Costinha: Nem só de bola viverá o homem

“Como bom português, a gastronomia é algo de que não fico à margem”. Após uma vida profissional de conquistas futebolísticas, é esta frase que nos faz respeitar Costinha, nascido em 1974, em Lisboa. “Gosto muito de comer e tenho a felicidade não só de ser português, mas de haver em Portugal uma gastronomia bastante variada e muito boa”, diz-nos, assumindo que também isso facilitou a inclinação para o vinho.
Antes de ir para França — para jogar no AS Monaco, em 1997, com 22 anos — não consumia vinho regularmente, mas quando lá chegou, beber vinho às refeições e provar coisas diferentes passaram a ser hábitos frequentes. Foi aí que bebeu o primeiro vinho francês, que ainda hoje é um dos seus favoritos, Le Petit Cheval, um Saint-Émilion Grand Cru. Até aí, o percurso tinha sido feito pelo lisboeta Oriental e pelos madeirenses Machico e Nacional. Mais tarde, já no FC Porto, onde jogou de 2001 a 2005, Costinha teve também um momento de viragem em relação ao vinho. “Quando a minha esposa, a Carla, conheceu a esposa do Domingos Paciência, fomos jantar a casa deles. Nessa altura, eu ainda não o conhecia muito bem, mas queria levar um vinho e resolvi ir a uma loja comprá-lo. Cheguei à loja e fiz o que muita gente que não tem conhecimentos sobre vinho faz, olhar para a marca e preço. Acabei por pegar num Esporão, e o dono da garrafeira perguntou-me porque é que tinha escolhido aquele vinho. Eu disse-lhe, sem vergonha, que não percebia nada do tema e queria levar uma coisa boa para um jantar de amigos, mas que achava que um Esporão ficava sempre bem”, conta. Pelos vistos, o proprietário do espaço não ficou satisfeito e incentivou o ex-jogador a levar uma garrafa do vinho australiano Rosemount Estate, bem mais barata do que a de Esporão. “Se não gostares, vens cá e eu ofereço-te uma caixa de vinho”, foi a promessa. Costinha regressou, efectivamente, à loja, mas para comprar três caixas do dito Rosemount Estate. “Em vez de me identificar como ‘fulano x’ e tentar vender-me as coisas mais caras, como acontece na maior parte das vezes, o dono desta loja sugeria-me sempre o que era mais adequado para a situação e dava-me a provar muitos vinhos diferentes, independentemente do preço. Começou também a convidar-me para provas ou jantares vínicos de vários países, e foi aí que eu ganhei um grande gosto por vinho e entrei nesse meio”, revela. E fê-lo assim, com pensamento crítico, que mantém até hoje.

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Em jeito de desabafo, Francisco Costa confessa-nos: “Bebo vinhos nacionais muito bons, há bastante tempo, com um preço ridículo de baixo. É sempre uma coisa em que penso. Faz-me imensa confusão, sobretudo comparando com os preços e qualidade dos vinhos estrangeiros. E também me incomoda outra coisa. Vivi muitas vezes no estrangeiro; por exemplo, quatro anos no Mónaco, quatro em Itália, dois em Espanha, um na Rússia, e um ano na Suíça [quando foi director desportivo do Servette]; e viajo muito, e chateia-me abrir a carta de vinhos num restaurante e não haver uma referência portuguesa. Em Portugal, nos restaurantes, há, quase sempre, pelo menos três ou quatro referências de vinhos estrangeiros. Quer-me parecer que, enquanto produtores de vinho, não somos tão unidos na defesa dos nossos interesses e produtos, como eles são lá fora. Se calhar, devia haver também mais ajuda do Estado nesta área, sobretudo para os que criam valor. Mesmo ao nível da produção, é muito difícil arranjar mão-de-obra”, sublinha, antes de lembrar uma história mais positiva: “No ano passado fui a Roma e, num restaurante que me foi recomendado, havia uma garrafa de Soalheiro. Fiquei espantado. Chamei um funcionário e questionei-o sobre isso. Ele disse-me que um engenheiro romano, frequentador assíduo daquele espaço, tinha pedido o especial favor de haver sempre Soalheiro na carta…”.

