Barbeito: Cascos únicos, vinhos únicos
Já descrevemos nesta revista o fantástico percurso de Ricardo Diogo Barbeito, que pegou na empresa familiar em que nasceu e a transformou numa das marcas mais dinâmicas do Vinho da Madeira. Apesar da notoriedade alcançada, é um homem discreto que não procura as luzes da ribalta e raras vezes faz aparato aquando do lançamento dos […]
Já descrevemos nesta revista o fantástico percurso de Ricardo Diogo Barbeito, que pegou na empresa familiar em que nasceu e a transformou numa das marcas mais dinâmicas do Vinho da Madeira. Apesar da notoriedade alcançada, é um homem discreto que não procura as luzes da ribalta e raras vezes faz aparato aquando do lançamento dos seus magníficos vinhos. Por isso foi com redobrado prazer que estivemos no lançamento recente de, nada menos, nada mais, 6 novos vinhos da Barbeito.
Foi o primeiro na ilha a engarrafar “cascos únicos, por regra uma ou duas vezes por ano. Agora também pela primeira vez, lançou seis ao mesmo tempo e alguns deles com vinho de uma só vinha…
Como não poderia deixar de ser, quando falamos de Ricardo Diogo, não se trata de vinhos sem contornos diferenciadores… São todos lançamentos da sua gama “casco único”, ou Single Cask, uma gama criada pelo produtor com assumida inspiração no exemplo das bebidas destiladas, com o whisky à cabeça. O conceito encaixa na perfeição no perfil de um produtor que gosta de produzir pequenas quantidades e de ir lançando vinhos com alguma regularidade, em alguns casos algumas vezes ao ano. O cuidado e afinação de cada casco é uma paixão do produtor, não sendo de estranhar que o rótulo de cada vinho identifique o número do casco e o, ou os, armazéns em que o vinho foi envelhecido. Com efeito, na Barbeito, cada vinho é envelhecido atendendo ao seu perfil individual, não sendo raros os casos em que, por determinado vinho precisar de maior vivacidade, acabar por ser transportado para outro local mais fresco do armazém.
Outras vezes até, um casco passa por mais do que um armazém, sempre na busca do estilo que Ricardo Diogo pretende, ou seja, vinhos com boa acidez, tendencialmente secos e muito viçosos. Outra novidade é que quase todos os vinhos agora lançados provém de vinhas específicas, identificadas nos rótulos também, ou seja, o vinho engarrafado não resulta de um lote de diferentes vinhas, como tantas vezes sucede nos Madeira. Temos por isso um Tinta Negra de uma vinha plantada a sul da ilha acima dos 550 metros de altitude, e temos também um Sercial da costa norte junto à praia. E temos também um Malvasia Cândida da Fajã dos Padres (pois só ali ela existe) na costa sul e ainda um Verdelho, neste caso Frasqueira, de vinha em latada no Arco de S. Jorge no norte da ilha. Em comum a qualidade, o exotismo e a marca da frescura vibrante do produtor.
Destaque ainda para a degustação, durante uma refeição servida no final da prova, dos vinhos tranquilos da Barbeito, todos a merecer elogios, com destaque para o Vinhas do Lanço, um Verdelho da colheita de 2021, parcialmente estagiado em barrica, do qual foram produzidas menos de 800 garrafas. No final, o privilégio de beber um copo do Barbeito 50 anos Três Amigos, um extraordinário vinho, meio doce, com pouco mais de 500 exemplares engarrafados no final de 2022.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
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Barbeito Casco Único 103 A+C
- 1993 -
Barbeito Casco Único Vinha da Lage 530 D
Fortificado/ Licoroso - 2015 -
Barbeito Casco Único 198 E
Fortificado/ Licoroso - 2008 -
Barbeito Casco Único 40 D+E
Fortificado/ Licoroso - 2006 -
Barbeito Casco Único Vinha da Torre 22 E
Fortificado/ Licoroso - 2008 -
Barbeito Casco Único Vinha do Charlot 707 D+E
Fortificado/ Licoroso - 2005
Castelão: O príncipe de Palmela
Castelão, o resultado do cruzamento natural do Alfrocheiro e Cayetana Blanca (conhecida também como Sarigo e Mourisco Branco), é uma das variedades mais antigas em Portugal, mencionada desde 1531 na zona de Lamego. Foi também conhecida como Castelão Francês (e não tem nada a ver com Castelão Nacional, que é Camarate), entre outras sinonímias menos […]
Castelão, o resultado do cruzamento natural do Alfrocheiro e Cayetana Blanca (conhecida também como Sarigo e Mourisco Branco), é uma das variedades mais antigas em Portugal, mencionada desde 1531 na zona de Lamego. Foi também conhecida como Castelão Francês (e não tem nada a ver com Castelão Nacional, que é Camarate), entre outras sinonímias menos populares.
Actualmente, o IVV reconhece dois sinónimos com restrições regionais – João de Santarém na DO DoTejo e Periquita, que está intrinsecamente ligado à sua história na Península de Setúbal. Tem a ver com a propriedade Cova da Periquita, em Azeitão, onde foram plantadas as primeiras varas por José Maria da Fonseca nos meados do século XIX. A casta adaptou-se lindamente à região e afirmou-se como parte da sua identidade no que toca aos vinhos tranquilos. Na segunda parte do século passado, o encepamento tinto representava 90% da área total da vinha da Península de Setúbal, dos quais 95% era Castelão. Ainda hoje, a DO Palmela exige 66,7% de Castelão no lote. Tirando a DO Colares com Ramisco, é a maior expressão identitária oficialmente estipulada de uma casta tinta no seu terroir de excelência.
Entretanto, o reinado na vinha não se reflectiu no sucesso comercial, por variadíssimas razões, algumas mais objectivas e óbvias do que outras. Como sempre, nestas situações as castas estrangeiras e nacionais de outras regiões parecem uma salvação. Hoje é preciso ser um entusiasta para preferir uma casta rústica e tradicional às alternativas modernas. E felizmente há produtores que reconhecem as qualidades do Castelão e apostam na casta – Casa Horácio Simões, Quinta do Piloto, Sociedade Vinícola de Palmela (SVP) e um projecto conjunto com marca Trois. A SVP, directa ou indirectamente ligada aos outros projectos citados, organizou a masterclasse dedicada à casta.
Mesmo com significativo declínio em plantação, os dados mais recentes do IVV indicam que Castelão, com cerca de 3600 ha, é responsável por 44% das vinhas na Península de Setúbal. É a região com mais Castelão em Portugal.
Luís Mendes da Associação de Viticultores do Concelho de Palmela (AVIPE) contou que, de acordo com o registo da região, existem vinhas de todas as idades, incluindo 26 ha de vinhas velhas, com cerca de 90 anos, plantadas na década de 30 do século passado e 35 ha com idade média de 80 anos. A maior parte (quase 35%) das vinhas presentes hoje na região, foi plantada na última década do século passado, um pouco menos a partir de 2000 e daí para frente a casta perde terreno. Entretanto, se há 10 anos era típico plantar Syrah em vez de Castelão, agora esta tendência travou. Curiosamente (e é bom sinal), há mais gente na região a plantar Castelão; e alguns substituem as cepas velhas por novas, utilizando o material policlonal, exemplifica Luís Mendes.
O senhor das areias
A serra da Arrábida cria a barreira física para os ventos do Norte e canaliza-os em direcção a Palmela. Os rios Tejo e Sado contribuem com humidade nocturna. A proximidade do mar reflecte-se em nevoeiros que trazem frescura e também humidade. Luís Mendes exemplifica que no verão, por vezes, as temperaturas podem chegar aos 40°C de dia e cair até aos 18°C à noite. Juntamente com humidade isto permite a planta a equilibrar-se em termos hídricos.
Da Palmela a Pegões, a maior parte do Castelão, incluindo as vinhas velhas, encontra-se plantada nas planícies com solo de origem arenosa, onde as uvas amadurecem bem. São poucas as plantações que ocupam os terrenos de argilo-calcário nas encostas da Serra da Arrábida. A vindima normalmente ocorre na segunda-terceira semana de Setembro e dura até a primeira semana de Outubro. Na Serra da Arrábida a maturação é mais tardia 1 semana. A janela de oportunidade de vindima no caso de Castelão é relativamente confortável.
O Castelão resiste bem às amplitudes térmicas e à falta de água o que faz uma óptima correspondência com as condições da região. Muitas das vinhas velhas não são regadas, nas vinhas mais recentes a rega é comum. O solo arenoso é pobre e esvazia-se de água muito rapidamente, mas em algumas zonas as toalhas freáticas ajudam a salvar a situação, desde que a planta consiga fazer crescer as raízes (o que se verifica nas vinhas mais velhas, bem enraizadas).
