Costinha: Nem só de bola viverá o homem

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“Como bom português, a gastronomia é algo de que não fico à margem”. Após uma vida profissional de conquistas futebolísticas, é esta frase que nos faz respeitar Costinha, nascido em 1974, em Lisboa. “Gosto muito de comer e tenho a felicidade não só de ser português, mas de haver em Portugal uma gastronomia bastante variada […]

“Como bom português, a gastronomia é algo de que não fico à margem”. Após uma vida profissional de conquistas futebolísticas, é esta frase que nos faz respeitar Costinha, nascido em 1974, em Lisboa. “Gosto muito de comer e tenho a felicidade não só de ser português, mas de haver em Portugal uma gastronomia bastante variada e muito boa”, diz-nos, assumindo que também isso facilitou a inclinação para o vinho.
Antes de ir para França — para jogar no AS Monaco, em 1997, com 22 anos — não consumia vinho regularmente, mas quando lá chegou, beber vinho às refeições e provar coisas diferentes passaram a ser hábitos frequentes. Foi aí que bebeu o primeiro vinho francês, que ainda hoje é um dos seus favoritos, Le Petit Cheval, um Saint-Émilion Grand Cru. Até aí, o percurso tinha sido feito pelo lisboeta Oriental e pelos madeirenses Machico e Nacional. Mais tarde, já no FC Porto, onde jogou de 2001 a 2005, Costinha teve também um momento de viragem em relação ao vinho. “Quando a minha esposa, a Carla, conheceu a esposa do Domingos Paciência, fomos jantar a casa deles. Nessa altura, eu ainda não o conhecia muito bem, mas queria levar um vinho e resolvi ir a uma loja comprá-lo. Cheguei à loja e fiz o que muita gente que não tem conhecimentos sobre vinho faz, olhar para a marca e preço. Acabei por pegar num Esporão, e o dono da garrafeira perguntou-me porque é que tinha escolhido aquele vinho. Eu disse-lhe, sem vergonha, que não percebia nada do tema e queria levar uma coisa boa para um jantar de amigos, mas que achava que um Esporão ficava sempre bem”, conta. Pelos vistos, o proprietário do espaço não ficou satisfeito e incentivou o ex-jogador a levar uma garrafa do vinho australiano Rosemount Estate, bem mais barata do que a de Esporão. “Se não gostares, vens cá e eu ofereço-te uma caixa de vinho”, foi a promessa. Costinha regressou, efectivamente, à loja, mas para comprar três caixas do dito Rosemount Estate. “Em vez de me identificar como ‘fulano x’ e tentar vender-me as coisas mais caras, como acontece na maior parte das vezes, o dono desta loja sugeria-me sempre o que era mais adequado para a situação e dava-me a provar muitos vinhos diferentes, independentemente do preço. Começou também a convidar-me para provas ou jantares vínicos de vários países, e foi aí que eu ganhei um grande gosto por vinho e entrei nesse meio”, revela. E fê-lo assim, com pensamento crítico, que mantém até hoje.

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Em jeito de desabafo, Francisco Costa confessa-nos: “Bebo vinhos nacionais muito bons, há bastante tempo, com um preço ridículo de baixo. É sempre uma coisa em que penso. Faz-me imensa confusão, sobretudo comparando com os preços e qualidade dos vinhos estrangeiros. E também me incomoda outra coisa. Vivi muitas vezes no estrangeiro; por exemplo, quatro anos no Mónaco, quatro em Itália, dois em Espanha, um na Rússia, e um ano na Suíça [quando foi director desportivo do Servette]; e viajo muito, e chateia-me abrir a carta de vinhos num restaurante e não haver uma referência portuguesa. Em Portugal, nos restaurantes, há, quase sempre, pelo menos três ou quatro referências de vinhos estrangeiros. Quer-me parecer que, enquanto produtores de vinho, não somos tão unidos na defesa dos nossos interesses e produtos, como eles são lá fora. Se calhar, devia haver também mais ajuda do Estado nesta área, sobretudo para os que criam valor. Mesmo ao nível da produção, é muito difícil arranjar mão-de-obra”, sublinha, antes de lembrar uma história mais positiva: “No ano passado fui a Roma e, num restaurante que me foi recomendado, havia uma garrafa de Soalheiro. Fiquei espantado. Chamei um funcionário e questionei-o sobre isso. Ele disse-me que um engenheiro romano, frequentador assíduo daquele espaço, tinha pedido o especial favor de haver sempre Soalheiro na carta…”.

Vinhos na garagem

Quando começou a acumular muitas garrafas de vinho, compradas e oferecidas, Costinha decidiu que tinha de lhes proporcionar um bom “alojamento”. Assim, em 2015, a empresa portuguesa Cave do Vinho construiu-lhe uma garrafeira de luxo, na garagem do seu prédio em Lisboa. A obra durou uma semana. “Vi a garrafeira da Niepoort na Quinta de Nápoles, em caracol, e gostei muito. Fui logo procurar a autoria”, descortina. Com um lado envidraçado e devidamente climatizado, o espaço ronda os 15m2 e apresenta as paredes em preto, que conferem elegância, estantes com as garrafas expostas na horizontal e em profundidade, e iluminação led integrada. Pelo chão, em pilhas, espalham-se as caixas cujos vinhos já não cabem nas prateleiras. Afinal, já passaram oito anos desde a construção da garrafeira, e os vinhos não param de chegar. Um olhar rápido basta-nos para perceber que há ali referências de praticamente todas as regiões vitivinícolas portuguesas, e de várias estrangeiras, rótulos de vários segmentos de preço, tudo coisas boas. Segundo Costinha, são mais de mil as garrafas que tem na sua cave, tintos em maioria. “Talvez por, à mesa, gostar de comidas pesadas, como feijoadas e assados, me incline mais para os tintos. Mas quando o branco é muito bom, adoro”, declara.

No que toca a perfis de tinto, prefere também os encorpados, e ao dizer isto, lembra-se de mais um episódio, no qual entra António Boal, produtor e amigo com quem partilha o projecto de vinhos 2 CC: “O António tem um vinho da casta Bastardo, e eu, pelo nome da casta, que me soava agressivo, pensei que fosse uma casta robusta. Fiz um assado. Pus o vinho no copo e parecia-me que estava diluído, tipo um Pinot. Achei que podia estar estragado e abri outra garrafa, que estava igual. Liguei ao António e ele explicou-me que o Bastardo ficaria melhor com uma pasta ou um risotto, e que não deveria beber aquele vinho com comidas muito fortes. Realmente, uma pessoa vai atrás de um estereotipo de palavras, e depois não tem nada que ver”, recorda. “Gosto muito dos tintos do Douro mas os de que eu gosto mais, talvez sejam os do Dão. Sempre achei que eram os mais parecidos com os vinhos franceses. Mas depois também bebo vinhos espectaculares do Alentejo, sobretudo Alicante Bouschet. A nível nacional temos, de facto, coisas divinais. Já lá de fora, gosto de um bocadinho de tudo”, afirma Costinha. Na sua garrafeira, tem marcas da Austrália, Nova Zelândia, Espanha, França, Itália, Argentina (a sua última descoberta, quando esteve em Buenos Aires), Estados Unidos (sobretudo Napa Valley), Chile e Uruguai. Curiosamente, a sua companheira não bebia vinho, mas hoje gosta bastante e tem, inclusive, uma garrafeira própria, com predominância de brancos, que são os de que mais gosta.

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O motivo desta “separação de bens” é, no mínimo, cómico: “Certo dia, quando vivíamos em Madrid [Costinha jogou no Atlético entre 2006 e 2007], a Carla abriu um Le Petit Cheval. Cheguei às duas da manhã de um jogo, cansado, vi a garrafa ao pé do lava-louça com a rolha de fora, e pensei, chocado, que ela o tinha usado para cozinhar. Bebi o resto da garrafa nessa noite, para não dar mais hipótese, e depois ela explicou-me que recebeu umas amigas lá em casa, que eram namoradas ou mulheres de alguns colegas meus. Disse-me, ‘elas queriam vinho, então eu fui buscar uma garrafa e escolhi a que tinha o rótulo mais bonito’. A partir daí, comecei a comprar garrafas para ela, que são guardadas na sua garrafeira”, assume Francisco Costa.

