas paragens depois de amassar chamam-se “estancas” e José faz três. O pão é depois co­zido num forno de alvenaria, a lenha, alimentado por uma espécie de “maçarico gigante” de pellets. Leitão, como a maior parte dos padeiros, defende o pão “bem cozido”, com a relação mais equilibrada entre o miolo – que deve estar esburacado mas não oco – e a côdea: a côdea tem mais tostados, amargos, doces e queimados, graças às reacções de Maillard, deve ser estaladiça, tudo depois a harmonizar-se com o miolo suave, macio e suavemente adocicado.

Proteger os cereais antigos
Tanto José Leitão como Mário Rolando e Diogo Amorim admitem que 80% dos clientes preferem o pão mal-cozi­do. Mas dizem que já foi pior, 90% ou mais. Diogo Amo­rim é o mais jovem de todos, abriu há poucos meses a padaria Gleba, perto da Praça da Armada, em Lisboa. O seu pão é de trigo com 90% de farelo, quase integral e fermentado com 20% de massa-mãe ao longo de 24 ho­ras.

Diogo estudou cozinha e estagiou no Fat Duck, onde desenvolveu o gosto pelo pão. Neste momento amassa cerca de 100kg de farinha nos dias de semana, e mais ao fim-de-semana. Quer fazer um pão tradicional, um regres­so às raízes, mas sempre prático, não “lírico”. Por isso, no pequeno espaço que tem em Alcântara, tem um forno eléctrico, não a lenha, mas que lhe garante uma boa ca­pacidade térmica. O seu pão é cozido 20 minutos a 250ºC e depois mais 40 minutos a 210ºC. Sempre bem cozido, com uma cor escura quase queimada, exibe o carame­lizado que garante o tal equilíbrio com o miolo. O seu pão é assim mais saudável, com mais micro-organismos que asseguram uma degradação pré-digestão, mantendo mais nutrientes, entre os quais vitaminas sintetizadas pe­las leveduras da massa-mãe.

Para Diogo, é fundamental que a pegada ecológica seja contida, por isso privilegia os cereais cultivados localmen­te, entre os quais espécies de trigo tradicionais em Portugal, que estavam à beira da extinção. É o caso do Trigo Barbela, a principal espécie que usa, e que tem um maior conteúdo de óleo, o que se nota logo no amassar e even­tualmente é responsável pelo miolo macio e fofo. Algo que noutras paragens exigiria melhorantes e outros pro­dutos, e é aqui garantido pelo próprio trigo. Aliás, para Diogo, a qualidade do pão começa logo pela moagem, que na Gleba é feita localmente com uma pequena mó de pedra. O trigo moído e amassado imediatamente pre­serva todas as componentes aromáticas, dando origem a um pão mais rico e complexo.

Já Mário Rolando tinha enfatizado esta ideia, o padeiro e o moleiro são pessoas diferentes, profissões diferentes, especialidades diferentes. Cada uma tem o seu mister, e ambas são desafiantes e difíceis. Nas modernas moagens o trigo é moído em cilindros metálicos, o que aquece a farinha ligeiramente e remove muito do seu fragrante aro­ma. As mós de pedra são mais respeitadoras do produto, mas também exigem uma maior especialização. Por outrolado, as moagens industriais retiram o gérmen do trigo, para aumentar a sua conservação sem rançar. A farinha de mó de pedra mantém o gérmen, é uma farinha viva, mais nutritiva. O que isto mostra é a grande complexidade do mundo do pão, um cuidado com os detalhes que se vê também no mundo do vinho.

Amorim explicou-me que só cultivamos em Portugal 1% ou menos de todos os cereais panificáveis que consumi­mos. Por isso, o seu trabalho de defesa dos cereais anti­gos como o trigo Barbela, o Almansor, o Morto-Vivo, o centeio Verde ou o milho branco acaba por ser instrumen­tal também para reforçar a aposta na preservação destas espécies e do seu cultivo como parte de um modo de vida mais sustentável e autêntico. São todos distintos em termos aromáticos e têm tido muita receptividade junto dos clientes, que apreciam e recompensam o esforço de valorização desta herança. Já há mais agricultores a apos­tar em sementeiras destes cereais antigos e mais diver­sos. Diogo usa na fermentação cestos de vime (também local) em vez do tradicional panal (pano usado para sepa­rar os pães enquanto fermentam), o que, apesar de não ser tradição em Portugal, lhe parece mais indicado para massas mais hidratadas e também para um espaço pe­queno como o seu.

