Grande Prova: Douro de Ouro …por menos de €15

Prova Douro

Se calhar sou eu que sou velho e os tempos mudaram a mil-à-hora, mas lembro-me de anos (1980s, 1990s) em que a inflação era alta a sério e os vinhos não aumentavam assim tão depressa. Então, aconteceram outras coisas, e não têm a ver com a inflação apenas. Em vez disso, penso que o que […]

Se calhar sou eu que sou velho e os tempos mudaram a mil-à-hora, mas lembro-me de anos (1980s, 1990s) em que a inflação era alta a sério e os vinhos não aumentavam assim tão depressa. Então, aconteceram outras coisas, e não têm a ver com a inflação apenas. Em vez disso, penso que o que aconteceu foi uma mudança nos padrões de consumo. Já se sabe que os apreciadores que procuram vinhos com interesse acrescido fogem das categorias de entrada de gama, que ocupam bem mais de 90% do consumo de vinho em Portugal. É para esses que escrevo, mas não é fácil obter as estatísticas (sou matemático) que reforcem estas opiniões. As médias escondem as verdades. Então vamos pela via do diálogo.

Frescura natural
Fiquei muito impressionado pelo estilo do Crasto, e falei com o enólogo Manuel Lobo de Vasconcellos sobre o vinho. Lembro, como se fosse preciso, que este senhor confeccionou o melhor tinto do país em 2023, vindo da Vinha Maria Teresa. Falamos de “a different beast”, mas nem por isso menos impressionante. É que este Crasto tem apenas 15% de madeira, e mesmo assim tem uma dinâmica em boca impressionante, com suavidade e profundidade. Então, o Manuel disse-me que este vinho é pensado não só como um cartão de visita da Quinta do Crasto, mas também como um cartão de visita dos tintos do Douro. Tendo bem presente a prova de 30 tintos que tinha acabado de fazer, não posso deixar de concordar. O Douro afirma uma identidade e uma qualidade ímpares, mesmo nesta gama, que se já não é de entrada, é a gama de entrada para os consumidores mais interessados, como confirmei mais tarde com Patrícia Santos. Já lá vamos. Segundo Manuel, esta suavidade e profundidade não aparecem por acaso. Cada vez há um trabalho mais cuidado com as madeiras, as vinhas entretanto envelheceram e estão a fornecer uvas com mais qualidade todos os anos, a enologia evoluiu para perceber melhor o seu terroir e ir cada vez mais ao encontro dos desejos dos seus clientes. Esses desejos são cada vez mais vinhos frescos, macios e bebíveis, já se sabe que poucos vinhos serão guardados para um consumo mais tardio. Em especial nesta gama.

E a gama acaba por ser a de entrada. Segundo Manuel Lobo, do Crasto já se fazem 500 a 600 mil garrafas por ano. O vinho na gama abaixo, Flor de Crasto, nem é vendido em Portugal. Uma outra observação que Manuel me fez é que o vinho já não se chama “Quinta do Crasto,” mas apenas “Crasto.” O que significa isto: é óbvio, nem todas as uvas provêm da quinta, algumas vêm da quinta da família no Douro Superior, a Cabreira, onde a altitude assegura uma frescura natural suave e integrada. Mão de mestre na arte dos lotes, e temos cada vez mais vinhos que vão ao encontro dos nossos anseios à mesa. Isto mesmo fui validar falando com quem encara diariamente o consumidor. Patrícia Santos (“filha do Boss” — mítico Arlindo Santos — da Garrafeira de Campo de Ourique) confirmou que esta é uma categoria muito forte nos dias de hoje. São os novos vinhos baratos. Por vezes, se for uma grande quantidade, por exemplo para um casamento, podem lá procurar vinhos abaixo de €10. Já se for um vinho para oferta, os clientes procuram preços mais altos, de €20 ou €30 para cima. Mesmo que para o dia-a-dia os clientes procurem vinhos mais baratos, fazem-no nos supermercados, não procuram o comércio especializado. Neste ponto de preços, o Douro é a região mais forte. O Dão compete com vinhos de grande qualidade por volta de €10, enquanto Lisboa mantém este nível de preços mas oferece um outro estilo, mais leve, para pessoas que procuram diferença. Já no Alentejo, os vinhos de qualidade estão mais caros, e o cliente facilmente gasta mais de €20.

 

O Douro afirma uma identidade e uma qualidade ímpares, mesmo nesta, que é a gama de entrada para os consumidores mais interessados.

Cultura de vinho
Quem visita o Douro compreende porque é que esta região se tornou, em poucas décadas, tão forte comercialmente em Portugal e com um impacto impressionante na imagem dos vinhos portugueses no mundo. Começou logo por beber da fama dos vinhos do Porto, um dos nossos vinhos tradicionalmente mais conhecidos e uma das nossas marcas mais fortes. A seguir vem o facto de a região, sendo pequena, ter uma impressionante área de mais de 40 mil hectares de vinha. Praticamente é uma mono-cultura, e isso transvasa para as pessoas que habitam no Douro. Há ali verdadeira cultura de vinha e de vinho, onde cada duriense é um guardião do seu terroir, que acaba por ser o seu tesouro.
Acertando as agulhas com a enologia, com a fortíssima aposta em formação universitária que as últimas décadas viram, com os holofotes do país e do mundo para ali voltados, com produtores-estrelas a atrair as atenções de todos, com as casas mais fortes do sector do vinho do Porto cada vez mais apostadas em comprar propriedades para controlar a produção das uvas desde a origem, a qualidade acabou por ser o padrão e a exigência de toda uma região. Temos muita sorte, como consumidores, em ter um tal farol a liderar o sector. Mas esta é uma liderança partilhada, porque temos outras regiões que também fizeram o mesmo, galgando passos nos casos em que a cultura de vinho não era tão tradicional, ou porfiando em recuperar o tempo nos casos em que as estratégias eram orientadas para outros critérios.

Hoje vemos, em muitas regiões, fortíssimas apostas em qualidade, e produtores independentes a procurar caminhos alternativos para recuperar estilos antigos ou experimentar caminhos novos. Isso também se vê no Douro, e um dos vencedores deste painel afirma claramente essa diferença. Vou ser claro, este foi um painel muito fácil, porque todos os vinhos tinham belíssima qualidade. Mas também foi muito difícil, porque o estilo era quase sempre muito parecido. Binómio Touriga Nacional e Touriga Franca, com acompanhamento e/ou tempero das outras castas usuais, maturação e extracção elevadas, embora mantendo boa frescura ácida e taninos civilizados, trabalho ajuizado com a madeira, para amaciar e temperar o vinho sem o marcar com doçuras ou especiarias demasiado óbvias. Descrevi 95% do painel. As diferenças de classificação prendem-se com detalhes, seja a integração, seja a maciez, seja o apelo guloso, seja, raras vezes, uma questão de estilo e preferência pessoal. Pormenores. Convido o leitor a experimentar todos estes vinhos, faça o seu próprio painel com qualquer subconjunto deles. Vai deleitar-se, em particular, se no fim da prova da cozinha sair um assado fumegante e acabar à mesa em festa.

(Artigo publicado na edição de Junho de 2024)

Grande Prova: De norte a sul Os “outros” Alvarinho

Grande Prova Alvarinhos

A casta que hoje nos ocupa é mais uma daquelas que, por norma, dizemos ser casta portuguesa e que em boa verdade é uma variedade ibérica. Nuestros hermanos, que também a apelidam de Cainho Branco, fizeram dela a rainha das Rias Baixas e a fama ultrapassou fronteiras, tendo chegado a outros continentes. Por lá foi […]

A casta que hoje nos ocupa é mais uma daquelas que, por norma, dizemos ser casta portuguesa e que em boa verdade é uma variedade ibérica. Nuestros hermanos, que também a apelidam de Cainho Branco, fizeram dela a rainha das Rias Baixas e a fama ultrapassou fronteiras, tendo chegado a outros continentes. Por lá foi referenciada em 1843 mas A. Girão (tratado Prático da Agricultura das Vinhas) já fala dela em 1822 como casta de Monção. Entre nós esteve muito tempo confinada ao Minho, inicialmente à zona de Monção e Melgaço, onde adquiriu justa fama. Sempre dispersa nas vinhas e misturada com outras castas, a Alvarinho conheceu a primeira vinha contínua em 1964 no Palácio da Brejoeira, orientada por Amândio Galhano. Até há poucos anos era só de Monção e Melgaço que poderiam sair vinhos com Denominação de Origem Vinho Verde, mas a situação actual é bem diferente, uma vez que em qualquer zona da região se pode fazer um Alvarinho com direito a D.O.. A área de vinha deverá atingir actualmente cerca de 1500 ha.

A grande divulgação da casta só começou no final dos anos 80 do século passado, quando muitos produtores resolveram avançar para projectos próprios como engarrafadores. Passámos então de quatro ou cinco marcas – Deu la Deu, Palácio da Brejoeira, Adega de Monção e Cêpa Velha – para as mais de 100 que existem agora, com muitos milhões de garrafas produzidas anualmente. Gradualmente deixou de ser o branco da aristocracia rural minhota, vinho de ricos e de eventos de luxo, para se tornar um branco acessível a todos. Terá sido essa expansão e o sucesso que os vinhos tiveram junto do consumidor que despertou o interesse de produtores de outras zonas do país para as virtudes da Alvarinho. Temos hoje, assim, vinhos varietais em várias regiões, umas mais quentes que outras, umas de interior e outras costeiras.

A casta gosta de estar perto do mar, mas protegida do mar, ainda que tal possa parecer contraditório.

Os registos da prova
Na prova que fizemos, que não permite juízos de valor definitivos, foram, no entanto, perceptíveis algumas tendências. Mas as conclusões poderão ser apressadas porque avaliámos vinhos de idades muito diferentes; recuando no tempo, tivemos amostras desde 2023 até 2019. Por isso havia no painel algum desequilíbrio temporal. É verdade que, em termos abstractos, um branco de 2019 não se considera velho ou demasiado evoluído em nenhuma região do mundo, mas o facto de estarem aqui vinhos precocemente evoluídos pode permitir algumas leituras sobre a adaptação (ou não) da casta a solos e climas muito distintos dos da zona de origem (Minho).

