Vidigal Wines: Quando a sorte bate à Porta 6

vidigal Porta 6

Quem conhece Manuel Bio, CEO do grupo Abegoaria (na fotografia de abertura), já percebeu que é feliz a fazer negócios, quer seja vender ou comprar, de pequena ou grande escala. Com olho para potencial e oportunidades, grande visão estratégica e racionalidade financeira, já salvou empresas da falência e, até hoje, expandiu a Abegoaria às regiões […]

Quem conhece Manuel Bio, CEO do grupo Abegoaria (na fotografia de abertura), já percebeu que é feliz a fazer negócios, quer seja vender ou comprar, de pequena ou grande escala. Com olho para potencial e oportunidades, grande visão estratégica e racionalidade financeira, já salvou empresas da falência e, até hoje, expandiu a Abegoaria às regiões do Alentejo, Douro, Lisboa, Tejo, Dão e Vinhos Verdes, conquistando as casas dos consumidores portugueses com vinhos de enorme sucesso, sobretudo nos supermercados. A ambição, contudo, é também internacional, e, para isso, a Abegoaria concretizou recentemente um dos seus projectos mais arrojados, com a compra da totalidade da Vidigal Wines — sediada em Cortes, Leiria — que antes pertencia a António Mendes Lopes e a capital norueguês. A Vidigal tem origem ainda no início do século XX, numa quinta fundada por um cónego e, no início dos anos 90, alguns proprietários depois, passa para as mãos de António Mendes Lopes que, conjugando as suas vivências no estrangeiro com bastante criatividade e uma (boa) dose de loucura, levou a Vidigal Wines a ser uma das empresas de vinho portuguesas com mais sucesso na exportação, apoiada no fenómeno Porta 6, com milhões de garrafas vendidas lá fora, números que nunca pararam de crescer. A marca nasceu em 2012 e, neste momento, é o tinto português que mais vende fora de Portugal, e o segundo vinho europeu mais vendido no mercado inglês, com quase 5 milhões de garrafas comercializadas no Reino Unido. A seguir, vêm os mercados do Brasil, Israel e Canadá. A produção total anual do Porta 6 tinto supera os 8 milhões de garrafas. António Mendes Lopes não tinha, no entanto, intenções de continuar ligado à empresa após a aquisição, mas acabou por ficar como consultor, “porque o convenceram de que ali fazia falta”. Manuel Bio, e a restante equipa administrativa do grupo, conheceram António em pleno início de pandemia de Covid-19, com as primeiras conversas sobre um possível negócio em 2020. A concretização do acordo deu-se em 2022, mas em 2021 estava tudo quase fechado, e já trabalhavam em algumas coisas em conjunto.

vidigal Porta 6

 

 

Porta 6 é o tinto português que mais vende fora de portugal. E segundo vinho europeu mais vendido no mercado inglês, com quase 5 milhões de garrafas comercializadas no Reino Unido.

 

 

“Para nós era talvez a única empresa que, nesta fase mais recente, ‘jogava’ connosco, porque éramos muito fortes no mercado interno, com uma posição bastante privilegiada na grande distribuição e consumo em casa. Estávamos a começar a olhar para o consumo fora de casa e a desenhar uma divisão de ‘fine wines’, mas ainda não era estratégia para o grupo, queríamos fazê-lo com tempo. Estávamos a tentar a exportação, sendo que começar na exportação com vinhos portugueses é difícil e o sucesso demora a chegar. Surgiu assim esta empresa, que não tinha nada do que nós tínhamos, e tinha tudo o que estávamos à procura. No fundo, a Vidigal veio antecipar 10 anos a nossa estratégia de exportação. É um grande investimento, mas ganhámos 10 anos lá fora, e também alguns vinhos muito interessantes para o consumo fora de casa e para a tal divisão ‘fine wines’, como o Brutalis”, explica Manuel Bio. Luís Bio, director de internacionalização da Abegoaria, acrescenta, “podemo-nos orgulhar, como grupo, de sermos hoje praticamente nº1 em off trade (supermercados); nº1 em Inglaterra, também nos supermercados; top 5 no Brasil; nº1 em Israel… ou seja, conseguimos consolidar nesta aquisição uma “value story” e um vinho como o Porta 6, que faz com que, hoje, sejamos produtores de dois terços do vinho português vendido nos supermercados em Inglaterra”. António Mendes Lopes interrompe: “Não é o vinho Porta 6, é a marca”. E continua, explicando que “o Porta 6 é todo imagem. O vinho é bom, mas isso não chega. O Porta 6 tem de ser como é porque a imagem está na cabeça das pessoas, é muito mais do que a qualidade do vinho.

O ex-proprietário da Vidigal Wines, que sempre defendeu aquilo a que chama um modelo horizontal de trabalho, acredita que é esta a fórmula que serve uma marca. “Cada um faz o seu papel e as pessoas não sabem nem se metem no dos outros. Porque temos de perceber que as pessoas não fazem bem tudo, nem é possível que assim seja. Há um enólogo melhor para transformar as uvas em vinho, outro melhor para finalizar o vinho e os lotes… Eu deito-me a pensar num rótulo e numa marca, no final de uma viagem tenho um texto feito… não me tirem isto, que é o que eu gosto de fazer! Mas não me falem em uvas e vinhas, porque eu não gosto. Só gosto de uvas quando já estão no tegão”, exemplifica António Mendes Lopes, convicto de que “é preciso cercarmo-nos de pessoas teimosas e criativas, pessoas capazes de dizer ‘não’ na nossa cara. Pessoas que conseguem pensar juntas. A inteligência colectiva funciona”, remata. Neste sentido, criou um departamento chamado Brand Defender, onde os accionistas não participam, para defesa das marcas e da qualidade das mesmas. “Quem tiver interesse em poupar, e não em gastar, não pode entrar neste departamento”, sublinha António Mendes Lopes, que advoga não haver ciência exacta para o sucesso, mas acredita em alguns princípios: “Começa-se por fazer as coisas com qualidade e por manter qualidade e o estilo teimosamente, aconteça o que acontecer. Não se pode comprometer a qualidade ou o estilo. E depois espera-se… espera-se que a sorte chegue. Por definição, a sorte não pode ser planeada. É por isso que se chama sorte”. E por falar em estilo, insere-se aqui uma das componentes mais importantes da marca Porta 6, a imagem. O rótulo icónico é a reprodução de uma pintura que estava a ser vendida a turistas nas ruas de Lisboa pelo próprio autor, o artista alemão Hauke Vagt, que residia no bairro de Alfama, perto do castelo de São Jorge. A pintura do famoso eléctrico amarelo chegou às mãos de António Mendes Lopes, que decidiu negociar com o autor e fazer dela o rótulo do Porta 6. “Qualquer pessoa poderia ter comprado aquela pintura e transformá-la num rótulo, mas fomos nós que o fizemos”, afirma, também numa alusão à sorte de que tanto fala.

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Os enólogos António Ventura, Rafael Neuparth (à esquerda) e Arnaldo Simões (último à direita) com Luís Bio, Manuel Bio e António Mendes Lopes.

