World of Wine: Nesta aula é permitido beber

Escola de Vinho

A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine […]

A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine (WOW), em Vila Nova de Gaia. Esta “Escola de Vinho” inaugurou em 2021, está sempre aberta e com formações constantes, deste o WSET a workshops de curta duração, passando por muitos outros cursos, para todos os níveis de conhecimento e “carteira”.
“A nossa missão prende-se com o conceito de ‘edutainment’, ou seja, educação com entretenimento. Consideramos que o sector do vinho em Portugal é complexo e se fecha muito em si”, explica-nos José Sá, director da Escola de Vinho. Com background em Engenharia Mecânica, entrou no mundo do vinho por paixão e criou a “Wine Tellers”, um projecto onde pretendia, já na altura, comunicar o vinho de forma diferente. Entretanto, foi sommelier no hotel The Yeatman e sommelier responsável no Le Monumental Palace, ingressando, simultaneamente, especializações académicas na área dos vinhos. Voltando à sua “antiga casa”, esteve na génese do museu Wine Experience do WOW antes de assumir a direcção da The Wine School, sendo actualmente responsável por uma equipa permanente de quatro formadores.
Bilingue, com oferta em português e inglês, a Escola de Vinho do WOW dá-nos a sensação de estarmos mesmo numa escola, começando num átrio central que dá acesso a salas de aula, salas de prova e uma sala privada com cozinha, além de zonas de apoio como a cozinha e a copa. Foi construída de raíz com este propósito, por isso as condições e os vários espaços são exímios. As salas de aula e prova estão, por sua vez, equipadas com módulos independentes de ar condicionado, que têm filtros de carvão e mecanismos que colocam a área em pressão positiva, elementos que “anulam cheiros e impedem a contaminação de aromas”, explica José Sá. Também não faltam equipamentos de frio para os vinhos e outros de higienização profissional para os copos. “Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada”, refere o director.

A vertente académica

É a primeira escola em Portugal a leccionar o WSET — entidade internacional líder na educação em vinhos e bebidas espirituosas — também em inglês, além de português, nos níveis 1 e 2, no entanto, o foco não é apenas o contexto vínico internacional, mas também o vinho português e o contexto nacional. Prova disso é, a título de exemplo, o programa desenvolvido de forma original pela equipa da escola, o “Portuguese Wine Specialist” (PWS), que permite estudar em detalhe os vinhos portugueses com a mesma metodologia do WSET. Este é um programa de dois níveis, para já — “Nível 1: Saber de vinho em Portugal” (€75) e “Nível 2: Entender as regiões portuguesas” (€185) — e não obriga a participação no WSET, embora a escola tenha disponíveis packs vantajosos que juntam os dois programas.
Na certificação WSET, tentam oferecer uma experiência mais enriquecedora, indo para além dos mínimos exigidos pelo programa. “Incluímos mais 20% de vinhos do que o obrigatório nos dois níveis WSET, bem como mais uma hora no nível 1 e mais duas no nível 2”, adianta José Sá, que revela, ainda, que o nível 3 chegará à The Wine School em 2024, e que pretendem vir a ter disponível o mais recente WSET em cerveja.

Escola de Vinho
José Sá – Director da Escola.

 

 

 

 

“Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada.”

 

 

 

 

 

 

Mais que Uma Prova

Num registo diário e lúdico, das 11h00 às 19h00 e sem marcação obrigatória, as sessões “Mais que Uma Prova” têm o objectivo de “democratizar o conhecimento sobre o vinho”. As provas personalizadas (desde €20 por pessoa), com duração de 30 minutos, dividem-se em várias opções: selecção de três vinhos; selecção de cinco vinhos, harmonização de dois vinhos e duas trufas de chocolate; ou harmonização de três vinhos e três queijos. Já a prova “Desmistificar o Vinho” (€35) dura 45 minutos, inclui cinco vinhos, aborda um destes temas à escolha: “Como provar vinho”, “História e estilos de vinho do Porto”, “Regiões portuguesas” ou “Harmonização de vinho e chocolate”.

Cursos Práticos

Concebidos tanto para curiosos como para profissionais da área, os cursos práticos são dados a turmas pequenas e podem ser organizados de forma privada, como momentos de teambuilding ou outras ocasiões especiais. São cursos como “Introdução ao vinho e à prova” (€45 por pessoa), com duração de três horas e prova de oito vinhos; ou “Vinhos fortificados portugueses” (€185), com duração de cinco horas e prova de doze vinhos; entre outros.

 

 

Provas Exclusivas

Estas são sessões de prova personalizadas, em ambiente privado, com vinhos “excepcionais e icónicos” e garantia da “máxima atenção especializada a cada provador e a cada tema”. As sessões já desenhadas pela escola têm vários temas e preços dos €95 aos €225, consoante o número e tipologia de vinhos, mas também é possível organizar à medida. As Provas Exclusivas têm, ainda, a vantagem de poderem ser realizadas a bordo de um iate, no rio Douro.

Para Além da Uva

As masterclasses (€45) ou provas (€25) “Para Além da Uva” fazem parte do calendário anual e são anunciadas nas redes sociais da The Wine School e na página da escola em wow.pt. Nestas, são convidados especialistas do sector do vinho, de outras bebidas e da gastronomia em geral, para orientar sessões aprofundadas sobre temas específicos e tendências de interesse. Os convidados podem ser, por exemplo, enólogos, produtores, chefs de cozinha, sommeliers, jornalistas, entre outros.

E muito mais…

A Escola de Vinho do WOW está também a iniciar-se na organização de Tours no segmento premium, por várias regiões vitivinícolas de Portugal. Em marcha está a construção de uma zona exterior de balcão e a introdução de pequenos momentos educativos de harmonização no átrio e no futuro balcão exterior, bem como a criação de livros originais de apoio aos cursos.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Grande Prova: Brancos da Bairrada

Grande Prova

A liga dos duros Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do […]

A liga dos duros

Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do país, com ligeiro pendor a norte, compreendendo os concelhos de Anadia, Mealhada, Oliveira do Bairro e também, ainda que parcialmente, os de Águeda, Cantanhede, Vagos e até Coimbra. No que diz respeito a outras regiões vitivinícolas, delimita a Norte com Lafões (não se afastando muito dos Vinhos Verdes), e a Este a região do Dão. É um território muito específico, podendo ser resumido como um planalto de baixa altitude, circunscrevido ora pelo Oceano Atlântico a Oeste, ora pelas Serras do Caramulo e Buçaco a Este, com notórias tradições gastronómicas muito próprias, do leitão ao espumante, passando pela aletria.

Mas voltemos à história recente: a explicação para tão poucos anos excelentes, no que a tintos dizia respeito, centrava-se na relação entre casta e o clima atlântico que caracteriza a região, sobretudo em anos chuvosos. Com forte propensão para precipitação no início de setembro, era habitual a casta Baga – a principal tinta da região e tardia na maturação – não estar totalmente madura aquando das primeiras chuvas, originando o perfil menos consistente e mais rústico por vezes comum na região até há duas décadas. Claro que, nos anos mais quentes e secos, a Baga amadurecia bem dando origem a tintos encorpados que, mesmo acima dos 14% vol., retinham a acidez e os taninos necessários para uma excelente prova, mais a mais mantendo os vinhos longevos por décadas. Foram, essencialmente, esses tintos que deram fama à região.