De enófilo a produtor

Costinha conheceu António Boal, da Costa Boal Family Estates, num almoço de amigos regular, para o qual os participantes levam vinho. António tinha sido convidado nesse dia, e levou um vinho seu. “Achei que era um vinho baratíssimo, mas a verdade é que ‘deu um bigode’ aos outros todos, mais caros. Ficámos amigos a partir daí”, revela o futebolista. Entretanto, em 2018, António Boal convenceu-o a ir ver uma propriedade em Mirandela (na região de Trás-os-Montes, onde a Costa Boal nasceu) e convidou-o a entrar em negócio com ele. “Comprámos a vinha a meias e, a partir daí, fomos tratando do vinho em segredo, daí o nome do vinho Segredo 6 [o número da camisola que ostentou no FCP e na Selecção Nacional]. Ninguém soube de nada até sair, em 2022”. A vinha é velha, tem cerca de 83 anos e 3,5 hectares. “Fico sempre impressionado com a profundidade que a vinha tem, como guarda a água, o facto de ter xisto e quartzo no solo e as diferenças que isso confere aos vinhos… Estes pormenores fascinam-me, são tudo coisas novas que vou aprendendo. A minha cabeça está formatada para o futebol, mas a partir do momento em que entras neste mundo, tens sempre um espacinho no teu cérebro para ires colocando algumas informações, para que, quando vais falar sobre o tema, não sejas um total estranho na conversa. Gosto muito de saber. Sobretudo porque é uma coisa minha. E por ter este interesse é que não optei por ter simplesmente um rótulo com a minha assinatura numa prateleira de supermercado. Não digo que isso seja errado, mas eu estou investido nisto enquanto pessoa”, realça Costinha, que participa activamente no processo de produção dos seus vinhos. “Não há nada que não seja falado entre mim, o António e o Paulo Nunes [enólogo], e sou mesmo consultado, o que até acho piada. Eu pergunto-lhes ‘o que é que eu posso dizer que vocês já não saibam?’, e eles dizem-me que a minha opinião é importante e pode acrescentar ao que eles estão a pensar. Há uma relação de confiança entre os três. Uma das perguntas que fiz ao António e cuja resposta me agradou muito, foi ‘e se isto não der em nada?’, ele retorquiu ‘se não der, bebemo-lo nós’. Ou seja, não há neste projecto pressa de fazer as coisas para ontem”, adianta.

Não obstante o convite de António Boal, a ideia de produzir vinho já estava implantada na sua cabeça de Francisco Costa há muito tempo, embora a região fosse diferente. “Sou filho de um taxista, e a minha mãe, que era cozinheira, sempre trabalhou na casa de famílias que tinham propriedades com vinha no Alentejo, e eu tive a felicidade de os patrões convidarem sempre o filho dos seus funcionários para passar férias com eles e com os filhos, a caçar, andar a cavalo, etc… Por isso, sempre tive o desejo de, quando acabasse a minha carreira desportiva, ter um monte no Alentejo, com um ou dois cavalos e uma vinha pequena para me entreter, cuidar, fazer o meu vinho. O Alentejo é perto de Lisboa, e eu imaginava-me a escapar para um sítio desses ao fim-de-semana. A vontade ainda não me passou… Talvez quando os meus filhos ‘baterem as asas’. Não ponho metas nisso, mas não está esquecido. Por enquanto, vou muitas vezes a Estremoz ou Montemor-o-Novo, por exemplo. Sempre fui muito espontâneo, muitas vezes acordava e, se estava um bom dia, ia ao ginásio, como vou sempre, e depois pegava no meu pai, no meu sogro e noutro amigo que eles quisessem levar, e íamos a Portalegre comer um pitéu. Quem diz Portalegre, diz Redondo, Viseu e muitos outros sítios”, desabafa.
Quando lhe perguntamos quais os planos que a 2 CC tem a curto prazo, a resposta está na ponta da língua: “Queremos fazer um branco que marque a diferença, se aparecer uma vinha que achemos ter potencial… E também temos ideia de abrir uma loja, para ter os nossos produtos expostos ‘em casa’”.

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O influenciador original

Entre as várias histórias e momentos insólitos que Costinha nos contou, há uma particularmente engraçada, depois da sua chegada ao FC Porto. “Como é hábito em qualquer clube, fazíamos almoços de equipa. Num desse almoços, no restaurante Romando, em Vila do Conde, o prato principal ia ser arroz de cabidela, e apetecia-me beber um Batuta. Eis que o Jorge Costa diz, indignado, ‘vais beber Batuta?! Com pica no chão?!’, e eu respondi “eu bebo aquilo que me apetecer. Pago a garrafa e bebo-a sozinho se for preciso, não se preocupem’. Aí, o Vítor Baía perguntou se podia beber também e pagar o vinho a meias comigo. Lá veio a garrafa de Batuta para a mesa, que eu e o Vítor bebemos, sem deixar que mais alguém bebesse dela, apesar das queixas dos outros jogadores. Uns tempos depois, alguns deles — como o Jorge Costa, o Hélder Postiga, o Pedro Emanuel ou o Hugo Leal — acabaram por começar a vir comigo para os almoços e jantares vínicos, e por apreciar bons vinhos”, retratou, entre risos. “O Jorge Costa, inclusive, passou a ir muitas vezes comigo ao Douro, numa carrinha Chrysler vazia, que trazíamos de lá repleta de vinho: Gaivosa, Pacheca, Quinta do Côtto, sei lá… muita coisa, mesmo”.
Para terminar, questionámos sobre o vinho que bebeu para celebrar o mítico golo que marcou na baliza do Manchester United e que gelou Old Trafford, no minuto 90 de um dos jogos mais importantes do FC Porto na Liga dos Campeões, competição que o clube venceu, pela segunda vez, nessa época de 2003/2004. “Não me recordo exactamente de qual, mas ou foi um Almaviva, um L’Aventure Estate Cuvée ou um Opus One”. Costinha pode não se lembrar do vinho, mas os adeptos portistas nunca esquecerão aquele golo.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

António Braga: O início da aventura

António Braga

Há muitos anos que conheço o António Braga como enólogo da Sogrape. Fui ficando com a ideia de que a carreira estava traçada e que por lá ficaria muitos e bons anos. Por isso, quando nos comunicou que iria sair da empresa, fiquei muito admirado e ao mesmo tempo expectante. A conversa veio depois e […]

Há muitos anos que conheço o António Braga como enólogo da Sogrape. Fui ficando com a ideia de que a carreira estava traçada e que por lá ficaria muitos e bons anos. Por isso, quando nos comunicou que iria sair da empresa, fiquei muito admirado e ao mesmo tempo expectante. A conversa veio depois e as explicações também: “se queria ter um projecto meu, tinha mesmo de sair da Sogrape, andava há muito a magicar vinhos que gostava de fazer e por isso achei que era agora ou nunca”. Foi agora. Braga acrescenta: “não tendo eu vinhas ou adegas, não estou preso a uma região específica ou a uma vinha, isso permite-me, de uma forma bastante flexível, fazer vinhos onde quero, nos terroirs que mais me impressionam, com as castas que mais gosto”. E tratou logo de se colocar em campo para poder organizar um projecto coerente que lhe permitisse gerir melhor o tempo e fazer o que gostava: criar vinhos seus e apoiar outros projectos, como consultor. Nasceu assim a Terra Vinea, uma empresa com cinco sócios onde juntou mais quatro amigos, reservando para si a maioria do capital. A ideia é fazer vinhos originais, buscar parcelas esquecidas ou castas menos badaladas, mas conseguir que sejam vinhos expressivos e com alma. A ideia é boa e até se pode ter quem forneça uvas para o projecto mas… onde é que se põe um plano destes em prática?

A resposta a esta pergunta representou um grande passo dado por António Braga: no Douro existe uma adega da família de Mafalda Machado (enóloga) onde, juntamente com o seu marido americano – Eric Nurmi – se criou a empresa Grape to Bottle – com prestação de serviços em todas as etapas da produção de vinho. Assim, na mesma adega temos vários produtores, cada um a fazer o seu vinho, com especificações diferentes. O estágio em barrica faz-se também aqui e só o engarrafamento se efectua com recurso a aquisição externa de serviços. Eric é quem, a tempo inteiro, coordena os vários trabalhos. Foi lá que o encontrámos, em plena vindima, com muita gente na adega. Uma festa! São neste momento mais de uma dúzia os produtores que recorrem a esta adega para poderem fazer os seus vinhos. A localização (muito perto da Régua) é também uma vantagem por estar no centro da região. E com o crescimento de novas consultorias (mesmo no Douro e Verdes), António Braga já tem um jovem enólogo – João Alvares Ribeiro – a trabalhar com ele a tempo inteiro. Adquiriram-se cubas e barricas sobretudo usadas, algumas que chegaram da Borgonha com 4 anos de uso. O projecto aponta muito mais para madeira usada do que para barricas novas.