Vinhos na garagem

Quando começou a acumular muitas garrafas de vinho, compradas e oferecidas, Costinha decidiu que tinha de lhes proporcionar um bom “alojamento”. Assim, em 2015, a empresa portuguesa Cave do Vinho construiu-lhe uma garrafeira de luxo, na garagem do seu prédio em Lisboa. A obra durou uma semana. “Vi a garrafeira da Niepoort na Quinta de Nápoles, em caracol, e gostei muito. Fui logo procurar a autoria”, descortina. Com um lado envidraçado e devidamente climatizado, o espaço ronda os 15m2 e apresenta as paredes em preto, que conferem elegância, estantes com as garrafas expostas na horizontal e em profundidade, e iluminação led integrada. Pelo chão, em pilhas, espalham-se as caixas cujos vinhos já não cabem nas prateleiras. Afinal, já passaram oito anos desde a construção da garrafeira, e os vinhos não param de chegar. Um olhar rápido basta-nos para perceber que há ali referências de praticamente todas as regiões vitivinícolas portuguesas, e de várias estrangeiras, rótulos de vários segmentos de preço, tudo coisas boas. Segundo Costinha, são mais de mil as garrafas que tem na sua cave, tintos em maioria. “Talvez por, à mesa, gostar de comidas pesadas, como feijoadas e assados, me incline mais para os tintos. Mas quando o branco é muito bom, adoro”, declara.

No que toca a perfis de tinto, prefere também os encorpados, e ao dizer isto, lembra-se de mais um episódio, no qual entra António Boal, produtor e amigo com quem partilha o projecto de vinhos 2 CC: “O António tem um vinho da casta Bastardo, e eu, pelo nome da casta, que me soava agressivo, pensei que fosse uma casta robusta. Fiz um assado. Pus o vinho no copo e parecia-me que estava diluído, tipo um Pinot. Achei que podia estar estragado e abri outra garrafa, que estava igual. Liguei ao António e ele explicou-me que o Bastardo ficaria melhor com uma pasta ou um risotto, e que não deveria beber aquele vinho com comidas muito fortes. Realmente, uma pessoa vai atrás de um estereotipo de palavras, e depois não tem nada que ver”, recorda. “Gosto muito dos tintos do Douro mas os de que eu gosto mais, talvez sejam os do Dão. Sempre achei que eram os mais parecidos com os vinhos franceses. Mas depois também bebo vinhos espectaculares do Alentejo, sobretudo Alicante Bouschet. A nível nacional temos, de facto, coisas divinais. Já lá de fora, gosto de um bocadinho de tudo”, afirma Costinha. Na sua garrafeira, tem marcas da Austrália, Nova Zelândia, Espanha, França, Itália, Argentina (a sua última descoberta, quando esteve em Buenos Aires), Estados Unidos (sobretudo Napa Valley), Chile e Uruguai. Curiosamente, a sua companheira não bebia vinho, mas hoje gosta bastante e tem, inclusive, uma garrafeira própria, com predominância de brancos, que são os de que mais gosta.

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O motivo desta “separação de bens” é, no mínimo, cómico: “Certo dia, quando vivíamos em Madrid [Costinha jogou no Atlético entre 2006 e 2007], a Carla abriu um Le Petit Cheval. Cheguei às duas da manhã de um jogo, cansado, vi a garrafa ao pé do lava-louça com a rolha de fora, e pensei, chocado, que ela o tinha usado para cozinhar. Bebi o resto da garrafa nessa noite, para não dar mais hipótese, e depois ela explicou-me que recebeu umas amigas lá em casa, que eram namoradas ou mulheres de alguns colegas meus. Disse-me, ‘elas queriam vinho, então eu fui buscar uma garrafa e escolhi a que tinha o rótulo mais bonito’. A partir daí, comecei a comprar garrafas para ela, que são guardadas na sua garrafeira”, assume Francisco Costa.

De enófilo a produtor

Costinha conheceu António Boal, da Costa Boal Family Estates, num almoço de amigos regular, para o qual os participantes levam vinho. António tinha sido convidado nesse dia, e levou um vinho seu. “Achei que era um vinho baratíssimo, mas a verdade é que ‘deu um bigode’ aos outros todos, mais caros. Ficámos amigos a partir daí”, revela o futebolista. Entretanto, em 2018, António Boal convenceu-o a ir ver uma propriedade em Mirandela (na região de Trás-os-Montes, onde a Costa Boal nasceu) e convidou-o a entrar em negócio com ele. “Comprámos a vinha a meias e, a partir daí, fomos tratando do vinho em segredo, daí o nome do vinho Segredo 6 [o número da camisola que ostentou no FCP e na Selecção Nacional]. Ninguém soube de nada até sair, em 2022”. A vinha é velha, tem cerca de 83 anos e 3,5 hectares. “Fico sempre impressionado com a profundidade que a vinha tem, como guarda a água, o facto de ter xisto e quartzo no solo e as diferenças que isso confere aos vinhos… Estes pormenores fascinam-me, são tudo coisas novas que vou aprendendo. A minha cabeça está formatada para o futebol, mas a partir do momento em que entras neste mundo, tens sempre um espacinho no teu cérebro para ires colocando algumas informações, para que, quando vais falar sobre o tema, não sejas um total estranho na conversa. Gosto muito de saber. Sobretudo porque é uma coisa minha. E por ter este interesse é que não optei por ter simplesmente um rótulo com a minha assinatura numa prateleira de supermercado. Não digo que isso seja errado, mas eu estou investido nisto enquanto pessoa”, realça Costinha, que participa activamente no processo de produção dos seus vinhos. “Não há nada que não seja falado entre mim, o António e o Paulo Nunes [enólogo], e sou mesmo consultado, o que até acho piada. Eu pergunto-lhes ‘o que é que eu posso dizer que vocês já não saibam?’, e eles dizem-me que a minha opinião é importante e pode acrescentar ao que eles estão a pensar. Há uma relação de confiança entre os três. Uma das perguntas que fiz ao António e cuja resposta me agradou muito, foi ‘e se isto não der em nada?’, ele retorquiu ‘se não der, bebemo-lo nós’. Ou seja, não há neste projecto pressa de fazer as coisas para ontem”, adianta.