Hoje, como sabemos, o clima não é exactamente o mesmo de há três ou quatro décadas, com uma subida notória da temperatura média anual, o que provoca uma vindima mais precoce e, com isso, reduz-se o risco de uma vindima à chuva. Todavia, a Bairrada é ainda caracterizada por verões amenos, para não dizer mesmo com noites frias e neblinas marcadas pelos ventos de Oeste e Noroeste claramente vindos do Atlântico. Tanto assim o é que, no Verão e início de Outono, a amplitude térmica chega a uns impressionantes 20ºC, com destaque para o eixo entre Oliveira do Bairro e Luso (passando por Anadia e Mealhada), sendo Cantanhede ligeiramente mais quente em média. Sucede que, actualmente, com a crescente procura por vinhos mais frescos e de acidez vibrante, e com o Sul e interior do nosso país a atingirem temperaturas elevadíssimas, o perfil atlântico e pouco solarengo da Bairrada é uma vantagem evidente, em particular nos brancos, aos quais nos dedicaremos nas próximas linhas (para não falar dos espumantes, onde a Bairrada é a principal região produtora e aquela com mais tradição em Portugal).

UVAS QUE EXPRESSAM O LOCAL

 Se quanto ao clima já nos referimos, importa recordar que, ao nível dos solos, a Bairrada é caracterizada por manchas e afloramentos argilo-calcários de origem jurássica e triássica, perfis reconhecidamente privilegiados para vinhos distintos (em Portugal, o perfil mais parecido será o dos terrenos calcários de Bucelas, cujos DOC são obrigatoriamente brancos). Dentro da região, os melhores locais para vinho são ainda caracterizados pelos típicos “barros”, solos argilosos, mas sempre com o teor de calcário a marcar a identidade da região. Em Cantanhede, Mealhada, Anadia e, mais a Norte, em redor de Oliveira do Bairro, podemos encontrar vários solos calcários e margas ou calcários margosos, geralmente com alguma percentagem de limo bastante poroso. Não espanta, assim que a quase totalidade dos vinhos aqui provados venham de vinhas com presença de calcários, algo que se pressente em prova pela finura e frescura que manifestam, tanto os mais vinhos mais novos, como aqueles com mais estágio em garrafa. Uma excepção é o requintado Quinta de Foz de Arouce, de uma vinha de Cercial próxima da Lousã, cuja localização, e respetivo solo xistoso, levam a que seja certificado como Beira Atlântico.

Outro factor de sucesso são as castas nacionais bem-adaptadas à região, algumas delas quase exclusivas da Bairrada. Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas. Ora, se em algum lugar no nosso país faz sentido afirmar que as castas expressam o terroir, esse lugar é a Bairrada. Com efeito, mesmo as castas mais expressivas do ponto de vista da fruta e até “maduronas” — como a Chardonnay — revigoram na Bairrada e dão lugar a vinhos finos, recatados e de acidez crocante. O Arinto, por sua vez, já de si propenso a um perfil seco e com boa acidez, marca presença em muitos lotes, sendo eleita muitas vezes a solo nos topos de gama fermentados ou estagiados em barrica, como podemos verificar na presente prova (excelente, a edição única do vinho Doravante de uma vinha de Arinto entretanto já arrancada).

Grande Prova

 

 

Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas.

 

 

O FACTOR HUMANO

Deixámos para o fim um dos factores diferenciadores da região mais desafiador: os produtores. A típica persistência bairradina, e a lendária capacidade dos bairradinos em perpetuar as suas tradições, faz com que, em 2023, estejam a ser lançados vinhos elaborados da mesma forma que o eram há mais de 50 anos, por exemplo com fermentações em tonéis antigos de madeira. São, em muitos casos e como esta prova demonstrou, produções mínimas (por vezes, pouco mais de 500 garrafas), de vinhos lançados com vários anos em garrafa (por vezes até 5 anos). É, certamente, a liga dos duros! Com efeito, existe um punhado de produtores absolutamente “clássico”, cuja qualidade e originalidade dos vinhos brancos é elogiada internacionalmente. Nomes e marcas como Quinta das Bágeiras, Casa de Saima, Frei João (Caves São João), Sidónio de Sousa, fazem parte desse lote juntamente com outros. Esta identidade é tão marcada que, mesmo gerações mais novas e produtores mais recentes, continuam esse legado de tradicionalismo assente em vinhas velhas e enologia pouco interventiva, como é o caso dos produtores Filipa Pato & William Wouters, Niepoort Vinhos (que entrou na região há mais de uma década), Luís Gomes (Giz) ou os projectos de enólogos como V Puro e Botão, entre tantos outros. Mas não se pense que a região não tem inovadores, alguns deles, aliás, pioneiros e responsáveis durante décadas por colocar a Bairrada no mapa internacional. Caso de Luís Pato, inovador nas mondas e na utilização de meias barricas francesas; ou de Carlos Campolargo, experimentando todo o tipo de castas, das mais típicas da região às internacionais, muitas vezes em estreme; e passando pelos vinhos ambiciosos e monumentais de João Póvoa, primeiro na Quinta de Baixo e, desde 2005, no projecto Kompassus. Igualmente importantes serão outros produtores de origem local, com várias gerações de vinhos “às costas”, e que persistem em apresentar, ano após ano, vinhos cada vez melhores respeitando o ADN da Bairrada, ou seja frescura, acidez e carácter, caso de Jorge Rama, António Selas, Regateiro, entre outros.

Com tantas razões para brancos de excelência, não espanta que os dados disponíveis apontem para a produção crescente destes vinhos certificados enquanto DOC Bairrada. Em 2022, foram quase 610 mil litros, um terço mais do que a média dos 10 anos anteriores. Boas notícias, portanto! Com este volume e, sobretudo, tanta qualidade a preços relativamente cordiais (os vencedores da prova custam menos de €30 a garrafa), não queira ser um daqueles a passar ao lado de alguns dos melhores brancos de Portugal…

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Quinta do Cardo: Um pioneiro da Beira Interior

Quinta do Cardo

Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se […]

Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se bem antes disso. Situada junto à aldeia medieval de Castelo Rodrigo, a história vitivinícola “moderna” da Quinta do Cardo tem início em 1932, com a plantação dos primeiros talhões de vinha pelo casal José António Andrade Maia e Esmeralda Aguilar Fonseca Maia, a quem seu pai tinha oferecido a propriedade. Mantida na família até ao início dos anos 80, acabou por ser perdida ao jogo (imagine-se!) e colocada em hasta pública. E assim, em 1983, os 200 hectares da quinta (dos quais 12 de vinha tradicional) chegaram às mãos de Maria Luíza Lima e do seu marido, Artur Ribeiro da Silva.