Resolvido o primeiro problema foi preciso diversificar a aquisição de uvas e partir para a descoberta de vinhas e parcelas que pudessem corresponder ao objectivo. Nasceram assim os primeiros vinhos, para já um branco feito com Alvarinho em Monção, e um tinto do Douro elaborado com uvas de Mourisco, a tal casta que há alguns (poucos) anos ninguém queria ouvir falar. Os produtores que forneceram as uvas para a primeira vindima, de que saíram agora os primeiros vinhos, voltaram a fornecer em 2023 e assim se espera que continuem, criando uma relação forte entre produtor e enólogo. Para António Braga, a sua nova aventura desenrola-se em planos bem distintos: os seus vinhos que saem com diferentes rótulos mas sempre com a sua assinatura, e o trabalho de consultoria que se estende por várias zonas do país, desde os Verdes (quinta da Minhoteira), passando pelo Douro (quinta da Ervedosa, quinta da Eiró, quinta D. Mafalda e Solar de Cambres). Em alguns casos trata-se de pequenas quintas ainda desconhecidas do grande público e de onde sairão vinhos com o acompanhamento técnico (quer na viticultura, quer na enologia) da Terra Vinea. No Alentejo está a desenvolver novos projectos com a empresa Abegoaria – criação de uma linha de Fine Wines – a partir da Herdade do Gamito mas não só, e também com a Casa Relvas.

O portefólio tem assim duas linhas: uma assente em terroirs mais tradicionais e, como nos disse, “Com uma estética mais convencional”. Essa é a gama Ipiranga. Saiu em Novembro o Ipiranga Alvarinho 2022, feito em Monção e fermentado em barricas usadas com estágio sobre borras totais durante 10 meses. Em Março, acontecerá o lançamento de 3.600 Garrafas do Ipiranga Douro tinto 2022, este feito com Touriga Francesa, Touriga Nacional, Tinto Cão e Sousão. Existirá uma segunda linha que é composta de vinhos mais originais, castas menos conhecidas, processos menos comuns. O primeiro vinho dessa gama é o Cão que Ladra Mourisco Douro tinto 2022, de que se fizeram apenas 891 garrafas. As uvas vêm de uma vinha com cerca de 40 anos, plantada a 550 metros de altitude, na freguesia da Lousa no Douro Superior; fermentou em lagar com 50% de cacho inteiro, estagiou em barrica usada

Tal como acontece com todos os novos projectos do sector do vinho, António Braga vai sentir as dores do crescimento: as garrafas chegarão a tempo? Os rótulos foram aprovados? As rolhas estão certas para a garrafa que temos? E as caixas de cartão quando é que são entregues? E como é que vou distribuir os vinhos? Entrego tudo a um ou prefiro vários distribuidores? E onde é que quero chegar? Fico-me pela paróquia ou vou tentar os mercados externos? Estas são o tipo de questões que nunca se colocaram a António Braga enquanto foi enólogo de uma grande casa de vinhos. Feito o balanço, confessou-nos que continua a acreditar que foi a melhor decisão que podia ter tomado. Como diz o ditado (nem sei bem se é ditado…), a sorte só sorri aos ousados!

 

Para António Braga, a sua nova aventura desenrola-se em planos bem distintos: os seus vinhos que saem com diferentes rótulos mas sempre com a sua assinatura, e o trabalho de consultoria.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

Crasto: Na vinha, onde tudo começa

Quinta do Crasto

Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho […]

Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho mais tempo de garrafa até chegar ao mercado. Precisamente, ao mercado chegaram agora os tintos de topo da Quinta do Crasto da colheita de 2019, desde logo o Vinha Maria Teresa (essa vindima não “deu” Vinha da Ponte), o Touriga Franca e o Touriga Nacional.
Para o enólogo Manuel Lobo “2019 foi um ano excepcional, caracterizado por uma produtividade acima da média (mais do que em 2017 e18). No entanto, a Primavera e Inverno foram bastante secos, levando níveis de reservas de água no solo demasiado baixos para as necessidades das videiras”. Porém, o deficit hídrico acabou por não afectar as videiras, uma vez que nos meses de Verão (Junho, Julho, Agosto) as temperaturas foram amenas (“menos 5ºC do que a média dos últimos 5 anos na Quinta do Crasto”, refere o enólogo). “As videiras mostravam áreas foliares equilibradas e de aparência saudável”, diz, e a vindima, iniciada com as uvas brancas no dia 26 de Agosto (as tintas começaram a 31 de Agosto), decorreu com noites frias e dias quentes. “Essencial mesmo foi a chuva que chegou nos dias 21 e 22 de Setembro, que ajudou a apurar a maturação das castas mais tardias”, adianta Manuel Lobo. No Crasto, a colheita encerrou no dia 11 de Outubro, com as uvas das vinhas situadas a maior altitude. “Um ano perfeito, de maturações lentas, como eu gosto”, confessa o enólogo.
Aqui, como em muitas outras propriedades no Douro, as diversas parcelas têm comportamentos muito distintos consoante a sua idade, castas plantadas, composição do solo, altitude ou exposição solar. Este último factor, por exemplo, é determinante nas vinhas (e consequentemente nos vinhos) Vinha Maria Teresa e Vinha da Ponte. Enquanto a primeira aprecia os anos quentes (“protegida do sol, às 4 da tarde já está à sombra”, diz Manuel Lobo), a segunda, mais soalheira, prefere os anos mais frios.
De qualquer modo, por melhores que sejam as uvas, para os vinhos de topo é feita muita selecção à entrada da adega. E depois da vinificação (na super-equipada “adega das vinhas velhas”, como lhe chamam na casa) e do estágio em madeira, só mesmo as melhores barricas chegam ao lote final de Maria Teresa ou Vinha da Ponte. As restantes vão parar ao Crasto Vinhas Velhas Reserva, que assim beneficia da qualidade e carácter que estas emblemáticas vinhas transmitem aos vinhos.

Quinta do Crasto
Miguel Roquette está envolvido na gestão da propriedade familiar, aqui acompanhado pelo enólogo Manuel Lobo.

MARIA TERESA, PLANTA A PLANTA

Na Quinta do Crasto, rodeados por aquela paisagem magnífica, espraiando os olhos pelo rio Douro, qualquer conversa começa e acaba com as vinhas. E quando abordamos os três tintos de 2019 agora apresentados, isso torna-se ainda mais inevitável, já que todos têm uma origem bem precisa. E Tiago Nogueira, o responsável de viticultura da empresa, conhece-a melhor do que ninguém.
Maria Teresa, cujo nome deriva da neta de Constantino de Almeida, fundador da Quinta do Crasto, é uma vinha mais do que centenária, e é também uma das maiores (se não a maior) vinha velha do Douro, com os seus impressionantes 4,7 hectares em socalcos tradicionais virados a nascente. São 54 castas as que ali se encontram identificadas. Representa uma autêntica arca do tesouro que a família Roquette, proprietária da quinta, tem procurado preservar e multiplicar, já que, como é natural em vinhas desta idade, muitas videiras vão morrendo ao longo do tempo (na Maria Teresa há 30% de falhas).
O primeiro grande passo no sentido dessa preservação foi o projecto PatGen Vineyards, implementado em 2013, já lá vão mais de 10 anos, portanto. “Precisávamos de salvaguardar e, consequentemente, perpetuar o património genético das vinhas velhas, dada a antiguidade destas plantações e a multiplicidade de variedades, incluindo as minoritárias ou mesmo inexistentes noutros locais”, explica Tiago Nogueira.
Assim, numa primeira abordagem, foi então realizada a piquetagem da vinha (com geo-referenciação diferencial com precisão à videira) resultando no mapeamento das 58 parcelas que compõem a vinha Maria Teresa e a sua integração num Sistema Integrado de Gestão de Propriedades (SIGP). No final, foram contabilizados 31.825 pontos de plantação com coordenadas GPS (que representam o somatório do número de videiras, falhas e bacelos), das quais 21.922 são videiras. Com recurso a drone e imagens de satélite, que possibilitam imagens de alta resolução, é igualmente possível antecipar a perda de material genético e a contagem de plantas em risco. Toda esta informação fica disponível de forma digital, funcionando como uma espécie de “vigia”, que permite perceber o estado de saúde de cada uma das plantas que existem na vinha, cuidando-as de forma mais optimizada às suas necessidades.
“Com a informação fornecida, as equipas de viticultura e enologia podem intervir, por exemplo, na fertilização manual de videiras que estejam mais vulneráveis ou em falência, e até decidir a data de vindima. Esta tecnologia permite igualmente identificar os pontos débeis e actuar com rapidez, fazendo as correcções necessárias na planta ou salvaguardar esse material genético”, refere Tiago Nogueira.
No âmbito deste trabalho, foi igualmente feita uma classificação ampelográfica das videiras, por parte de ex-colaboradores do IVDP, culminando na identificação visual das tais 54 variedades, maioritariamente tintas (tais como Alvarelhão, Casculho, Pilongo, São Saul), contabilizando-se também uma variedade tinta desconhecida e 4 brancas (Alvaraça, Malvasia Fina, Malvasia Rei e Gouveio). Como base em todo este manancial de informação, foi criado um campo de multiplicação de genótipos na propriedade, ou seja, uma espécie de “viveiro reserva” onde todas estas castas estão representadas, o que permite proceder à reposição das videiras que morrem por variedades geneticamente idênticas, perpetuando, desta forma, o encepamento integral da vinha Maria Teresa. Numa terceira abordagem, em parceria com a UTAD, está-se a proceder à caracterização genética, agronómica e química/enológica das castas desta histórica vinha.
“Queremos ter um conhecimento mais profundo da tipicidade e diversidade de variedades do Douro, um dos factores diferenciadores mais importantes da região. Quanto maior for esse conhecimento, maiores serão também as hipóteses de fazer face a pragas, doenças e alterações climáticas”, diz o viticólogo. Num futuro próximo, a Quinta do Crasto espera extrapolar este trabalho para as restantes vinhas velhas da propriedade, nomeadamente a igualmente histórica Vinha da Ponte.