A expansão da casta, cremos, ficou a dever-se às suas virtudes intrínsecas: produz bem, aromaticamente é muito rica e além de um corpo elegante, resulta com uma acidez muito expressiva que alegra o lote final. Pela experiência nas zonas de Monção e Melgaço, percebeu-se também que, uma vez plantada em solos diversos, poderia originar vinhos expressivos e diferenciados de perfil. Ora, tendo o país zonas costeiras e de interior, zonas frias e quentes, de planície e de altitude, era inevitável a “atracção fatal” que a casta exerceu sobre os produtores. É também por isso que estamos em crer que o futuro próximo nos irá trazer mais amostras de outros produtores interessados na casta.
Os resultados da prova têm algo de paradoxal: a vitória de um vinho mais “atlântico” poderá ser considerada normal, mas os dois lugares seguintes com origem em zonas de interior já podem ser mais surpreendentes. Jorge Moreira, que faz no Douro o “seu” Alvarinho Poeira e também o Quinta de Cidrô, reconhece na casta “a capacidade de mostrar bem o local de onde vem, acentuando no Douro o seu carácter mais gordo, mas conservando uma excelente acidez e pH”. Ao seu Poeira há a acrescentar o Pó de Poeira, ambos da sua propriedade mas de vinhas diferentes. Já Anselmo Mendes, com muitos vinhos feitos em Monção, acentua que “a casta gosta de estar perto do mar, mas protegida dele. Ainda que possa parecer contraditório, a verdade é que, se demasiado perto da orla marítima e sem protecção, a casta pode originar uma acidez exagerada”. Na Bairrada, onde dá apoio enológico ao vinho Kompassus, Anselmo assinala que “a casta se mostra muito bem em solos argilo-calcários, resultando num vinho um pouco mais fechado, mais reduzido, mas com mais salinidade na prova de boca; estou convencido que a proximidade do mar pode ser determinante, tal como é a influência do enólogo”, disse.

Nas zonas quentes a produção do Alvarinho pode levantar alguns problemas. Paulo Laureano que também a trabalha no Alentejo, confessa que levou algum tempo a perceber a melhor forma de contrariar a tendência da casta para a sobrematuração que deriva do clima quente. Diz, por isso, que “uma poda adequada e um clima que inclua alguma brisa são fundamentais porque a maturação pode parar por excesso de calor”. Já a Herdade da Ravasqueira começou por plantar a casta ainda em finais dos anos 90 e desde a segunda década deste século que tem feito vinhos varietais, “uma aposta segura”, como nos disse Vasco Rosa Santos, que integra a equipa de enologia da Ravasqueira. Na Herdade da Lisboa a produção tem sido irregular e, por exemplo, a partir de 2020 ainda não é certo quando voltará a haver. Ali a casta é também usada para base de espumante e, para vinho tranquilo, é fermentada em barrica.
Estamos perante uma casta que aceita vinificações variadas, desse o clássico inox, barricas de vários tipos e idades e cimento. A tendência actual, que aponta sobretudo para a vinificação e estágio em barrica usada, encontra nesta variedade uma compincha. E, tal como acontece no Minho, os produtores estão também a descobrir-lhe as virtudes para ser vinificada como base para espumante. Eles já existem abundantemente em Monção e Melgaço e, cremos, irão surgir também noutras zonas do país.
Como se pode verificar pelos vinhos que provámos, os preços podem ter enormes variações mas essa é discussão para ter noutro fórum que não este. Pode-se, de qualquer maneira, concluir que o consumidor pode ter acesso a Alvarinhos de todo o país, com muito boa qualidade e a preço sensato.

(Artigo publicado na edição de Maio de 2024)

Grande Prova: Moscatel até 10 anos Qualidade e prazer a preço imbatível

Grande Prova Moscatel

Quem não ouviu falar de Moscatel? Pois é(!); a referência a Moscatel é bem conhecida de todos os portugueses e, não sendo rigorosamente polissémica, a verdade é que a utilizamos tanto para identificar a uva como fruto, como, genericamente, um tipo de vinho aromático e doce. Com efeito, para o mero apreciador, e independentemente da […]

Quem não ouviu falar de Moscatel? Pois é(!); a referência a Moscatel é bem conhecida de todos os portugueses e, não sendo rigorosamente polissémica, a verdade é que a utilizamos tanto para identificar a uva como fruto, como, genericamente, um tipo de vinho aromático e doce. Com efeito, para o mero apreciador, e independentemente da multiplicidade de castas com o mesmo nome, Moscatel é sinónimo de vinho generoso. Efectivamente, e apesar das variações não-licoradas no final dos anos 80 do século passado num perfil frutado meio-seco (com a marca João Pires à cabeça), é mesmo o perfil doce e untuoso para o qual mais remete a referência a Moscatel. E, note-se, esta dicotomia, ou plasticidade, noutra perspectiva, das várias castas moscatéis, é transversal a todo o mundo vínico mediterrânico (o mesmo acontecendo com outras famílias de castas, caso da Malvasia, por exemplo), onde perfis mais ou menos secos convivem lado a lado com versões assumidamente doces. Do Douro (na variante Moscatel Galego Branco) a Palmela, sem sairmos do nosso país, ou de Málaga em Espanha a Samos na Grécia, sem esquecer os múltiplos terroirs em França e Itália, e até no Novo Mundo, casos do Chile, Austrália e África do Sul. Em todos estes lugares, tão diferentes e longínquos entre si, existe uma significativa implantação de variedades de Moscatel, com declinações mais ou menos secas, mais ou menos doces. Curiosa e paradoxalmente, o Moscatel tem vindo a sentir um menor reconhecimento em quase todas as referidas regiões, sendo que, em vários desses lugares, é actualmente utilizado quase exclusivamente para destilação. Em Portugal não é assim (felizmente!), apesar do reconhecimento da qualidade dos vinhos Moscatéis também não acompanhar a sua significativa implementação no país, nem o agrado generalizado que a maioria dos consumidores tem pelos vinhos.

Setúbal e Roxo
Neste texto, iremos dedicar-nos ao Moscatel de Setúbal, vinho generoso certificado desde 1908, e ao Moscatel Roxo (mutação do Moscatel Galego) igualmente certificada como Setúbal. Sendo vetusta a certificação, na sequência da demarcação da região um ano antes, em 1907, não admira o reconhecimento e apreço da generalidade dos consumidores por estes vinhos. Tanto assim o é que, do centro do país para o sul, falar de Moscatel é falar de Moscatel de Setúbal. Acresce realçar que os últimos 40 anos têm sido responsáveis por uma maior afirmação e dispersão do gosto por Moscatel de Setúbal fora da região, para o qual muito contribuiu o aperfeiçoamento do método de produção (num vinho onde a maceração pós-fermentativa e o estágio são determinantes). A prova disso mesmo é que, enquanto há 30 anos era difícil encontrar um Moscatel de uma só colheita, pois o blend era quase inevitável, dada disparidade de qualidade entre colheitas, actualmente são muitos os vinhos que provêm de um único ano, aspecto para o qual o fenómeno climático de aquecimento também tem contribuído.
Acresce, que a região de Setúbal tem conhecido um renovado interesse dos produtores no Moscatel, depois de décadas em que a casa José Maria da Fonseca não tinha praticamente concorrência no que respeitava a Moscatel comercializado (coisa diferente era o produzido na região para consumo local…). Com efeito, a partir dos anos 80 passou a ter rivalidade com a produção levada a cabo pela então ‘J.P. Vinhos’ (actualmente, ‘Bacalhôa Vinhos de Portugal’). A par destes produtores, e da restante dezena presentes na nossa prova, existem ainda mais cerca de meia dúzia a produzir e comercializar, com certificação, habitualmente este belo generoso em várias (talvez demasiadas) categorias e idades. De resto, os dados da CVR de Setúbal confirmam o crescimento da área de vinha destinada à produção de Moscatel que, entre Moscatel de Setúbal e Moscatel Roxo, já ascende quase a 600 hectares, com claro predomínio para o primeiro, mas notório crescimento recorde do segundo durante a última década, que duplicou em poucos anos (graças sobretudo aos esforços pioneiros da Bacalhôa e, mais tarde, da José Maria da Fonseca), passando de quase extinto aos 50 hectares actuais.

 

Grande Prova MoscatelMesmo apenas com 10 anos de idade, todos vinhos revelam enorme complexidade, o resultado sobretudo do estágio prolongado em barrica ou tonel, muitas vezes em sistema de canteiro.