Maria Luíza e Artur não eram estranhos ao mundo do vinho, longe disso. Ambos engenheiros, ela tinha um conhecimento profundo da produção vitivinícola, enquanto profissional em empresas de topo e proprietária no Douro; e ele foi, sem dúvida alguma, um dos mais brilhantes criadores de equipamentos para a indústria do vinho nos anos 80 e 90, através da empresa Vinipal, com várias patentes registadas no curriculum.

Não espanta por isso que a nova adega, por eles construída em 1984, integrasse o que de mais moderno havia em equipamento enológico na época, incluindo, por exemplo, remontagem gasosa para vinificação de tintos, estabilização pelo frio em contínuo, prensa pneumática, pasteurização flash e cubas com atmosfera inerte. Quando, no início de 1990, a visitei pela primeira vez, a adega era um verdadeiro centro de investigação e experimentação da tecnologia do vinho.

Quinta do Cardo
Jorge Rosa Santos e Rui Lopes entraram na Quinta do Cardo em Agosto de 2021, mesmo em cima da hora para fazerem a vindima.

Também a vinha foi objecto de grandes ampliações, tendo sido plantados, ao longo dos anos, mais de 40 hectares, num mix entre as castas identitárias da região (Síria, Arinto, Mourisco) e as que na vizinha região do Douro tinham provas dadas (Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Francesa). O pioneirismo da adega estendeu-se à abordagem vitícola: todas as parcelas foram instaladas em regime de proteção integrada (algo raro numa época em que o conceito de sustentabilidade ambiental era praticamente desconhecido) e com rega gota-a-gota. Inovador para aqueles tempos, foi também o facto de o casal ter encarado a vinha velha como um tesouro a preservar, tendo-a recuperado e suprido as falhas das cepas mortas. O primeiro branco com o rótulo Quinta do Cardo nasceu em 1986 e dois anos depois o primeiro tinto. A marca tornou-se famosa em muito pouco tempo, sobretudo pelos brancos, uma notoriedade que terá certamente beneficiado da conjugação entre um terroir perfeitamente adequado e uma adega onde avançados sistemas de frio imperavam. Nos melhores restaurantes de Lisboa e Porto, ouvia-se pela primeira vez falar de vinhos de Castelo Rodrigo. E jornalistas novos no ofício, como era o meu caso, estreavam-se a provar nas cubas brancos e tintos estremes de Síria, Rufete e Mourisco.

Com propriedade e marca tão apetecíveis, Maria Luíza Lima e Artur Ribeiro da Silva acabariam por não resistir à proposta da Companhia das Quintas que em 1999 iniciava o seu ambicioso projecto de instalação nas principais regiões de Portugal. Foi esta empresa que concluiu a plantação das novas vinhas e ampliou a adega tendo em vista o aumento da produção. Em 2009 todos os vinhedos do Cardo passaram ao sistema de produção biológico, certificado pela Sativa, tornando-se assim no primeiro produtor nacional a fazê-lo naquela escala. Em 2014, a certificação bio estendia-se a todos os vinhos da Quinta do Cardo.

Com o aproximar do final da década, os problemas financeiros que a Companhia das Quintas atravessava levaram a forte limitação dos investimentos nas propriedades, primeiro, e posterior desagregação da estrutura produtiva. Depauperada, quase sem actividade, a Quinta do Cardo seria então adquirida pelo casal Artur Gama e Eva Moura Guedes, que trouxeram para a sociedade outro membro da família, António Mexia. E assim, a mais histórica referência da Beira Interior ganhava uma nova vida e uma segunda oportunidade.

 

Quinta do Cardo

 

Uma nova vida

Artur Gama e Eva Moura Guedes já sabiam o que custa produzir vinho e colocar uma marca a rodar no mercado. Afinal de contas, desde 2015 que tinham em mãos a Quinta da Boa Esperança, na região de Lisboa, a que se soma a vasta experiência de Artur no trading de vinhos. Mas porquê, agora, a Quinta do Cardo? “Foi resultado de uma oportunidade, mas também de um ‘amor à primeira vista’. Quando percorremos o caminho que nos levou à quinta, ficámos desde logo marcados pela beleza, pela história, pelo silêncio, pela relação das pessoas com estas terras altas”, revela Artur Gama. O potencial para as práticas sustentáveis foi outro factor de decisão. “A localização do Cardo, o seu clima, altitude e natureza do terroir, tornam este projecto vinícola particularmente adaptado às alterações climáticas e à consequente necessidade de reduzir o consumo de água e de adoptar métodos de agricultura regenerativa, permitindo o desenho de vinhos de grande qualidade, amigos do ambiente e, ainda, das novas tendências em termos de consumo”, explica o produtor.

A experiência e os resultados obtidos pelo modelo de produção integrada na Quinta da Boa Esperança (situada numa região bem mais difícil para estas práticas, devido à humidade) ajudaram a fortalecer a convicção dos sócios de que a Quinta do Cardo só faria sentido com a aposta “numa visão sustentável integrada – nas vertentes ambiental, económica, social e cultural.” A história pioneira da Quinta do Cardo na agricultura biológica era igualmente trunfo a não desperdiçar.

Não foi nada fácil, porém, colocar a propriedade de novo em marcha. Quando da sua aquisição, em 2021, a Quinta do Cardo estava praticamente inoperacional. A vindima de 2020 não chegou a ser feita, o sistema de rega estava desactivado, a vinha sem cuidados, o parque de máquinas não existia, a adega tinha muitos problemas infra-estruturais e tecnológicos. Foi preciso intervir rápido e estabelecer prioridades: “reparar” a vinha e recuperar equipamentos de adega, para garantir a vindima de 2021. Após estas intervenções urgentes que devolveram a operacionalidade da Quinta, fizeram-se os primeiros investimentos estratégicos. Assim, em 2022 foram plantados 10 hectares com Síria, Arinto e Malvasia Fina, sobretudo, e também Rufete. Uma nova captação e sistema de irrigação automatizou parte significativa da vinha existente. Ao mesmo tempo, adquiriram-se tractores, alfaias agrícolas, uma bateria de cubas para vinificação de brancos e reestruturou-se o parque de barricas. “Todas as intervenções feitas até agora tiveram como propósito aprofundar a dimensão da sustentabilidade, nos seus quatro pilares, e valorizar o contexto extraordinário da Beira Interior para a exploração vinícola e para a produção de vinhos”, diz Artur Gama.

 

 

“O Futuro da Quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos

 

 

Um território único

A Quinta do Cardo merece, na verdade, todo o carinho que lhe possam dar. E, dando-lhe oportunidade, ela retribui com vinhos que expressam um território pleno de singularidades. A começar pelo clima. A serra da Marofa e Castelo Rodrigo, ali ao lado, ajudam a suavizar os ventos continentais e limitam a ocorrência de granizo. A uma altitude média de 750 metros, os Invernos são rigorosos, os abrolhamentos tardios, as maturações lentas (preservando a acidez das uvas), com grandes amplitudes térmicas no Verão, favorecido com noites frescas. As vinhas do Cardo estão plantadas em solos profundos, com pouca matéria orgânica, enorme prevalência de argila, com pH ácido e rocha-mãe de granito quartzítico a mais de 2 metros de profundidade.