Todos os padeiros concordam que a fermentação natural retarda o processo de envelhecimento do pão, que ocor­re naturalmente devido à perda de humidade e ao enrije­cer pela retrogradação do amido. Também por isso, pre­ferem os pães grandes, que pelo seu porte perdem me­nos humidade. É fascinante pegar numa faca de serrilha e cortar uma primeira fatia de pão, ouvindo o característico barulho da crosta a estalar, e ansiosamente espreitando para finalmente vislumbrar o miolo antes escondido. Dio­go Amorim recomenda que, depois de cortado, o pão seja guardado virado com a face exposta para baixo, e embrulhado num saco de papel.

Os tipos de pão
Hoje em dia há muitos tipos de pão, e muitos modos de o consumir. Mário Rolando ajudou-me a sistematizar. Há o pão da panificadora, carcaças, bolas ou maior, feito com farinhas aditivadas e melhorantes, usualmente para en­fatizar o volume. Este é também o pão que se come nas grandes superfícies, que demora uma hora e meia desde o amassar até ser posto à venda. Há pães industriais (tipo Bimbo) embalados. Há ainda o pão pré-cozido e depois ultra-congelado, para ser cozido mais tarde e consumido quente, vulgar em muitos restaurantes e cafés. De entre estes, destacam-se alguns feitos por empresas com muita investigação e desenvolvimento, que conseguem man­ter zimotecas (bibliotecas de leveduras e massas-mãe de todo o mundo), e que procuram ter qualidade de pão artesanal reproduzível. Esta reproduzibilidade tem sido sis­tematizada e posta em prática por algumas das moagens industriais, que fornecem misturas tudo-em-um para fazer vários tipos de pães regionais, desde a broa de Avintes até ao pão alentejano. Aliás, disse-me um dos padeiros que em muitas padarias de pão “dito” tradicional, os pa­deiros têm sacos de melhorante, mas escondidos. Con­clusão: os padeiros não se orgulhavam de o usar.

Mas a grande surpresa veio da visita à Padaria Carlota, em Janas, onde José Vicente e Humberto Costa fazem um pão grande que sempre me fascinou. Não há massa­-mãe, apenas fermento de padeiro, pouco (1,25%), uma mistura de farinhas e um nada de melhorante (0.4%). A massa resultante faz uma fermentação lenta, mas apenas umas quatro horas entre o começar a amassar e a saída do forno.

Este é um pão “palco”, não tanto um pão “actor” na expressão feliz do meu amigo Paulo Amado, o mesmo que pegou num destes pães e com uma faca de pão o começou a desmanchar de acordo com a sua fisiologia. Uma fascinante obra de arte, e enquanto aparecia azeite, manteiga, conservas, molho picante, íamos desfrutando esta especialização do pão em partes, algo que eu mui­to espartanamente tinha sempre evitado. É que sobre o pão há sempre muitas regras e rezas: que não se vira ao contrário, que não se escolhe, que se corta a eito, que não se pode tirar só côdea, ou só miolo, que tem se que partir à mão.

Sobre isto, contou Mouette uma história fascinante. Ao cozer uma fornada, há sempre um pão diferente dos ou­tros todos, mais pequeno, o último a entrar e primeiro a sair. Em muitos lugares este pão tem um estatuto particu­lar, quase sagrado: não se pode cortar com faca e deve ser partilhado ainda quente à boca do forno. O fumo des­te pão quente alimenta as almas do purgatório.

O pão de Janas foi separado em várias partes, para di­ferentes gostos dos comensais: a côdea, a côdea mais macia que fica de lado, onde os pães se tocam, o miolo, um filete de miolo, a côdea de baixo, e sua separação de acordo com as rugas que espontaneamente se forma­ram. Nunca tinha vivido esta geografia do pão, este he­donismo separar as várias partes e escolher de entre elas, gulosamente, atenciosamente, reverentemente. Deixo o desafio: experimentem.

A crónica do pão não pode nem vai ficar por aqui, tantas são as histórias que deixo por contar. Cláudia Bicho dei­xou uma carreira de cientista para ser pasteleira e padeira no Chapitô à mesa, onde todos os dias amassa um pão diferente. Vítor Sobral já abriu uma padaria em São Paulo e vai abrir muito em breve uma em Lisboa, em sociedade com Mário Rolando. O pão tem história, histórias, e ainda vai fazer história.