Castelão é uma casta muito produtiva, sem controlo facilmente ultrapassa os 15 tn/ha. Como é natural, esta característica fica condicionada com idade da planta. As vinhas velhas produzem cerca de 3-4-5 tn/ha, dependendo dos clones envolvidos e das características do terreno. Os solos arenosos geralmente têm menos capacidade de retenção de água e nutrientes em comparação com solos argilosos, limitando naturalmente a produtividade e promovendo maior concentração nos bagos.
Em termos agronómicos, o calcanhar de Aquiles do Castelão é a sua grande sensibilidade ao desavinho. Também é sensível à Cigarrinha Verde, uma praga móvel, difícil de controlar que ultimamente tem dificultado muito a viticultura na região. Foi referido que, apesar de ter a película rija, os cachos sofrem bastante com escaldões. No entanto, aguenta melhor a conservação do cacho do que a Trincadeira.
Visitámos uma vinha antiga plantada entre 1954 e 1956 que pertence à Casa Agrícola Monte dos Pardais, uma das sócias da SVP. No solo tipicamente arenoso, erguem-se os troncos não aramados de vigor evidente, que mesmo na altura pós-vindima com a vinha despida se apresentavam bastante imponentes. O compasso de 2,70-2,80 m permite a passagem de um trator para fazer os tratamentos fitossanitários, enquanto outras operações não podem ser mecanizadas, devido à condução da vinha. Ao contrário das vinhas novas, onde a zona de frutificação fica a 70-80 cm do solo, nesta vinha velha, os cachos não se afastam do solo mais de 40 cm o que, obviamente, dá mais trabalho, mas afecta beneficamente a maturação. Esta vinha dá 6-8 tn/ha – nada mal para uma vinha com mais de 60 anos.
Versatilidade comprovada
A prova, comentada por Filipe Cardoso (sócio/enólogo da SVP e da Quinta do Piloto), José Nuno Caninhas (enólogo da SVP) e Luís Simões (sócio/enólogo da Casa Horácio Simões e director geral da SVP), foi bem didáctica, permitindo sentir a versatilidade de Castelão em função das proveniências e abordagens enológicas.
Começámos por provar as amostras desta vindima de 2023. As duas primeiras foram da Casa Horácio Simões, provenientes das vinhas com 60-70 anos de sítios diferentes. Uma da vinha Cachamurrão numa zona mais fresca localizada na Serra do Louro, que leva com ventos do Norte. Outra da vinha das Oliveiras junto a Palmela, de uma zona mais abrigada e mais quente. A vinificação foi igual – em lagar com pisa a pé e com 30% de engaço. O primeiro vinho é mais imediato, de grande limpeza aromática já nesta fase (ainda não finalizou a maloláctica), taninos mais verdes, mais perfumado, com menos concentração e acidez um pouco dura no final de boca. O segundo com mais tanino maduro e mais estrutura. O vinho final é sempre o lote dos dois, proporcionando o equilíbrio.
O terceiro vinho era da vinha mais nova, com 25 anos, da Quinta do Piloto, vinificado em cubas argelinas, onde durante a fermentação as remontagens são feitas aproveitando a pressão criada pela libertação do dióxido de carbono, sem o recurso a bombas. Estava um pouco reduzido, mas com óptima estrutura de tanino, equilíbrio e textura. “Temos que arriscar até ao final da fermentação maloláctica para não tirar o vinho a limpo, tem que ficar com a borra toda” – explicou Filipe Cardoso. Seguiu o Castelão das areias da vinha que vimos hoje. Tanino mais proeminente, ligeiro CO2 ainda, mais corpo, notas de fruta preta com destaque para amora.
O quinto vinho foi do projecto Trois, com um conceito próprio. É um pas de trois dos produtores, enólogos e amigos de longa data: Filipe Cardoso, Luís Simões e José Caninhas. Para além da amizade, une-os a predileção por Castelão. Tudo a multiplicar por três – três terroirs (das areias e da serra), três barricas diferentes, três vinificações, que no final resultam num vinho especial. O 2021 ainda não está no mercado e encontra-se numa fase intermédia a precisar de garrafa, consideram os produtores. Só é lançado quando estiver pronto. Bela fruta e elegância no nariz, barrica já está bem integrada, um apontamento vegetal q.b. para acrescentar a complexidade, não há muita secura de tanino. Suculento, elegante, fresco, delicioso. Percebe-se que o estágio em garrafa lhe vai dar mais integração geral.
Península de Setúbal é a região com mais Castelão em Portugal.
Os próximos dois vinhos da Sociedade Vinícola de Palmela já se encontram no mercado. No Serra Mãe 2020 o objectivo é enfatizar os aromas da casta. A influência da madeira é muito reduzida neste caso: apenas para melhorar a percepção geral do vinho, o pH é mais alto para não dificultar a prova. O produtor vê o vinho como “mais democrático, mas belo exemplo de casta”, como refere Luís Simões. Arbusto, groselha, framboesa e novamente arbusto com flores. Bem feito, não perde identidade, nem rusticidade, mas apresenta também algumas características facilitadoras. Funciona como uma porta de entrada para o consumidor menos experiente.
O Serra Mãe Reserva 2020 tem origem na vinha mais antiga, com 12-14 meses em barrica, sendo 10-20% barrica nova que o vinho aguenta bem graças à maior extracção. Aqui já exploraram a rusticidade, algumas rugas de tanino ficam-lhe bem. Notas carnudas, especiaria, estrutura, mas não há muita untuosidade, é enxuto, atlético, com óptima acidez. É claramente para outro tipo de consumidor.
Esta vinha dá origem ao Botelharia 2017, com o estágio mais prolongado em garrafa. Foi engarrafado em 2019. Mentol, eucalipto, esteva bem presentes no aroma para além da fruta. O volume de boca corresponde à textura, não peca por falta de frescura, musculado, mas não é difícil, até é bem sedutor e envolvente.
O Trois 2015 está no momento óptimo para beber, um Castelão feito propositadamente para ser consumido mais tarde. Tanino domesticado; complexo, mentol, cânfora, ainda fruta fresca (ameixa e cereja), cominhos, terra. De grande polimento e ainda com muita pujança. Secura elegante do tanino a pedir proteína, mas não a encortiçar a boca.
O Horácio Simões Reserva 2014, de um ano difícil com chuva na vindima, mostrou-se distinto e cheio de carácter com mentol, fruta negra, ameixa, ervas aromáticas, manjericão, tabaco e chá na vertente aromática; tanino com certa dureza, mas com os ângulos já arredondados, o que sabe bem com a frescura que o vinho apresenta. Não é pujante, sabe a vinho com certa rusticidade, bonita e bem-vinda. Óptima acidez. Clássico.
O Quinta do Piloto Reserva 2014, também feito em cubas argelinas, com 40% de engaço para fixar as antocianas, por isso a cor ainda está muito viva. Castanhas, notas mentoladas e terrosas. Contido no sabor, sendo bem vocacionado para comida.
O Quinta do Piloto Reserva 2012, foi o primeiro vinho com a marca desta propriedade. As temperaturas no verão foram sem excessos, vindima normal a partir da segunda semana de Setembro. Vinhas velhas. Barrica nova 100%. Este vinho resultou também num late release como Garrafeira 2012. Nos bons anos guardam-no para mostrar a capacidade de envelhecimento do Castelão. Muito especiado, com cravinho, tabaco, couro, eucalipto e alecrim. Tanino a agarrar as gengivas, bem seco, menos fruta, mais vegetal, couro e especiaria no final.
O Serra Mãe 2012, feito em balseiro e barricas usadas. Não foi dos mais harmoniosos no nariz, apresentando algumas notas de ferrugem; acidez bem marcante coloca o vinho fora do consenso. O Serra Mãe 2005 era o quarto vinho desde o início do projecto em 1999. Antigamente só o faziam em anos de topo. Tem bela complexidade aromática, mirtilo, mentol, eucalipto, tabaco. Vivo, denso, impetuoso, com tanino potente, rústico e robusto, com uma elegância própria que ganhou com idade.
Dentro da versatilidade da casta, deve existir uma segmentação clara e uma mensagem correcta ao consumidor.
O que fica do Castelão?
A masterclasse proporcionada pela SVP-Sociedade Vinícola de Palmela a um grupo de jornalistas e profissionais HoReCa cumpriu por inteiro, oferecendo uma visão abrangente sobre o passado, presente e futuro da casta, na vinha, na adega, no mercado.