A área actual de vinha ronda os 80 hectares, com destaque para algumas parcelas “históricas”. É o caso da Vinha do Lomedo, plantada no início dos anos 70. São cerca de 10 hectares de Síria, a uva branca identitária da Beira Interior, onde nascem consistentemente vinhos de excelência, tornando-a uma verdadeira referência regional e nacional desta casta. A Vinha do Pombal, com mais de 25 anos, é outra parcela estreme: exclusivamente Touriga Nacional, 4 hectares de cepas plantadas com compasso apertado, dá origem a alguns dos melhores tintos da casa. Já a Vinha do Castelo, plantada em 1999 com Tinta Roriz, está a ser trabalhada para, no futuro, originar também ela um vinho de parcela. Para além destas, encontramos noutros talhões Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, além de pequenas parcelas de Tinto Cão, Alicante Bouschet, Merlot e Caladoc.

Tirando a vinha plantada em 2022 com Síria, Arinto, Malvasia Fina e Rufete, foi isto que os enólogos Jorge Rosa Santos e Rui Lopes encontraram quando foram convidados a “tomar conta” da produção da quinta. “Chegámos em Agosto de 2021”, recorda Jorge, “e felizmente a vindima apenas começou em meados de Setembro, o que nos deu tempo para programar a colheita, fazer revisões na adega e, na medida do possível, conhecer as vinhas, muito com a ajuda do Sr. Ermindo Coelho o feitor da casa, que aqui já fez 35 vindimas.” Jorge e Rui têm apenas duas vindimas na Quinta do Cardo (quando escrevo estas palavras estarão à beira da terceira que, segundo eles, “promete imenso”), mas dois anos são suficientes para perceberem o que têm em mãos. “A quinta tem um potencial tremendo”, refere Rui Lopes. “Logo na vindima de 2021, e com a vinha no estado em que estava, foi possível produzir brancos de enorme finura, precisão, mineralidade e elegância e tintos expressivos e genuínos, com taninos firmes e marcadas nuances balsâmicas”, acentua.

De então para cá, a equipa de viticultura da casa tem vindo a desenvolver trabalhos que vão permitir aumentar a produtividade – tremendamente escassa, é o maior problema da quinta, afectando a rentabilidade – e a qualidade das uvas.  Para tal, foram alteradas as podas em alguns talhões, com a descompactação do solo, correcção do pH, incorporação de matéria orgânica e enriquecimento do coberto natural com sementeiras. “A vinha está a reagir de forma fantástica”, exulta Artur Gama, “ela percebe quando é bem tratada…”

Quinta do Cardo

 

 

Orgânico é marca da casa

Como atrás referi, todas as vinhas da Quinta do Cardo são trabalhadas em modo orgânico desde 2009, um compromisso e uma forma de estar que saem reforçadas com os seus novos proprietários. Mas quais são os principais desafios colocados pela viticultura orgânica na Quinta do Cardo? Jorge Rosa Santos responde: “O modo de produção orgânico em regiões ou vinhas com chuva ou humidade frequentes pode ter consequências drásticas para a própria preservação ambiental, seja pela sobredosagem de cobre e enxofre ou gasto desmesurado de combustível no controlo da flora na linha e entre-linha. Já para não mencionar o impacto enorme na produtividade, o qual, acrescido ao modo de produção mais trabalhoso, torna o vinho mais caro ao consumidor.” Não é o caso da Quinta do Cardo, que parece talhada para o modelo bio. “Estamos a 750 metros de altitude, temos aqui um ciclo vegetativo curto, abrolhamento tardio e amplitudes térmicas enormes”, salienta Jorge. “Além disso, a precipitação média anual, tal como em toda a região do Ribacôa, é muito baixa. Ou seja, estão reunidas todas as condições para operarmos em modo produção orgânico, sem redução da produção. Em termos vitícolas, o maior desafio prende-se com o controlo da flora na entrelinha e com as intervenções na sebe, que permitam o bom arejamento”, conclui.

Existem riscos, claro, mas a equipa está preparada para eles. “Sabemos que teremos anos mais desafiantes do que outros”, diz Rui Lopes. “As vindimas de 2002, 2010, 2014 foram problemáticas. Por dedução lógica, a cada 10 vindimas, teremos talvez duas com problemas de sanidade e consequente baixa produtividade. Mas, actualmente, temos as nossas vinhas com um vigor médio-baixo, logo uma sebe bastante arejada e produtividade média-baixa, pelo que o risco é moderado. Além disso as vinhas são todas ao alto e em parcelas contíguas, o tempo de reacção para um tratamento orgânico é muito rápido”, remata o enólogo.

Para o produtor, Artur Gama, não subsistem quaisquer dúvidas: “Apesar de todos os riscos, acreditamos que nesta região a produção em modo orgânico é, neste momento e nos anos vindouros, a escolha certa. A região tem ganho espaço e reconhecimento, mas no posicionamento médio-alto continua a ter algumas dificuldades. A nossa missão é apostar nesse posicionamento e achamos que o modo de produção orgânico contribui como factor de diferenciação. Além de estar absolutamente alinhado com os nossos valores institucionais de sustentabilidade.”

 

 

“Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes

 

 

Castas e identidade

Variedade identitária da Beira Interior, a casta Síria tem lugar de destaque na Quinta do Cardo. “O futuro da quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos. “Acreditamos muito no potencial da casta a esta altitude e nestes solos. Tem enorme maleabilidade, pois aceita bem a madeira ou o estágio sobre borras em cuba de inox. E em casos especiais consegue representar muito bem a identidade da parcela, como no caso do branco Vinha do Lomedo”, acrescenta. Certamente por isso, a casta representa 90% da área de branco da Quinta do Cardo. Já nos tintos, o panorama é algo diferente. Apesar de produtor e enólogos estarem muito satisfeitos com o desempenho de variedades como Touriga Nacional ou Touriga Franca, reconhecem a necessidade de uma maior representatividade das castas autóctones no encepamento da propriedade. “Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes. “Vamos manter alguma Tinta Roriz, que tão bom resultado tem na Beira Interior e em regiões vizinhas portuguesas e espanholas. Mas, acreditamos que esta região terá também potencial para outras castas portuguesas, tal como a Trincadeira e Alicante Bouschet, esta última com excelentes resultados, numa pequena parcela que temos”, adianta. A Garnacha, amplamente plantada ali bem perto, do outro lado da fronteira, nas regiões de Arribe e de Toro, é outra possibilidade para ensaiar quando existir oportunidade.

Hoje, a Quinta do Cardo está a produzir cerca de 300 toneladas de uva/ano, mas quando a vinha plantada em 2022 entrar em plena produção, será possível atingir as 400 toneladas. A vindima de 2022 deu origem a cerca de 200.000 garrafas. O mercado nacional é o destino de cerca de 70% das vendas, com a exportação a subir tendencialmente, ampliando os principais mercados já existentes (Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa central) e abrindo outros.