O Diabo Na Cozinha

Marco Pierre White Quetzal €18,80 MARCO PIERRE WHITE é uma figura incontor­nável do panorama da culinária inglesa. Apesar de o nome sugerir outras origens, Marco é mes­mo inglês e virou ultrafamoso exactamente por ter sido o primeiro “chef” inglês a conseguir as ambicionadas 3 estrelas Michelin. Este livro au­tobiográfico narra-nos o seu percurso, contado na […]

Marco Pierre White
Quetzal
€18,80

MARCO PIERRE WHITE é uma figura incontor­nável do panorama da culinária inglesa. Apesar de o nome sugerir outras origens, Marco é mes­mo inglês e virou ultrafamoso exactamente por ter sido o primeiro “chef” inglês a conseguir as ambicionadas 3 estrelas Michelin. Este livro au­tobiográfico narra-nos o seu percurso, contado na primeira pessoa.

Sem grande preocupação estilística, sem o tom “picante” que os subtítulos da capa poderiam sugerir, é um livro de um caminho, de uma ob­sessão, de um “chef” que soube aprender com os mestres mas que foi também mentor de figu­ras muito conhecidas da nossa TV. Quem viu o MasterChef Austrália provavelmente viu Marco, com um ar tranquilo e pacificado com a culiná­ria, ajudando os concorrentes no seu tirocínio. Mas também quem procurar no Youtube vai en­contrar vídeos deliciosos em que se vê Marco na sua cozinha, com alguns jovens chefes à sua volta (quem sabe estagiários…) – e entre eles lá está Gordon Ramsey, então ainda e apenas um cozinheiro à procura do seu espaço.

O livro, em que o autor não esquece todos os grandes nomes da cozinha com quem se cru­zou, aborda de resto as inicialmente boas re­lações com Gordon e mais tarde as péssimas, ao ponto de se recusarem a almoçar na mes­ma sala. Ao invés, percorre por todo o livro um permanente agradecimento a Raymond Blanc, o grande chefe francês que há décadas é figura primordial do ambiente culinário inglês e que também podemos ver nos programas do cabo, com episódios deliciosos e receitas de grande valia, ao alcance dos amadores.

Ao contrário de outros livros autobiográficos, como “A Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain, por aqui não passa a mesma quan­tidade de droga que passava nos States, aqui não existe a relação difícil mas obrigatória com os hispânicos; por aqui tudo se faz à custa de cigarros e café, os dois grandes companheiros de Marco ao longo da sua história. A veloci­dade a que chegou às 3 estrelas foi também amesma com que se desfez delas, tendo aban­donado a corrida. O livro é, de resto, omisso em relação ao percurso após o abandono do estrelato, quase a sugerir que “isso” fica para um segundo volume. Como história de vida é um livro bem interessante, que se lê de um rasgo e pode mesmo desanimar alguns jovens chefes que gostariam de entrar neste tipo de corrida às estrelas; por outro lado, nunca se per­de a noção de que é preciso cozinhar com uma doentia obsessão pela qualidade e algumas das (poucas) receitas que são explicadas no final do livro dão-nos a noção do rigor e do pormenor que um prato pode atingir. Para um leigo fica a ideia de que esta “coisa” da cozinha, dos che­fes e das estrelas, é de doidos. Pois eu acho mesmo que é…
(JPM)

Regresso à Madeira

TEXTO Luis Antunes LEMBRO-ME de há muitos anos escrever uma cróni­ca chamada “Espada na Espetada,” na qual critica­va severamente o panorama gastronómico da ilha da Madeira por deixar que a sua ampla e profunda tradição gastronómica se esgotasse em banais espadas (filetes de peixe-espada) com banana e espetadas de no­vilho com milho frito. Banalizou-se, exportou-se […]

TEXTO Luis Antunes

LEMBRO-ME de há muitos anos escrever uma cróni­ca chamada “Espada na Espetada,” na qual critica­va severamente o panorama gastronómico da ilha da Madeira por deixar que a sua ampla e profunda tradição gastronómica se esgotasse em banais espadas (filetes de peixe-espada) com banana e espetadas de no­vilho com milho frito. Banalizou-se, exportou-se e banali­zou-se ainda mais o bolo do caco, agora espalhado pelo continente e suponho que em breve pelo planeta.

A riquíssima gastronomia regional, fundada em frutas exóticas, peixes de mares profundos, vegetais de solos vulcânicos, carnes de pastos verdes, e ainda uma quan­tidade de receitas e técnicas que se foram construindo e reconstruindo no isolamento ilhéu, estava a ser esqueci­da, guardada só para as mesas familiares. Vejam os meus lamentos em 2009: “Onde está o inhame? Onde estão as sopas de trigo, de castanhas, de lentilhas, de couve? A sapata de Câmara de Lobos? Os velhos pratos de carne de coelho de Porto Santo, de cabrito guisado com vinho e canela, de carne de cabra salgada e seca ao sol? Mes­mo a carne de vinho e alhos desapareceu?”