VINHA NOVA, À MODA ANTIGA

No entanto, apesar de todos os cuidados, a vinha Maria Teresa não vai durar eternamente. Do mesmo modo, como acontece em todas as vinhas velhas, nem todas as castas que lá se encontram são excelentes do ponto de vista enológico. Assim, de forma faseada, em 2019, 2021 e 2023, a Quinta do Crasto resolveu plantar dois hectares de vinha em socalcos tradicionais suportados por muros de pedra de xisto. O material genético para as enxertias veio, naturalmente, da vinha Maria Teresa, mas das 54 variedades ali identificadas foram seleccionadas “apenas” 40, aquelas que se enquadram no perfil enológico pretendido por Manuel Lobo, descartando-se as castas que por norma são rejeitadas no campo e na mesa de escolha durante vindima. Das castas seleccionadas, foram pré-definidos “blends de variedades” para em função dos conhecimentos existentes sobre cada casta, se poderem aplicar especificamente a diferentes zonas da parcela, tentando obter o melhor enquadramento entre a casta e as características microclimáticas e de solo. Ou seja, sendo um field blend, a localização/enxertia de cada casta não foi feita forma aleatória. Tiago Nogueira exemplifica: “Numa zona mais fértil e húmida da parcela, fez parte do blend de variedades pré-definido, por exemplo a Tinta Barroca e o Sousão, e evitamos nestas micro-zonas, a presença, por exemplo, de Tinta Roriz ou Tinta Amarela, que naturalmente ocuparam zonas de solo mais pobre e seco.” Ou seja, respeitando os princípios tradicionais, estes foram aplicados de forma científica e com base nos conhecimentos de hoje. Das três plantações de porta-enxertos, a de 2019 já se encontra enxertada e em produção, a de 2021 foi enxertada no ano que passou, e a de 2023 será enxertada em 2025. A plantação, em alta densidade (6500 videiras por hectare) está a ser conduzida no tradicional Guyot e apoiada por rega gota-a-gota para garantir o sucesso da implantação.
“Este modelo tem muitas vantagens”, defende Tiago Nogueira. “Desde logo, a maior densidade de plantação implica menor vigor e menos produção por cepa, o que irá aumentar a qualidade da uva e dos mostos sem baixar a produtividade por hectare. Por outro lado, acreditamos que não vamos precisar de esperar tantos anos quanto num modelo convencional para obter vinhos de primeira linha. E conseguimos obter o blend pretendido directamente do campo para a adega, tentando mimetizar as vinhas velhas mais importantes da Quinta do Crasto. Há também uma componente estética: a beleza da vinha tradicional enquadra-se no património paisagístico da propriedade.”
Nem tudo são vantagens, porém. O declive dos socalcos e o compasso de plantação não permitem a mecanização da maioria das tarefas, sendo muito dependente de mão de obra, um bem cada vez mais escasso no Douro. “É uma questão de proporção”, diz Tiago Nogueira. “Por enquanto, a capacidade operativa da estrutura de viticultura da empresa consegue lidar bem com a área de vinha tradicional existente”.

TOURIGAS, NACIONAL E FRANCA

A verdade é que nem só de field blend e castas raras com nomes estranhos vivem os vinhos de topo da Quinta do Crasto. As igualmente clássicas, ainda que menos “exóticas”, Touriga Nacional e Touriga Franca são muito importantes para a construção do vasto portefólio da empresa. E, desde logo, para os seus mais famosos vinhos varietais. No entanto, tal como acontece com os tintos Maria Teresa e Vinha da Ponte, também aqui a vinha faz diferença, e muito. E estas parcelas de Nacional e Franca (e Roriz, já agora) têm também uma estória para contar.
Antes de mais, é preciso ver o contexto: nos anos 80, a Quinta do Crasto produzia unicamente vinho do Porto. Antecipando, quem sabe, a possibilidade de desenvolver um projecto de vinhos Douro (o que viria a acontecer na vindima de 1994), o casal Leonor e Jorge Roquette decidiu plantar cerca de 10 hectares de vinha nas encostas da Quinta do Crasto. Para tal, solicitaram o apoio do conceituado viticólogo Professor Nuno Magalhães que os aconselhou a plantar as três castas mais estruturantes da região: Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Franca. Escolheram-se as parcelas de meia encosta, entre os 250 e os 350 metros de altitude, situadas acima das emblemáticas vinhas velhas da Quinta que, contra o pensamento dominante na época, entenderam preservar. Assim, em 1984, 1985 e 1986, numa encosta com um declive de 30 a 40% de inclinação, exposta maioritariamente a Sul, construíram-se os patamares de 2 linhas de plantação que começavam a surgir no Douro como forma de permitir a mecanização das vinhas, até à data pouco frequente. A plantação foi feita com porta-enxertos, depois enxertados com varas de selecção massal recomendadas por Nuno Magalhães. Estas novas parcelas, plantadas em sequeiro (sem rega), totalizaram 5 ha de Tinta Roriz, 3,5 de Touriga Nacional (a Touriga “antiga”, não a de selecção clonal) e 1,5 ha de Touriga Franca.
A enxertia foi feita em ‘rupestres du lot’ e (“afortunadamente”, como diz Tiago Nogueira), foram utilizados clones pouco produtivos. “No caso da Tinta Roriz é por demais evidente, quando comparamos a produção desta parcela com as parcelas de Roriz plantadas mais recentemente, estas produzem 3 a 4 vezes mais”, refere o técnico. Somando a isto o facto de as parcelas em causa estarem bem expostas, em solos de baixa fertilidade, e serem constituídas por videiras com quase 40 anos é relativamente fácil perceber que a fruta ali originada “merece ser vinificada de forma isolada e aparecer no mercado em vinhos varietais”, remata o enólogo Manuel Lobo.

DE VOLTA AO VINHO

Ainda que não envolvidas nos vinhos agora apresentados, importa referir que a Quinta do Crasto tem também uvas brancas, de parcelas plantadas entre 2015 e 2017 nas zonas mais altas da propriedade. São cerca de 10 hectares de vinha ao alto, a mais de 500 metros de altitude, plantada com as castas Viosinho, Gouveio, Verdelho, Folgasão e Arinto. Nos últimos anos tem sido ali feito um trabalho muito intenso de melhoria da fertilidade do solo e em 2023 foi instalado um sistema de rega-gota-a-gota para complementar a disponibilidade hídrica das plantas e promover o seu equilíbrio. O destino destas uvas é o Crasto branco.
Para terminar esta volta por algumas das mais emblemáticas vinhas do Crasto, nada como regressar ao ponto de partida, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa. Ao lado do 2019 agora apresentado, tive oportunidade de provar os 2017 e 2018. E, mais uma vez, como tantas outras ao longos destes 30 e muitos anos de escrita de vinhos, fiquei convencido de que só percebemos inteiramente a grandeza de um vinho quando o colocamos ao lado de outros potencialmente tão grandes quanto ele. Se o 2018 se mostra fechado de aroma, mais em elegância do que potência, muito redondo, polido, profundo, rico, cheio de classe, o 2017 é ainda uma criança, enorme, tenso, pleno de raça, com fruta madura de enorme qualidade, textura de seda, especiaria, muita frescura e imenso brilho, com anos e anos pela frente. Só que, comparado com estes, o 2019 vai ainda mais longe, atingindo uma dimensão até agora, porventura, inalcançada. A nota de prova reflecte aquilo que o Maria Teresa 2019 mostra ser: absoluta perfeição numa garrafa.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