Historicamente, enquanto o Castelão mais polido e com menos cor levava ao desinteresse do consumidor e do produtor, o Castelão mais rústico e com carácter chegava ao mercado cedo demais. No entanto, a casta é tremendamente versátil e, quando plantada nos locais certos, muito consistente na sua qualidade. Mas dentro da sua versatilidade, deverá existir uma segmentação clara desde a vinha à abordagem enológica, pois para conquistar novamente o consumidor é necessário ter foco na mensagem. Quem procura vinhos mais fáceis, prontos e confortáveis tem de os ter, até porque a casta presta-se muito bem para isto. E quem busca os tintos sérios, personalizados, estruturados e longevos, mas sem nunca perder elegância, frescura e sofisticação, tem no Castelão de Palmela uma variedade com imenso potencial. Os vinhos estão aí a demonstrá-lo.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
Costinha: Nem só de bola viverá o homem
“Como bom português, a gastronomia é algo de que não fico à margem”. Após uma vida profissional de conquistas futebolísticas, é esta frase que nos faz respeitar Costinha, nascido em 1974, em Lisboa. “Gosto muito de comer e tenho a felicidade não só de ser português, mas de haver em Portugal uma gastronomia bastante variada […]
“Como bom português, a gastronomia é algo de que não fico à margem”. Após uma vida profissional de conquistas futebolísticas, é esta frase que nos faz respeitar Costinha, nascido em 1974, em Lisboa. “Gosto muito de comer e tenho a felicidade não só de ser português, mas de haver em Portugal uma gastronomia bastante variada e muito boa”, diz-nos, assumindo que também isso facilitou a inclinação para o vinho.
Antes de ir para França — para jogar no AS Monaco, em 1997, com 22 anos — não consumia vinho regularmente, mas quando lá chegou, beber vinho às refeições e provar coisas diferentes passaram a ser hábitos frequentes. Foi aí que bebeu o primeiro vinho francês, que ainda hoje é um dos seus favoritos, Le Petit Cheval, um Saint-Émilion Grand Cru. Até aí, o percurso tinha sido feito pelo lisboeta Oriental e pelos madeirenses Machico e Nacional. Mais tarde, já no FC Porto, onde jogou de 2001 a 2005, Costinha teve também um momento de viragem em relação ao vinho. “Quando a minha esposa, a Carla, conheceu a esposa do Domingos Paciência, fomos jantar a casa deles. Nessa altura, eu ainda não o conhecia muito bem, mas queria levar um vinho e resolvi ir a uma loja comprá-lo. Cheguei à loja e fiz o que muita gente que não tem conhecimentos sobre vinho faz, olhar para a marca e preço. Acabei por pegar num Esporão, e o dono da garrafeira perguntou-me porque é que tinha escolhido aquele vinho. Eu disse-lhe, sem vergonha, que não percebia nada do tema e queria levar uma coisa boa para um jantar de amigos, mas que achava que um Esporão ficava sempre bem”, conta. Pelos vistos, o proprietário do espaço não ficou satisfeito e incentivou o ex-jogador a levar uma garrafa do vinho australiano Rosemount Estate, bem mais barata do que a de Esporão. “Se não gostares, vens cá e eu ofereço-te uma caixa de vinho”, foi a promessa. Costinha regressou, efectivamente, à loja, mas para comprar três caixas do dito Rosemount Estate. “Em vez de me identificar como ‘fulano x’ e tentar vender-me as coisas mais caras, como acontece na maior parte das vezes, o dono desta loja sugeria-me sempre o que era mais adequado para a situação e dava-me a provar muitos vinhos diferentes, independentemente do preço. Começou também a convidar-me para provas ou jantares vínicos de vários países, e foi aí que eu ganhei um grande gosto por vinho e entrei nesse meio”, revela. E fê-lo assim, com pensamento crítico, que mantém até hoje.
Em jeito de desabafo, Francisco Costa confessa-nos: “Bebo vinhos nacionais muito bons, há bastante tempo, com um preço ridículo de baixo. É sempre uma coisa em que penso. Faz-me imensa confusão, sobretudo comparando com os preços e qualidade dos vinhos estrangeiros. E também me incomoda outra coisa. Vivi muitas vezes no estrangeiro; por exemplo, quatro anos no Mónaco, quatro em Itália, dois em Espanha, um na Rússia, e um ano na Suíça [quando foi director desportivo do Servette]; e viajo muito, e chateia-me abrir a carta de vinhos num restaurante e não haver uma referência portuguesa. Em Portugal, nos restaurantes, há, quase sempre, pelo menos três ou quatro referências de vinhos estrangeiros. Quer-me parecer que, enquanto produtores de vinho, não somos tão unidos na defesa dos nossos interesses e produtos, como eles são lá fora. Se calhar, devia haver também mais ajuda do Estado nesta área, sobretudo para os que criam valor. Mesmo ao nível da produção, é muito difícil arranjar mão-de-obra”, sublinha, antes de lembrar uma história mais positiva: “No ano passado fui a Roma e, num restaurante que me foi recomendado, havia uma garrafa de Soalheiro. Fiquei espantado. Chamei um funcionário e questionei-o sobre isso. Ele disse-me que um engenheiro romano, frequentador assíduo daquele espaço, tinha pedido o especial favor de haver sempre Soalheiro na carta…”.
Vinhos na garagem
Quando começou a acumular muitas garrafas de vinho, compradas e oferecidas, Costinha decidiu que tinha de lhes proporcionar um bom “alojamento”. Assim, em 2015, a empresa portuguesa Cave do Vinho construiu-lhe uma garrafeira de luxo, na garagem do seu prédio em Lisboa. A obra durou uma semana. “Vi a garrafeira da Niepoort na Quinta de Nápoles, em caracol, e gostei muito. Fui logo procurar a autoria”, descortina. Com um lado envidraçado e devidamente climatizado, o espaço ronda os 15m2 e apresenta as paredes em preto, que conferem elegância, estantes com as garrafas expostas na horizontal e em profundidade, e iluminação led integrada. Pelo chão, em pilhas, espalham-se as caixas cujos vinhos já não cabem nas prateleiras. Afinal, já passaram oito anos desde a construção da garrafeira, e os vinhos não param de chegar. Um olhar rápido basta-nos para perceber que há ali referências de praticamente todas as regiões vitivinícolas portuguesas, e de várias estrangeiras, rótulos de vários segmentos de preço, tudo coisas boas. Segundo Costinha, são mais de mil as garrafas que tem na sua cave, tintos em maioria. “Talvez por, à mesa, gostar de comidas pesadas, como feijoadas e assados, me incline mais para os tintos. Mas quando o branco é muito bom, adoro”, declara.
No que toca a perfis de tinto, prefere também os encorpados, e ao dizer isto, lembra-se de mais um episódio, no qual entra António Boal, produtor e amigo com quem partilha o projecto de vinhos 2 CC: “O António tem um vinho da casta Bastardo, e eu, pelo nome da casta, que me soava agressivo, pensei que fosse uma casta robusta. Fiz um assado. Pus o vinho no copo e parecia-me que estava diluído, tipo um Pinot. Achei que podia estar estragado e abri outra garrafa, que estava igual. Liguei ao António e ele explicou-me que o Bastardo ficaria melhor com uma pasta ou um risotto, e que não deveria beber aquele vinho com comidas muito fortes. Realmente, uma pessoa vai atrás de um estereotipo de palavras, e depois não tem nada que ver”, recorda. “Gosto muito dos tintos do Douro mas os de que eu gosto mais, talvez sejam os do Dão. Sempre achei que eram os mais parecidos com os vinhos franceses. Mas depois também bebo vinhos espectaculares do Alentejo, sobretudo Alicante Bouschet. A nível nacional temos, de facto, coisas divinais. Já lá de fora, gosto de um bocadinho de tudo”, afirma Costinha. Na sua garrafeira, tem marcas da Austrália, Nova Zelândia, Espanha, França, Itália, Argentina (a sua última descoberta, quando esteve em Buenos Aires), Estados Unidos (sobretudo Napa Valley), Chile e Uruguai. Curiosamente, a sua companheira não bebia vinho, mas hoje gosta bastante e tem, inclusive, uma garrafeira própria, com predominância de brancos, que são os de que mais gosta.