Já António Ventura e Rafael Neuparth são os enólogos responsáveis pelos vinhos da Vidigal Wines, e Arnaldo Simões dedica-se à finalização dos lotes, estando residente na empresa. Como se faz um vinho de 8 milhões de garrafas, como o Porta 6 tinto, mantendo a qualidade e consistência? Perguntamos. “Acabou por ser fácil, porque tudo isto foi crescendo ano após ano, não começámos com 8 milhões, foi mais com duas paletes…”, diz António Ventura, entre risos. O que mudou tudo foi, na verdade, o “momento James Martin”, o chef-celebridade inglês que se lembrou de afirmar, no programa BBC Saturday Kitchen, que o Porta 6 era um dos melhores tintos que tinha provado em dez anos. Nessa altura, a única distribuidora da marca no Reino Unido era a Majestic que, depois do programa ir para o ar, viu o seu site “ir abaixo” com tanta solicitação. “Foi aqui que a sorte nos bateu à porta. Coube-nos recebê-la, acarinhá-la e trabalhar com ela”, lembra António Mendes Lopes. Nessa altura, foi difícil ter vinho para tanta procura, e um incremento revelou-se obrigatório. “Estavam a pedir-nos dez contentores, e tivemos de fazer esse trabalho. No ano seguinte já estávamos preparados. Nesse ano não tínhamos vinificação, o vinho era adquirido a terceiros, mas em 2014 nasce a adega das Encostas do Atlântico [empresa junto a Caldas da Rainha que é 70% da Vidigal Wines e que detém também as vinhas do projecto] e passámos a ter a nossa vinificação, o que nos facilitou muito e nos permitiu criar volume com qualidade. Temos uma equipa de enologia lá, liderada pelo Mauro Azóia, e outra na Vidigal, onde se faz apenas a finalização, mas cruzamos muito a informação e estamos sempre a provar juntos”, desvenda António Ventura. A Vidigal Wines explora, através da Encostas do Atlântico, cerca de 350 hectares de vinha, que se situam maioritariamente nas regiões de Alenquer e das Caldas da Rainha.

Para algo completamente diferente…

Embora o porta-bandeira da empresa (passe-se a expressão) seja o Porta 6, há outro elemento no portefólio com conceito e posicionamento totalmente distintos, o topo de gama Brutalis. Fazendo jus ao nome, é um tinto de potência, desaconselhado aos fracos de coração (ou, por outra perspectiva, talvez funcione como desfibrilhador), com Alicante Bouschet na base do lote e 20% de Cabernet Sauvignon. António Mendes Lopes, que viveu na Dinamarca, chamou Brutalis ao vinho inspirando-se num rinoceronte com o mesmo nome, que se encontrava num jardim zoológico daquele país. “Era meio louco, levava tudo à frente”, descreve. Mesmo os mercados mais fortes para o Brutalis são, na sua maioria, completamente diferentes dos do Porta 6, passando sobretudo por Portugal, Alemanha, Brasil, China e Macau. Uma prova vertical de oito colheitas deste tinto, do mais antigo para o que está actualmente no mercado, revelou algumas surpresas, com algumas edições a chocar pela juventude e vivacidade, e outras até mais elegantes, que resultaram um pouco menos “Brutalis” do que a equipa da Vidigal pretendia. O primeiro, de 2005 (ainda Regional Estremadura), foi o único feito com uvas da Quinta da Cortesia, na Merceana, mas rapidamente se percebeu que não era a vinha ideal para o perfil que se procurava. Apresenta um perfume exótico de fruta negra, especiarias, sândalo e cera de abelha. Na boca é mais leve do que se esperava, bem vegetal e maduro na fruta, chão de bosque e leve balsâmico no final (16,5 valores).

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A partir do 2008 e até ao 2013, entram as uvas da “vinha do cemitério” (precisamente por ser perto de um), também na zona da Merceana. O 2008 foi uma das surpresas positivas, bastante vivo no nariz de fruta silvestre madura, muita pimenta branca, um leve lado resinoso, e outro mais lácteo e fumado. Na boca tem o tanino ainda aguerrido, muito novo, quase infante. Agradavelmente adstringente, largo e longo (17,5). O 2009 entra no mesmo registo do anterior mas mais vegetal, com uma gordura fumada bem presente. Na boca é um pouco mais magro, choveu cedo nesse ano e António Ventura diz ser a causa (17). O 2012 é, curiosamente, talvez o menos Brutalis de todos mas o que mais impressiona ao nível da qualidade absoluta. Nariz muito elegante e fino no perfume, onde balsâmicos encontram chão de bosque, eucalipto, mirtilo e arando. Na boca é vivo no lado especiado e balsâmico, potente e com muito carácter mas extremamente elegante em simultâneo, longo e sedoso no final (18). Já o 2013 é talvez o mais especiado de todos, com muita pimenta preta, cardamomo, levíssimo açafrão e agulha de pinheiro. Na boca está muito novo, imponente, tanino adstringente e final de potência. Para esperar em garrafa (17). O 2015 muda totalmente de cenário, passando a ter origem numa vinha perto do Cadaval, no lado Norte da Serra de Montejunto. Mais balsâmico no nariz do que os outros, com nota vegetal e bagas silvestres. Na boca tem uma juventude pornográfica, muito intenso e vegetal, tanino bruto e por limar. Longe do momento certo (17,5). No 2017, os balsâmicos juntam-se a fruta silvestre e cera de abelha no aroma. Bem adstringente, mas com volume a suportar, tem a particularidade de fazer sentir o álcool no final um pouco quente e medicinal (17). No mercado está o 2018, que se revela bem diferente das anteriores colheitas, a denotar mais as notas típicas do Cabernet Sauvignon. Ganhou equilíbrio e frescura balsâmica, mantendo a intensidade dos taninos. Promete crescer em garrafa (17,5).

vidigal Porta 6

Em apenas três anos, desde a aquisição, a Abegoaria duplicou as vendas globais da Vidigal Wines. “Sempre fomos uma empresa comercialmente muito agressiva, o que ajudou muito a que isso acontecesse. Aproveitámos, claro, o momento óptimo em que a Vidigal estava, sobretudo ao nível do produto e da imagem. Depois, foi abrir os canais, aproveitando clientes que já tínhamos na Abegoaria, nacionais e internacionais, e fazendo o mesmo com os vinhos da Abegoaria nos clientes da Vidigal”, adianta Manuel Bio. Um dos grandes objectivos do grupo é aproveitar as suas valências comerciais no mercado nacional, para levar a marca Porta 6 a ter, em Portugal, o mesmo sucesso que tem no mercado internacional. Para isso, a Abegoaria conta com a sinergia que já tinha com a distribuidora Vinalda, que assumiu a tarefa de trabalhar a marca no canal on trade (a sua especialidade) e continuar a alavancá-la no off trade. A tarefa é difícil, como reconhece Manuel Bio, mas não impossível, e os resultados, atesta, têm sido muito positivos…

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)

 

 

Fernão Pires: Uva de antigamente, casta de futuro

Fernão Pires

É uma casta antiga, já conhecida no século XVIII, mencionada em 1788 no Douro, nas Beiras e Estremadura e em 1790 em Castelo Branco e Guarda. No seu trabalho “O Portugal Vinícola” de 1900, Cincinnato da Costa descreve Fernão Pires como “uma boa das castas brancas da região do Tejo” que “produz muito e as […]

É uma casta antiga, já conhecida no século XVIII, mencionada em 1788 no Douro, nas Beiras e Estremadura e em 1790 em Castelo Branco e Guarda. No seu trabalho “O Portugal Vinícola” de 1900, Cincinnato da Costa descreve Fernão Pires como “uma boa das castas brancas da região do Tejo” que “produz muito e as suas uvas dão grande rendimento em mosto”. Também refere que a casta “forma a base de alguns vinhos brancos afamados das proximidades de Lisboa e que “os vinhos extremes de Fernão Pires quando bem fabricados, dão excelentes vinhos de pasto, próprios para peixe, delgados, citrinos, de paladar e aroma delicados”.
A casta terá surgido por cruzamento natural de Malvasia Fina com uma variedade desconhecida. Para além do sinónimo oficial de Maria Gomes utilizado na Bairrada, tem outras sinonímias regionais menos conhecidas que praticamente caíram em desuso, como o Gaeiro (provavelmente por estar muito disseminada na localidade das Gaeiras, no concelho de Óbidos), Molinho na Península de Setúbal ou até Alvarinhão em Melgaço. Aguiar em 1866 descreveu uma sub-variedade desta casta com origem na freguesia do Beco, concelho de Ferreira do Zezere, chamada “Fernão Pires do Beco” com porte erecto (ao contrário do habitual semi-erecto e horizontal) e Cincinnato da Costa analisou cachos de Fernão Pires e Fernão Pires do Beco, bem diferentes entre si. Hoje tudo indica que se tratava de um clone da mesma casta.