 

Caves Velhas: O regresso de uma marca com história

Caves Velhas

A Enoport Wines apresentou recentemente, ao mercado, os três primeiros vinhos da gama Prestige da marca Caves Velhas, um branco de Bucelas, um tinto do Dão e outro de Lisboa. O evento decorreu na antiga adega das Caves Velhas, em Bucelas. Segundo Nuno Santos, CEO da empresa, a história da marca começou em 1940, quando […]

A Enoport Wines apresentou recentemente, ao mercado, os três primeiros vinhos da gama Prestige da marca Caves Velhas, um branco de Bucelas, um tinto do Dão e outro de Lisboa. O evento decorreu na antiga adega das Caves Velhas, em Bucelas.
Segundo Nuno Santos, CEO da empresa, a história da marca começou em 1940, quando as Adegas Camilo Alves — empresa de volume criada em 1881 por João Camilo Alves — já estava bem estabelecida no mercado nacional, sobretudo em Lisboa. A aposta na produção e comercialização de vinhos de melhor qualidade “foi uma iniciativa do neto do fundador da empresa, João Júlio Camilo Alves, que criou a marca Caves Velhas, a primeira de qualidade que as Adegas Camilo Alves tiveram”, explicou o gestor durante o evento. Os vinhos foram comercializados como “Garrafeira”, na altura o símbolo maior de qualidade para o mercado nacional.

Brancos e tintos de Bucelas

Caves Velhas eram vinhos de uvas de Bucelas. Não apenas brancos da casta Arinto, cuja qualidade já era reconhecida pelo mercado na época, mas também tintos, já que o encepamento da região, na altura, também incluía variedades que os produziam. Numa época em que não havia ainda grande preocupação em destacar denominações de origem como símbolo de qualidade, salientava-se a casa produtora, a marca e a qualidade do vinho contido nas garrafas.
Muitos anos mais tarde, as Caves Velhas, que já tinham bons resultados com os seus Garrafeira e Romeira, passaram a tê-los, a reboque, também com os seus vinhos do Dão. Entretanto, as Caves Velhas criaram uma pequena diferenciação, na altura com mais duas a três empresas que acabaram por desaparecer, o lançamento de garrafas de vinho envolvidas em juta, que se tornaram numa espécie de ícone das Caves Velhas. Isto foi o que ocorreu de mais significativo desde os anos 40 até 1980, os de maior sucesso da marca até agora.Em 2015, a Enoport Wines — empresa proprietária da marca Caves Velhas, após ter adquirido as Adegas Camilo Alves e outras empresas, e procedido à sua fusão — tinha um universo de marcas muito grande e não conseguia focalizar-se, ou desenvolver e investir em marketing em nenhuma delas.
“A solução encontrada foi parar para pensar e concluir que era impossível trabalhar com mais de 100 marcas”, contou Nuno Santos. A decisão tomada depois foi reduzir o portefólio para dez referências, que não deveriam ser apuradas de ânimo leve, já que isso poderia ter um impacto significativo no negócio. “O processo teve de ser bem estudado e fundamentado”. Foram definidos critérios para a escolha, como o volume de vendas, a margem libertada ou o potencial de crescimento das marcas seleccionadas. Como muitas referências reuniam as características necessárias, foram acrescentados mais dois critérios: a sua história e o património que lhes estava associado, o que levou a marca Caves Velhas a passar para o topo da selecção, apesar de, na altura, estar em grande declínio. “Quando entrou na esfera da Enoport, em 2000, Caves Velhas não era uma das referências que sobressaia no grupo, nem tinha potencial de crescimento significativo”, revelou Nuno Santos, acrescentando que a empresa até pensou em abandoná-la.

Quando foi definido o portefólio final, que incluiu a marca, iniciou-se o processo de investigação sobre a sua história, que tem hoje mais de 80 anos, “também para se descobrir o que tinha resultado em termos de gestão para a referência ter sucesso, e os problemas que levaram ao seu declínio”, salientou o gestor. Isso foi feito para se encontrarem formas de pegar no caminho feito pela marca nos seus anos de ribalta, actualizando-as para as exigências e critérios dos dias de hoje. “O objectivo era fazer com que a marca tivesse sucesso novamente, o que não aconteceria, necessariamente, de um dia para o outro”, disse Nuno Santos.

Nem sempre as modas resultam

Depois de definidas as características principais que definiam a marca, o que fazia os consumidores reconhecerem-na e valorizarem-na, “chegou-se à conclusão que foi o critério de não seguir modas”, explicou o gestor. De todo esse trabalho resultou um processo que levou à divisão da marca em três segmentos: Signature, o mais baixo, Prestige, o intermédio e Elite, o mais alto, que ainda não foi lançado. Após terem saído os vinhos da primeira, no ano passado, a Enoport lançou, este ano, a segunda, que inclui algumas aguardentes e vinhos Garrafeira da colheita de 2018.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Quinta Dona Sancha: Vinhos de vinha e vinhos de casta, em Silgueiros

É claramente um projecto muito local que nasceu da fusão de duas propriedades – quinta da Avarenta e quinta do Senhor Rocha. O mentor enológico do projecto continua a ser Paulo Nunes com suporte do responsável de viticultura Filipe Oliveira e o novo enólogo-residente Diogo Santos. Os vinhos da linha Vinha da Avarenta são de […]

É claramente um projecto muito local que nasceu da fusão de duas propriedades – quinta da Avarenta e quinta do Senhor Rocha. O mentor enológico do projecto continua a ser Paulo Nunes com suporte do responsável de viticultura Filipe Oliveira e o novo enólogo-residente Diogo Santos.
Os vinhos da linha Vinha da Avarenta são de lote por ter ênfase na vinha e não numa casta. Na composição do branco entram mais de três variedades, incluindo Cerceal-Branco, Malvasia Fina e Bical, curiosamente, sem Encruzado. “A matriz do vinho passa por Cerceal, uma das castas mais ácidas” – sublinha Paulo Nunes. Sem estágio em barrica, para preservar os aromas primários mais nítidos; para dar volume de boca e alguma untuosidade, faz-se batonnage na cuba.

O tinto da Vinha da Avarenta, desta vez com Jaen, Tinta Pinheira e Baga, ainda não está no mercado e só será lançado no final do 1º semestre – inicio do 2º semestre de 2024. Neste momento está a descansar em garrafa, mas a prova que fizemos revelou um vinho muito fino, de grande beleza sensorial a expressar a região e a sub-região. É só esperar por ele.
Novas colheitas de monovarietais incluem Encruzado e Cerceal-Branco (não confundir com Cercial na Bairrada e Sercial na Madeira).
Na quinta existe Encruzado de várias parcelas distintas. Para o estágio em barrica procuram uvas com acidez mais alta e o pH mais baixo. O vinho fermenta e estagia em barricas de carvalho francês e húngaro de 500 litros, novas e usadas. O Cerceal-Branco “é consistente em termos de produção e tem componente ácido forte, mas é uma casta subvalorizada no Dão” – conta Paulo Nunes. Na sua vinificação é preciso sempre trabalhar uma parte em inox (fermentação e estágio), porque ao contrário do Encruzado que “consegue romper a madeira, o Cerceal é mais lento no desenvolvimento dos aromas”. Por exemplo, mesmo sendo uma casta bastante contida em termos aromáticos, se fermentar o Encruzado a temperaturas mais baixas, consegue-se alguma exuberância. No Cerceal é mais difícil de conseguir. “A casta é muito neutra, mas evolui muito bem” – assegura.

Dona Sancha
O monovarietal de Touriga Nacional 2019 já está no mercado e foi provado pela GE anteriormente. Entretanto, merece ser mencionado por ter um carácter muito distinto da maioria das Tourigas e apresentar uma bela evolução. Há 15 anos Paulo Nunes pensou que era fácil de fazer um brilharete com Touriga Nacional. Hoje, está convencido que é uma das castas mais difíceis de trabalhar. “É tão impositiva que é preciso ter muito cuidado a tomar conta dela. Na Touriga Nacional como na Pinot Noir, é muito ténue a linha que separa o vinho que soa a música clássica daquele que é música pimba”. Sobretudo numa sub-região mais quente, como Silgueiros, cai facilmente na fruta muito madura, doce e enjoativa. No caso do Quinta Dona Sancha a Touriga não quer ser demasiado óbvia. Tem aromas de cereja (mas muito sóbria) e esteva, concentrado, mas não efusivo. Encorpado e austero, com energia de acidez perfeita, nada ostensivo, com grande vocação para mesa.