O motivo desta “separação de bens” é, no mínimo, cómico: “Certo dia, quando vivíamos em Madrid [Costinha jogou no Atlético entre 2006 e 2007], a Carla abriu um Le Petit Cheval. Cheguei às duas da manhã de um jogo, cansado, vi a garrafa ao pé do lava-louça com a rolha de fora, e pensei, chocado, que ela o tinha usado para cozinhar. Bebi o resto da garrafa nessa noite, para não dar mais hipótese, e depois ela explicou-me que recebeu umas amigas lá em casa, que eram namoradas ou mulheres de alguns colegas meus. Disse-me, ‘elas queriam vinho, então eu fui buscar uma garrafa e escolhi a que tinha o rótulo mais bonito’. A partir daí, comecei a comprar garrafas para ela, que são guardadas na sua garrafeira”, assume Francisco Costa.
De enófilo a produtor
Costinha conheceu António Boal, da Costa Boal Family Estates, num almoço de amigos regular, para o qual os participantes levam vinho. António tinha sido convidado nesse dia, e levou um vinho seu. “Achei que era um vinho baratíssimo, mas a verdade é que ‘deu um bigode’ aos outros todos, mais caros. Ficámos amigos a partir daí”, revela o futebolista. Entretanto, em 2018, António Boal convenceu-o a ir ver uma propriedade em Mirandela (na região de Trás-os-Montes, onde a Costa Boal nasceu) e convidou-o a entrar em negócio com ele. “Comprámos a vinha a meias e, a partir daí, fomos tratando do vinho em segredo, daí o nome do vinho Segredo 6 [o número da camisola que ostentou no FCP e na Selecção Nacional]. Ninguém soube de nada até sair, em 2022”. A vinha é velha, tem cerca de 83 anos e 3,5 hectares. “Fico sempre impressionado com a profundidade que a vinha tem, como guarda a água, o facto de ter xisto e quartzo no solo e as diferenças que isso confere aos vinhos… Estes pormenores fascinam-me, são tudo coisas novas que vou aprendendo. A minha cabeça está formatada para o futebol, mas a partir do momento em que entras neste mundo, tens sempre um espacinho no teu cérebro para ires colocando algumas informações, para que, quando vais falar sobre o tema, não sejas um total estranho na conversa. Gosto muito de saber. Sobretudo porque é uma coisa minha. E por ter este interesse é que não optei por ter simplesmente um rótulo com a minha assinatura numa prateleira de supermercado. Não digo que isso seja errado, mas eu estou investido nisto enquanto pessoa”, realça Costinha, que participa activamente no processo de produção dos seus vinhos. “Não há nada que não seja falado entre mim, o António e o Paulo Nunes [enólogo], e sou mesmo consultado, o que até acho piada. Eu pergunto-lhes ‘o que é que eu posso dizer que vocês já não saibam?’, e eles dizem-me que a minha opinião é importante e pode acrescentar ao que eles estão a pensar. Há uma relação de confiança entre os três. Uma das perguntas que fiz ao António e cuja resposta me agradou muito, foi ‘e se isto não der em nada?’, ele retorquiu ‘se não der, bebemo-lo nós’. Ou seja, não há neste projecto pressa de fazer as coisas para ontem”, adianta.
Não obstante o convite de António Boal, a ideia de produzir vinho já estava implantada na sua cabeça de Francisco Costa há muito tempo, embora a região fosse diferente. “Sou filho de um taxista, e a minha mãe, que era cozinheira, sempre trabalhou na casa de famílias que tinham propriedades com vinha no Alentejo, e eu tive a felicidade de os patrões convidarem sempre o filho dos seus funcionários para passar férias com eles e com os filhos, a caçar, andar a cavalo, etc… Por isso, sempre tive o desejo de, quando acabasse a minha carreira desportiva, ter um monte no Alentejo, com um ou dois cavalos e uma vinha pequena para me entreter, cuidar, fazer o meu vinho. O Alentejo é perto de Lisboa, e eu imaginava-me a escapar para um sítio desses ao fim-de-semana. A vontade ainda não me passou… Talvez quando os meus filhos ‘baterem as asas’. Não ponho metas nisso, mas não está esquecido. Por enquanto, vou muitas vezes a Estremoz ou Montemor-o-Novo, por exemplo. Sempre fui muito espontâneo, muitas vezes acordava e, se estava um bom dia, ia ao ginásio, como vou sempre, e depois pegava no meu pai, no meu sogro e noutro amigo que eles quisessem levar, e íamos a Portalegre comer um pitéu. Quem diz Portalegre, diz Redondo, Viseu e muitos outros sítios”, desabafa.
Quando lhe perguntamos quais os planos que a 2 CC tem a curto prazo, a resposta está na ponta da língua: “Queremos fazer um branco que marque a diferença, se aparecer uma vinha que achemos ter potencial… E também temos ideia de abrir uma loja, para ter os nossos produtos expostos ‘em casa’”.
O influenciador original
Entre as várias histórias e momentos insólitos que Costinha nos contou, há uma particularmente engraçada, depois da sua chegada ao FC Porto. “Como é hábito em qualquer clube, fazíamos almoços de equipa. Num desse almoços, no restaurante Romando, em Vila do Conde, o prato principal ia ser arroz de cabidela, e apetecia-me beber um Batuta. Eis que o Jorge Costa diz, indignado, ‘vais beber Batuta?! Com pica no chão?!’, e eu respondi “eu bebo aquilo que me apetecer. Pago a garrafa e bebo-a sozinho se for preciso, não se preocupem’. Aí, o Vítor Baía perguntou se podia beber também e pagar o vinho a meias comigo. Lá veio a garrafa de Batuta para a mesa, que eu e o Vítor bebemos, sem deixar que mais alguém bebesse dela, apesar das queixas dos outros jogadores. Uns tempos depois, alguns deles — como o Jorge Costa, o Hélder Postiga, o Pedro Emanuel ou o Hugo Leal — acabaram por começar a vir comigo para os almoços e jantares vínicos, e por apreciar bons vinhos”, retratou, entre risos. “O Jorge Costa, inclusive, passou a ir muitas vezes comigo ao Douro, numa carrinha Chrysler vazia, que trazíamos de lá repleta de vinho: Gaivosa, Pacheca, Quinta do Côtto, sei lá… muita coisa, mesmo”.
Para terminar, questionámos sobre o vinho que bebeu para celebrar o mítico golo que marcou na baliza do Manchester United e que gelou Old Trafford, no minuto 90 de um dos jogos mais importantes do FC Porto na Liga dos Campeões, competição que o clube venceu, pela segunda vez, nessa época de 2003/2004. “Não me recordo exactamente de qual, mas ou foi um Almaviva, um L’Aventure Estate Cuvée ou um Opus One”. Costinha pode não se lembrar do vinho, mas os adeptos portistas nunca esquecerão aquele golo.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
António Braga: O início da aventura
Há muitos anos que conheço o António Braga como enólogo da Sogrape. Fui ficando com a ideia de que a carreira estava traçada e que por lá ficaria muitos e bons anos. Por isso, quando nos comunicou que iria sair da empresa, fiquei muito admirado e ao mesmo tempo expectante. A conversa veio depois e […]
Há muitos anos que conheço o António Braga como enólogo da Sogrape. Fui ficando com a ideia de que a carreira estava traçada e que por lá ficaria muitos e bons anos. Por isso, quando nos comunicou que iria sair da empresa, fiquei muito admirado e ao mesmo tempo expectante. A conversa veio depois e as explicações também: “se queria ter um projecto meu, tinha mesmo de sair da Sogrape, andava há muito a magicar vinhos que gostava de fazer e por isso achei que era agora ou nunca”. Foi agora. Braga acrescenta: “não tendo eu vinhas ou adegas, não estou preso a uma região específica ou a uma vinha, isso permite-me, de uma forma bastante flexível, fazer vinhos onde quero, nos terroirs que mais me impressionam, com as castas que mais gosto”. E tratou logo de se colocar em campo para poder organizar um projecto coerente que lhe permitisse gerir melhor o tempo e fazer o que gostava: criar vinhos seus e apoiar outros projectos, como consultor. Nasceu assim a Terra Vinea, uma empresa com cinco sócios onde juntou mais quatro amigos, reservando para si a maioria do capital. A ideia é fazer vinhos originais, buscar parcelas esquecidas ou castas menos badaladas, mas conseguir que sejam vinhos expressivos e com alma. A ideia é boa e até se pode ter quem forneça uvas para o projecto mas… onde é que se põe um plano destes em prática?