Omnipresente mas não compreendido

É a casta branca mais presente em Portugal, ocupa 6% das plantações da vinha no nosso país. Já ocupou mais (9% em 1989 e 8% em 1999) e chegou mesmo a ser a casta mais plantada, branca ou tinta. Ficou popular pela mesma razão que a impedia de tornar-se numa estrela – a sua forte identidade aromática e produções generosas, bom grau e acidez média/baixa. É um grande componente de lote, onde contribui com aromas e volume de boca. Mas nunca foi admirada e tornou-se “démodé” quando o rumo mudou para a qualidade e perfis de vinhos mais frescos. Abriu-se a porta às castas estrangeiras e outras nacionais; não gostar da Fernão Pires tornou-se quase obrigatório por ser “demasiado alcoólica”, “chata”, “enjoativa” e “com falta de frescura”.
O que vale é que as tendências não cristalizam e agora o país lembrou-se, e bem, de dar protagonismo às castas menos compreendidas e mal-amadas por “falta disto” ou “excesso daquilo”, mostrando que no sítio certo, com dedicação certa, cada casta pode ter uma performance gloriosa. Um actor popular também pode merecer um óscar com um papel certo.
Graças a umas casas consistentes, sobretudo na região do Tejo, onde a casta é identitária, e a alguns produtores entusiastas, hoje temos excelentes exemplos de Fernão Pires em várias regiões do país.

Qual é o melhor terroir?

Trata-se de uma casta bastante flexível em termos de clima, adapta-se bem a diferentes tipos de solo, desde que haja humidade suficiente. Não se importa com calor, mas é muito sensível à falta de água – a folha fica amarela e cai, comprometendo a actividade fotossintética. Precisa de ter compromisso com área foliar significativa.
É na região do Tejo que o Fernão Pires detém maior protagonismo, ocupando mais de 35% das plantações. Mas o Tejo não é todo igual. A responsável de enologia na Falua, Antonina Barbosa, distingue o Fernão Pires da zona das lezírias (na sub-região do Campo), mais jovem e exuberante que funciona sobretudo na composição de lotes, onde contribui com a parte aromática, e o Fernão Pires de vinha mais velha e de produção muito baixa da Charneca, onde a empresa possui a já famosa vinha do Convento, com um magnífico terroir de pedra rolada. Já o Fernão Pires mais impactante da Quinta do Casal Branco fica nos solos arenosos com argila a 1-1,5 metro. É uma vinha muito velha, plantada em vaso e não regada.
Na Beira Atlântica, que inclui a DOC Bairrada, a sua versão feminina, Maria Gomes, é responsável por 21,5% das plantações. Também é muito importante na região de Lisboa, ocupando mais de 10% de encepamento. Na Península de Setúbal, Fernão Pires é a segunda casta mais plantada, com 9,4% de encepamento (até fica à frente do Moscatel de Setúbal com 8,5%).
Menos relevância tem no Minho com apenas 2,5% do total, pois com as consagradas Alvarinho e Loureiro, e o Avesso como estrela em ascensão, Fernão Pires não tem tido muito espaço. No entanto, nas novas plantações regionais, começa a aumentar a sua presença, sendo importante na estratégia vitícola da Aveleda, por exemplo. A presença mais residual é registada no Dão (1,6%), Alentejo (1,4%) e Trás-os-Montes (1,2%).
A casta Fernão Pires não é muito associada à Beira Interior, ocupando cerca de 1% de vinha. Entretanto, a produtora e enóloga Patrícia Santos ficou fascinada pela performance da casta na zona de Pinhel, onde mostra quase uma salinidade inexplicável. Compara com vinhos de Sancerre, que, feitos de uma casta aromática, naquela região revelam uma personalidade diferente.
Na Bairrada, o vinho Avó Fausto da Quinta das Bágeiras é feito 100% de Maria Gomes, mas a uva não vem sempre do mesmo sítio. Há zonas mais argilo-calcárias, outras com maior percentagem de areia, e a qualidade varia com as condições de cada ano e a capacidade de retenção de água em solos diferentes.
O produtor Daniel Afonso tem as suas vinhas na zona de Colares com forte influência atlântica e confessa que gosta da Fernão Pires porque dá sempre um volume de boca muito bom e, passado dois anos depois da vindima, quase se mastiga, sem a frescura ser prejudicada. Tem um toque exótico e consegue ser bastante complexa. Conta que quando começou a trabalhar com a casta muitas vezes ouviu: “Eh, esta casta só faz vinhos maus e chatos”. Olha que não, depende da zona!
A data de vindima também varia bastante. Na Quinta do Casal Branco, neste ano de 2023, já vindimaram Fernão Pires no final de Julho. Na bairradina Quinta das Bágeiras a vindima da Maria Gomes ocorre normalmente a 8-10 de Setembro. O importante é apanhar a casta no momento certo para o vinho que se pretende produzir com ela.

Fernão Pires

O momento de vindima é crucial

É amiga do produtor… até ao momento de vindima. É campeã em todas as fases fenológicas como o abrolhamento (é preciso podar mais tarde para evitar as geadas), a floração, o pintor e a maturação e serve de referência nacional para estados fenológicos de outras castas. Não espera por ninguém e não deixa margem de manobra nas vindimas. Obriga os enólogos a regressar de férias no final de Julho para controlar a maturação. A parte boa é que não tem problemas com as chuvas do equinócio.
Manuel Lobo que conhece bem Fernão Pires por ser o enólogo consultor na Quinta do Casal Branco, propriedade de seu tio José Lobo de Vasconcelos, diz que o próprio bago da casta é muito expressivo e reflecte a qualidade. Se se trincar o bago no momento de perfeita maturação é uma explosão de sabor. “Passado apenas 1-2 dias a acidez cai a pique e os aromas já não são tão atraentes”. Manuel lembra-se que, no início, foi difícil explicar às pessoas que “tem de se vindimar amanhã” independentemente de ser um fim-de-semana ou acontecer uma festa local neste dia.
Antigamente quando se vindimava com calma, o açúcar subia, os ácidos degradavam e os aromas tornavam-se sobremaduros. Os vinhos eram mais alcoólicos, com falta de frescura e por vezes enjoativos. O que os safava era a possibilidade de serem loteados com vinhos de outras castas, como Arinto, por exemplo. A Quinta da Lapa faz um vinho que recupera essa história, chama-se mesmo Fernão Pirão, como se apelidava o vinho feito das uvas apanhadas tarde vinificadas com curtimenta e a temperaturas elevadas.
No entanto, a vindima no momento certo não tem que ver apenas com o nível de açúcar e com o teor de álcool provável, do género “até 12% temos acidez, depois perdemos a frescura”. Não é linear que o Fernão Pires apanhado com 11,5% seja melhor do que apanhado com 13%. No mesmo sítio talvez, mas há muitos factores em jogo, como o solo, o clima, a idade da vinha, o clone, o porta-enxerto, a produção, a variação do ano. A combinação destes factores leva ao equilíbrio próprio para cada caso. Por exemplo, Daniel Afonso, na zona de Colares, normalmente apanha Fernão Pires com 13% e 7 g/l de acidez, e em 2021 apanhou com 14% e 8 g/l de acidez. Manuel Lobo costuma ter cubas com parâmetros analíticos diferentes para depois lotear da melhor forma.