Dona Sancha

 

 

Um dos objectivos da casa é recuperar as castas antigas e tradicionais do Dão, para contrariar a tendência geral de afunilar o leque das castas em meia-dúzia principais, e para mostrar que há mais vida para além da Touriga Nacional ou Encruzado. A solução prática passou pela plantação das 39 variedades existentes no Centro de Estudo de Nelas numa parcela para avaliar o potencial de cada uma. Algumas, claro, ficam pelo caminho, até porque não se dão todas de igual forma em sítios diferentes dentro da mesma região. Por exemplo, uma das castas chamada Arinto do Interior (que, para variar, não tem nada a ver com Arinto) tem um comportamento em Nelas completamente diferente daquele que demonstra na quinta em Silgueiros. E há muitos factores por trás desta variação de comportamento. Um deles é o solo. Ao contrário da generalização, o solo no Dão não é todo granítico e não é todo pobre. “O solo da Serra é mais rico do que o solo no vale do rio Dão” – exemplifica Paulo Nunes.
Fazer ensaios com tantas castas plantadas é um projecto de longo prazo, mas o proprietário da Quinta Dona Sanha vê a sua missão neste trabalho minucioso: “a procura de irreverência, experimentação, que acaba por ser benéfico à região”. “Será um trabalho geracional e não só mais um projecto” – esta é a visão de Rui Parente.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Quinta Dona Matilde: A âncora da família Barros

Quinta Dona Matilde

Quem vai da Régua para o Pinhão pela estrada que acompanha o curso do rio, não pode mesmo deixar de ver a Quinta Dona Matilde, na margem direita, imponente na sua longa frente de rio, com casario de perfil antigo mas cuidadosamente restaurado. Está na posse da família Barros desde 1927. Apetece dizer (ou pensar) […]

Quem vai da Régua para o Pinhão pela estrada que acompanha o curso do rio, não pode mesmo deixar de ver a Quinta Dona Matilde, na margem direita, imponente na sua longa frente de rio, com casario de perfil antigo mas cuidadosamente restaurado. Está na posse da família Barros desde 1927. Apetece dizer (ou pensar) que é a quinta a visitar. A ideia vai agora ganhar forma com a existência de 5 quartos e com serviço de pequeno-almoço. A resposta ao “porquê só pequeno-almoço” é, infelizmente, fácil de dar: a região tem um gravíssimo problema de mão-de-obra, falta gente para a vinha, para a vindima e, como se imagina, com formação hoteleira ainda mais difícil é. Um passo de cada vez é o que procura.

A quinta esteve, durante muitas décadas, ligada à empresa Barros Almeida e apenas vocacionada para a produção de uvas para Vinho do Porto, situação generalizada a quase todas as quintas de região. A empresa foi vendida à Sogevinus mas Manuel Ângelo tomou a decisão de recomprar, regressando assim à posse da família. É por ser quinta inicialmente vocacionada para a produção de Porto que as vinhas mais velhas da quinta têm um plantio em field blend, ou seja, todas as castas misturadas na vinha. Só com o movimento dos DOC Douro, que começou nos anos 90 do século passado, é que se iniciou o plantio por casta. Essas vinhas velhas dão muito mais dores de cabeça do que uvas e por isso a decisão de as manter é sempre uma ousadia que não vale a pena prosseguir se o preço a que se vendem os vinhos feitos com uvas das vinhas velhas não compensar.

Quinta Dona Matilde
João Pissarra, enólogo, e Filipe Barros, administrador, apresentam juntos os novos vinhos.

O motivo principal desta apresentação foi o lançamento do tinto Vinha do Pinto, precisamente feito com uvas da vinha centenária. O responsável da viticultura, José Carlos Oliveira, salienta o carácter especial que estas vinhas têm, com enorme capacidade de resistir às variações climáticas e os seus vinhos trazem o selo do local, apesar da baixíssima produção por cepa, que se situa nos 300 ou 400 gramas por videira, com trabalho de vinha feito a macho, vindima manual e uma poda que exige inspecção cepa a cepa para se perceber o que se deve manter e cortar.
Este Vinha do Pinto, de uvas com exposição nascente, foi vinificado em inox onde permaneceu por 18 meses no inox e sobre borras finas com alguma bâtonnage. Foi este tempo que lhe permitiu adquirir mais complexidade, tentando no inox aquilo que por norma se procura no estágio em madeira. João Pissarra, enólogo, reconheceu que esta opção é original na região, sobretudo tratando-se de vinhas velhas. Levanta-se assim o debate relacionado com o tema: pode fazer-se um topo de gama tinto sem madeira?

A resposta cabe a cada um dar após a prova do vinho. Esta é a segunda edição, da primeira (2019) existem raras garrafas mas uma foi dada à prova e pudemos confirmar que o vinho se encontra ainda em fase ascendente e apesar de ter nascido no ano mais generoso da década, as vinhas velhas, sempre contidas na produtividade, originaram um tinto que se mostra capaz de desafiar o tempo. Além deste existe outro vinho de parcela – Vinha dos Calços Largos – já objecto de prova em anteriores lançamentos.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

 

Herdade da Mingorra: Um tinto filho da Ira do Talhão 25

mingorra

Em 2004, Henrique Uva cria o seu projecto de vinhos na Herdade da Mingorra, em Beja, com as vinhas que já explorava desde a década de 80. Nos anos seguintes, estreita a relação com os consumidores e fideliza uns tantos pelo caminho. Mais tarde, em 2015, a filha Maria entra em cena e, com respeito […]

Em 2004, Henrique Uva cria o seu projecto de vinhos na Herdade da Mingorra, em Beja, com as vinhas que já explorava desde a década de 80. Nos anos seguintes, estreita a relação com os consumidores e fideliza uns tantos pelo caminho. Mais tarde, em 2015, a filha Maria entra em cena e, com respeito pelo legado do pai, dinamiza a marca e renova a imagem, solidificando-a. O novo Vinhas da Ira 2018, topo de gama da casa, nasce já neste contexto, de uma Mingorra com identidade familiar — onde as três irmãs de Maria Uva estão conjuntamente envolvidas — que produz apenas com uvas próprias. “Primeiro somos agricultores e, depois, produtores de vinho” é a máxima de Henrique Uva, para quem está fora de questão fazer vinho com uvas que não sejam suas. Praticamente da família é também o enólogo Pedro Hipólito, que actualmente acumula a enologia com o cargo de director geral.

A propriedade tem um total de 1400 hectares com muita floresta e montado, onde se inserem 170 de vinha, 110 de olival e 270 de amendoal. O projecto iniciou com 120 hectares de vinha e recentemente foram plantados mais 50, perfazendo os actuais 170, onde se encontram as tintas Trincadeira, Aragonez, Alfrocheiro, Castelão, Alicante Bouschet, Merlot, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Syrah, Petite Sirah, Petit Verdot, Baga e Tinto Cão; e as brancas Antão Vaz, Arinto, Verdelho, Semillon, Alvarinho, Viognier e Sauvignon Blanc. Em 2020, a adega foi alargada com a finalidade de produzir mais, e, pela mesma razão, foram recentemente plantados os adicionais 50 hectares de vinhedo, sobretudo para reforçar a quantidade de uvas brancas, com enfoque em Verdelho, Alvarinho, Viognier, Loureiro, Encruzado e Sauvignon Blanc. A produção anual era, assim, de um milhão de garrafas, número que aumenta para mais 300 mil com o alargamento da adega e da vinha.