A resposta a esta pergunta representou um grande passo dado por António Braga: no Douro existe uma adega da família de Mafalda Machado (enóloga) onde, juntamente com o seu marido americano – Eric Nurmi – se criou a empresa Grape to Bottle – com prestação de serviços em todas as etapas da produção de vinho. Assim, na mesma adega temos vários produtores, cada um a fazer o seu vinho, com especificações diferentes. O estágio em barrica faz-se também aqui e só o engarrafamento se efectua com recurso a aquisição externa de serviços. Eric é quem, a tempo inteiro, coordena os vários trabalhos. Foi lá que o encontrámos, em plena vindima, com muita gente na adega. Uma festa! São neste momento mais de uma dúzia os produtores que recorrem a esta adega para poderem fazer os seus vinhos. A localização (muito perto da Régua) é também uma vantagem por estar no centro da região. E com o crescimento de novas consultorias (mesmo no Douro e Verdes), António Braga já tem um jovem enólogo – João Alvares Ribeiro – a trabalhar com ele a tempo inteiro. Adquiriram-se cubas e barricas sobretudo usadas, algumas que chegaram da Borgonha com 4 anos de uso. O projecto aponta muito mais para madeira usada do que para barricas novas.
Resolvido o primeiro problema foi preciso diversificar a aquisição de uvas e partir para a descoberta de vinhas e parcelas que pudessem corresponder ao objectivo. Nasceram assim os primeiros vinhos, para já um branco feito com Alvarinho em Monção, e um tinto do Douro elaborado com uvas de Mourisco, a tal casta que há alguns (poucos) anos ninguém queria ouvir falar. Os produtores que forneceram as uvas para a primeira vindima, de que saíram agora os primeiros vinhos, voltaram a fornecer em 2023 e assim se espera que continuem, criando uma relação forte entre produtor e enólogo. Para António Braga, a sua nova aventura desenrola-se em planos bem distintos: os seus vinhos que saem com diferentes rótulos mas sempre com a sua assinatura, e o trabalho de consultoria que se estende por várias zonas do país, desde os Verdes (quinta da Minhoteira), passando pelo Douro (quinta da Ervedosa, quinta da Eiró, quinta D. Mafalda e Solar de Cambres). Em alguns casos trata-se de pequenas quintas ainda desconhecidas do grande público e de onde sairão vinhos com o acompanhamento técnico (quer na viticultura, quer na enologia) da Terra Vinea. No Alentejo está a desenvolver novos projectos com a empresa Abegoaria – criação de uma linha de Fine Wines – a partir da Herdade do Gamito mas não só, e também com a Casa Relvas.
O portefólio tem assim duas linhas: uma assente em terroirs mais tradicionais e, como nos disse, “Com uma estética mais convencional”. Essa é a gama Ipiranga. Saiu em Novembro o Ipiranga Alvarinho 2022, feito em Monção e fermentado em barricas usadas com estágio sobre borras totais durante 10 meses. Em Março, acontecerá o lançamento de 3.600 Garrafas do Ipiranga Douro tinto 2022, este feito com Touriga Francesa, Touriga Nacional, Tinto Cão e Sousão. Existirá uma segunda linha que é composta de vinhos mais originais, castas menos conhecidas, processos menos comuns. O primeiro vinho dessa gama é o Cão que Ladra Mourisco Douro tinto 2022, de que se fizeram apenas 891 garrafas. As uvas vêm de uma vinha com cerca de 40 anos, plantada a 550 metros de altitude, na freguesia da Lousa no Douro Superior; fermentou em lagar com 50% de cacho inteiro, estagiou em barrica usada
Tal como acontece com todos os novos projectos do sector do vinho, António Braga vai sentir as dores do crescimento: as garrafas chegarão a tempo? Os rótulos foram aprovados? As rolhas estão certas para a garrafa que temos? E as caixas de cartão quando é que são entregues? E como é que vou distribuir os vinhos? Entrego tudo a um ou prefiro vários distribuidores? E onde é que quero chegar? Fico-me pela paróquia ou vou tentar os mercados externos? Estas são o tipo de questões que nunca se colocaram a António Braga enquanto foi enólogo de uma grande casa de vinhos. Feito o balanço, confessou-nos que continua a acreditar que foi a melhor decisão que podia ter tomado. Como diz o ditado (nem sei bem se é ditado…), a sorte só sorri aos ousados!
Para António Braga, a sua nova aventura desenrola-se em planos bem distintos: os seus vinhos que saem com diferentes rótulos mas sempre com a sua assinatura, e o trabalho de consultoria.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
Porto Ruby Reserva: Um vinho com Character
Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém […]
Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém explicava nada e a imprensa do sector quase não existia -, a verdade é que, comparando os preços, cheguei facilmente à conclusão que o preço do Vintage Character era muito mais convidativo. Recordo-me que o primeiro que comprei era da casa Burmester, tinha um rótulo discreto mas bonito e eu fiquei todo contente porque me estava a aproximar do altar (os Vintages…) sem ter de empatar mais do que, à época, podia. E mostrava aos amigos o tal rótulo, dizendo mesmo, “estão a ver, este Porto é do tipo Vintage”, ao que eles (ainda mais ignorantes que eu) aquiesciam com um sorriso amarelo.
Esta história, verdadeira, aconteceu comigo, mas deverá ter ocorrido com muito consumidor. O sector do Porto era muito prolífico em conceitos, categorias e nomes que, invariavelmente, apenas serviam para confundir o apreciador. Será que alguém acreditava que o vinho Founder’s Reserve correspondia exactamente a lotes de vinho que vinham do tempo da fundação da Sandeman? Ou que o Reserva Pessoal da D. Antónia era efectivamente vinho que ela tinha deixado e que continuava a ser vendido hoje? Os exemplos são vários. Estes vinhos ainda hoje existem (como se vê na minha selecção) e continuo sem ter a certeza de que todos os consumidores percebem que se trata a penas de uma marca.
Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva. Passou, tal como os Tawny Reserva, a estar incluída nas Categorias Especiais de Vinho do Porto. A nova designação, que também admite a palavra Reserve em vez de Reserva, permite ainda alguns qualificativos extra, como Especial, Special e Finest. Desta forma não há nenhuma categoria que possa incluir (em letra grande ou miudinha) a palavra Vintage, a não ser o propriamente dito ou o LBV (Late Bottled Vintage). Para o consumidor a confusão acabou aqui. De acordo com a legislação em vigor, um Porto Ruby Reserva é “um vinho do Porto de muito boa qualidade, apresentando complexidade de aroma e sabor, obtido por lotação de vinhos de grau de estágio variável que lhe conferem características organolépticas específicas e reconhecido pelo IVDP”. A primeira legislação que regulamentou as Categorias Especiais data de 1973, publicada no início de 1974.
Na história dessa categoria – Vintage Character – há que dizer que esse termo não era usado no rótulo por todas as casas. A Fonseca, por exemplo, usa hoje, como sempre usou, o nome Bin 27 para o seu Ruby Reserva, que se encaixava na categoria Vintage Character — e a Cockburn’s tinha no seu Special Reserve o vinho emblemático que era a marca de Porto mais vendida em Inglaterra.
O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa.
O que distingue o Ruby do Ruby Reserva?
Nessa categoria – Ruby – a palavra Reserva faz toda a diferença; enquanto no Ruby corrente estamos a falar de vinhos muito jovens, de pouca concentração e que provavelmente nunca passaram em madeira (também devido ao enorme montante de vinho de que estamos a falar), no Reserva já iremos encontrar vinhos com mais estrutura, onde se procurará um balanço entre vinhos que tiveram algum estágio em madeira com outros mais jovens que possam transmitir mais alegria ao lote final. Têm em comum o facto de serem vinhos que resultam do lote de várias colheitas e que têm um perfil que tende a mantar-se idêntico ano após ano. Até por isto fez todo o sentido retirar a palavra Vintage da antiga designação. Como qualquer outro vinho, tem de ser a Câmara de Provadores do IVDP a dar a aprovação do lote como sendo Reserva.
Para algumas casas – a Fonseca, a Sandeman e a Cockburn’s – esta é uma categoria emblemática, responsável por vendas em larga escala. No caso da Fonseca, Bin 27 tem tido, por informação cedida pela empresa, um crescimento anual de 3,5% ao ano e as vendas em 2022 atingiram as 40000 caixas de 12 garrafas. O principal mercado é americano, com Estados Unidos e Canadá a representarem uma grande fatia.
No caso da Symington, a marca Special Reserve é muito importante no Reino Unido (é o Ruby Reserva mais vendido naquele mercado) mas para o desenvolvimento do mercado interno a empresa enviou para esta prova o Six Grapes, o Ruby Reserva da Graham’s. Com o “peso” que o vinho da Cockburn’s tem no conjunto das vendas (62%), a Symington detém, segundo nos informou, cerca de 56% da quota mundial.