Não obstante o convite de António Boal, a ideia de produzir vinho já estava implantada na sua cabeça de Francisco Costa há muito tempo, embora a região fosse diferente. “Sou filho de um taxista, e a minha mãe, que era cozinheira, sempre trabalhou na casa de famílias que tinham propriedades com vinha no Alentejo, e eu tive a felicidade de os patrões convidarem sempre o filho dos seus funcionários para passar férias com eles e com os filhos, a caçar, andar a cavalo, etc… Por isso, sempre tive o desejo de, quando acabasse a minha carreira desportiva, ter um monte no Alentejo, com um ou dois cavalos e uma vinha pequena para me entreter, cuidar, fazer o meu vinho. O Alentejo é perto de Lisboa, e eu imaginava-me a escapar para um sítio desses ao fim-de-semana. A vontade ainda não me passou… Talvez quando os meus filhos ‘baterem as asas’. Não ponho metas nisso, mas não está esquecido. Por enquanto, vou muitas vezes a Estremoz ou Montemor-o-Novo, por exemplo. Sempre fui muito espontâneo, muitas vezes acordava e, se estava um bom dia, ia ao ginásio, como vou sempre, e depois pegava no meu pai, no meu sogro e noutro amigo que eles quisessem levar, e íamos a Portalegre comer um pitéu. Quem diz Portalegre, diz Redondo, Viseu e muitos outros sítios”, desabafa.
Quando lhe perguntamos quais os planos que a 2 CC tem a curto prazo, a resposta está na ponta da língua: “Queremos fazer um branco que marque a diferença, se aparecer uma vinha que achemos ter potencial… E também temos ideia de abrir uma loja, para ter os nossos produtos expostos ‘em casa’”.

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O influenciador original

Entre as várias histórias e momentos insólitos que Costinha nos contou, há uma particularmente engraçada, depois da sua chegada ao FC Porto. “Como é hábito em qualquer clube, fazíamos almoços de equipa. Num desse almoços, no restaurante Romando, em Vila do Conde, o prato principal ia ser arroz de cabidela, e apetecia-me beber um Batuta. Eis que o Jorge Costa diz, indignado, ‘vais beber Batuta?! Com pica no chão?!’, e eu respondi “eu bebo aquilo que me apetecer. Pago a garrafa e bebo-a sozinho se for preciso, não se preocupem’. Aí, o Vítor Baía perguntou se podia beber também e pagar o vinho a meias comigo. Lá veio a garrafa de Batuta para a mesa, que eu e o Vítor bebemos, sem deixar que mais alguém bebesse dela, apesar das queixas dos outros jogadores. Uns tempos depois, alguns deles — como o Jorge Costa, o Hélder Postiga, o Pedro Emanuel ou o Hugo Leal — acabaram por começar a vir comigo para os almoços e jantares vínicos, e por apreciar bons vinhos”, retratou, entre risos. “O Jorge Costa, inclusive, passou a ir muitas vezes comigo ao Douro, numa carrinha Chrysler vazia, que trazíamos de lá repleta de vinho: Gaivosa, Pacheca, Quinta do Côtto, sei lá… muita coisa, mesmo”.
Para terminar, questionámos sobre o vinho que bebeu para celebrar o mítico golo que marcou na baliza do Manchester United e que gelou Old Trafford, no minuto 90 de um dos jogos mais importantes do FC Porto na Liga dos Campeões, competição que o clube venceu, pela segunda vez, nessa época de 2003/2004. “Não me recordo exactamente de qual, mas ou foi um Almaviva, um L’Aventure Estate Cuvée ou um Opus One”. Costinha pode não se lembrar do vinho, mas os adeptos portistas nunca esquecerão aquele golo.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

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