Artur Gama tem uma visão muito clara do que pretende para a sua mais recente aposta vitivinícola: “Vemos a Quinta do Cardo a afirmar-se como o projecto de referência da Beira Interior e como líder nos vinhos orgânicos. No final desta década queremos ultrapassar o milhão e meio de garrafas, num posicionamento de segmento alto e muito virado para exportação, onde se valoriza a componente orgânica e a sustentabilidade global.”

Sustentabilidade que, como faz sempre questão de realçar, não deve ser apenas ambiental, mas também económica, social e cultural. Nesse sentido, há algo que o preocupa e que, infelizmente, não é novo e nem exclusivo da Beira Interior. “Estamos particularmente inquietos com a desertificação da região e com os inerentes problemas sociais e económicos criados”, diz. “Também por isso, queremos contribuir positivamente para os atenuar, estabelecendo parcerias com empresas, polos de ensino locais e com o concelho de Figueira Castelo Rodrigo, para o desenvolvimento de projectos nas áreas cultural, social e de investigação. Não tenho dúvidas: a Beira Interior será ‘the next big thing’. Tivemos a sorte de encontrar a Quinta do Cardo. Queremos partilhá-la.”

(Artigo publicado na edição de Stemebro de 2023)

Morgado do Quintão: Para uma arqueologia dos vinhos algarvios

Morgado do Quintão

Nas mãos da família Caldas Vasconcelos há quatro gerações, a casa foi fundada em 1810 pelo 1º Conde de Silves e sempre ali se produziu vinho, a par de outras culturas, nesses tempos sobretudo para consumo próprio, a exemplo de muitas outras propriedades na região. O que aqui merece relevo, é que os seus proprietários […]

Nas mãos da família Caldas Vasconcelos há quatro gerações, a casa foi fundada em 1810 pelo 1º Conde de Silves e sempre ali se produziu vinho, a par de outras culturas, nesses tempos sobretudo para consumo próprio, a exemplo de muitas outras propriedades na região. O que aqui merece relevo, é que os seus proprietários souberam resistir à tendência geral da região nos anos 80 e 90 do século passado de abandono da vinha e porfiaram em manter a produção, entregando as uvas na adega cooperativa local. Mas foi só mais recentemente, em 2016, que Filipe Vasconcellos e sua irmã Teresa, com a morte de sua mãe assumiram a gestão da propriedade e resolveram ensaiar a produção de vinho engarrafado. Primeiro, de uma forma tímida, com o lançamento de 2000 garrafas e depois a pouco e pouco, à medida que estendiam a área de plantação até chegar hoje aos 18 hectares e com uma produção que anda em média nas 30 000 garrafas. Mas Filipe e Teresa tinham ideias claras do que queriam fazer e foram em contramão à tendência de reproduzir no Algarve as castas e os métodos que fizeram o sucesso dos vinhos alentejanos. Com vinhas muito velhas, algumas com mais de 90 anos e de produção exígua, resistiram ao impulso de as arrancar e fizeram delas a imagem de marca da sua casa. Negra Mole e Castelão nos tintos e Crato (Síria) nos brancos eram as cepas tradicionais do Algarve de antanho. E foram nestas que apostaram, com o incentivo entusiasmado da enóloga Joana Maçanita que assumiu a direção de enologia e que hoje dá a cara e, ouvindo como fala, o coração, pelo projecto.

 

 

Filipe Vasconcellos e a sua irmã Teresa assumiram, em 2016, a gestão da propriedade.

 

 

 

 

 

As vinhas novas entretanto plantadas respeitam esta filosofia da casa e reproduzem em alguns aspectos as condições das vinhas primitivas: castas misturadas, ou como hoje dizemos “field blend, pouca intervenção na vinha e na adega. Mas as preocupações na sustentabilidade e a aposta na produção biológica que está em vias de ser certificada são bem contemporâneas. Na prova que nos proporcionaram sob a sombra generosa de uma oliveira milenar (Filipe avançou que ela teria mais 2000 anos!) ficou muito claro o perfil pretendido dos vinhos ali produzidos. Joana Maçanita explicou que esta era a verdadeira identidade dos vinhos do Algarve e aquilo que defende ser o seu futuro. Vinhos brancos frescos e com boa acidez e tintos com pouca cor e também carregados de frescura, para se beberem no verão escaldante. Por isso a aposta vincada na Negra Mole, a porta bandeira dos vinhos algarvios, fazendo com ela os seus Claretes de Negra Mole, com os quais fizemos uma prova vertical muito interessante, lembrando os Pinot Noir. O espírito inquieto de Joana tem convencido os proprietários a avançarem por experiências desafiantes que também nos foram dadas a provar, como é o caso do Espumante de 2019, um pouco resinoso mas delgado na boca, um Palhete que junta Negra Mola com Crato, um Branco de Ânfora 2021 carregado de salinidade e outro Branco de Tintas 2021.

 

A casta Negra Mole é a grande aposta do projecto

Esta aposta tem sido bem conseguida, os grupos de visitantes (a maior parte estrangeiros) sucedem-se aos portões da propriedade e os vinhos do Morgado do Quintão são hoje um dos principais pontos de atracção na exploração do enoturismo, para o qual a casa está muito bem apetrechada com os seus pequenos chalés pitorescos e com o suporte de uma cozinha criativa e bem apresentada, baseada nos produtos e sabores tradicionais da região.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Herdade do Gamito: Abegoaria no Norte alentejano

Herdade do Gamito

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e […]

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e as adegas/marcas associadas Cooperativa da Granja e José Piteira. Um terroir que não podia ser mais distinto daquele que encontramos na Herdade do Gamito, no coração do norte alentejano.

As vinhas da Herdade do Gamito foram inicialmente plantadas em 2003 e actualmente são 27 ha que estão à disposição da equipa que inclui Marcos Vieira como enólogo residente e António Braga como consultor. Além daqueles 27, há mais 7 ha arrendados bem perto da propriedade onde, entre outras, está plantada a casta Cabernet Sauvignon, da qual António Braga é grande apreciador, “até vou começar a usar mais porque a casta dá aqui vinho de muita qualidade”, disse. Depois há Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Petit Verdot. Os solos são graníticos, mas de textura variada, desde blocos enormes de pedra dura até terrenos quase arenosos que correspondem ao esfarelamento do granito antigo. Na adega, moderna e bem equipada, da Herdade do Gamito, são também processadas algumas uvas que chegam das vinhas da Granja. “Vamos fazer uns lotes especiais, mas só para o ano poderão ser apresentados, tal como acontecerá com os vinhos de Moreto de vinhas velhas em pé-franco que só daqui a algum tempo estarão disponíveis”, diz-nos Manuel Bio, administrador do grupo Abegoaria.