A Sandeman assume uma posição forte no mercado americano, onde o seu Founder’s Reserve tem um peso muito forte nas vendas; segue-se o Reino Unido e o mercado interno, com um bom foco no turismo (travel retail).
Na selecção que fiz para esta prova incluí vinhos com produções muito diferentes. Será sempre um erro comparar, sem explicar e integrar, a pequena produção de um produtor “de quinta” com a de uma empresa que vende milhares e milhares de caixas. Há lugar para todos e os exemplos que aqui deixamos de grandes produções mostram que, também nesta categoria, é possível fazer muito e com muita qualidade.
Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva.
O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa. Isto significa que o manuseamento da garrafa não requer cuidados especiais (importante na venda a retalho, nomeadamente para turistas) e é um vinho para qualquer ocasião. Os que forem um pouco mais encorpados poderão ser perfeitos companheiros para queijos mas este é aquele tipo de Porto que se bebe mesmo sem acompanhamento, mas em boa companhia.
Apenas mais três indicações finais. Primeiro, o Ruby Reserva não merece guarda, não foi para a cave que foi pensado. Por isso a ideia é comprar e beber. Também por esta razão é conveniente evitar comprar garrafas que estejam há anos e anos perdidas nas prateleiras. Apesar de ele viver bem em garrafa o tempo exagerado de estágio (espera?) em garrafa acaba por fazer com que perca brilho. Em segundo lugar, o vinho não requer decantação, mas há que ter algum cuidado na temperatura de serviço. Cerca de 30 a 45 minutos de frigorífico será o suficiente. Finalmente, ainda que possa beber com calma o seu Porto Ruby Reserva depois de abrir a garrafa, será ajuizado não a ter aberta mais de um mês porque o vinho irá perder frescura.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
Crasto: Na vinha, onde tudo começa
Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho […]
Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho mais tempo de garrafa até chegar ao mercado. Precisamente, ao mercado chegaram agora os tintos de topo da Quinta do Crasto da colheita de 2019, desde logo o Vinha Maria Teresa (essa vindima não “deu” Vinha da Ponte), o Touriga Franca e o Touriga Nacional.
Para o enólogo Manuel Lobo “2019 foi um ano excepcional, caracterizado por uma produtividade acima da média (mais do que em 2017 e18). No entanto, a Primavera e Inverno foram bastante secos, levando níveis de reservas de água no solo demasiado baixos para as necessidades das videiras”. Porém, o deficit hídrico acabou por não afectar as videiras, uma vez que nos meses de Verão (Junho, Julho, Agosto) as temperaturas foram amenas (“menos 5ºC do que a média dos últimos 5 anos na Quinta do Crasto”, refere o enólogo). “As videiras mostravam áreas foliares equilibradas e de aparência saudável”, diz, e a vindima, iniciada com as uvas brancas no dia 26 de Agosto (as tintas começaram a 31 de Agosto), decorreu com noites frias e dias quentes. “Essencial mesmo foi a chuva que chegou nos dias 21 e 22 de Setembro, que ajudou a apurar a maturação das castas mais tardias”, adianta Manuel Lobo. No Crasto, a colheita encerrou no dia 11 de Outubro, com as uvas das vinhas situadas a maior altitude. “Um ano perfeito, de maturações lentas, como eu gosto”, confessa o enólogo.
Aqui, como em muitas outras propriedades no Douro, as diversas parcelas têm comportamentos muito distintos consoante a sua idade, castas plantadas, composição do solo, altitude ou exposição solar. Este último factor, por exemplo, é determinante nas vinhas (e consequentemente nos vinhos) Vinha Maria Teresa e Vinha da Ponte. Enquanto a primeira aprecia os anos quentes (“protegida do sol, às 4 da tarde já está à sombra”, diz Manuel Lobo), a segunda, mais soalheira, prefere os anos mais frios.
De qualquer modo, por melhores que sejam as uvas, para os vinhos de topo é feita muita selecção à entrada da adega. E depois da vinificação (na super-equipada “adega das vinhas velhas”, como lhe chamam na casa) e do estágio em madeira, só mesmo as melhores barricas chegam ao lote final de Maria Teresa ou Vinha da Ponte. As restantes vão parar ao Crasto Vinhas Velhas Reserva, que assim beneficia da qualidade e carácter que estas emblemáticas vinhas transmitem aos vinhos.
MARIA TERESA, PLANTA A PLANTA
Na Quinta do Crasto, rodeados por aquela paisagem magnífica, espraiando os olhos pelo rio Douro, qualquer conversa começa e acaba com as vinhas. E quando abordamos os três tintos de 2019 agora apresentados, isso torna-se ainda mais inevitável, já que todos têm uma origem bem precisa. E Tiago Nogueira, o responsável de viticultura da empresa, conhece-a melhor do que ninguém.
Maria Teresa, cujo nome deriva da neta de Constantino de Almeida, fundador da Quinta do Crasto, é uma vinha mais do que centenária, e é também uma das maiores (se não a maior) vinha velha do Douro, com os seus impressionantes 4,7 hectares em socalcos tradicionais virados a nascente. São 54 castas as que ali se encontram identificadas. Representa uma autêntica arca do tesouro que a família Roquette, proprietária da quinta, tem procurado preservar e multiplicar, já que, como é natural em vinhas desta idade, muitas videiras vão morrendo ao longo do tempo (na Maria Teresa há 30% de falhas).
O primeiro grande passo no sentido dessa preservação foi o projecto PatGen Vineyards, implementado em 2013, já lá vão mais de 10 anos, portanto. “Precisávamos de salvaguardar e, consequentemente, perpetuar o património genético das vinhas velhas, dada a antiguidade destas plantações e a multiplicidade de variedades, incluindo as minoritárias ou mesmo inexistentes noutros locais”, explica Tiago Nogueira.
Assim, numa primeira abordagem, foi então realizada a piquetagem da vinha (com geo-referenciação diferencial com precisão à videira) resultando no mapeamento das 58 parcelas que compõem a vinha Maria Teresa e a sua integração num Sistema Integrado de Gestão de Propriedades (SIGP). No final, foram contabilizados 31.825 pontos de plantação com coordenadas GPS (que representam o somatório do número de videiras, falhas e bacelos), das quais 21.922 são videiras. Com recurso a drone e imagens de satélite, que possibilitam imagens de alta resolução, é igualmente possível antecipar a perda de material genético e a contagem de plantas em risco. Toda esta informação fica disponível de forma digital, funcionando como uma espécie de “vigia”, que permite perceber o estado de saúde de cada uma das plantas que existem na vinha, cuidando-as de forma mais optimizada às suas necessidades.
“Com a informação fornecida, as equipas de viticultura e enologia podem intervir, por exemplo, na fertilização manual de videiras que estejam mais vulneráveis ou em falência, e até decidir a data de vindima. Esta tecnologia permite igualmente identificar os pontos débeis e actuar com rapidez, fazendo as correcções necessárias na planta ou salvaguardar esse material genético”, refere Tiago Nogueira.
No âmbito deste trabalho, foi igualmente feita uma classificação ampelográfica das videiras, por parte de ex-colaboradores do IVDP, culminando na identificação visual das tais 54 variedades, maioritariamente tintas (tais como Alvarelhão, Casculho, Pilongo, São Saul), contabilizando-se também uma variedade tinta desconhecida e 4 brancas (Alvaraça, Malvasia Fina, Malvasia Rei e Gouveio). Como base em todo este manancial de informação, foi criado um campo de multiplicação de genótipos na propriedade, ou seja, uma espécie de “viveiro reserva” onde todas estas castas estão representadas, o que permite proceder à reposição das videiras que morrem por variedades geneticamente idênticas, perpetuando, desta forma, o encepamento integral da vinha Maria Teresa. Numa terceira abordagem, em parceria com a UTAD, está-se a proceder à caracterização genética, agronómica e química/enológica das castas desta histórica vinha.
“Queremos ter um conhecimento mais profundo da tipicidade e diversidade de variedades do Douro, um dos factores diferenciadores mais importantes da região. Quanto maior for esse conhecimento, maiores serão também as hipóteses de fazer face a pragas, doenças e alterações climáticas”, diz o viticólogo. Num futuro próximo, a Quinta do Crasto espera extrapolar este trabalho para as restantes vinhas velhas da propriedade, nomeadamente a igualmente histórica Vinha da Ponte.