 

 

Uma casta antiga
Refere Jancis Robinson, no seu clássico Guide to Wine Grapes, que o Moscatel de Alexandria (Moscatel de Setúbal) é uma casta antiga, também conhecida como Moscatel Romano, o que permite inferir ser uma variedade com origem em territórios do norte de África, que foi dispersa no Mediterrâneo durante os séculos de domínio do Império Romano. Por seu lado, João Afonso, no mais recente livro As Castas do Vinho, segue a doutrina que a casta tem origem provável nos territórios que hoje são a Grécia e o sudeste de Itália, lembrando que se trata de um cruzamento natural da casta Heptakilo T e a mais conhecida e valorizada Muscat à Petit Grain branco.
Independentemente da origem, mais ou menos mediterrânica, é uma uva que prefere climas quentes (sendo sensível a doenças em climas frios) e que, por regra, produz vinhos cuja prova é percepcionada como adocicada, intensa e pouco complexa, ainda que, em certas localizações, proporcione vinhos verdadeiramente intrigantes, desde que se controle a produção abaixo dos 3000 litros por hectare (Note-se que o Moscatel Roxo pode chegar a produzir 15 ton/ha em Portugal se não for controlado). Pois bem, é, como sabemos, o caso da nossa portuguesa Região de Setúbal, uma vez que a casta aqui está perfeitamente adaptada, sendo a complexidade aditivada pela maceração pós-fermentativa e longos estágios em madeira. Tal como sucede com os demais vinhos da região, são diferentes os néctares que provém de vinhas junto à Serra da Arrábida, com solos argilo-calcários – com pH mais baixo e acidez total mais elevada –, daqueles que resultam de fruto provenientes de plantas nas areias de Palmela. No que toca ao nosso tema do Moscatel, os vinhos das areias tendem a ser mais expressivos e melosos, com menos nuances e frescura.
Finalmente, a distinção entre os perfis Moscatel de Setúbal e Moscatel Roxo (uma mutação rosada do Muscat à Petit Grain, ou Moscatel Galego), perfis esses, em parte essencial, determinados pelas próprias diferenças das castas. Para uma explicação rápida, o método comparativo ajuda. Por um lado, ambas as castas são nitidamente florais, com referências a rosa, tília, laranjeira, sardinheira, palmarosa e citronela, com notas a baga e grainha de uva. Porém, enquanto o Moscatel de Setúbal é mais cítrico (lembrando olfactivamente casca de laranja, torta de laranja, laranja desidratada) e com notas de nozes, mel e massapão, já o Moscatel Roxo revela um aroma mais barroco, seco e tostado, com menos frescura (mesmo quando tem menos álcool), com referências a figo, tâmaras, caramelo, e alfazema seca. Os registos antigos de Ferreira da Lapa, a propósito desta casta, revelam que a sua complexidade e fino paladar são há muito admirados. A nosso ver, e com vários anos de provas, essa complexidade e finura são particularmente evidentes em Moscatéis Roxos com mais de 20 ou 30 anos, sendo que, quando novos, podem revelar-se menos elegantes do que os meios-irmãos Moscatéis de Setúbal.

Um fortificado muito especial
De uma forma absolutamente simplista, o Moscatel de Setúbal pode ser abreviado como um vinho generoso, obtido a partir da casta Moscatel plantada na região. Pode existir presença residual de outras castas (era o caso do Fernão Pires com Moscatel e do Castelão com Moscatel Roxo), mas se tiverem a designação às castas terão de ter pelo menos 85% da variedade em questão. Todavia, as fichas técnicas dos vinhos provados comprovam que os produtores da região optam quase sempre por vinhos 100% obtidos a partir de uma só casta. Ainda de forma simplicista, trata-se de um vinho cuja doçura natural é mantida pela paragem da fermentação mediante a adição de álcool vínico, sendo o estágio final do vinho em madeira, outra fase fundamental na medida em que, tal como sucede noutros produtos alcoólicos, proporciona um afinamento do produto. Naturalmente, quanto mais tempo de estágio em madeira, maior é a complexidade e concentração do vinho que será engarrafado (depois do engarrafamento, não tende a beneficiar de estágio, evoluindo pouco e de forma não homogénea, podendo até muitas vezes sofrer alguma turbidez, devendo a garrafa ser guardada ao alto).
Como sempre acontece no mundo dos vinhos, mais a mais quando estamos perante tradições e castas antigas, cada produtor tem a sua maneira própria de vinificar e estagiar. Mais detalhadamente, o processo, em todo o caso, é muito semelhante de casa para casa: inicia-se a fermentação lentamente com as películas, que será, contudo, muito curta (pode atingir os ¾ de fermentação em três dias), pois é parada (beneficiada, como também se diz) com adição de aguardente vínica selecionada. No que a esta fase diz respeito, existe alguma variação, com preponderância para aguardentes neutras, em tudo idênticas às utilizadas para o vinho do Porto e um teor de álcool compreendido entre os 52% e 86%, algumas de origem portuguesa, outras não (não existem restrições quanto à origem), sendo disso bom exemplo o recurso a aguardentes adquiridas quer na zona de Cognac, quer na de Armagnac, com bons resultados diga-se. Ocorre, depois, uma maceração pós-fermentativa durante o Inverno, que decorre entre cinco e seis meses dependendo, mais uma vez, da regra e do gosto de cada casa. Por exemplo, a José Maria da Fonseca e a Horácio Simões optam por uma maceração em películas de cinco meses, com final em fevereiro/março. Já António Saramago prolonga um mês mais. Esta maceração pós-fermentativa já com a aguardente adicionada é, portanto, feita com as películas das uvas, naturalmente ricas em aromas e sabores, o que também explica a tonalidade de topázio, cobre ou âmbar dos moscatéis mesmo em novos. Segue-se a trasfega e as massas são prensadas, sendo quase sempre utilizado esse vinho da prensa para ser loteado com o que resultou da sangra.

 

Apesar do registo naturalmente doce, vários foram os vinhos com percepção de frescura e muita vivacidade, o que os torna relativamente versáteis à mesa.

Estilos muito diversos
Igualmente relevante é o tipo de estágio, com a generalidade dos produtores a utilizar pequenas barricas (que podem chegar a apenas 100 litros), para assim contribuir com uma evolução mais acentuada. São quase sempre barricas antigas, mas varia o tipo de madeira (de Castanho a Carvalho Americano, passando pelo Carvalho Francês) e a anterior utilização e serviço. Entre outras situações, casos há de barricas com prévia utilização em vinho do Porto, outras servidas a Whisky. Várias casas não hesitam em colocar esses barris em armazéns “quentes”, com condições para provocarem concentração e intensidade, seguindo a técnica de canteiro (como sucede também no vinho da Madeira), aspecto bem evidente na prova de alguns vinhos que ficam, efectivamente, marcados por um estilo particularmente intenso e prazeroso, mesmo com apenas 10 anos. No espectro oposto, encontramos também produtores a optar por tonéis de 5000 a 6000 litros. Com estas variações, e como podemos comprovar na presente prova, o nível alcoólico dos vinhos provados varia entre os 17% e os 20,5% (sendo os limites legais 16% e 22%), e o açúcar residual desde os 105 g/l do mais seco João Pires 10 anos (José Maria da Fonseca), aos 240 g/l do mais doce Moscatel de Setúbal da Quinta do Piloto, passando pelos 140 g/l do Encostas da Arrábida (Adega Coop. Santo Isidro de Pegões) e pelos 171 g/l do Bacalhôa Moscatel de Setúbal Superior, entre outros. A título de comparação, veja-se que, nos vinhos mais velhos (com 20 ou mais anos) a doçura pode chegar aos 340 g/l (mas, para vinhos com menos de 20 anos, o limite é mesmo 280g/l.).
Como se constata, as diferenças são significativas, mas, verdade seja dita, todas essas diferenças não são particularmente notórias na prova organoléptica, sobretudo quando os vinhos são provados (e assim devem ser bebidos) frescos, por vezes mesmo frios (abaixo dos 10ºC). Naturalmente, provados a temperatura mais elevada, as nuances foram mais evidentes, apesar de em todos termos sentido o carácter e personalidade da casta – exuberante, floral e cítrica (laranja), perfil sacarino e afectuoso.
Quanto à referência à categoria 10 anos (e, bem assim, às demais 15, 20, 25, 30, 35 e 40) no Moscatel de Setúbal e Moscatel Roxo importa lembrar que, ao contrário de outros generosos, não se refere tanto a um estilo resultante de um lote de vinhos com uma idade média. Ao invés, na legislação de Setúbal, é obrigatório que os vinhos mais novos em cada lote tenham, no mínimo, a idade identificada.
Terminada a prova, (com)provámos a enorme qualidade destes vinhos, e demos algumas das notas mais elevadas registadas na nossa revista para este tipo de vinho. Tivemos vinhos que passaram cinco anos em barricas e outros quase 15, mas a qualidade esteve sempre presente. Se os mais leves e jovens devem ser servidos frios – não acima dos 8ºC – ao início de uma refeição, ou até em cocktails, os mais antigos e complexos podem acompanhar sobremesas e devem ser servidos a 10ºC. Nos destaques individuais, não podemos deixar de realçar a elegância do António Saramago Moscatel de Setúbal e a precisão do DSF Colecção Privada Moscatel Roxo, sem esquecer a concentração do Bacalhôa Moscatel de Setúbal e o equilíbrio do SVP Moscatel Roxo!

(Artigo publicado na edição de Abril de 2024)

Tintos de 2014: A perfeição num ano imperfeito

tintos 2014

O ano em si até nem correu mal. De vários relatórios do ano vitícola concluímos que as temperaturas se mantiveram relativamente amenas, com alguma oscilação, mas sem ondas de calor no verão. A Sogrape, que tem produção no Douro, Alentejo, Dão e Vinhos Verdes refere que “a chuva foi uma constante ao longo do ano, […]

O ano em si até nem correu mal. De vários relatórios do ano vitícola concluímos que as temperaturas se mantiveram relativamente amenas, com alguma oscilação, mas sem ondas de calor no verão.
A Sogrape, que tem produção no Douro, Alentejo, Dão e Vinhos Verdes refere que “a chuva foi uma constante ao longo do ano, marcando também presença na época de vindima na maior parte das regiões vitivinícolas”.
A humidade elevada originou uma maior pressão de doenças criptogâmicas (míldio, oídio e podridão), obrigando à realização de um maior número de intervenções na vinha (desfollha, desponta) e tratamentos fitossanitários.
O mês de Agosto foi particularmente seco, mas boas reservas de água no solo permitiram que as videiras não entrassem em stress hídrico, ao mesmo tempo que as temperaturas amenas e noites frescas contribuiram para uma boa e equilibrada maturação das uvas e até faziam esperar uma vindima fantástica. A chuva de Setembro é que estragou as expectativas de muitos viticultores.
Em alguns locais choveu o dobro da média ou mais. Aqui, factores como a proximidade do litoral e orografia podem complicar ainda mais. Na Bairrada, por exemplo, não foi um ano feliz. Alguns dos produtores habituais nesta prova não mandaram vinhos. A Baga não teve hipótese de amadurecer antes das chuvas.