Herdade do Gamito
Manuel Bio

Na Granja é a Abegoaria que é responsável pela adega cooperativa, onde os 100 associados originais continuam a entregar aas uvas, “Creio que a breve prazo teremos de começar a pagar as uvas das vinhas velhas bem mais caras”, diz Manuel Bio, a propósito. “É que a produção por hectare é muito baixa e a tendência será de arranque das vinhas velhas com a consequente perda irreparável de património vitícola e genético”, confirma. A Abegoaria gere igualmente a produção da Adega Cooperativa de Alijó (Douro) e da Quinta de Vale Fornos (Tejo) e adquiriu as Caves Vidigal (Lisboa) onde produz um vinho de tremendo sucesso, o Porta 6. São quase 7 milhões de garrafas e, diz-nos Manuel Bio, “é marca líder de mercado, quer no Reino Unido quer nos Estados Unidos. E se descontarmos o Vinho do Porto, esta marca corresponde a 1/3 dos vinhos portugueses exportados para Inglaterra.”
Na Herdade do Gamito, Alicante Bouschet é a casta mais plantada, perto de 6 hectares. Recentemente, foram replantados 5 hectares onde entraram castas tradicionais da região (Tinta Caiada, Grand Noir, Trincadeira) e ainda Touriga Nacional.

Nos vinhos ora apresentados, o Verdelho corresponde a 5000 garrafas, é só feito em inox com bâtonnage sobre borras; do rosé são 3500 garrafas. Achámos que fazia sentido ter um rosé, não havia no portefólio”, diz António Braga. Já do Herdade do Gamito branco foram feitas 13 000 garrafas. A abordagem enológica iniciou-se na vindima de 2022, tendo influência directa já nos vinhos deste ano e também nos lotes finais das colheitas anteriores. Também houve mudança ao nível do desenho dos rótulos: a nova imagem acentua o lado granítico da do terroir da Herdade do Gamito. Na base da pirâmide dos vinhos ali produzidos, está a marca Terras do Crato
Para o futuro, em termos de perfil dos vinhos, António Braga é claro: “queremos mais tensão, queremos acentuar um pouco mais o lado dos taninos e da frescura e passar a ter menos preocupação com a cor e a concentração”. O crescendo de ambição estende-se igualmente, e de forma natural, ao conjunto do negócio, seja do Gamito, seja da totalidade das empresas que fazem parte do universo Abegoaria. “O nosso objectivo para 2024 é que 50% de toda a produção se destine à exportação, já que acreditamos que esse é o caminho que nos porá a salvo de sobressaltos do mercado interno”, remata Manuel Bio.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Madeira Wine Company: Novidades e velhidades Blandy’s

Madeira Wine Company

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776. Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não […]

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776.
Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não favorecem o amadurecimento das uvas. Os terrenos são muito férteis, as temperaturas moderadas, as altitudes elevadas. Por outro lado, a acidez é excepcional, e, ao amuar a fermentação com álcool vínico a 96%, nasce um vinho que, sendo envelhecido em velhos cascos de madeira e sujeito às condições climáticas dos velhos sótãos, se torna indestrutível. A Blandy’s é uma empresa familiar, com mais de 200 anos de história na ilha, hoje dentro do universo da Madeira Wine Company, mas sempre com gestão familiar, desde 2010 personificada em Chris Blandy, jovem de 40 e poucos anos.

Gerir uma empresa antiga de Vinho Madeira é gerir um tecido de incrível complexidade. Na apresentação dos novos lançamentos, no restaurante Kabuki, em Lisboa, Chris e o seu enólogo principal e master blender, Francisco Albuquerque, foram sempre citando números: “De Bual há 14ha na ilha, com 104 viticultores na Calheta. A MWC tem 1 ha”. “A Madeira tem 22ha de Sercial, são 125 produtores”. E continuando. Vocês percebem, é só fazer as contas, como dizia o António Guterres. É preciso gerir as nossas vinhas, decidir os tratamentos e datas de colheita, acompanhar as vinhas dos outros (muitas dezenas de) viticultores, colher e separar todas as parcelas, com as castas separadas, já que na Madeira cada casta é também um estilo de vinho.

Francisco Albuquerque, que começou a carreira na Blandy’s em 1990 (e aliás, começou imediatamente a mudar o sector) disse-nos que experimentou fazer algumas castas ao estilo de outras (ou seja, com o nível de doçura “errado”) e descobriu que o resultado era horrível. Diz ele: a doçura está bem assim: Sercial seco com um máximo de 60g de açúcar por litro, Verdelho meio-seco com 60 a 75g de açúcar, Bual meio-doce com 75 a 100g e Malvasia doce com mais de 125g.

Mais um problema: fazer chegar as uvas ao Funchal. Muitas vinhas são em sítios bastante isolados. Há imensa pressão demográfica na Madeira, com apenas 13,5% dos terrenos com declives inferiores a 16%, as vinhas têm de lutar pelo seu espaço contra os hotéis e as habitações. Felizmente, a viticultura tem evoluído e os porta-enxertos aguentam cada vez mais altitude. 80% da ilha da Madeira está acima dos 700m.

Mas a complexidade não termina aqui: feitos os vinhos há que envelhecê-los. E segundo Albuquerque, o sítio onde fica o armazém de envelhecimento também determina o estilo dos vinhos. A Blandy’s tem 16 armazéns de envelhecimento, e em cada localização, as diferentes castas desenvolvem de forma diferente os ácidos orgânicos que dão ao Madeira o seu carácter. Por exemplo, o Caniçal é mais húmido do que o Funchal e há castas que envelhecem lá melhor. É preciso diminuir os factores aleatórios para manter o estilo de cada vinho.

Depois de mais de 30 anos de trabalho, Francisco Albuquerque conseguiu pela primeira vez fazer 4 vinhos do mesmo ano, os 2010 hoje apresentados. Para além desses, viajámos um pouco no tempo para provar alguns vinhos históricos, e comparar estilos da Blandy’s com a sua marca-irmã, Cossart-Gordon. Ao jantar, mais desafios: o IG Madeirense (“de mesa”) Atlantis, Verdelho da Fajã da Ovelha, feito em parceria com Rui Reguinga, e a provocação de harmonizar vinho Madeira com os pratos da cozinha japonesa, uma proposta desenhada com a ajuda de Victor Jardim, escanção do Kabuki e também ele madeirense. Sashimi de atum com Sercial, toro com Sercial e Verdelho, wagyu com Bual. Aposta ganha, num dia em que honrámos as tradições da Madeira com os seus vinhos de enorme delicadeza, etérea profundidade e eterna longevidade.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Arnozelo vs. São Luiz: os bons confrontos

Sogevinus

É sempre entusiasmante receber um convite destes: “Olha, podes no dia tal? Vamos fazer uma prova vertical de Quinta do Arnozelo e Quinta de São Luiz.” Acendem-se logo os sonhos. Estas poucas palavras, mais o autor do telefonema, colocam na mente do velho crítico os contextos todos em zoom próximo: falamos de Vinho do Porto; […]