VINHA NOVA, À MODA ANTIGA
No entanto, apesar de todos os cuidados, a vinha Maria Teresa não vai durar eternamente. Do mesmo modo, como acontece em todas as vinhas velhas, nem todas as castas que lá se encontram são excelentes do ponto de vista enológico. Assim, de forma faseada, em 2019, 2021 e 2023, a Quinta do Crasto resolveu plantar dois hectares de vinha em socalcos tradicionais suportados por muros de pedra de xisto. O material genético para as enxertias veio, naturalmente, da vinha Maria Teresa, mas das 54 variedades ali identificadas foram seleccionadas “apenas” 40, aquelas que se enquadram no perfil enológico pretendido por Manuel Lobo, descartando-se as castas que por norma são rejeitadas no campo e na mesa de escolha durante vindima. Das castas seleccionadas, foram pré-definidos “blends de variedades” para em função dos conhecimentos existentes sobre cada casta, se poderem aplicar especificamente a diferentes zonas da parcela, tentando obter o melhor enquadramento entre a casta e as características microclimáticas e de solo. Ou seja, sendo um field blend, a localização/enxertia de cada casta não foi feita forma aleatória. Tiago Nogueira exemplifica: “Numa zona mais fértil e húmida da parcela, fez parte do blend de variedades pré-definido, por exemplo a Tinta Barroca e o Sousão, e evitamos nestas micro-zonas, a presença, por exemplo, de Tinta Roriz ou Tinta Amarela, que naturalmente ocuparam zonas de solo mais pobre e seco.” Ou seja, respeitando os princípios tradicionais, estes foram aplicados de forma científica e com base nos conhecimentos de hoje. Das três plantações de porta-enxertos, a de 2019 já se encontra enxertada e em produção, a de 2021 foi enxertada no ano que passou, e a de 2023 será enxertada em 2025. A plantação, em alta densidade (6500 videiras por hectare) está a ser conduzida no tradicional Guyot e apoiada por rega gota-a-gota para garantir o sucesso da implantação.
“Este modelo tem muitas vantagens”, defende Tiago Nogueira. “Desde logo, a maior densidade de plantação implica menor vigor e menos produção por cepa, o que irá aumentar a qualidade da uva e dos mostos sem baixar a produtividade por hectare. Por outro lado, acreditamos que não vamos precisar de esperar tantos anos quanto num modelo convencional para obter vinhos de primeira linha. E conseguimos obter o blend pretendido directamente do campo para a adega, tentando mimetizar as vinhas velhas mais importantes da Quinta do Crasto. Há também uma componente estética: a beleza da vinha tradicional enquadra-se no património paisagístico da propriedade.”
Nem tudo são vantagens, porém. O declive dos socalcos e o compasso de plantação não permitem a mecanização da maioria das tarefas, sendo muito dependente de mão de obra, um bem cada vez mais escasso no Douro. “É uma questão de proporção”, diz Tiago Nogueira. “Por enquanto, a capacidade operativa da estrutura de viticultura da empresa consegue lidar bem com a área de vinha tradicional existente”.
TOURIGAS, NACIONAL E FRANCA
A verdade é que nem só de field blend e castas raras com nomes estranhos vivem os vinhos de topo da Quinta do Crasto. As igualmente clássicas, ainda que menos “exóticas”, Touriga Nacional e Touriga Franca são muito importantes para a construção do vasto portefólio da empresa. E, desde logo, para os seus mais famosos vinhos varietais. No entanto, tal como acontece com os tintos Maria Teresa e Vinha da Ponte, também aqui a vinha faz diferença, e muito. E estas parcelas de Nacional e Franca (e Roriz, já agora) têm também uma estória para contar.
Antes de mais, é preciso ver o contexto: nos anos 80, a Quinta do Crasto produzia unicamente vinho do Porto. Antecipando, quem sabe, a possibilidade de desenvolver um projecto de vinhos Douro (o que viria a acontecer na vindima de 1994), o casal Leonor e Jorge Roquette decidiu plantar cerca de 10 hectares de vinha nas encostas da Quinta do Crasto. Para tal, solicitaram o apoio do conceituado viticólogo Professor Nuno Magalhães que os aconselhou a plantar as três castas mais estruturantes da região: Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Franca. Escolheram-se as parcelas de meia encosta, entre os 250 e os 350 metros de altitude, situadas acima das emblemáticas vinhas velhas da Quinta que, contra o pensamento dominante na época, entenderam preservar. Assim, em 1984, 1985 e 1986, numa encosta com um declive de 30 a 40% de inclinação, exposta maioritariamente a Sul, construíram-se os patamares de 2 linhas de plantação que começavam a surgir no Douro como forma de permitir a mecanização das vinhas, até à data pouco frequente. A plantação foi feita com porta-enxertos, depois enxertados com varas de selecção massal recomendadas por Nuno Magalhães. Estas novas parcelas, plantadas em sequeiro (sem rega), totalizaram 5 ha de Tinta Roriz, 3,5 de Touriga Nacional (a Touriga “antiga”, não a de selecção clonal) e 1,5 ha de Touriga Franca.
A enxertia foi feita em ‘rupestres du lot’ e (“afortunadamente”, como diz Tiago Nogueira), foram utilizados clones pouco produtivos. “No caso da Tinta Roriz é por demais evidente, quando comparamos a produção desta parcela com as parcelas de Roriz plantadas mais recentemente, estas produzem 3 a 4 vezes mais”, refere o técnico. Somando a isto o facto de as parcelas em causa estarem bem expostas, em solos de baixa fertilidade, e serem constituídas por videiras com quase 40 anos é relativamente fácil perceber que a fruta ali originada “merece ser vinificada de forma isolada e aparecer no mercado em vinhos varietais”, remata o enólogo Manuel Lobo.
DE VOLTA AO VINHO
Ainda que não envolvidas nos vinhos agora apresentados, importa referir que a Quinta do Crasto tem também uvas brancas, de parcelas plantadas entre 2015 e 2017 nas zonas mais altas da propriedade. São cerca de 10 hectares de vinha ao alto, a mais de 500 metros de altitude, plantada com as castas Viosinho, Gouveio, Verdelho, Folgasão e Arinto. Nos últimos anos tem sido ali feito um trabalho muito intenso de melhoria da fertilidade do solo e em 2023 foi instalado um sistema de rega-gota-a-gota para complementar a disponibilidade hídrica das plantas e promover o seu equilíbrio. O destino destas uvas é o Crasto branco.
Para terminar esta volta por algumas das mais emblemáticas vinhas do Crasto, nada como regressar ao ponto de partida, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa. Ao lado do 2019 agora apresentado, tive oportunidade de provar os 2017 e 2018. E, mais uma vez, como tantas outras ao longos destes 30 e muitos anos de escrita de vinhos, fiquei convencido de que só percebemos inteiramente a grandeza de um vinho quando o colocamos ao lado de outros potencialmente tão grandes quanto ele. Se o 2018 se mostra fechado de aroma, mais em elegância do que potência, muito redondo, polido, profundo, rico, cheio de classe, o 2017 é ainda uma criança, enorme, tenso, pleno de raça, com fruta madura de enorme qualidade, textura de seda, especiaria, muita frescura e imenso brilho, com anos e anos pela frente. Só que, comparado com estes, o 2019 vai ainda mais longe, atingindo uma dimensão até agora, porventura, inalcançada. A nota de prova reflecte aquilo que o Maria Teresa 2019 mostra ser: absoluta perfeição numa garrafa.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
Caves Velhas: O regresso de uma marca com história
A Enoport Wines apresentou recentemente, ao mercado, os três primeiros vinhos da gama Prestige da marca Caves Velhas, um branco de Bucelas, um tinto do Dão e outro de Lisboa. O evento decorreu na antiga adega das Caves Velhas, em Bucelas. Segundo Nuno Santos, CEO da empresa, a história da marca começou em 1940, quando […]
A Enoport Wines apresentou recentemente, ao mercado, os três primeiros vinhos da gama Prestige da marca Caves Velhas, um branco de Bucelas, um tinto do Dão e outro de Lisboa. O evento decorreu na antiga adega das Caves Velhas, em Bucelas.
Segundo Nuno Santos, CEO da empresa, a história da marca começou em 1940, quando as Adegas Camilo Alves — empresa de volume criada em 1881 por João Camilo Alves — já estava bem estabelecida no mercado nacional, sobretudo em Lisboa. A aposta na produção e comercialização de vinhos de melhor qualidade “foi uma iniciativa do neto do fundador da empresa, João Júlio Camilo Alves, que criou a marca Caves Velhas, a primeira de qualidade que as Adegas Camilo Alves tiveram”, explicou o gestor durante o evento. Os vinhos foram comercializados como “Garrafeira”, na altura o símbolo maior de qualidade para o mercado nacional.