Controlar a produção

É casta bastante vigorosa e produtiva, varia de 8 a 18 tn/ha em média, existindo extremos como 25-30 tn/ha nos solos mais férteis do Campo e produções baixíssimas como na Vinha do Convento, da Falua, onde produz apenas 3-4 tn/ha, chegando a 5 tn/ha em alguns anos.
Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras, atribui grande importância à quantidade de produção. Nas vinhas dele não ultrapassa as 6-7 tn/ha. Também dá para fazer 2-3 vindimas, apanhando primeiro a uva para espumante e aguardente e, passado 15 dias já tem o equilíbrio para o vinho branco.
Na vinha velha, com mais de 70 anos, da Quinta do Casal Branco, a produção de Fernão Pires fica no nível dos 8-9 tn/ha, mas com compasso mais apertado (ou seja, com mais plantas por ha). Daniel Afonso observa que com 3 kg/planta e 15 tn/ha não tem falta de qualidade.

Fernão Pires

Abordagem enológica

A Fernão Pires é bastante plástica, tanto dá para fazer um espumante ou aguardente, como um colheita tardia. O mosto e o vinho apresentam alguma sensibilidade à oxidação, mas os produtores que trabalham com o pH mais baixo não se queixam. É uma casta de assinatura claramente terpénica, com grande número e concentração de compostos aromáticos livres (que apresentam aromas ainda nas uvas) e ligados, que podem ser libertados durante a vinificação. A maceração pelicular, por exemplo, aumenta bastante a complexidade e intensidade aromática do vinho e se a acidez for de bom nível, não apresenta o perigo de perder a frescura.
Para os vinhos mais expressivos, cada vez mais produtores apontam para fermentação com leveduras indígenas (e uvas sãs apanhadas antes das chuvas do equinócio não apresentam tanto risco). Assim faz Mário Sérgio na Quinta das Bágeiras, Manuel Lobo na Quinta do Casal Branco, Antonina Barbosa na Falua e Daniel Afonso no seu projecto Baías e Enseadas.
O estágio em madeira para Fernão Pires não é uma questão consensual, considera-se que dado o perfil aromático intenso, a barrica não lhe fica bem, sobretudo nova. Mas há excelentes exemplos de tudo.
Manuel Lobo deixa arrancar a fermentação em cuba e quando baixa os 30 pontos de densidade vai para a barrica (40% nova), onde fica 18 meses com bâtonnage. Mas uma parte fica só em cuba para compor o lote. Mário Sérgio estagia tudo em barricas bastante usadas de 500 litros e Daniel Afonso prefere as de 225 litros. Antonina Barbosa não usa barrica de todo para Fernão Pires, mas aproveita muito as borras para dar volume de boca e textura. Faz maceração pelicular, depois da prensagem, fica ainda com borras totais a baixa temperatura para criar volume e estrutura. Claro que isto tudo só é possível com pH baixo. A seguir à fermentação, sem trasfega, o vinho fica com as borras da fermentação na cuba durante mais 1 ano. Não vai para a barrica precisamente para mostrar o puro carácter da casta e do terroir.

Fernão Pires com ambição

Ao contrário da ideia generalizada de que os vinhos de Fernão Pires não justificam guarda, lembro-me de uma prova temática organizada pela CVR Tejo, onde provámos alguns vinhos de 2003, 2000, 1994 e 1983 com 12-12,5% de teor alcoólico, uma bela frescura e concentração do sabor. Isto prova mais uma vez que não devemos por todas as culpas na casta, quando não lhe damos a devida atenção.
O que falta à Fernão Pires é talvez aquela patine de casta chique, para toda a gente falar nela. A sua omnipresença não permite contar uma história do género “desencantámos uma variedade rara e salvámo-la do esquecimento”. Mas o que podemos fazer é salvar do esquecimento a sua reputação e agora já temos muitos argumentos ao seu favor. Basta olhar (e provar!) os vinhos que sugerimos nesta peça.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Herdade de Espirra: O Castelão continua a ser aposta

Herdade da Espirra

Em sessão aberta à imprensa, o projecto Herdade de Espirra apresentou os vinhos Pavão de Espirra tinto 2020 e Herdade de Espirra Reserva tinto 2018. O primeiro é um vinho de entrada de gama, com um perfil assumidamente consensual, onde o aroma vivo a frutos vermelhos e um equilíbrio de corpo e taninos procura adequar-se […]

Em sessão aberta à imprensa, o projecto Herdade de Espirra apresentou os vinhos Pavão de Espirra tinto 2020 e Herdade de Espirra Reserva tinto 2018. O primeiro é um vinho de entrada de gama, com um perfil assumidamente consensual, onde o aroma vivo a frutos vermelhos e um equilíbrio de corpo e taninos procura adequar-se a momentos de consumo descontraídos e informais. O Reserva é bastante mais ambicioso. As uvas, provenientes de vinhas com mais de 40 anos, são colhidas manualmente e pisadas a pé, fermentando em lagares e beneficiando de um estágio de 24 meses em barricas de carvalho francês, a que se seguem mais doze meses em garrafa. A intenção é, como explicou Ana Varandas, mostrar a tipicidade do Castelão sem maquilhagem: fruta preta, encorpado, bons taninos. Esta casta, que atinge nos terrenos de areia de Pegões uma das suas melhores expressões, permite fazer vinhos de forte carácter e grande identidade.
Na ocasião foi também mostrada uma nova embalagem do Pavão de Espirra rosé 2021, num formato Bag in Tube, de três litros, rotulada com papel Navigator e produzida a partir de florestas geridas de forma sustentável e devidamente certificadas.

Estas preocupações ambientais atravessam toda a política da empresa. The Navigator Company é um produtor integrado de floresta, pasta, papel, “tissue”, soluções de packaging e bioenergia. A administração do grupo, presente neste encontro, reforçou este compromisso na sustentabilidade ambiental, nas soluções recicláveis e biodegradáveis e na diversidade de culturas e plantações patente em mais de 130 espécies diferentes de árvores e arbustos, muitas sem viabilidade económica, mas que são mantidas e financiadas para garantir a continuidade das espécies. A meta da neutralidade carbónica é uma aposta a médio prazo. A manutenção das vinhas e a produção de vinho na Herdade de Espirra são um exemplo vivo desta política. Representando um valor absolutamente residual no negócio global da companhia, esta foi herdada da anterior Portucel e integrada em 1985, sendo mantida e valorizada como mais um exemplo nessa aposta na biodiversidade. Por isso, as vinhas convivem pacificamente na herdade de Pegões com um total 1700 hectares, com outras actividades agro-florestais como a produção de pinhão, pastoreio, viveiros florestais e madeira. Apesar de, recentemente, se ter introduzido na propriedade novas castas como Aragonez, Touriga Nacional e Alicante Bouschet, o Castelão continua e continuará a ser o eixo da produção de vinho da Herdade, todo ele obtido a partir de vinhas em Produção Integrada.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