Antes ou depois da chuva

Tive a sorte de acompanhar a vindima de 2014 com as mãos na massa, na Quinta do Vallado. Durante duas semanas fiz controlo de maturação, selecção de uvas no tapete de escolha, remontagens manuais, pisa a pé, controlo de fermentações, análises de mostos e tudo que se faz numa adega. Lembro-me que cheguei à quinta no dia 8 de Setembro e já tinha chovido dois dias antes. A apanha de uva foi intermitente em função das chuvas. No tapete de escolha a selecção foi exigente, mas dependia muito dos locais e das parcelas de onde vinha a uva. E isto claramente constitui o factor diferenciador, sobretudo no Douro, onde as diferentes altitudes e exposições modificam significativamente as condições da região.
De um modo geral, a vindima 2014 ficou dividida em antes e depois da chuva. E aqui o terroir e a casta tiveram um papel preponderante.
O produtor e enólogo Rui Reguinga, que tem as vinhas no calhau rolado em Almeirim, não teve qualquer problema na vindima. Explica que aquela zona “é muito quente, ainda por cima o calhau rolado acaba por acelerar a maturação, o que permitiu colher as uvas maduras e em óptimas condições antes das chuvas”.
Na Herdade do Mouchão, no Alentejo, começou a chover a partir da segunda semana de Setembro, mas o melhor Alicante Bouschet da vinha dos Carapetos, implantada em solos de aluvião bem drenados, foi vindimado antes das primeiras chuvas. Estas uvas são a espinha dorsal do Mouchão 2014, que mostrou uma qualidade estrondosa nesta prova.
Francisco Olazabal conta que na Quinta do Vale Meão, Douro Superior, começou a chover no dia 7 de Setembro, mas eles conseguiram apanhar a maior parte das parcelas que entram no lote entre o 29 de Agosto e 6 de Setembro. As uvas apanhadas mais tarde estavam maduras e não foram muito afectadas pelas chuvas. O resultado está na prova.

tintos 2014

2014 foi o ano em que vingou o terroir e as decisões acertadas.

 

Decisões acertadas

Mas nem todos tiveram a sorte de apanhar as uvas antes das chuvas e tiveram que gerir a vindima em função do estado da maturação das uvas e do seu sexto sentido, tomando decisões rápidas e, por vezes, arriscadas.
Sandra Tavares (Wine & Soul) relata que o ano estava a correr muito bem. As uvas para o Pintas foram apanhadas antes da chuva, mas as vinhas da Quinta da Manoella ficam numa zona mais fresca e ainda não tinham sido colhidas. Quando souberam da previsão das chuvas, fizeram mais desfolha para os cachos ficarem mais expostos e secarem mais rápido. Optaram por vindimar à chuva e nunca pararam a vindima. O objectivo era colher tudo o mais depressa possível, porque as uvas demoram a absorver a água. Os solos drenam bem e as uvas não ficaram muito diluídas. O facto de serem vinhas velhas também ajudou. “Acabam por ser mais calibradas, mais resistentes às adversidades do tempo”. Tiveram atenção redobrada na selecção de uvas, naturalmente.
Segundo o enólogo da Quinta do Noval, Carlos Agrellos, no caso deles as uvas provêm das vinhas expostas a sul e a poente e, com esta localização, estavam quase maduras. A primeira parcela de Touriga Nacional foi colhida a 14 de Setembro e outra parcela no dia seguinte – as duas juntas fazem 80% do lote. A chuva não as afectou muito. Pela Touriga Franca tiveram que esperar até dia 5 de Outubro. Foi colhida já depois das chuvas. Conseguiu recuperar. “Era o risco total, mas valeu a pena”. Diria que estamos perante “um ano mais sóbrio, do que full-bodied” – conclui Carlos. Na adega fizeram delestage mais vezes para extrair mais estrutura (as uvas que entraram no lote estavam em óptimas condições sanitárias).
Jorge Moreira (Poeira) partilha a sua experiência da vindima 2014. “Quando os bagos começaram a rachar com as chuvas, primeiro pensei vindimar, mas depois resolvi esperar porque as uvas ainda não estavam maduras”. Com as vinhas viradas a norte, confessa que nunca consegue vindimar antes de 20 de Setembro. “Os vinhos acabaram por ter um pouco de diluição” – continua – “mas no Douro, com a tradição do Porto Vintage, medimos a qualidade pela concentração, estrutura e um pouco de sobrematuração. Nos anos 90 era o que procurávamos, mas o tempo ensinou-nos que os anos mais frescos, com pH mais baixo, evoluem melhor, pois temos estrutura na mesma. Por isto, no Douro é preferível ter maturação a menos do que a mais. Nos anos menos maduros tem de se ter mais cuidado com as extracções para não extrair taninos verdes.”
Manuel Vieira, enólogo consultor na Caminhos Cruzados, conta que também tiveram que esperar que a chuva passasse. A Touriga Nacional (maior parte das vinhas velhas do Teixuga) é uma casta importante no Dão, porque tem elasticidade suficiente na película para aguentar as chuvas sem rebentar (ao contrário da Alfrocheiro, por exemplo). Com vindima adiada para os finais de Setembro, obtiveram mostos com pH baixo, acidez alta e grau alcoólico mais baixo o que é normal.

Uma década depois

Há duas conclusões fundamentais que podemos retirar desta prova. Primeiro, as generalizações são sempre uma abordagem redutora no que toca à produção de vinho, porque muitas vezes o terroir sobrepõe-se às condições climatéricas, e ainda mais nos anos difíceis. Agora, passada uma década e com os vinhos provados, podemos constatar que mesmo num ano imperfeito como o 2014, existem muitos vinhos próximos da perfeição, cheios de vida e força. Depois, concluímos que com pH mais baixo e acidez mais alta estes vinhos acabam por ter uma evolução mais lenta (alguns parecem bem mais novos do que uma década de vida sugeriria), não pecam por falta de estrutura, e mesmo, perdendo algum corpo, vencem pela elegância.

GRANDE PROVA TINTOS DE SYRAH

Grande Prova Syrah

Independentemente dos mitos que rodeiam a sua origem, o pedigree da Syrah é francês. Os estudos genéticos apontam para o Norte do Ródano como o berço da casta. É filha de uma variedade tinta Dureza (pai) e de uma branca Mondeuse Blanche (mãe). Na sua melhor expressão, os vinhos de Syrah são densos, ricos, plenos […]

Independentemente dos mitos que rodeiam a sua origem, o pedigree da Syrah é francês. Os estudos genéticos apontam para o Norte do Ródano como o berço da casta. É filha de uma variedade tinta Dureza (pai) e de uma branca Mondeuse Blanche (mãe).
Na sua melhor expressão, os vinhos de Syrah são densos, ricos, plenos na fruta e texturados em boca, com o corte perfeito de acidez, que equilibra a sua força. É uma casta naturalmente complexa. Para além de saber brilhar sozinha, é uma grande parceira nos lotes, onde contribui com estrutura, taninos e complexidade.
Poucas castas podem gabar-se de uma amplitude aromática tão grande. A sua impressão digital inclui especiaria pujante a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona, um intenso composto aromático. A fruta varia de framboesa e cereja para amora e mirtilo. Pode apresentar notas florais, mentol, eucalipto, folha de chá. Nuances como grafite e algum alcatrão trazem uma dimensão extra. Os precursores tiólicos que a casta tem, por vezes traduzem-se nos aromas de carne fumada. O couro surge frequentemente com a evolução em garrafa.

Retrospectiva

A Syrah teve uma vida longa fora das luzes da ribalta. Nos finais do século XVIII e início do século XIX, os vinhos Syrah de Hermitage entravam nos lotes dos châteaux de Bordéus para mitigar a falta de corpo e estrutura. Estes vinhos chamavam-se “Bordeaux Hermitagé” e eram bastante apreciados na altura (até existe um certo revivalismo nos tempos actuais).
A Syrah chegou à Austrália em 1832, levada por James Busby, considerado o pai da viticultura australiana, que trouxe garfos do Vale do Ródano. E o sucesso também não foi imediato. Durante muitas décadas a casta foi usada para produzir vinhos de mesa baratos, fortificados e mais tarde espumantes (Sparkling Shiraz). A Penfolds mudou este paradigma a partir dos meados do século passado, quando criou o Grange, oferecendo, ao mercado, poderosos e encorpados vinhos que trouxeram a fama aos Shiraz australianos. Mas foi preciso chegar aos anos 80 para assistir ao boom da Shiraz, quando Barossa Valley se tornou uma moda, primeiro em Inglaterra e depois na Europa. Ao mesmo tempo, Robert Parker atribuiu 100 pontos a alguns vinhos de Côte-Rotie e Hermitage; e a crítica especializada começou a dar atenção a casta.
Até o final do século XX, a variedade era cultivada principalmente no Vale do Ródano e na Austrália. Hoje, das castas tintas destinadas exclusivamente à produção de vinho, a Syrah é a quarta mais plantada a nível mundial, a seguir a Cabernet Sauvignon, Merlot e Tempranillo, ocupando uma área de 190 000 ha. É também uma grande viajante, uma das três castas mais espalhadas pelos diferentes cantos do mundo a seguir a Chardonnay e Merlot, estando presente em 31 países (OIV 2017).
Os países com maior presença de Syrah são a França com 64 000 ha, Austrália com 40 000 ha (onde é o líder absoluto em termos de plantação, ocupando quase 27%), Espanha com 20 000 ha (na viragem do século nem chegava a 100 ha), Argentina com 13 000 (em 1991 tinha apenas 608 ha) e África do Sul com 11 000 ha (em 1991 tinha 707 ha). Nos Estados Unidos também está bem presente, sobretudo nos estados de Califórnia, Washington e Oregon.