É sempre entusiasmante receber um convite destes: “Olha, podes no dia tal? Vamos fazer uma prova vertical de Quinta do Arnozelo e Quinta de São Luiz.” Acendem-se logo os sonhos. Estas poucas palavras, mais o autor do telefonema, colocam na mente do velho crítico os contextos todos em zoom próximo: falamos de Vinho do Porto; falamos do grupo Sogevinus, aglutinador de algumas das mais antigas e prestigiadas marcas do sector; falamos da Burmester, pequena empresa de ourivesaria vínica, onde a Quinta do Arnozelo, no Douro Superior, zona da Ferradosa, é das mais acarinhadas; falamos da Kopke, a mais antiga empresa do sector, com fundação no século XVII (1636, a Burmester é muito mais recente, de 1750…), e da sua jóia maior, a Quinta de São Luiz, na frente de rio entre o Pinhão e a Régua. A palavra vertical é já mais ambígua, visto que nestas empresas específicas poderíamos estar a falar de uma prova de vinhos de vários anos e alguns deles poderiam ser muito, muito antigos, com mais de 100 anos. Mas a desambiguação vem da palavra “Quinta” e aí cheira-nos a Porto Vintage, em particular, a Single Quinta. No sector, nos melhores anos o Vintage é feito com a fórmula de misturar os vinhos de várias origens e quintas, originando os Porto Vintage normalmente chamados de clássicos. Single Quinta significa os outros anos, nos quais a longevidade poderá não ser tão prometedora, mas isso é compensado por uma maior ênfase no conceito de “terroir”, a origem geográfica dos vinhos, e também, porque não admiti-lo, por preços de venda mais moderados, e uma maior acessibilidade na sua evolução. Costuma-se resumir isto tudo na fórmula: vinhos para comprar e ir bebendo enquanto esperamos que os anos clássicos cheguem ao seu melhor, depois de pacientemente conservados no escuro e no frio. Tudo isto está já na minha cabeça quando dou a reposta óbvia: “sim, claro que vou, com muito prazer.”

 

Kopke fundada em 1638, Burmester fundada em 1750. Aqui, falamos da história do vinho do Porto.

 

O prazer ainda é maior quando chego ao pé da Ponte Luiz I e entro na belíssima cave que a Burmester tem em Vila Nova de Gaia, ali rente ao rio Douro. O edifício é comprido e desdobra-se em sucessivas salas, paredes de granito, vistas e entrevistas do Douro e do Porto. Lá no fundo, espera-nos o staff da Sogevinus, uma textura de copos, uma promessa de complexidade e prazer. Mistério agora completamente decifrado, não há surpresas, há uma mini-vertical paralela de Burmester Quinta do Arnozelo e Kopke Quinta de S. Luiz, Vintages dos anos 2009, 2012, 2015, 2019, e a apresentação ao público do 2021.

A Quinta do Arnozelo foi adquirida pela Burmester em 2004, e fica na fronteira entre o Douro Superior e o Cima Corgo. Tem 200ha dos quais 93 têm vinha. Tem ainda 38 de olival, 6 de amendoal, 2 de citrinos e mata. O encepamento foca-se na Touriga Nacional e Touriga Franca, as altitudes vão dos 110 aos 520m, e recentemente foi instalada rega para encarar os desafios climáticos. São Luiz fica no coração do Cima Corgo, na margem Sul do Douro, mesmo em frente à estação do Ferrão. Tem 125ha, dos quais 90 têm vinha, e a sua altitude vai dos 80 aos 450m. As suas vinhas são anteriores a 1930, com renovação do encepamento nos anos 1980. A sua exposição a Norte, com talhões também a Noroeste e Nordeste confere aos vinhos uma particular frescura ácida.

 

Burmester Quinta do Arnozelo e Kopke Quinta de São Luiz: os Porto Vintage 2021 da Sogevinus.

 

Cada ano é um ano, e cada provador um provador. Como disse acima, estes single quinta permitem-nos uma visão mais precoce da sua evolução, e alguns dos vinhos estavam já muito acessíveis. Mas os Vintages jovens dão também muito prazer, e em todos os vinhos encontrei qualidades para encarar uma tarte de maçã, um brownie de chocolate, ou uma tábua de queijos. Para os amantes de desporto, e encarando cada ano como um confronto amigável, direi que o Kopke ganhou 4-2.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Quinta do Barbusano: Na ilha, entre a floresta e o mar

Barbusano

Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a […]

Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a oportunidade de visitar a ilha da Madeira, sobretudo a parte norte, não é preciso ler muito sobre isto, é ela que nos mostra. A floresta Laurissilva, que ocupa cerca de 20% do território da ilha (aproximadamente 15 mil hectares), apresenta-nos uma paisagem de um verde intenso que se estende em altitude, numa presença imponente e mística, carácter que se acentua quando é abraçada pelos nevoeiros frequentes das manhãs húmidas e nubladas (quando a ilha está de “capacete”, como dizem os madeirenses…). No município de São Vicente, a Laurissilva — que se divide em três “comunidades” distintas — assume o nome Laurissilva do Barbusano, inspiração para a identidade da Quinta do Barbusano, que tem a floresta como pano de fundo, até aos 450m, e uma vista privilegiada para a capelinha de Nossa Senhora de Fátima, um dos símbolos de São Vicente, situada no topo de uma colina. A caminho da quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo, com um V formado por duas escarpas. V de verde, V de Verdelho.

 

O início

António Oliveira, natural de São Vicente, fundou a Quinta do Barbusano em 2006. Antes de fazer vinho ou de ter vinhas, trabalhava com produtos fitofármacos, numa empresa própria que os vendia aos produtores de uva e dava todo o tipo de apoio aos mesmos. Tinha, ainda, outra empresa de preparação de terrenos e plantações agrícolas. Paralelamente, era — e ainda é, embora em menor escala — “ajuntador de uvas”, conceito muito peculiar: as grandes empresas de vinho Madeira têm, em todos os concelhos da Madeira, alguém que fala com os viticultores para entrega de uvas. É como ter uma pessoa de confiança total, encarregue de ser mediador de uvas, entre os viticultores e a empresa. “Há mais de 30 anos que faço esse trabalho e continuo a fazê-lo, mas apenas para a Blandy’s. Nenhuma uva lá entra sem passar por mim e pela minha decisão”, explica António. Entretanto, durante um trabalho que estava a levar a cabo numas vinhas, desafiou o proprietário das mesmas a fazer com ele “algo diferente” em São Vicente, e foi aqui que arrancou o projecto do Barbusano.

 

BARBUSANO

 

Paulo Laureano foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado no arquipélago da Madeira

 

 

Na ilha da Madeira, há poucos produtores a fazer vinho não fortificado, e António Oliveira não só é um deles como é, hoje, o maior de todos. Os produtores mais conhecidos de vinho Madeira generoso — como Madeira Wine Company (Blandy’s), Barbeito ou Justino’s — têm as suas marcas de DOC Madeirense e elaboram estes vinhos nas respectivas adegas. Os restantes, incluindo o próprio Barbusano, utilizam a Adega de São Vicente, uma adega “comunitária” criada pelo Instituto do Vinho da Madeira (actual IVBAM – Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira), que presta serviços de vinificação, sob supervisão de um enólogo residente. Até à última vindima, os produtores a utilizar os serviços desta adega, para vinho não fortificado, eram cerca de 12.
Foi precisamente pela existência desta adega que António conheceu Paulo Laureano, hoje enólogo consultor da Quinta do Barbusano. Paulo foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado na Madeira, tendo sido também o primeiro enólogo consultor do Governo Regional, quando da criação da Adega de São Vicente. No projecto do Barbusano, está desde o início. “O Paulo conhece muito bem o terroir da Madeira, os solos, as castas, a maneira de trabalhar dos viticultores, e isto é tudo muito importante”, refere António Oliveira.