World of Wine: Nesta aula é permitido beber

Escola de Vinho

A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine […]

A oferta educativa em vinho existente em Portugal é tudo menos abundante ou frequente, sobretudo se estivermos a falar de opções menos exigentes e académicas, como a certificação WSET (Wine & Spirit Education Trust). No entanto, pelo menos na zona do Porto, a situação está assegurada com a The Wine School do World of Wine (WOW), em Vila Nova de Gaia. Esta “Escola de Vinho” inaugurou em 2021, está sempre aberta e com formações constantes, deste o WSET a workshops de curta duração, passando por muitos outros cursos, para todos os níveis de conhecimento e “carteira”.
“A nossa missão prende-se com o conceito de ‘edutainment’, ou seja, educação com entretenimento. Consideramos que o sector do vinho em Portugal é complexo e se fecha muito em si”, explica-nos José Sá, director da Escola de Vinho. Com background em Engenharia Mecânica, entrou no mundo do vinho por paixão e criou a “Wine Tellers”, um projecto onde pretendia, já na altura, comunicar o vinho de forma diferente. Entretanto, foi sommelier no hotel The Yeatman e sommelier responsável no Le Monumental Palace, ingressando, simultaneamente, especializações académicas na área dos vinhos. Voltando à sua “antiga casa”, esteve na génese do museu Wine Experience do WOW antes de assumir a direcção da The Wine School, sendo actualmente responsável por uma equipa permanente de quatro formadores.
Bilingue, com oferta em português e inglês, a Escola de Vinho do WOW dá-nos a sensação de estarmos mesmo numa escola, começando num átrio central que dá acesso a salas de aula, salas de prova e uma sala privada com cozinha, além de zonas de apoio como a cozinha e a copa. Foi construída de raíz com este propósito, por isso as condições e os vários espaços são exímios. As salas de aula e prova estão, por sua vez, equipadas com módulos independentes de ar condicionado, que têm filtros de carvão e mecanismos que colocam a área em pressão positiva, elementos que “anulam cheiros e impedem a contaminação de aromas”, explica José Sá. Também não faltam equipamentos de frio para os vinhos e outros de higienização profissional para os copos. “Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada”, refere o director.

A vertente académica

É a primeira escola em Portugal a leccionar o WSET — entidade internacional líder na educação em vinhos e bebidas espirituosas — também em inglês, além de português, nos níveis 1 e 2, no entanto, o foco não é apenas o contexto vínico internacional, mas também o vinho português e o contexto nacional. Prova disso é, a título de exemplo, o programa desenvolvido de forma original pela equipa da escola, o “Portuguese Wine Specialist” (PWS), que permite estudar em detalhe os vinhos portugueses com a mesma metodologia do WSET. Este é um programa de dois níveis, para já — “Nível 1: Saber de vinho em Portugal” (€75) e “Nível 2: Entender as regiões portuguesas” (€185) — e não obriga a participação no WSET, embora a escola tenha disponíveis packs vantajosos que juntam os dois programas.
Na certificação WSET, tentam oferecer uma experiência mais enriquecedora, indo para além dos mínimos exigidos pelo programa. “Incluímos mais 20% de vinhos do que o obrigatório nos dois níveis WSET, bem como mais uma hora no nível 1 e mais duas no nível 2”, adianta José Sá, que revela, ainda, que o nível 3 chegará à The Wine School em 2024, e que pretendem vir a ter disponível o mais recente WSET em cerveja.

Escola de Vinho
José Sá – Director da Escola.

 

 

 

 

“Queremos proporcionar o mesmo nível de serviço e profissionalismo tanto na nossa prova mais simples e acessível, como na mais premium e aprofundada.”

 

 

 

 

 

 

Mais que Uma Prova

Num registo diário e lúdico, das 11h00 às 19h00 e sem marcação obrigatória, as sessões “Mais que Uma Prova” têm o objectivo de “democratizar o conhecimento sobre o vinho”. As provas personalizadas (desde €20 por pessoa), com duração de 30 minutos, dividem-se em várias opções: selecção de três vinhos; selecção de cinco vinhos, harmonização de dois vinhos e duas trufas de chocolate; ou harmonização de três vinhos e três queijos. Já a prova “Desmistificar o Vinho” (€35) dura 45 minutos, inclui cinco vinhos, aborda um destes temas à escolha: “Como provar vinho”, “História e estilos de vinho do Porto”, “Regiões portuguesas” ou “Harmonização de vinho e chocolate”.

Cursos Práticos

Concebidos tanto para curiosos como para profissionais da área, os cursos práticos são dados a turmas pequenas e podem ser organizados de forma privada, como momentos de teambuilding ou outras ocasiões especiais. São cursos como “Introdução ao vinho e à prova” (€45 por pessoa), com duração de três horas e prova de oito vinhos; ou “Vinhos fortificados portugueses” (€185), com duração de cinco horas e prova de doze vinhos; entre outros.

 

 

Provas Exclusivas

Estas são sessões de prova personalizadas, em ambiente privado, com vinhos “excepcionais e icónicos” e garantia da “máxima atenção especializada a cada provador e a cada tema”. As sessões já desenhadas pela escola têm vários temas e preços dos €95 aos €225, consoante o número e tipologia de vinhos, mas também é possível organizar à medida. As Provas Exclusivas têm, ainda, a vantagem de poderem ser realizadas a bordo de um iate, no rio Douro.

Para Além da Uva

As masterclasses (€45) ou provas (€25) “Para Além da Uva” fazem parte do calendário anual e são anunciadas nas redes sociais da The Wine School e na página da escola em wow.pt. Nestas, são convidados especialistas do sector do vinho, de outras bebidas e da gastronomia em geral, para orientar sessões aprofundadas sobre temas específicos e tendências de interesse. Os convidados podem ser, por exemplo, enólogos, produtores, chefs de cozinha, sommeliers, jornalistas, entre outros.

E muito mais…

A Escola de Vinho do WOW está também a iniciar-se na organização de Tours no segmento premium, por várias regiões vitivinícolas de Portugal. Em marcha está a construção de uma zona exterior de balcão e a introdução de pequenos momentos educativos de harmonização no átrio e no futuro balcão exterior, bem como a criação de livros originais de apoio aos cursos.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Grande Prova: Brancos da Bairrada

Grande Prova

A liga dos duros Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do […]

A liga dos duros

Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do país, com ligeiro pendor a norte, compreendendo os concelhos de Anadia, Mealhada, Oliveira do Bairro e também, ainda que parcialmente, os de Águeda, Cantanhede, Vagos e até Coimbra. No que diz respeito a outras regiões vitivinícolas, delimita a Norte com Lafões (não se afastando muito dos Vinhos Verdes), e a Este a região do Dão. É um território muito específico, podendo ser resumido como um planalto de baixa altitude, circunscrevido ora pelo Oceano Atlântico a Oeste, ora pelas Serras do Caramulo e Buçaco a Este, com notórias tradições gastronómicas muito próprias, do leitão ao espumante, passando pela aletria.

Mas voltemos à história recente: a explicação para tão poucos anos excelentes, no que a tintos dizia respeito, centrava-se na relação entre casta e o clima atlântico que caracteriza a região, sobretudo em anos chuvosos. Com forte propensão para precipitação no início de setembro, era habitual a casta Baga – a principal tinta da região e tardia na maturação – não estar totalmente madura aquando das primeiras chuvas, originando o perfil menos consistente e mais rústico por vezes comum na região até há duas décadas. Claro que, nos anos mais quentes e secos, a Baga amadurecia bem dando origem a tintos encorpados que, mesmo acima dos 14% vol., retinham a acidez e os taninos necessários para uma excelente prova, mais a mais mantendo os vinhos longevos por décadas. Foram, essencialmente, esses tintos que deram fama à região.