Brancos e tintos de Bucelas
Caves Velhas eram vinhos de uvas de Bucelas. Não apenas brancos da casta Arinto, cuja qualidade já era reconhecida pelo mercado na época, mas também tintos, já que o encepamento da região, na altura, também incluía variedades que os produziam. Numa época em que não havia ainda grande preocupação em destacar denominações de origem como símbolo de qualidade, salientava-se a casa produtora, a marca e a qualidade do vinho contido nas garrafas.
Muitos anos mais tarde, as Caves Velhas, que já tinham bons resultados com os seus Garrafeira e Romeira, passaram a tê-los, a reboque, também com os seus vinhos do Dão. Entretanto, as Caves Velhas criaram uma pequena diferenciação, na altura com mais duas a três empresas que acabaram por desaparecer, o lançamento de garrafas de vinho envolvidas em juta, que se tornaram numa espécie de ícone das Caves Velhas. Isto foi o que ocorreu de mais significativo desde os anos 40 até 1980, os de maior sucesso da marca até agora.Em 2015, a Enoport Wines — empresa proprietária da marca Caves Velhas, após ter adquirido as Adegas Camilo Alves e outras empresas, e procedido à sua fusão — tinha um universo de marcas muito grande e não conseguia focalizar-se, ou desenvolver e investir em marketing em nenhuma delas.
“A solução encontrada foi parar para pensar e concluir que era impossível trabalhar com mais de 100 marcas”, contou Nuno Santos. A decisão tomada depois foi reduzir o portefólio para dez referências, que não deveriam ser apuradas de ânimo leve, já que isso poderia ter um impacto significativo no negócio. “O processo teve de ser bem estudado e fundamentado”. Foram definidos critérios para a escolha, como o volume de vendas, a margem libertada ou o potencial de crescimento das marcas seleccionadas. Como muitas referências reuniam as características necessárias, foram acrescentados mais dois critérios: a sua história e o património que lhes estava associado, o que levou a marca Caves Velhas a passar para o topo da selecção, apesar de, na altura, estar em grande declínio. “Quando entrou na esfera da Enoport, em 2000, Caves Velhas não era uma das referências que sobressaia no grupo, nem tinha potencial de crescimento significativo”, revelou Nuno Santos, acrescentando que a empresa até pensou em abandoná-la.
Quando foi definido o portefólio final, que incluiu a marca, iniciou-se o processo de investigação sobre a sua história, que tem hoje mais de 80 anos, “também para se descobrir o que tinha resultado em termos de gestão para a referência ter sucesso, e os problemas que levaram ao seu declínio”, salientou o gestor. Isso foi feito para se encontrarem formas de pegar no caminho feito pela marca nos seus anos de ribalta, actualizando-as para as exigências e critérios dos dias de hoje. “O objectivo era fazer com que a marca tivesse sucesso novamente, o que não aconteceria, necessariamente, de um dia para o outro”, disse Nuno Santos.
Nem sempre as modas resultam
Depois de definidas as características principais que definiam a marca, o que fazia os consumidores reconhecerem-na e valorizarem-na, “chegou-se à conclusão que foi o critério de não seguir modas”, explicou o gestor. De todo esse trabalho resultou um processo que levou à divisão da marca em três segmentos: Signature, o mais baixo, Prestige, o intermédio e Elite, o mais alto, que ainda não foi lançado. Após terem saído os vinhos da primeira, no ano passado, a Enoport lançou, este ano, a segunda, que inclui algumas aguardentes e vinhos Garrafeira da colheita de 2018.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Quinta Dona Sancha: Vinhos de vinha e vinhos de casta, em Silgueiros
É claramente um projecto muito local que nasceu da fusão de duas propriedades – quinta da Avarenta e quinta do Senhor Rocha. O mentor enológico do projecto continua a ser Paulo Nunes com suporte do responsável de viticultura Filipe Oliveira e o novo enólogo-residente Diogo Santos. Os vinhos da linha Vinha da Avarenta são de […]
É claramente um projecto muito local que nasceu da fusão de duas propriedades – quinta da Avarenta e quinta do Senhor Rocha. O mentor enológico do projecto continua a ser Paulo Nunes com suporte do responsável de viticultura Filipe Oliveira e o novo enólogo-residente Diogo Santos.
Os vinhos da linha Vinha da Avarenta são de lote por ter ênfase na vinha e não numa casta. Na composição do branco entram mais de três variedades, incluindo Cerceal-Branco, Malvasia Fina e Bical, curiosamente, sem Encruzado. “A matriz do vinho passa por Cerceal, uma das castas mais ácidas” – sublinha Paulo Nunes. Sem estágio em barrica, para preservar os aromas primários mais nítidos; para dar volume de boca e alguma untuosidade, faz-se batonnage na cuba.
O tinto da Vinha da Avarenta, desta vez com Jaen, Tinta Pinheira e Baga, ainda não está no mercado e só será lançado no final do 1º semestre – inicio do 2º semestre de 2024. Neste momento está a descansar em garrafa, mas a prova que fizemos revelou um vinho muito fino, de grande beleza sensorial a expressar a região e a sub-região. É só esperar por ele.
Novas colheitas de monovarietais incluem Encruzado e Cerceal-Branco (não confundir com Cercial na Bairrada e Sercial na Madeira).
Na quinta existe Encruzado de várias parcelas distintas. Para o estágio em barrica procuram uvas com acidez mais alta e o pH mais baixo. O vinho fermenta e estagia em barricas de carvalho francês e húngaro de 500 litros, novas e usadas. O Cerceal-Branco “é consistente em termos de produção e tem componente ácido forte, mas é uma casta subvalorizada no Dão” – conta Paulo Nunes. Na sua vinificação é preciso sempre trabalhar uma parte em inox (fermentação e estágio), porque ao contrário do Encruzado que “consegue romper a madeira, o Cerceal é mais lento no desenvolvimento dos aromas”. Por exemplo, mesmo sendo uma casta bastante contida em termos aromáticos, se fermentar o Encruzado a temperaturas mais baixas, consegue-se alguma exuberância. No Cerceal é mais difícil de conseguir. “A casta é muito neutra, mas evolui muito bem” – assegura.
O monovarietal de Touriga Nacional 2019 já está no mercado e foi provado pela GE anteriormente. Entretanto, merece ser mencionado por ter um carácter muito distinto da maioria das Tourigas e apresentar uma bela evolução. Há 15 anos Paulo Nunes pensou que era fácil de fazer um brilharete com Touriga Nacional. Hoje, está convencido que é uma das castas mais difíceis de trabalhar. “É tão impositiva que é preciso ter muito cuidado a tomar conta dela. Na Touriga Nacional como na Pinot Noir, é muito ténue a linha que separa o vinho que soa a música clássica daquele que é música pimba”. Sobretudo numa sub-região mais quente, como Silgueiros, cai facilmente na fruta muito madura, doce e enjoativa. No caso do Quinta Dona Sancha a Touriga não quer ser demasiado óbvia. Tem aromas de cereja (mas muito sóbria) e esteva, concentrado, mas não efusivo. Encorpado e austero, com energia de acidez perfeita, nada ostensivo, com grande vocação para mesa.
Um dos objectivos da casa é recuperar as castas antigas e tradicionais do Dão, para contrariar a tendência geral de afunilar o leque das castas em meia-dúzia principais, e para mostrar que há mais vida para além da Touriga Nacional ou Encruzado. A solução prática passou pela plantação das 39 variedades existentes no Centro de Estudo de Nelas numa parcela para avaliar o potencial de cada uma. Algumas, claro, ficam pelo caminho, até porque não se dão todas de igual forma em sítios diferentes dentro da mesma região. Por exemplo, uma das castas chamada Arinto do Interior (que, para variar, não tem nada a ver com Arinto) tem um comportamento em Nelas completamente diferente daquele que demonstra na quinta em Silgueiros. E há muitos factores por trás desta variação de comportamento. Um deles é o solo. Ao contrário da generalização, o solo no Dão não é todo granítico e não é todo pobre. “O solo da Serra é mais rico do que o solo no vale do rio Dão” – exemplifica Paulo Nunes.
Fazer ensaios com tantas castas plantadas é um projecto de longo prazo, mas o proprietário da Quinta Dona Sanha vê a sua missão neste trabalho minucioso: “a procura de irreverência, experimentação, que acaba por ser benéfico à região”. “Será um trabalho geracional e não só mais um projecto” – esta é a visão de Rui Parente.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)