Amplitude estilística

Os dois nomes principais – Syrah e Shiraz – identificam dois polos estilísticos. O nome Syrah, normalmente associa-se à sua origem em Côte-Rotie e Hermitage, à expressão da casta num clima mais moderado e consequentemente ao estilo mais leve e apimentado, com nuances de fruta vermelha. Sob o nome Shiraz entende-se a performance da casta na sua segunda casa, a Austrália, associada a um clima quente que origina vinhos encorpados e musculados, com fruta preta e notas achocolatadas, por vezes com um toque de eucalipto. Mas quando os produtores australianos das zonas mais frescas, como, por exemplo, Victoria e Canberra, querem comunicar os vinhos ao estilo do Ródano, nos rótulos consta Syrah e não Shiraz. E esta lógica é seguida por produtores em muitos países. Em Portugal adaptou-se o nome Syrah, sem qualquer apelo ao estilo do vinho.
Entre estes dois extremos existe toda a diversidade de estilos que a casta é capaz de exprimir em função das condições de cultivo, das práticas culturais na vinha e das abordagens enológicas.

Syrah em Portugal – chegou, viu e… ficou

É a casta estrangeira com a carreira ascendente mais rápida em Portugal. Ainda no final do século passado a sua presença era insignificante e o conhecimento sobre ela por parte dos produtores e consumidores era próximo do zero. Antes de 1980 existiam apenas 10,82 ha de Syrah no encepamento nacional, e na década seguinte 309 ha. Em 2014 a Syrah já aparece no top 10 de castas mais plantadas em Portugal, ultrapassando muitas variedades nacionais. Hoje a prima donna ocupa uma área de 6 441 ha, o que corresponde a 3% de total das plantações. No top 10 das castas tintas em Portugal só há duas castas estrangeiras, mas se o Alicante Bouschet tem uma história secular no nosso país, a Syrah claramente chegou, viu e ficou.
O Alentejo lidera nas plantações de Syrah com 2 307 ha, que actualmente é a 4ª casta mais plantada na região. Já começa a ser difícil encontrar um produtor no Alentejo que não tenha Syrah. A casta entrou na região “incognitamente” pela mão dos proprietários da Cortes de Cima, com a primeira colheita a decorrer em 1998, e tornou-se num grande clássico.
Lisboa é a segunda região no país com maior presença de Syrah, registando 2 126 ha. A Quinta do Monte d’Oiro apostou na Syrah nos anos 90 e praticamente especializou-se nesta casta. O primeiro monovarietal foi o Reserva Syrah de 1997.
A região do Tejo também teve um papel importante na história da Syrah em Portugal e hoje conta com 707 ha. A Quinta da Lagoalva de Cima foi a primeira a plantá-la nos anos 90 do século passado.
O Douro tem uma relação com Syrah mais qualitativa do que quantitativa. Não há grandes plantações desta variedade, mas os poucos vinhos varietais existentes no mercado são de grande qualidade. A Denominação de Origem não permite a utilização da casta. Por isto os vinhos de Syrah são certificados como regionais, o que, na realidade, não tem impacto na apreciação do consumidor.
Na Península de Setúbal, a Syrah é a segunda casta mais plantada (538 ha) depois do Castelão. A marcha gloriosa da casta francesa faz-se sentir noutras regiões, embora numa escala mais pequena.

 

Curiosidades sobre Syrah

  • As vinhas mais antigas de Syrah na Austrália ainda existem, maioritariamente em Barossa Valley. A Langmeil Winery tem uma parcela de 1,4 ha com videiras de Shiraz plantadas em 1843.
  • Petite Sirah não é o sinónimo de Syrah, é uma outra casta francesa que também responde pelo nome Durif, que surgiu atravez do cruzamento natural entre Syrah e Peloursin.
  • O Dia Internacional de Syrah é 16 de Fevereiro. Estão a tempo de o festejar com um copo de Syrah na mão!

 

Porque Syrah?

Porque é, sem dúvida, uma grande casta de muitos méritos comprovados. Em muitos casos também há uma razão ou gosto pessoal.
O enólogo e produtor Rui Reguinga inspirou-se nos vinhos de Côtes du Rhône e, em 2001, plantou Syrah, Grenache, Mourvèdre e Viognier em solos com calhau rolado da Charneca de Almeirim. Estas uvas dão origem a um vinho único, tributo ao seu pai que toda a vida foi vitivinicultor.
Na Quinta do Noval, por influência do seu Director Geral, Christian Seely, foram plantadas várias castas francesas em 2003 – Cabernet Sauvignon, Mourvèdre, Petit Verdot e Syrah –, das quais as duas primeiras não passaram no casting. Syrah, ao contrário, adaptou-se facilmente ao clima quente e seco da região. O sucesso levou-o a repetir a experiência, plantando em 2007 Syrah na Quinta da Romaneira, um projecto pessoal de Christian Seely.
O enólogo da Quinta do Crasto, Manuel Lobo, conta que quando começaram o projecto no Douro Superior em 2002, a grande área da Quinta da Cabreira permitiu algumas plantações experimentais para testar várias castas. Nas provas cegas das microvinificações, Syrah dava sempre uma prova boa e consistente. Avançaram para a produção comercial e a primeira colheita, de 2013, já mostrou ser uma aposta ganha.
Amílcar Salgado, da Quinta de Arcossó, em Trás-os-Montes, plantou Syrah por acaso há 21 anos. Estava a fazer a enxertia no local e, por lapso, encomendou menos garfos de Touriga Franca do que tinha porta-enxertos. No momento não havia mais e aceitou os da Syrah, ficando com 2000 videiras. Nunca se arrependeu.
O proprietário da Quinta dos Termos, na Beira Interior, João Carvalho, na década dos 90 passava muito tempo em França por causa dos negócios dos têxteis, onde teve oportunidade de provar muitos vinhos feitos de Syrah. Gostou tanto que, em 2002, plantou a casta na sua quinta. Da colheita de 2006 saiu o primeiro Syrah em extreme, embora sem aparecer no rótulo, disfarçado como “Reserva do Patrão”.
Jorge Rosa Santos, um dos irmãos enólogos, responsável pela produção da família, conta que começaram a plantar Syrah em 2004. Têm duas parcelas. Uma no solo xistoso da Serra D’Ossa, que produz vinhos mais concentrados, musculados e tânicos, com aromas a lembrar carne. Outra em solos argilo-calcários esbranquiçados, que dá vinhos mais químicos, com notas de alcatrão e menos fruta. O lote das duas deu um belíssimo vinho, complexo, fino, extremamente equilibrado e cheio de carácter da casta no seu melhor.

Grande Prova SyrahComportamento na vinha

A Syrah prefere clima quente, mas não gosta de calor em demasia. É uma casta vigorosa, produtiva e bastante resistente a doenças. Floresce tarde, evitando, desta forma, possíveis geadas primaveris. Amadurece relativamente cedo, acelerando a maturação depois do pintor, o que deixa uma janela de oportunidade algo reduzida. Todos os enólogos e produtores contactados concordaram que o momento de vindima para Syrah é absolutamente crucial, se não querem apanhá-la “jammy”.
Syrah é uma casta com comportamento anisohídrico, como a Touriga Nacional, ou seja, em condições de falta de água, aguenta algum tempo sem fechar os estomas, continuando a sua actividade fotossintética. Mas se o stress hídrico se prolongar no tempo, podemos ter “uvas em passa e taninos verdes” – refere Manuel Lobo. Entretanto, “excesso de humidade no solo, como por exemplo, na zona de Campo, é uma tragédia” – afirma Rui Reguinga.
Amílcar Salgado partilha a sua experiência de 20 anos com Syrah: “Casta excelente. O porte erecto facilita a condução e todo o trabalho na vinha. Muito homogénea na produção, não precisa de correcções, mesmo em anos quentes. Gradua bastante sem perder o equilíbrio. A Touriga Franca, por exemplo, perde acidez mais rápido.”
Mas não há bela sem senão. A casta é susceptível a uma doença de etiologia complexa e ainda não totalmente explicada – declínio da Syrah, que foi observado pela primeira vez no sul de França. Basicamente é uma morte prematura da planta. Amílcar Salgado observou este fenómeno nas suas vinhas, onde as videiras com 13-15 anos, vigorosas e aparentemente boas, de repente começam a enfraquecer, as folhas entram em senescência prematuramente, as varas não atempam devidamente. Mas tarde as plantas acabam por morrer e têm de ser substituídas. Rui Reguinga referiu o mesmo problema, devido ao qual já perdeu cerca de 15-20% das cepas.

 

A impressão digital da Syrah inclui especiaria a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona.