Hoje, como sabemos, o clima não é exactamente o mesmo de há três ou quatro décadas, com uma subida notória da temperatura média anual, o que provoca uma vindima mais precoce e, com isso, reduz-se o risco de uma vindima à chuva. Todavia, a Bairrada é ainda caracterizada por verões amenos, para não dizer mesmo com noites frias e neblinas marcadas pelos ventos de Oeste e Noroeste claramente vindos do Atlântico. Tanto assim o é que, no Verão e início de Outono, a amplitude térmica chega a uns impressionantes 20ºC, com destaque para o eixo entre Oliveira do Bairro e Luso (passando por Anadia e Mealhada), sendo Cantanhede ligeiramente mais quente em média. Sucede que, actualmente, com a crescente procura por vinhos mais frescos e de acidez vibrante, e com o Sul e interior do nosso país a atingirem temperaturas elevadíssimas, o perfil atlântico e pouco solarengo da Bairrada é uma vantagem evidente, em particular nos brancos, aos quais nos dedicaremos nas próximas linhas (para não falar dos espumantes, onde a Bairrada é a principal região produtora e aquela com mais tradição em Portugal).

UVAS QUE EXPRESSAM O LOCAL

 Se quanto ao clima já nos referimos, importa recordar que, ao nível dos solos, a Bairrada é caracterizada por manchas e afloramentos argilo-calcários de origem jurássica e triássica, perfis reconhecidamente privilegiados para vinhos distintos (em Portugal, o perfil mais parecido será o dos terrenos calcários de Bucelas, cujos DOC são obrigatoriamente brancos). Dentro da região, os melhores locais para vinho são ainda caracterizados pelos típicos “barros”, solos argilosos, mas sempre com o teor de calcário a marcar a identidade da região. Em Cantanhede, Mealhada, Anadia e, mais a Norte, em redor de Oliveira do Bairro, podemos encontrar vários solos calcários e margas ou calcários margosos, geralmente com alguma percentagem de limo bastante poroso. Não espanta, assim que a quase totalidade dos vinhos aqui provados venham de vinhas com presença de calcários, algo que se pressente em prova pela finura e frescura que manifestam, tanto os mais vinhos mais novos, como aqueles com mais estágio em garrafa. Uma excepção é o requintado Quinta de Foz de Arouce, de uma vinha de Cercial próxima da Lousã, cuja localização, e respetivo solo xistoso, levam a que seja certificado como Beira Atlântico.

Outro factor de sucesso são as castas nacionais bem-adaptadas à região, algumas delas quase exclusivas da Bairrada. Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas. Ora, se em algum lugar no nosso país faz sentido afirmar que as castas expressam o terroir, esse lugar é a Bairrada. Com efeito, mesmo as castas mais expressivas do ponto de vista da fruta e até “maduronas” — como a Chardonnay — revigoram na Bairrada e dão lugar a vinhos finos, recatados e de acidez crocante. O Arinto, por sua vez, já de si propenso a um perfil seco e com boa acidez, marca presença em muitos lotes, sendo eleita muitas vezes a solo nos topos de gama fermentados ou estagiados em barrica, como podemos verificar na presente prova (excelente, a edição única do vinho Doravante de uma vinha de Arinto entretanto já arrancada).

Grande Prova

 

 

Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas.

 

 

O FACTOR HUMANO

Deixámos para o fim um dos factores diferenciadores da região mais desafiador: os produtores. A típica persistência bairradina, e a lendária capacidade dos bairradinos em perpetuar as suas tradições, faz com que, em 2023, estejam a ser lançados vinhos elaborados da mesma forma que o eram há mais de 50 anos, por exemplo com fermentações em tonéis antigos de madeira. São, em muitos casos e como esta prova demonstrou, produções mínimas (por vezes, pouco mais de 500 garrafas), de vinhos lançados com vários anos em garrafa (por vezes até 5 anos). É, certamente, a liga dos duros! Com efeito, existe um punhado de produtores absolutamente “clássico”, cuja qualidade e originalidade dos vinhos brancos é elogiada internacionalmente. Nomes e marcas como Quinta das Bágeiras, Casa de Saima, Frei João (Caves São João), Sidónio de Sousa, fazem parte desse lote juntamente com outros. Esta identidade é tão marcada que, mesmo gerações mais novas e produtores mais recentes, continuam esse legado de tradicionalismo assente em vinhas velhas e enologia pouco interventiva, como é o caso dos produtores Filipa Pato & William Wouters, Niepoort Vinhos (que entrou na região há mais de uma década), Luís Gomes (Giz) ou os projectos de enólogos como V Puro e Botão, entre tantos outros. Mas não se pense que a região não tem inovadores, alguns deles, aliás, pioneiros e responsáveis durante décadas por colocar a Bairrada no mapa internacional. Caso de Luís Pato, inovador nas mondas e na utilização de meias barricas francesas; ou de Carlos Campolargo, experimentando todo o tipo de castas, das mais típicas da região às internacionais, muitas vezes em estreme; e passando pelos vinhos ambiciosos e monumentais de João Póvoa, primeiro na Quinta de Baixo e, desde 2005, no projecto Kompassus. Igualmente importantes serão outros produtores de origem local, com várias gerações de vinhos “às costas”, e que persistem em apresentar, ano após ano, vinhos cada vez melhores respeitando o ADN da Bairrada, ou seja frescura, acidez e carácter, caso de Jorge Rama, António Selas, Regateiro, entre outros.

Com tantas razões para brancos de excelência, não espanta que os dados disponíveis apontem para a produção crescente destes vinhos certificados enquanto DOC Bairrada. Em 2022, foram quase 610 mil litros, um terço mais do que a média dos 10 anos anteriores. Boas notícias, portanto! Com este volume e, sobretudo, tanta qualidade a preços relativamente cordiais (os vencedores da prova custam menos de €30 a garrafa), não queira ser um daqueles a passar ao lado de alguns dos melhores brancos de Portugal…

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Quinta do Cardo: Um pioneiro da Beira Interior

Quinta do Cardo

Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se […]

Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se bem antes disso. Situada junto à aldeia medieval de Castelo Rodrigo, a história vitivinícola “moderna” da Quinta do Cardo tem início em 1932, com a plantação dos primeiros talhões de vinha pelo casal José António Andrade Maia e Esmeralda Aguilar Fonseca Maia, a quem seu pai tinha oferecido a propriedade. Mantida na família até ao início dos anos 80, acabou por ser perdida ao jogo (imagine-se!) e colocada em hasta pública. E assim, em 1983, os 200 hectares da quinta (dos quais 12 de vinha tradicional) chegaram às mãos de Maria Luíza Lima e do seu marido, Artur Ribeiro da Silva.

Maria Luíza e Artur não eram estranhos ao mundo do vinho, longe disso. Ambos engenheiros, ela tinha um conhecimento profundo da produção vitivinícola, enquanto profissional em empresas de topo e proprietária no Douro; e ele foi, sem dúvida alguma, um dos mais brilhantes criadores de equipamentos para a indústria do vinho nos anos 80 e 90, através da empresa Vinipal, com várias patentes registadas no curriculum.

Não espanta por isso que a nova adega, por eles construída em 1984, integrasse o que de mais moderno havia em equipamento enológico na época, incluindo, por exemplo, remontagem gasosa para vinificação de tintos, estabilização pelo frio em contínuo, prensa pneumática, pasteurização flash e cubas com atmosfera inerte. Quando, no início de 1990, a visitei pela primeira vez, a adega era um verdadeiro centro de investigação e experimentação da tecnologia do vinho.