Mingorra
O Vinhas da Ira, tinto produzido apenas em anos que a equipa da Mingorra considera excepcionais, tem origem numa vinha de 1978, o Talhão 25. É, segundo Maria Uva (hoje a cara da Mingorra) e Pedro Hipólito, a vinha mais antiga da zona de Beja, plantada em “field blend” (mistura de castas na vinha) com 54% de Alicante Bouschet, 30% de Aragonez, 7% de Alfrocheiro e mais nove castas como Moreto, Tinta Grossa, Castelão, Trincadeira, e outras antigas da região. Já o vinho tem este nome porque a vinha causou discórdia na altura de se decidir se seria ou não arrancada. Henrique Uva lutou por ela e decidiu mantê-la, quando todos à sua volta o aconselhavam a arrancar, por ser uma vinha “feia”, pouco produtiva e pouco consistente, algo que ia contra o objectivo da “antiga” Mingorra, que era vender uva. Os tintos Vinhas da Ira comprovam que a decisão foi acertada e, em 2018, ano de colheita do vinho agora lançado, isso foi ainda mais flagrante: no início do mês de Agosto, uma onda de calor associada a vento provocou um forte escaldão na generalidade das vinhas, mas não no Talhão 25. Pedro Hipólito atesta que, nesse ano, a maturação decorreu equilibrada nesta vinha, com concentração e sem perder a frescura.
A fermentação do Vinhas da Ira tinto 2018 foi feita em lagares, seguindo-se maceração prolongada em depósitos de inox, antes de um estágio de 18 meses em barricas novas de carvalho francês, o que resultou num vinho complexo, muito elegante e cheio de carácter.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Novas estrelas no universo Bacalhôa

Bacalhôa

A marca Bacalhôa é fortemente associada à Península de Setúbal, mas na realidade, a empresa Bacalhôa Vinhos de Portugal está presente em 7 regiões vitivinícolas de Portugal, tendo uma aposta forte na Bairrada através da Caves Aliança adquirida em 2007, um dos produtores mais prestigiados dos espumantes e aguardentes, agora conhecido como Aliança Vinhos de […]

A marca Bacalhôa é fortemente associada à Península de Setúbal, mas na realidade, a empresa Bacalhôa Vinhos de Portugal está presente em 7 regiões vitivinícolas de Portugal, tendo uma aposta forte na Bairrada através da Caves Aliança adquirida em 2007, um dos produtores mais prestigiados dos espumantes e aguardentes, agora conhecido como Aliança Vinhos de Portugal. Por isto não é surpreendente o lançamento do novo vinho branco Bacalhôa 1931 Bical 2021, feito na Bairrada, surpreendente é o vinho em si.

A Quinta da Rigodeira, que pertence à Aliança, é localizada em pleno coração da Bairrada, entre Fogueira e Ancas e dentro do seu património vitícola possui uma parcela plantada em 1931, exclusivamente com castas brancas – Bical, Maria Gomes, Sercialinho, Cercial, Arinto, Rabo de Ovelha, Alicante e Chardonnay. De todas as castas o Bical pareceu mais interessante para fazer uma vinificação em separado, até porque já havia o histórico na quinta de a produzir como monovarietal.
Com produtividade muito reduzida, era pouquíssima a quantidade de uva que chegava à adega por dia. Tiveram que guardar no frio o mosto depois da cada prensagem para acumular a quantidade que desse para vinificar. Fizeram-se quatro vinhos: um totalmente em inox, duas barricas novas, duas barricas de segunda utilização e mais duas de terceira utilização para construir um lote final o mais complexo possível. O estágio durou um ano e depois de engarrafado em Setembro de 2022, o vinho ficou mais um ano em garrafa. A câmara de provadores da região atribuiu-lhe a designação Bairrada Clássico e fizeram-se apenas 2891 garrafas.

Os Moscateis da Bacalhôa são um caso à parte, com uma abordagem algo diferente da prática habitual na região. Para além da extensa maceração pelicular, que visa extrair mais aromas e até estrutura das películas das uvas, o vinho é submetido à variação térmica em estufa própria, com o objectivo de enriquecer mais a vertente aromática e concentrar açúcares e ácidos, resultando num produto final mais intenso e rico em todos os aspectos.
Mas antes de chegarmos a esta técnica, é importante mencionar que o Moscatel de Setúbal é um produto de terroir a 100%. A principal variedade é Moscatel de Alexandria, localmente conhecida como Moscatel de Setúbal. É uma casta de maturação tardia, plantada no solo argiloso e argilo-calcário das encostas da Serra da Arrábida virada a norte, por uma razão muito simples – todas as encostas viradas a sul, são escarpas – explica o coordenador da enologia da Bacalhôa Vasco Penha Garcia. Nestas condições, a uva normalmente é apanhada em Outubro, mas com 11-12% de álcool provável e ácidos bem presentes, o que acaba por garantir a frescura e contrabalançar o elevado teor de açúcar nestes vinhos generosos.
A casta Moscatel Roxo (uma mutação do Moscatel Galego) é uma uva rosada que amadurece cedo e é vindimada no início de Setembro. Produz vinhos generosos riquíssimos, mas há 20 anos estava em vias de extinção. A Bacalhôa Vinhos de Portugal, já tendo videiras dispersas desta casta em vinhas de Moscatel de Setúbal, promoveu o plantio das duas maiores vinhas de Moscatel Roxo da região.

MOSCATÉIS DE SONHO

O processo de vinificação é igual para ambos os vinhos e começa com uma breve maceração pelicular. A fermentação é interrompida com aguardente vínica de 77% (por opção da empresa, pois o regulamento dá liberdade de escolha de entre 52% e 86%). A maceração continua por vários meses, normalmente até à primavera. Durante este processo, a aguardente força a extracção, por isso não é raro sentir o tanino e um certo amargo que sensorialmente equilibra a doçura. Quando este processo finaliza com a prensagem e trasfega, começa uma nova fase em “estufa”, onde o vinho é submetido a uma amplitude térmica significativa. Na realidade, é uma variante do método de canteiro, utlizado na produção do Vinho da Madeira. A “estufa” da Bacalhôa é um armazém cuja construção com a cobertura baixa, permite grandes amplitudes de temperatura e humidade ao longo do ano. Assim, a temperatura varia de 56,7˚C em Julho até 5,6˚C em Janeiro e a humidade vai dos 100% na altura mais chuvosa até 10,9% no pico do verão. Neste armazém, os vinhos permanecem em pequenos barris de carvalho de 180 e 225 litros, muitos deles previamente usados para estagiar o vinho de Jerez e whisky de malte. Nunca sendo atestados, os vinhos demonstram uma grande concentração por evaporação.

Bacalhôa

É assim que são feitos o Moscatel de Setúbal 20 anos e Moscatel Roxo de Setúbal 20 anos. A designação Superior é atribuída quando um vinho, com mais de 5 anos de estágio, apresenta uma qualidade destacada. Existe mais uma particularidade que tem a ver com a visão da empresa – estes vinhos com indicação de idade, não representam um lote de vários anos. Na Bacalhôa, os Moscateis são sempre provenientes de um único ano, sendo este indicado no rótulo. Assim, o Moscatel de Setúbal 20 anos é de 2000 e o Moscatel Roxo de Setúbal 20 anos é de 2002. O produtor acredita que desta forma “conseguem proporcionar a pureza de um ano só”.

Este ano, em estreia absoluta foi apresentado o Bacalhôa Moscatel de Setúbal 40 anos de 1983, um licoroso de qualidade excepcional. Permaneceu os primeiros 20 anos da sua vida na Estufa nº 1 com grandes emplitudes térmicas e de humidade; em 2004 foi transferido para o Armazém das Selecções, com pé-direito mais alto, suavizando as variações da temperatura e promovendo, a partir deste ponto, um envelhecimento mais lento. Criou-se um vinho extraordinário, onde a riqueza e a concentração estão interligadas de tal ordem que o teor de açúcar de 324 g/l está em harmonia com a acidez de 8,1g/l e o pH 3,14 e o prazer sensorial que oferece está por cima de qualquer parâmetro técnico existente. Nesta edição ultra limitada foram para o mundo apenas 300 garrafas de 0,5L.

Quando será o próximo engarrafamento desta magnifica colheita de 1983, só o tempo dirá.

 

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Teixinha: o toque de Midas da Malhadinha

Albernoa, de todo, não era uma região ligada a vinho, mas a família Soares conseguiu, através do seu labor e exemplo e em estreita ligação com outros produtores entretanto chegados ao local, conferir a esta zona do Baixo Alentejo uma rápida mas notória visibilidade no panorama dos vinhos alentejanos. Desde 2020 os mais de 80 […]

Albernoa, de todo, não era uma região ligada a vinho, mas a família Soares conseguiu, através do seu labor e exemplo e em estreita ligação com outros produtores entretanto chegados ao local, conferir a esta zona do Baixo Alentejo uma rápida mas notória visibilidade no panorama dos vinhos alentejanos. Desde 2020 os mais de 80 hectares de vinha têm certificação biológica, e a Herdade da Malhadinha Nova é auto-suficiente em uvas para as suas diversas marcas.