 

Comportamento na adega

A Syrah não é só amiga do viticultor, é também uma grande aliada do enólogo, adaptando-se a diversas abordagens na adega. Até vinificada em talha se porta lindamente, como tivemos oportunidade de confirmar numa prova da Sovibor, no Alentejo.
Carlos Agrellos, da Quinta do Noval e da Romaneira, prefere não fazer grande maceração a frio e extrair só o necessário. Jorge Rosa Santos gosta de fermentações longas, a 24-25˚C – porque assim tem mais tempo para tomar boas decisões e todas as fracções da prensagem entram no lote – e do tanino mais “grippy”. Rui Reguinga e Graça Gonçalves, enóloga na Quinta do Monte d’Oiro, fazem macerações prolongadas. Na opinião de Amílcar Salgado, a Syrah permite uma boa extração de cor sem muito trabalho e não tem taninos agrestes.
A Syrah responde muito bem ao estágio em madeira, mas “é preciso ter alguma contenção de tosta nas barricas – a casta sozinha tem aromas bem definidos e apimentados” – explica Manuel Lobo. Por isto utiliza apenas 30-35% de barricas novas, sendo maioritárias as barricas de segunda e terceira utilização. Carlos Agrellos tem uma abordagem semelhante na Quinta do Noval e na Quinta da Romaneira, utilizando barricas novas, de segunda e terceira utilização.
As percentagens de barrica nova variam no lote final. Por exemplo, o Syrah do Apontador (Romaneira) aguenta mais 10-15% de barrica nova do que o Syrah da Quinta do Noval. Jorge Rosa Santos cada vez gosta mais de madeiras de maior volume e estagia o vinho 24 meses em toneis de 3.000 L com 30 anos.
Como a Syrah é uma casta com tendência para redução, abordámos este assunto com os enólogos. Carlos Agrellos vai arejando o mosto se for necessário. Graça Gonçalves controla por perto a quantidade de azoto assimilável no mosto, cuja falta pode originar redução durante a fermentação. Se for preciso também fazem arejamento ou introduzem oxigénio na cuba. Rui Reguinga e Amílcar Salgado fermentam em lagar, o que permite mais oxigenação e mais superfície de contacto com as massas. Jorge Rosa Santos não tem medo de reduções, mas sim das oxidações, explicando que “há sempre solução para redução”. Nos brancos é mais definitiva do que nos tintos, onde normalmente é resolvida com o estágio em madeira.
Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah. É uma prática usada em Côte Rotie para estabilizar a cor. Assim, o Quinta Monte d’Oiro Reserva tem 4% de Viognier e o Quinta do Crasto Superior tem 3%. Manuel Lobo vê o contributo deste tempero mais na textura e não tanto na fixação da cor ou no aroma.
O Tributo, de Rui Reguinga, para além da Viognier, tem Grenache e Mourvèdre. A Syrah, com 80-85%, dependendo do ano, domina, mas acaba por adquirir uma complexidade adicional.

 

Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah.

 

Que será, Syrah!

Será que a casta forasteira faz sentido em Portugal ao lado de tantas variedades nacionais de grande qualidade? Não assume demasiado protagonismo no palco vitivinícola português? Não desvirtua a identidade dos vinhos nacionais?
É óbvio que não é com Syrah que nos afirmamos no mercado internacional. Mas será que isto é impeditivo de produzirmos alguns vinhos marcantes desta casta?
Parece-me que nos últimos 20-30 anos a Syrah deixou de ser uma simples moda, encontrou o seu lugar em terras lusas, encaixou a sua personalidade nos nossos terroirs e cabe-nos a nós, ter um bom senso no seu emprego. Os resultados, esses, não deixam margem para dúvidas…

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2024)

Porto Ruby Reserva: Um vinho com Character

Porto Ruby Reserva

Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém […]

Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém explicava nada e a imprensa do sector quase não existia -, a verdade é que, comparando os preços, cheguei facilmente à conclusão que o preço do Vintage Character era muito mais convidativo. Recordo-me que o primeiro que comprei era da casa Burmester, tinha um rótulo discreto mas bonito e eu fiquei todo contente porque me estava a aproximar do altar (os Vintages…) sem ter de empatar mais do que, à época, podia. E mostrava aos amigos o tal rótulo, dizendo mesmo, “estão a ver, este Porto é do tipo Vintage”, ao que eles (ainda mais ignorantes que eu) aquiesciam com um sorriso amarelo.
Esta história, verdadeira, aconteceu comigo, mas deverá ter ocorrido com muito consumidor. O sector do Porto era muito prolífico em conceitos, categorias e nomes que, invariavelmente, apenas serviam para confundir o apreciador. Será que alguém acreditava que o vinho Founder’s Reserve correspondia exactamente a lotes de vinho que vinham do tempo da fundação da Sandeman? Ou que o Reserva Pessoal da D. Antónia era efectivamente vinho que ela tinha deixado e que continuava a ser vendido hoje? Os exemplos são vários. Estes vinhos ainda hoje existem (como se vê na minha selecção) e continuo sem ter a certeza de que todos os consumidores percebem que se trata a penas de uma marca.

Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva. Passou, tal como os Tawny Reserva, a estar incluída nas Categorias Especiais de Vinho do Porto. A nova designação, que também admite a palavra Reserve em vez de Reserva, permite ainda alguns qualificativos extra, como Especial, Special e Finest. Desta forma não há nenhuma categoria que possa incluir (em letra grande ou miudinha) a palavra Vintage, a não ser o propriamente dito ou o LBV (Late Bottled Vintage). Para o consumidor a confusão acabou aqui. De acordo com a legislação em vigor, um Porto Ruby Reserva é “um vinho do Porto de muito boa qualidade, apresentando complexidade de aroma e sabor, obtido por lotação de vinhos de grau de estágio variável que lhe conferem características organolépticas específicas e reconhecido pelo IVDP”. A primeira legislação que regulamentou as Categorias Especiais data de 1973, publicada no início de 1974.
Na história dessa categoria – Vintage Character – há que dizer que esse termo não era usado no rótulo por todas as casas. A Fonseca, por exemplo, usa hoje, como sempre usou, o nome Bin 27 para o seu Ruby Reserva, que se encaixava na categoria Vintage Character — e a Cockburn’s tinha no seu Special Reserve o vinho emblemático que era a marca de Porto mais vendida em Inglaterra.

 

Porto Ruby Reserva

 

O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa.

 

O que distingue o Ruby do Ruby Reserva?

Nessa categoria – Ruby – a palavra Reserva faz toda a diferença; enquanto no Ruby corrente estamos a falar de vinhos muito jovens, de pouca concentração e que provavelmente nunca passaram em madeira (também devido ao enorme montante de vinho de que estamos a falar), no Reserva já iremos encontrar vinhos com mais estrutura, onde se procurará um balanço entre vinhos que tiveram algum estágio em madeira com outros mais jovens que possam transmitir mais alegria ao lote final. Têm em comum o facto de serem vinhos que resultam do lote de várias colheitas e que têm um perfil que tende a mantar-se idêntico ano após ano. Até por isto fez todo o sentido retirar a palavra Vintage da antiga designação. Como qualquer outro vinho, tem de ser a Câmara de Provadores do IVDP a dar a aprovação do lote como sendo Reserva.

Para algumas casas – a Fonseca, a Sandeman e a Cockburn’s – esta é uma categoria emblemática, responsável por vendas em larga escala. No caso da Fonseca, Bin 27 tem tido, por informação cedida pela empresa, um crescimento anual de 3,5% ao ano e as vendas em 2022 atingiram as 40000 caixas de 12 garrafas. O principal mercado é americano, com Estados Unidos e Canadá a representarem uma grande fatia.
No caso da Symington, a marca Special Reserve é muito importante no Reino Unido (é o Ruby Reserva mais vendido naquele mercado) mas para o desenvolvimento do mercado interno a empresa enviou para esta prova o Six Grapes, o Ruby Reserva da Graham’s. Com o “peso” que o vinho da Cockburn’s tem no conjunto das vendas (62%), a Symington detém, segundo nos informou, cerca de 56% da quota mundial.
A Sandeman assume uma posição forte no mercado americano, onde o seu Founder’s Reserve tem um peso muito forte nas vendas; segue-se o Reino Unido e o mercado interno, com um bom foco no turismo (travel retail).
Na selecção que fiz para esta prova incluí vinhos com produções muito diferentes. Será sempre um erro comparar, sem explicar e integrar, a pequena produção de um produtor “de quinta” com a de uma empresa que vende milhares e milhares de caixas. Há lugar para todos e os exemplos que aqui deixamos de grandes produções mostram que, também nesta categoria, é possível fazer muito e com muita qualidade.

 

Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva.

 

O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa. Isto significa que o manuseamento da garrafa não requer cuidados especiais (importante na venda a retalho, nomeadamente para turistas) e é um vinho para qualquer ocasião. Os que forem um pouco mais encorpados poderão ser perfeitos companheiros para queijos mas este é aquele tipo de Porto que se bebe mesmo sem acompanhamento, mas em boa companhia.
Apenas mais três indicações finais. Primeiro, o Ruby Reserva não merece guarda, não foi para a cave que foi pensado. Por isso a ideia é comprar e beber. Também por esta razão é conveniente evitar comprar garrafas que estejam há anos e anos perdidas nas prateleiras. Apesar de ele viver bem em garrafa o tempo exagerado de estágio (espera?) em garrafa acaba por fazer com que perca brilho. Em segundo lugar, o vinho não requer decantação, mas há que ter algum cuidado na temperatura de serviço. Cerca de 30 a 45 minutos de frigorífico será o suficiente. Finalmente, ainda que possa beber com calma o seu Porto Ruby Reserva depois de abrir a garrafa, será ajuizado não a ter aberta mais de um mês porque o vinho irá perder frescura.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

Grande Prova Tintos do Douro: No reino da excelência

grande prova douro

Ao longo dos últimos anos temos vindo a constatar e a escrever nas páginas desta revista que a qualidade dos vinhos portugueses não tem parado de crescer ano após ano. A evolução dos vinhos brancos é absolutamente notória, num país que não dispunha, até há 20 anos, de brancos com verdadeira ambição. Mas o mesmo […]

Ao longo dos últimos anos temos vindo a constatar e a escrever nas páginas desta revista que a qualidade dos vinhos portugueses não tem parado de crescer ano após ano. A evolução dos vinhos brancos é absolutamente notória, num país que não dispunha, até há 20 anos, de brancos com verdadeira ambição. Mas o mesmo se diga quanto a outros tipos de vinhos, sendo que, nos tintos, temos mesmo qualidade e quantidade para rivalizar com os mais famosos países produtores.

Em todo o território português, independentemente das denominações de origem, se produz tinto de elevado nível, como se demonstra pelas altas classificações atribuídas pelas revistas da especialidade nacionais e internacionais a vinhos de norte a sul do país. Pois bem, mesmo neste meio de competitividade cerrada, onde cada região procura enaltecer as suas diferenças sem perder a qualidade, uma região teima em reinar, quando abordamos os topos de gama. Sim, falamos do Douro!
Com efeito, no final da avaliação de mais de quatro dezenas de tintos durienses topos de gama acabámos com uma certeza: nunca como agora apreciámos tão grandes vinhos numa única prova e, consequentemente, nunca como agora atribuímos um conjunto de classificações tão elevadas. O que pode explicar esta circunstância? Em primeiro lugar, a existência de muitos produtores da região totalmente familiarizados há décadas com os vários terroirs deste território inóspito que corre, a montante do rio, do Baixo Corgo até praticamente Espanha. Referimo-nos a produtores com notório zelo profissional que recorrem a assistência, muitas vezes de excelência, vitícola e enológica, e que conseguem ter o desafogo suficiente para um duro investimento em barricas e, muitas das vezes, longos estágios em garrafa com os inerentes custos de stock.