Quinta do Cardo
Jorge Rosa Santos e Rui Lopes entraram na Quinta do Cardo em Agosto de 2021, mesmo em cima da hora para fazerem a vindima.

Também a vinha foi objecto de grandes ampliações, tendo sido plantados, ao longo dos anos, mais de 40 hectares, num mix entre as castas identitárias da região (Síria, Arinto, Mourisco) e as que na vizinha região do Douro tinham provas dadas (Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Francesa). O pioneirismo da adega estendeu-se à abordagem vitícola: todas as parcelas foram instaladas em regime de proteção integrada (algo raro numa época em que o conceito de sustentabilidade ambiental era praticamente desconhecido) e com rega gota-a-gota. Inovador para aqueles tempos, foi também o facto de o casal ter encarado a vinha velha como um tesouro a preservar, tendo-a recuperado e suprido as falhas das cepas mortas. O primeiro branco com o rótulo Quinta do Cardo nasceu em 1986 e dois anos depois o primeiro tinto. A marca tornou-se famosa em muito pouco tempo, sobretudo pelos brancos, uma notoriedade que terá certamente beneficiado da conjugação entre um terroir perfeitamente adequado e uma adega onde avançados sistemas de frio imperavam. Nos melhores restaurantes de Lisboa e Porto, ouvia-se pela primeira vez falar de vinhos de Castelo Rodrigo. E jornalistas novos no ofício, como era o meu caso, estreavam-se a provar nas cubas brancos e tintos estremes de Síria, Rufete e Mourisco.

Com propriedade e marca tão apetecíveis, Maria Luíza Lima e Artur Ribeiro da Silva acabariam por não resistir à proposta da Companhia das Quintas que em 1999 iniciava o seu ambicioso projecto de instalação nas principais regiões de Portugal. Foi esta empresa que concluiu a plantação das novas vinhas e ampliou a adega tendo em vista o aumento da produção. Em 2009 todos os vinhedos do Cardo passaram ao sistema de produção biológico, certificado pela Sativa, tornando-se assim no primeiro produtor nacional a fazê-lo naquela escala. Em 2014, a certificação bio estendia-se a todos os vinhos da Quinta do Cardo.

Com o aproximar do final da década, os problemas financeiros que a Companhia das Quintas atravessava levaram a forte limitação dos investimentos nas propriedades, primeiro, e posterior desagregação da estrutura produtiva. Depauperada, quase sem actividade, a Quinta do Cardo seria então adquirida pelo casal Artur Gama e Eva Moura Guedes, que trouxeram para a sociedade outro membro da família, António Mexia. E assim, a mais histórica referência da Beira Interior ganhava uma nova vida e uma segunda oportunidade.

 

Quinta do Cardo

 

Uma nova vida

Artur Gama e Eva Moura Guedes já sabiam o que custa produzir vinho e colocar uma marca a rodar no mercado. Afinal de contas, desde 2015 que tinham em mãos a Quinta da Boa Esperança, na região de Lisboa, a que se soma a vasta experiência de Artur no trading de vinhos. Mas porquê, agora, a Quinta do Cardo? “Foi resultado de uma oportunidade, mas também de um ‘amor à primeira vista’. Quando percorremos o caminho que nos levou à quinta, ficámos desde logo marcados pela beleza, pela história, pelo silêncio, pela relação das pessoas com estas terras altas”, revela Artur Gama. O potencial para as práticas sustentáveis foi outro factor de decisão. “A localização do Cardo, o seu clima, altitude e natureza do terroir, tornam este projecto vinícola particularmente adaptado às alterações climáticas e à consequente necessidade de reduzir o consumo de água e de adoptar métodos de agricultura regenerativa, permitindo o desenho de vinhos de grande qualidade, amigos do ambiente e, ainda, das novas tendências em termos de consumo”, explica o produtor.

A experiência e os resultados obtidos pelo modelo de produção integrada na Quinta da Boa Esperança (situada numa região bem mais difícil para estas práticas, devido à humidade) ajudaram a fortalecer a convicção dos sócios de que a Quinta do Cardo só faria sentido com a aposta “numa visão sustentável integrada – nas vertentes ambiental, económica, social e cultural.” A história pioneira da Quinta do Cardo na agricultura biológica era igualmente trunfo a não desperdiçar.

Não foi nada fácil, porém, colocar a propriedade de novo em marcha. Quando da sua aquisição, em 2021, a Quinta do Cardo estava praticamente inoperacional. A vindima de 2020 não chegou a ser feita, o sistema de rega estava desactivado, a vinha sem cuidados, o parque de máquinas não existia, a adega tinha muitos problemas infra-estruturais e tecnológicos. Foi preciso intervir rápido e estabelecer prioridades: “reparar” a vinha e recuperar equipamentos de adega, para garantir a vindima de 2021. Após estas intervenções urgentes que devolveram a operacionalidade da Quinta, fizeram-se os primeiros investimentos estratégicos. Assim, em 2022 foram plantados 10 hectares com Síria, Arinto e Malvasia Fina, sobretudo, e também Rufete. Uma nova captação e sistema de irrigação automatizou parte significativa da vinha existente. Ao mesmo tempo, adquiriram-se tractores, alfaias agrícolas, uma bateria de cubas para vinificação de brancos e reestruturou-se o parque de barricas. “Todas as intervenções feitas até agora tiveram como propósito aprofundar a dimensão da sustentabilidade, nos seus quatro pilares, e valorizar o contexto extraordinário da Beira Interior para a exploração vinícola e para a produção de vinhos”, diz Artur Gama.

 

 

“O Futuro da Quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos

 

 

Um território único

A Quinta do Cardo merece, na verdade, todo o carinho que lhe possam dar. E, dando-lhe oportunidade, ela retribui com vinhos que expressam um território pleno de singularidades. A começar pelo clima. A serra da Marofa e Castelo Rodrigo, ali ao lado, ajudam a suavizar os ventos continentais e limitam a ocorrência de granizo. A uma altitude média de 750 metros, os Invernos são rigorosos, os abrolhamentos tardios, as maturações lentas (preservando a acidez das uvas), com grandes amplitudes térmicas no Verão, favorecido com noites frescas. As vinhas do Cardo estão plantadas em solos profundos, com pouca matéria orgânica, enorme prevalência de argila, com pH ácido e rocha-mãe de granito quartzítico a mais de 2 metros de profundidade.

A área actual de vinha ronda os 80 hectares, com destaque para algumas parcelas “históricas”. É o caso da Vinha do Lomedo, plantada no início dos anos 70. São cerca de 10 hectares de Síria, a uva branca identitária da Beira Interior, onde nascem consistentemente vinhos de excelência, tornando-a uma verdadeira referência regional e nacional desta casta. A Vinha do Pombal, com mais de 25 anos, é outra parcela estreme: exclusivamente Touriga Nacional, 4 hectares de cepas plantadas com compasso apertado, dá origem a alguns dos melhores tintos da casa. Já a Vinha do Castelo, plantada em 1999 com Tinta Roriz, está a ser trabalhada para, no futuro, originar também ela um vinho de parcela. Para além destas, encontramos noutros talhões Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, além de pequenas parcelas de Tinto Cão, Alicante Bouschet, Merlot e Caladoc.