Este é um projecto com forte carácter familiar. Os irmãos João e Paulo, com as respectivas cônjuges Rita e Margarete, dão a cara e o corpo ao manifesto, e envolveram até os seus filhos logo desde o princípio, com os desenhos infantis a ganharem vida nos rótulos dos vinhos, como hoje veremos os seus textos a ilustrarem os novos vinhos, de que vos falarei já a seguir. E não falo já, porque, entretanto, devo explicar a referência a Midas. É que a CEO Rita liderou o projecto da Malhadinha para encarar com enorme e reconhecido sucesso um outro desafio: tornar a herdade um apetecível destino de turismo de luxo. Vejamos, os Soares vieram do Algarve, onde não faltam atracções. Na Albernoa quais são as atracções? Simples, mas arriscado e complexo: a atracção é a própria Malhadinha, e a sua capacidade de atrair e entreter com grande qualidade os seus hóspedes. A grande gastronomia sempre foi um eixo, o enoturismo outro, e o resto é uma panóplia de actividades que inclui passeios de balão ou de moto4, a vivência dos animais da quinta, desde cavalos a abelhas, os workshops de pastelaria ou panificação, nem consigo listar tudo, vejam o site deles na internet. Autenticamente, os Soares colocaram Albernoa no mapa, com vinho, turismo, hotelaria. Fazem sustentabilidade, oferecem aos seus funcionários mais do que um salário, com recuperação de casas para eles viverem, ou oferecer suporte familiar. Praticar o bem, e receber em troca o sucesso de um negócio autenticamente criado do nada, apenas com origem na ambição e convicção de fazer bem. Todos os louvores para eles.

E agora vieram para Norte. Não muito para Norte, vieram do Baixo Alentejo para o Alto Alentejo. Em 2021 visitaram a Quinta da Teixinha, propriedade com 105ha no Parque Natural da Serra de São Mamede, a 700m de altitude. Encantaram-se com o sítio, onde ainda por cima havia já 4ha de vinha, e passadas três semanas estavam a fechar negócio. Segundo Rita Soares, “as características únicas de frescura e elegância dos vinhos da região de Portalegre são um grande complemento ao portefólio da Herdade da Malhadinha Nova.” A Quinta tem 2ha de vinha velha com Aragonez, Alicante Bouschet, Bical, Fernão Pires, Salsa e Tamarez, mais um hectare de Aragonez e outro de Roupeiro, ambos plantados em 2017. Vão ser plantados ainda mais 8ha de vinha, para juntar aos 80ha de floresta de cerejeiras, sobreiros e castanheiros centenários. Também aqui há várias casas, umas mais velhas do que outras, e um ambiente campestre que fascinou os Soares e os vai levar a investir também no turismo.

Os novos vinhos da Quinta da Teixinha tiveram apresentação em Lisboa, no elegante Círculo Eça de Queiroz, um jantar elaborado pela equipa de chefes da Malhadinha (Joachim Koerper, Cintia Koerper e João Sousa) e iluminado pelas belas canções de Ana Paula Russo e o pianista Pedro Vieira de Almeida (lá está, sempre a querer fazer bem). Por agora são dois brancos e dois tintos, 1500 garrafas do Roupeiro e 3000 do branco “field blend”, e 3000 garrafas do tinto e 1000 de outro tinto a que chamam “Tava”, uma pequena ânfora de terracota usada na vinificação. Os rótulos são ilustrados por evocações escritas pelas crianças da família, o que os torna mais ternurentos. Mas a sua leitura não é fácil, pelo que vou usar as suas cores para identificar inequivocamente os vinhos na nota de prova. Os vinhos têm enologia de Nuno Gonzalez e Luís Duarte, e em 2021 foram ainda vinificados e estagiados na Malhadinha Nova, com as uvas a serem transportadas em camiões frigoríficos. A qualidade, como era de esperar, é excelente. Não quero terminar com encómios, por isso menciono apenas um pormenor: todo o jantar foi acompanhado por água que veio da própria Quinta da Teixinha, 700m de altitude e pureza, que soube tão bem como os vinhos. Um mimo carinhoso para os convivas.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Anselmo Mendes e Mário Sérgio entram num bar…

corta fogo

Muitos momentos de conversa entre dois grandes amigos, circa 2019, originaram um grande vinho. Reza a lenda que foi numa caminhada nocturna, tarde e a más horas, que se “selou o negócio”. Anselmo Mendes, referência incontornável do Alvarinho de Monção e Melgaço, e Mário Sérgio Nuno, ícone da Bairrada, decidiram produzir um branco em conjunto […]

Muitos momentos de conversa entre dois grandes amigos, circa 2019, originaram um grande vinho. Reza a lenda que foi numa caminhada nocturna, tarde e a más horas, que se “selou o negócio”. Anselmo Mendes, referência incontornável do Alvarinho de Monção e Melgaço, e Mário Sérgio Nuno, ícone da Bairrada, decidiram produzir um branco em conjunto e à sua medida.

Para isso, o primeiro foi buscar o seu melhor Alvarinho, e o segundo o seu melhor Bical, ambos provenientes de parcelas especiais, “representativas do melhor que as regiões podem produzir”: a Vinha do Paço, na Quinta da Torre, em Monção — com solo de terraços fluviais e origem granítica — e a Vinha do Cabeço, na Quinta das Bágeiras — de solo argiloso com forte componente calcária — encaixaram que nem duas peças de puzzle. “Se não tivesse enólogo e pudesse escolher um, seria o Anselmo, sempre disse isto.

Há uma identificação não só no estilo de vinho, mas na parte humana. Crescemos os dois numa família de agricultores, e há muita coisa que temos em comum na nossa ‘meninice’”, confessou Mário Sérgio Nuno, na apresentação do Corta Fogo à imprensa. Na verdade, esta é a primeira vez que a Quinta das Bágeiras entra numa parceria deste género. “Eu nunca estive inclinado para este tipo de colaborações, porque o nosso projecto é muito focado em uvas próprias e na nossa região. Por isso, ao fazer um vinho ‘partilhado’, só poderia ser com o Anselmo, pela nossa afinidade”, desenvolveu o bairradino, nascido e criado na Fogueira, uma pequena aldeia da freguesia de Sangalhos, Anadia. Anselmo Mendes reiterou: “Pensámos, toda a gente se junta a fazer vinhos, porque não nós?”. O resto é história.

corta fogo
Vindima da casta Bical na Quinta das Bágeiras.

A vinificação foi feita em separado, cada um na sua adega, mas da mesma forma, em barricas usadas de 400 litros no caso do Alvarinho, e de 500 litros no caso do Bical. O estágio foi de nove meses nas barricas, e depois juntaram-se os vinhos na adega de Anselmo Mendes, em Melgaço, para o engarrafamento em Junho de 2021. “Antes de chegarmos ao lote final, trouxemos várias hipóteses para cima da mesa, sobretudo para a mesa do Mugasa”, brincou Anselmo Mendes, referindo-se ao reconhecido restaurante de leitão, na Fogueira.

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Quinta da Torre (crédito hugo Pinheiro)

A escolha do Alvarinho por parte do monçanense, para integrar o lote do Corta Fogo, é óbvia. Mas Mário Sérgio Nuno poderia ter considerado outras castas brancas típicas da Bairrada, como Cercial ou Maria Gomes. Então, porquê Bical? “Porque, para ser com uma uva branca rainha da Bairrada, para mim teria de ser esta. Por exemplo, face à Maria Gomes, acho que a Bical daria sempre mais estrutura ao vinho”, explicou o produtor. “Eu já contactei de forma próxima com a Bical, e é uma casta que tem imensa personalidade. Em prova cega, consigo sempre dizer onde está a Bical”, completou Anselmo Mendes, que dá apoio enológico ao projecto bairradino Kompassus.

Quanto ao nome, Corta Fogo, Mário Sérgio Nuno não se retraiu ao invocar alguma emoção. “Primeiro, fogo tem que ver com Fogueira. Depois, uma linha de corta fogo pode significar muita coisa, nomeadamente um caminho que estreita laços de amizade. Uma linha de equilíbrio. Além disso, ‘corte’ pode ser sinónimo de ‘lote’. Há várias interpretações possíveis”. E avançou, convicto: “Com este vinho, queríamos também fazer algo pelo vinho português. Se há algo que eu aprendi com as minhas viagens, sobretudo a França, é que temos de fazer alguma coisa por nós, enquanto país produtor. Mostrar ao mundo o que pode ser o vinho português. Lá fora dizem-me que os meus vinhos de 20 euros são mais caros que os de 100 de qualidade equivalente. E esta é uma percepção que temos de alterar. Um vinho como este pode ser um contributo”.

O Corta Fogo, de apenas 2622 garrafas, é, acima de tudo, um branco com a ambição e genuinidade dos seus criadores. “Isto não nasceu de um grande ‘business plan’, nem houve aqui um plano de marketing elaborado, a pensar que íamos fazer um grande negócio por nos juntarmos num vinho”, esclareceu Anselmo Mendes. Conhecendo a dupla, é fácil perceber que é assim mesmo. Um vinho que surgiu da vontade de dois amigos com os mesmos valores, inspirado nas vivências de quem ouviu muitas estórias dos avós à lareira.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)