São produtores quase sempre ligados à terra, por vezes enólogos de profissão, outras vezes fazendo parte de terceiras e quartas gerações de vitivinicultores, que mantiveram o cultivo da vinha e, em algumas felizes situações, preservaram o grande património que são as (boas) vinhas velhas. É disso exemplo produtores familiares como a família Nicolau de Almeida (Quinta do Monte Xisto), Alves de Sousa (Quinta da Gaivosa), Roquette (Quinta do Crasto), Vieira de Sousa, Barros (Quinta Dona Matilde), Vasques de Carvalho (Velhos Bardos), entre dezenas de outros. Acresce, que a existência deste lote significativo de produtores justifica-se, também, pelo caso económico que a região vai conseguindo seguir, apesar das evidentes e crescentes dificuldades em escoar as grandes quantidades de uva produzidas (com a campanha de 2023 à cabeça). A este respeito note-se que, há já vários anos, que o Douro é a região vitivinícola com maior produção apta a vinho com denominação de origem protegida (DOP), com Minho e Alentejo a alguma distância.

grande prova douro

No final da prova de mais de 4 dezenas de tintos durienses acabámos com uma certeza: nunca como agora atribuímos pontuações tão elevadas.

 

CRIAÇÃO DE VALOR

Trata-se, já o escrevemos, de uma região com marca muito forte, associada a qualidade e requinte, de tal forma que os dados estatísticos são claros no sentido de que é uma das regiões que consegue mais valor no vector preço médio por litro (na restauração é evidente, só atrás do Algarve, fenómeno explicado pelo turismo a sul do país). Ora, este maior valor é muito bem-vindo numa região de dificílimo granjeio da vinha, marcado por grandes extensões de viticultura de montanha, e com baixas produções por videira (muitas vezes abaixo das 2 toneladas por hectare). Um topo de gama do Douro, como evidencia a nossa prova, pode, assim, custar facilmente €25€ ou €100, dependendo dos factores dos quais habitualmente o preço depende, ou seja, raridade, notabilidade e prestígio da marca, qualidade intrínseca, entre outros.
É certo que alguns dos vinhos de topo com valores actuais próximos dos €100, custavam, ainda há 20 anos (em alguns casos quando surgiram pela primeira vez no mercado), quatro ou cinco vezes menos. Mas até essa circunstância espelha bem a evolução da procura por esses tintos, parte pelos mercados internacionais, à qual não é alheia a admirável consistência da qualidade colheita após colheita dessas marcas. São vinhos de enorme carácter, com pergaminhos conquistados ao longo de algumas décadas, todos ao melhor nível do que se faz mundialmente. Referimo-nos a marcas que, nos anos ’90 ou no início do milénio, logo na primeira colheita nasceram sob o espectro de uma qualidade inegociável, casos, entre outros, de produtores como Quinta do Crasto, Quinta do Vale Meão, Pintas ou Poeira.

A par de produtores mais tradicionais, nas últimas dezenas de anos o Douro mereceu forte investimento nacional e estrangeiro (de França ao Brasil, passando pela Suíça e Angola), sendo actualmente vários os produtores com significativa dimensão que aqui operam, tais como Sogrape (uma das pioneiras a apostar forte na região, sobretudo com a compra das Caves Ferreira e Casa Ferreirinha), Bacalhôa/Aliança, passando pelo Esporão (Quinta dos Murças), sem esquecer as casas com tradição do Vinho do Porto, como a Symington, Quinta do Noval, Vallegre, Poças ou Rozès que também produzem excelentes tintos.

 

grande prova douro

Não há dúvidas que os vinhos de vinha e de parcela, vinhos luxuosos e de preço elevado, são a nova coqueluche do Douro.

 

VINHOS DE LUXO E DE PARCELA

Pois bem, os últimos tempos têm ainda sido marcados por uma “corrida ao excelso”, aproveitando os recentes bons anos agrícolas (excelente o 2021) e o conhecimento adquirido de cada vinha e parcela. Com efeito, hoje são vários os vinhos de produções limitadíssimas, que se distinguem do conceito de quinta privilegiando uma seleção minuciosa da fruta numa determinada vinha e mimando-a com os melhores cuidados possíveis. Com efeito, confrontamo-nos cada vez mais na região com o desenvolver de um mercado de luxo nos tintos do Douro. Esse aspecto é também visível noutras regiões do país, mas não encontramos fora do Douro tantos vários vinhos tintos acima dos €100 como nesta região.

Tintos de qualidade raramente antes vislumbrada, com produções entre as 1000 (por vezes menos) e as 5000 garrafas, elevando e engarrafando micro-terroirs particulares e distintos. À cabeça é o caso da nova edição da Série Terroirs pela Quinta do Noval que resulta de uma vinha muito particular da Quinta do Passadouro recentemente adquirida. O mesmo se diga para a Vinha do Rio (da Quinta Vale D. Maria) para a Vinha da Granja (do Vallado), a Vinha do Carril (da Niepoort), a parcela Carrapata (da Quinta da Romaneira) e parcela M7 (Quinta dos Muros), mas também a Vinha do Pinto (da Quinta Dona Matilde) ou a Vinha Rumilã (da Quinta de São Luiz). Isto para não falar de vinhos que, desde a primeira edição, sempre provieram de uma vinha só, caso do Pintas. Ou seja, não há dúvidas que os vinhos de vinha e de parcela são a nova coqueluche do Douro, que assim se juntam a outros vinhos onde o luxo (e o respectivo preço) já era evidente como seja o Quinta da Ervamoira ou o Chryseia. Confrontámos vários enólogos e produtores da região e todos dizem que a procura da vinha perfeita é um desafio quase diário. Jorge Moreira (Poeira, La Rosa, Real Comp.ª Velha) diz ter encontrado a sua junto a Covas (a partir da qual produz o seu limitado Poeira Vinha da Torre), Dirk Niepoort finalmente engarrafou a sua “jóia da coroa”, um vinha mesmo ao lado da sua adega, e a Wine & Soul acaba de comercializar mais um vinho de parcela, agora na Quinta da Manoella).

grande prova douro

 

Mas, mesmo com o que se acabou de escrever, não se pense que não existem grandes relações qualidade-preços nos tintos de topo de Douro. Com efeito, há muito que a região nos habituou a vinhos que, não sendo propriamente baratos, são relativamente acessíveis em ocasiões especiais e de qualidade irrepreensível. Nesta nossa prova também esses brilharam sempre num perfil de fruta bem madura e com potencial de largo estágio na garrafeira. Dos €14€ aos €30 há muito por onde escolher no Douro com a certeza de um tinto assente em castas como Touriga Nacional e Touriga Franca, eventualmente temperadas com Tinta Roriz ou Sousão, e tendencialmente com estágio em barrica de carvalho. São tintos de enorme prazer, com estrutura e dimensão, e que reflectem o xisto da terra que os viu nascer.

 

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

 

 

 

Grande Prova: Tintos do Alentejo

Grande Prova Alentejo

A história da região é longa, desde os fenícios e tartessos, gregos e romanos que deixaram o legado das ânforas e trouxeram técnicas agrárias e cultura da vinha e do vinho. Em 1898, a superfície de vinha no Alentejo era de 20.000 hectares, mas devido a conjunturas políticas e económicas desfavoráveis, a região só voltou […]

A história da região é longa, desde os fenícios e tartessos, gregos e romanos que deixaram o legado das ânforas e trouxeram técnicas agrárias e cultura da vinha e do vinho. Em 1898, a superfície de vinha no Alentejo era de 20.000 hectares, mas devido a conjunturas políticas e económicas desfavoráveis, a região só voltou a atingir esta dimensão 100 anos depois, no início dos anos 2000.
A partir dos meados do século passado surgem as adegas cooperativas de Granja-Amareleja, Portalegre, Borba, Redondo, Reguengos e Vidigueira que não só tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da vinha e produção do vinho na época, mas conseguiram modernizar-se e estão bem presentes e activas nos tempos actuais.
O verdadeiro boom dos vinhos alentejanos ocorre por altura dos anos 80-90 com a demarcação da região em 1988. Surgem marcas como Cartuxa, na década dos 80 e Pêra Manca lançada em 1990, ambas da Fundação Eugénio de Almeida, que se juntam aos clássicos José de Sousa, Tapada do Chaves, Mouchão, Quinta do Carmo. Em 1985, realiza-se a primeira colheita sob a marca Esporão (que este ano ficou novamente reconhecida pela revista Drinks International como uma das 50 marcas de vinho mais admiradas do mundo).

Júlio Bastos assinala esta época com os seus famosos Garrafeiras da Quinta do Carmo (de 1985, 1986 e 1987), marca que hoje pertence à Bacalhôa. A partir de 2000 o produtor avança com um novo projecto – Dona Maria – que rapidamente se torna num novo ícone da região.
Os enólogos João Portugal Ramos, com projecto próprio a partir da década dos 90 e o australiano David Baverstock que entra na Esporão em 1992 foram os grandes promotores de mudança no estilo de vinhos, conta Mário Andrade, enólogo e profundo conhecedor da história vitivinícola do Alentejo. Introduziu-se madeira nova e meia barrica. Antigamente os vinhos ou não tinham madeira ou estagiavam em madeira usada de 500 litros ou toneis de maior capacidade. Usava-se sobretudo o carvalho português, por vezes até o castanho; o carvalho francês e americano chegaram nos finais dos anos 90.
Na primeira década de 2000 surgem projectos como Herdade do Rocim, Fita Preta de António Maçanita, Herdade da Malhadinha que hoje estão bem consolidados e reconhecidos.
As características da região e o seu sucesso junto do consumidor motiva produtores de outras regiões e até os empresários estrangeiros a investir no Alentejo. Torre de Palma é um projecto completo de hotel de charme, um restaurante e uma adega numa vila romana perto de Monforte. Esta grande aventura de um casal de farmacêuticos, Ana Isabel e Paulo Barradas Rebelo começou na segunda década de 2000.