Obviamente, a Madeira não parou, o turismo continuou a existir, e fatalmente havia de se fartar de banalidades de sabor internacional. Os chefes estrelados, curiosos e teimosos, juntaram a sua determinação aos resistentes cozinheiros da ilha, e o panorama parece finalmente que­rer mudar muito e mudar rápido. As autoridades também perceberam o que se estava a passar e agora investem forte numa nova apresentação da ilha. Recentemente, na BTL, a plataforma, de Armando Ribeiro, produziu um magnífico cocktail (dinatoire), com quatro chefes de cozi­nha madeirenses, a apresentar ao público lisboeta os no­vos caminhos para a liderança da gastronomia regional.

Luís Pestana é o primeiro chefe de cozinha madeirense a ganhar uma estrela Michelin, para o restaurante William, do grupo Reid’s, e apresentou espada com maracujá, ovas, puré de inhame e batata doce, funcho, banana e flor de borragem e foie gras com Verdelho, chocolate ne­gro, strudel de bananas, gel de tomate arbóreo e folha de ouro, além de bolo de mel com ganache de maracujá e trufa de banana com Malvasia. Octávio Freitas, responsá­vel pelas cozinhas da cadeia de hotéis Four Views, apre­sentou pickle de cavala e manga com creme de batata­-doce, lombo de atum com mel da Laurissilva e papas de milho e ainda mini-bolos do caco tricolor com espada de cebolada. Rogério Calhau, da Casa Velha do Palheiro, mostrou atum com melancia e wasabi, mini-bruschetta de bolo do caco com coelho do Porto Santo, figo e alfarroba, e ainda maracujá, banana e cacau. Yves Gautier cozinha no Hotel Quinta da Serra e cozinhou carpaccio de pol­vo com vinagrete de maracujá e especiarias, espada em tempura de batata-doce, chutney de banana e citrinos da quinta com eucaliptos, e terminou com sablé com bolo de mel e vinho Madeira, frutos tropicais com geleia de algas e pinheiros.

Manifestamente, estas são criações refinadas, perfeitas para ligar com os magníficos vinhos Madeira, ou os cada vez melhores vinhos secos Regional Madeirense. É tam­bém óbvio que o mar de trivialidade da gastronomia ma­deirense não se vai dissolver em momentos, mas esta li­derança pode juntar-se aos resistentes cozinheiros da ilha (nunca me esqueço do puré de batata de São Brazão, no restaurante Casa de Palha, na Achada Grande), para defi­nir um novo e excitante território de ambição para quem cozinha e para quem visita a ilha. Quem lá vive sabe do que falo, mas também esses ficarão orgulhosos de um dia exibirem ao mundo a magnífica riqueza, sobriedade e complexidade da cozinha de uma ilha mágica.

Belcanto entre os 100 melhores restaurantes do mundo

NÃO há qualquer representante português na lista anual dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo, divulgada no princípio de Abril em Melbourne, Austrália, mas o Belcanto, de José Avillez, integra a tabela dos 100 melhores, na 85ª posição. O ranking, elaborado com base na votação de mais de 1000 jurados, entre chefes, empresários da restauração, críticos […]

NÃO há qualquer representante português na lista anual dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo, divulgada no princípio de Abril em Melbourne, Austrália, mas o Belcanto, de José Avillez, integra a tabela dos 100 melhores, na 85ª posição. O ranking, elaborado com base na votação de mais de 1000 jurados, entre chefes, empresários da restauração, críticos gastronómicos e gastrónomos de todo o mundo, é liderado pelo Eleven Madison Park, em Nova Iorque, com o chefe suíço Daniel Humm aos comandos.

A lista até ao 10º posto inclui, por esta ordem, a Osteria Francescana (Modena, Itália), El Celler de San Roca (Girona, Espanha), Mirazur (Menton, França), Central (Lima, Peru), Asador Etxebarri (Axpe, Espanha), Gaggan (Banguecoque, Tailândia), Maido (Lima, Peru), Mugaritz (San Sebastian, Espanha) e Steirerek (Viena, Áustria). Ao todo, há 22 países representados na lista dos 50 Melhores, com destaque para Espanha, EUA e França, com seis representantes cada. A Itália tem quatro, Peru e Reino Unido três.