As vinhas do António

António é também o maior proprietário de vinha da ilha, com parcelas em várias zonas. A Quinta do Barbusano está rodeada por 12 hectares maioritariamente de Verdelho, a uva em que se focam os brancos do projecto, com alguma Tinta Negra que vai para o rosé. Tudo vinha conduzida em latada. “Na altura, estes 12 hectares tinham 88 parcelas pertencentes a 56 donos. Tive de negociar com todos eles e foi muito difícil”, revela o produtor. “Foi tudo feito em três fases, devido ao capital que era necessário, em primeiro lugar, e em segundo, eram terrenos abandonados, e quando as pessoas começaram a ver ali interesse, plantações e luz, o valor das parcelas circundantes subiu muito”, lembra. Depois de criar a base em São Vicente, António Oliveira alugou terrenos no Arco de São Jorge, parcialmente abandonados, para plantar 2,5 hectares de vinha com uma uva branca de que tinha falta, a Arnsburger (casta trazida da universidade alemã de Geisenheim para a Madeira e que funciona aqui muito bem em lote); outro hectare em Ponta Delgada, com Verdelho e Arnsburger; e na Ribeira da Janela, em Porto Moniz, tem entre 6 e 7 hectares com as tintas Touriga Nacional e Aragonez. Estas duas vão para os vinhos tintos da casa que, apesar de não serem a estrela do produtor (nem da Madeira, na verdade…), “o mercado local pede muito”, diz António. Mas antes de tudo isto estar operacional, durante os primeiros quatro anos, os vinhos do Barbusano foram feitos com uvas compradas. O primeiro de todos originou apenas 4 mil garrafas. Hoje, a empresa já produz 100 mil por ano, incluindo um espumante 100% Verdelho, bem interessante, feito com leveduras livres e remuage manual. Há pouquíssima produção de espumante na Madeira, mas “estão a surgir pequenas produções”, segundo António, que investiu agora no equipamento para dégorgement, que antes tinha de alugar no continente e transportar para a ilha.

 

A caminho da Quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo., com um V formado por duas escarpas.

 

O projecto do Porto Santo

Um dos grandes canais de venda dos vinhos Barbusano é o próprio enoturismo da quinta, que desde 2018 recebe sobretudo turistas estrangeiros que procuram experiências vínicas autênticas. E quando se fala em autênticas, é mesmo assim, porque para os que escolhem o programa de provas com almoço, é quase sempre António que está na grelha a fazer as famosas (mas fiéis) espetadas madeirenses.
Porém, com a chegada da pandemia em 2020, a Madeira, que vive do turismo, parou totalmente e, consequentemente, pararam também as vendas. “Estava toda a gente com medo de viajar para outros países, e os portugueses viraram-se para a ilha do Porto Santo. Começaram a dizer-me, ‘vai para o Porto Santo, está a encher e lá vais conseguir vender o vinho’. Assim fiz, e consegui arranjar clientes”, confessa António Oliveira. Como era altura das vindimas, acabou por visitar várias vinhas, a ideia de fazer vinho nesta ilha começou a surgir, e o produtor acabou por consultar João Pedro Machado, enólogo residente da Adega de São Vicente, sobre a viabilidade da casta Caracol, a uva branca da ilha. António recorda: “A opinião dele era que, a solo, não acreditava muito nela, mas que combinada com Verdelho poderia dar um vinho excelente. Verdelho já eu tinha na Madeira, faltava-me o Caracol. Quando falámos com os viticultores do Porto Santo, nessa altura, disseram-me que já estava tudo vendido, e eu aceitei e vim-me embora. Passados uns dias, recebo uma chamada de um deles, a perguntar se eu ainda estava interessado nas uvas. Eu disse que sim, e regressei com o João Pedro ao Porto Santo para ver as ditas uvas e avaliar o estado de maturação. Decidimos comprá-las e, depois de vindimadas, trouxemo-las para a ilha da Madeira”. Note-se que, no ferry que faz a travessia Porto Santo-Funchal, transportar um camião de uvas custa mais de mil euros. A juntar aos mais de quatro euros/quilo que custa a uva Caracol… comprar uvas em Porto Santo fica tudo menos barato. Foi assim que surgiu o primeiro vinho Fonte d’Areia 2021, que juntou Caracol (51%) a Verdelho. “À terceira ou quarta prova do vinho, percebi que ou simplesmente beberíamos uns copos com ele, ou teria de começar a produzir uvas no Porto Santo. O resultado é que já estou com dois hectares próprios de vinha, e planos para plantar mais 1,5 em 2024. À partida, fico-me por aqui”, avança António Oliveira. Além de Caracol (que já entrou numa segunda e bastante melhorada edição do Fonte d’Areia, de 2022) estes dois hectares têm algumas parcelas de uvas tintas, como Syrah, Trincadeira ou Castelão.

O Porto Santo traz outra enorme vantagem ao portefólio do produtor: diferenciação. Ainda que a menos de 70 km de distância entre si, as ilhas da Madeira e Porto Santo poderiam estar em hemisférios distintos. Enquanto alguns locais da Madeira lembram partes do Brasil, com os morros cobertos de vegetação verde e clima húmido subtropical, quem caísse de para-quedas no Porto Santo pensaria estar no norte de África, com colinas áridas despidas de árvores, clima quente e muito seco. A escassez de água e o solo arenoso marcam profundamente a viticultura no Porto Santo, tendo influência decisiva no perfil dos vinhos. E, quem sabe, abrindo uma janela de oportunidade às castas tintas que António Oliveira pretende aproveitar.
O projecto Barbusano continua a crescer e a procura a aumentar. Também por isso, o produtor decidiu fazer uma mudança na imagem dos vinhos. “Os rótulos já vinham de 2008 e estavam muito cansados. Tudo isto tem custos e nós preocupamo-nos, obviamente, também com esta componente, mas, sobretudo da minha parte, há uma ainda maior preocupação pelo que coloco dentro das garrafas. Mas chegou a hora de o fazer e também de lançar novos vinhos”, adianta António. Quanto a próximos objectivos, a vontade é chegar ainda este ano às 150 mil garrafas. Fazer mais espumante é também um desejo, e para isso foram recentemente plantadas Baga e Loureiro na quinta, para bases de espumante.
Pelo que provámos, os vinhos brancos da Madeira são algo muito sério (aqui, palmas para a uva Verdelho), com um potencial nervoso e a pedir para serem mais explorados. A visita a uma garrafa de Barbusano Verdelho branco 2011 confirmou-o, deixando todos de queixo caído. Será esta uma das “next big things” da cena vitivinícola portuguesa?

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)