Grande Prova Alentejo
Em 2015 o casal de brasileiros Alberto Weisser e Gabriela Mascioli adquiriram a histórica Tapada de Coelheiros, em Arraiolos, pela qual se apaixonaram numa viagem pelo Alentejo.
Em 2017 a Symington Family Estates alargou as suas operações para o Alentejo, iniciando o projecto de Quinta da Fonte Souto, em Portalegre, com 43 hectares de vinha instalada entre os 490 e os 550 metros de altitude.
A empresária Luísa Amorim, responsável pela Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, no Douro e Taboadella, no Dão, num regresso às origens, em 2017 investiu num projecto pessoal com o seu marido, Francisco Rêgo, e fez renascer a Herdade da Aldeia de Cima, na Serra do Mendro, junto à Vidigueira, terras onde costumava passar às férias na sua infância.
No mesmo ano, o empresário alemão Dieter Morszeck adquiriu a propriedade Quinta do Paral, na Vidigueira, onde reabilitou e ampliou a vinha existente e adquiriu muitas parcelas de vinhas com mais de 70 anos, não aramadas, na zona de Vila de Frades.

Em 2018, pela Família Cardoso, foi construída de raiz a adega da Herdade de Lisboa (berço da clássica marca Paço dos Infantes), na Vidigueira e David Baverstock em parceria com o empresário Howard Bilton inaugurou a adega no projecto Howard’s Folly, em Estremoz.
E ainda mais recentemente foram lançadas as marcas Herdade Monte da Costa Boal Family Estates e Lobo de Vasconcellos Wines do conhecido enólogo do Douro Manuel Lobo.

 

 

 

 

Castas de ontem e de hoje

Não restam quaisquer dúvidas de que o Alentejo foi e é terra de grandes vinhos. O que muda com o tempo é o estilo, o perfil. Outrora, o elenco varietal era outro e toda a performance era diferente. No starring de antigamente entravam Castelão com fruta e Trincadeira com tanino, e o estrelato de hoje pertence a Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Aragonez. “Os vinhos eram elegantes, com taninos super macios” – refere com certa nostalgia Mário Andrade. “Com o tempo começou-se a preferir vinhos mais estruturados, fechados, com mais madeira”
Se olharmos às estatísticas do IVV do ano 2000, as principais castas do Alentejo eram Trincadeira com 16% e Castelão com 15% de plantação, logo a seguir vinha o Moreto com 8%, embora este produzisse muito e raramente se destinasse aos topos de gama. Os dados da CVR Alentejo mostram que hoje o protagonismo é da variedade Aragonez, que lidera as plantações com 22,6%, embora haja quem o considere um erro de casting por ter “taninos ordinários e grau com fartura”.

O Alicante Bouschet aumenta a sua presença de ano para ano e já atingiu 19,4%. A casta chegou a Portugal no final do século XIX de França, trazida pela família Reynolds e trazida para a Herdade do Mouchão. Contudo, o seu sucesso não foi imediato. Na Reynolds Winegrowers a casta faz parte da identidade dos vinhos. Hoje, é fácil encontrar grandes vinhos feitos desta casta e difícil encontrar topos de gama que não a tenham no lote. É uma casta tintureira – com antocianas concentradas também na polpa para além da película – com grande capacidade cromática, estrutura firme e personalidade forte. Gosta de clima quente e precisa de muitas horas de sol, o que faz do Alentejo uma boa casa para esta uva. Mas para amadurecer os seus taninos maciços, é preciso esquecer a moderação no teor de álcool. A Trincadeira ainda está no terceiro lugar em área plantada, com 13,9%, mas claramente não tem a popularidade de outrora e está em franco declínio, ainda que, muito recentemente, vários produtores a ela retornem, pela capacidade de suportar o calor e stress hídrico.

A Syrah parece ser uma paixão geral. Há apenas 30 anos ninguém sabia o que era e obviamente, não constava nas castas autorizadas da região. Entrou “incognitamente” nos encepamentos e nos vinhos alentejanos pela Herdade Cortes de Cima em 1991 e não deixou ninguém indiferente. Hoje ocupa o 4º lugar no ranking de castas mais plantadas no Alentejo, com 12,1%.
A Touriga Nacional, na sua marcha conquistadora pelo país, desceu das regiões do Norte e fica aqui em 5º lugar, com 8,3%. Há muitos argumentos a favor, começando pela maturação longa o que traz vantagens no Alentejo. Aguenta bem a seca, mantendo o bago túrgido. Aromaticamente agradável, mas às vezes no Alentejo não entrega qualidade todos os anos e com frequência torna-se um pouco enjoativa. Castelão, casta tipicamente alentejana dos tempos passados, literalmente, perde terreno e agora só conta com 4,9%. Cabernet Sauvignon tem 4,2% e mantém-se relativamente estável. Foi emblemática na Tapada de Coelheiros, quando em 1981 foi forte a aposta nas castas internacionais, considerada uma inovação. Os garfos até vieram de Margaux. A casta entra com bastante frequência em lotes, nem que seja como “sal e pimenta”, e até protagoniza alguns vinhos, como por exemplo o 100% Cabernet Sauvignon da Herdade de Lisboa.

 

Alentejo continua a ser o líder absoluto em termos de presença no mercado nacional, com 33,8% em volume, seguido do Minho (Vinho Verde) e Península de Setúbal com mais de 17% cada; e 35,5%, em valor, à frente das regiões Douro e Minho. A região comercializa 70% do vinho no mercado nacional, sendo que apenas 30% é exportado.

Outra casta do Norte que parece conquistar cada vez mais adeptos alentejanos, é a Touriga Franca – é de ciclo longo, agronomicamente adaptou-se bem, não perde folhas basais durante a seca e dá vinhos muito interessantes. Cresce em área plantada a olhos vistos e já ocupa 3,9% das plantações. Alfrocheiro com 2% tem uma certa tendência de diminuir a sua presença e Petit Verdot, com 1,9%, ao contrário, parece estar a crescer. O Moreto com 1,2% também não tem entrado nos vinhos de topo, a menos que seja das vinhas velhas ou para vinhos de talha.
Ao longo das décadas, na vinha também mudou muita coisa: os porta-enxertos (os que são usadas de hoje induzem uma maturação mais precoce o que não é propriamente uma vantagem para uma região quente); as formas de plantação e condução da vinha (antes eram em taça ou guyot que permitia melhor gestão de água e protegia do calor); as vinhas de sequeiro agora são raras e a água para rega é escassa. Aprendeu-se a controlar as produções, orientar a viticultura para a planta ser mais eficiente na sua capacidade fotossintética, escolheram-se clones menos produtivos, pratica-se monda de cachos, sobretudo para os topos de gama. O reverso da medalha, às vezes, é álcool a mais.

Grande Prova Alentejo

Futuro: adaptável e sustentável

As provas verticais proporcionadas por alguns produtores, funcionam como uma máquina do tempo, permitindo sentir as mudanças de castas e estilos. Os mais antigos geralmente com menos corpo e pujança, alguma rusticidade e o teor de álcool à volta dos 13%.
A mudança é imparável, acontece em todas as regiões mundiais devido às alterações, actualizações, modas e melhorias. É preciso não entrar em exagero e manter o equilíbrio.
O futuro das castas no Alentejo, provavelmente, é destinado a aquelas que aguentam melhor o calor e a falta de água. Um certo movimento revivalista vai, com todo o propósito, preservar vinhas velhas de sequeiro e desencantar algumas castas minoritárias. Também me parece que para além da escolha de casta mais fundamentada em múltiplos ensaios, o grande cuidado será aplicado na selecção dos clones (material policlonal), porta-enxertos, locais de plantação e métodos de condução apropriados para cada casta. Chamaria isto escolha de precisão e adaptabilidade mútua.
Voltando à questão do potencial e do investimento, é de notar que as empresas importantes e bem instaladas na região, investem também no conhecimento que pode não gerar lucros a curto-médio prazo, mas gera valor acrescentado a longo prazo e para toda a região.

A Sogrape na Quinta de Peso fez um investimento em plantação de várias parcelas num total de 42 hectares de vinha com castas Syrah, Cabernet Sauvignon, Aragonez, Tinta Miúda, Tinto Cão, Touriga Franca, Gran Noir etc. Uma parte foi plantada em vaso (gobelet), com fruta mais à sombra e melhor gestão de água. É mais trabalhoso, requer mais mão-de-obra, obviamente, – explicou numa conversa o enólogo Luís Cabral de Almeida. Fizeram também o estudo de solos e mediante estes resultados, irão plantar a vinha apenas nos solos apropriados para o efeito.
A Herdade do Esporão está envolvida no projecto WineClimAdapt com o INIAV e outras entidades com o objectivo de selecção e caracterização das castas melhor adaptadas a cenários de alterações climáticas. Nos 10ha de campo ampelográfico encontram-se em estudo 189 castas (alentejanas, nacionais de outras regiões e estrangeiras).

A aposta na sustentabilidade (o Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo, criado, implementado e certificado localmente é um modelo para o país e para o mundo) é hoje um dado adquirido e um desígnio para todos os agentes económicos locais. Os resultados estão á vista. Se provamos os vinhos antigos do Alentejo com certa nostalgia, e muitos vinhos de hoje com orgulho, acho que, no futuro, ainda iremos ser bem surpreendidos pela positiva. na edição

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2023)