Tirando a vinha plantada em 2022 com Síria, Arinto, Malvasia Fina e Rufete, foi isto que os enólogos Jorge Rosa Santos e Rui Lopes encontraram quando foram convidados a “tomar conta” da produção da quinta. “Chegámos em Agosto de 2021”, recorda Jorge, “e felizmente a vindima apenas começou em meados de Setembro, o que nos deu tempo para programar a colheita, fazer revisões na adega e, na medida do possível, conhecer as vinhas, muito com a ajuda do Sr. Ermindo Coelho o feitor da casa, que aqui já fez 35 vindimas.” Jorge e Rui têm apenas duas vindimas na Quinta do Cardo (quando escrevo estas palavras estarão à beira da terceira que, segundo eles, “promete imenso”), mas dois anos são suficientes para perceberem o que têm em mãos. “A quinta tem um potencial tremendo”, refere Rui Lopes. “Logo na vindima de 2021, e com a vinha no estado em que estava, foi possível produzir brancos de enorme finura, precisão, mineralidade e elegância e tintos expressivos e genuínos, com taninos firmes e marcadas nuances balsâmicas”, acentua.

De então para cá, a equipa de viticultura da casa tem vindo a desenvolver trabalhos que vão permitir aumentar a produtividade – tremendamente escassa, é o maior problema da quinta, afectando a rentabilidade – e a qualidade das uvas.  Para tal, foram alteradas as podas em alguns talhões, com a descompactação do solo, correcção do pH, incorporação de matéria orgânica e enriquecimento do coberto natural com sementeiras. “A vinha está a reagir de forma fantástica”, exulta Artur Gama, “ela percebe quando é bem tratada…”

Quinta do Cardo

 

 

Orgânico é marca da casa

Como atrás referi, todas as vinhas da Quinta do Cardo são trabalhadas em modo orgânico desde 2009, um compromisso e uma forma de estar que saem reforçadas com os seus novos proprietários. Mas quais são os principais desafios colocados pela viticultura orgânica na Quinta do Cardo? Jorge Rosa Santos responde: “O modo de produção orgânico em regiões ou vinhas com chuva ou humidade frequentes pode ter consequências drásticas para a própria preservação ambiental, seja pela sobredosagem de cobre e enxofre ou gasto desmesurado de combustível no controlo da flora na linha e entre-linha. Já para não mencionar o impacto enorme na produtividade, o qual, acrescido ao modo de produção mais trabalhoso, torna o vinho mais caro ao consumidor.” Não é o caso da Quinta do Cardo, que parece talhada para o modelo bio. “Estamos a 750 metros de altitude, temos aqui um ciclo vegetativo curto, abrolhamento tardio e amplitudes térmicas enormes”, salienta Jorge. “Além disso, a precipitação média anual, tal como em toda a região do Ribacôa, é muito baixa. Ou seja, estão reunidas todas as condições para operarmos em modo produção orgânico, sem redução da produção. Em termos vitícolas, o maior desafio prende-se com o controlo da flora na entrelinha e com as intervenções na sebe, que permitam o bom arejamento”, conclui.

Existem riscos, claro, mas a equipa está preparada para eles. “Sabemos que teremos anos mais desafiantes do que outros”, diz Rui Lopes. “As vindimas de 2002, 2010, 2014 foram problemáticas. Por dedução lógica, a cada 10 vindimas, teremos talvez duas com problemas de sanidade e consequente baixa produtividade. Mas, actualmente, temos as nossas vinhas com um vigor médio-baixo, logo uma sebe bastante arejada e produtividade média-baixa, pelo que o risco é moderado. Além disso as vinhas são todas ao alto e em parcelas contíguas, o tempo de reacção para um tratamento orgânico é muito rápido”, remata o enólogo.

Para o produtor, Artur Gama, não subsistem quaisquer dúvidas: “Apesar de todos os riscos, acreditamos que nesta região a produção em modo orgânico é, neste momento e nos anos vindouros, a escolha certa. A região tem ganho espaço e reconhecimento, mas no posicionamento médio-alto continua a ter algumas dificuldades. A nossa missão é apostar nesse posicionamento e achamos que o modo de produção orgânico contribui como factor de diferenciação. Além de estar absolutamente alinhado com os nossos valores institucionais de sustentabilidade.”

 

 

“Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes

 

 

Castas e identidade

Variedade identitária da Beira Interior, a casta Síria tem lugar de destaque na Quinta do Cardo. “O futuro da quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos. “Acreditamos muito no potencial da casta a esta altitude e nestes solos. Tem enorme maleabilidade, pois aceita bem a madeira ou o estágio sobre borras em cuba de inox. E em casos especiais consegue representar muito bem a identidade da parcela, como no caso do branco Vinha do Lomedo”, acrescenta. Certamente por isso, a casta representa 90% da área de branco da Quinta do Cardo. Já nos tintos, o panorama é algo diferente. Apesar de produtor e enólogos estarem muito satisfeitos com o desempenho de variedades como Touriga Nacional ou Touriga Franca, reconhecem a necessidade de uma maior representatividade das castas autóctones no encepamento da propriedade. “Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes. “Vamos manter alguma Tinta Roriz, que tão bom resultado tem na Beira Interior e em regiões vizinhas portuguesas e espanholas. Mas, acreditamos que esta região terá também potencial para outras castas portuguesas, tal como a Trincadeira e Alicante Bouschet, esta última com excelentes resultados, numa pequena parcela que temos”, adianta. A Garnacha, amplamente plantada ali bem perto, do outro lado da fronteira, nas regiões de Arribe e de Toro, é outra possibilidade para ensaiar quando existir oportunidade.

Hoje, a Quinta do Cardo está a produzir cerca de 300 toneladas de uva/ano, mas quando a vinha plantada em 2022 entrar em plena produção, será possível atingir as 400 toneladas. A vindima de 2022 deu origem a cerca de 200.000 garrafas. O mercado nacional é o destino de cerca de 70% das vendas, com a exportação a subir tendencialmente, ampliando os principais mercados já existentes (Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa central) e abrindo outros.

Artur Gama tem uma visão muito clara do que pretende para a sua mais recente aposta vitivinícola: “Vemos a Quinta do Cardo a afirmar-se como o projecto de referência da Beira Interior e como líder nos vinhos orgânicos. No final desta década queremos ultrapassar o milhão e meio de garrafas, num posicionamento de segmento alto e muito virado para exportação, onde se valoriza a componente orgânica e a sustentabilidade global.”

Sustentabilidade que, como faz sempre questão de realçar, não deve ser apenas ambiental, mas também económica, social e cultural. Nesse sentido, há algo que o preocupa e que, infelizmente, não é novo e nem exclusivo da Beira Interior. “Estamos particularmente inquietos com a desertificação da região e com os inerentes problemas sociais e económicos criados”, diz. “Também por isso, queremos contribuir positivamente para os atenuar, estabelecendo parcerias com empresas, polos de ensino locais e com o concelho de Figueira Castelo Rodrigo, para o desenvolvimento de projectos nas áreas cultural, social e de investigação. Não tenho dúvidas: a Beira Interior será ‘the next big thing’. Tivemos a sorte de encontrar a Quinta do Cardo. Queremos partilhá-la.”

(Artigo publicado na edição de Stemebro de 2023)

Morgado do Quintão: Para uma arqueologia dos vinhos algarvios

Morgado do Quintão

Nas mãos da família Caldas Vasconcelos há quatro gerações, a casa foi fundada em 1810 pelo 1º Conde de Silves e sempre ali se produziu vinho, a par de outras culturas, nesses tempos sobretudo para consumo próprio, a exemplo de muitas outras propriedades na região. O que aqui merece relevo, é que os seus proprietários […]

Nas mãos da família Caldas Vasconcelos há quatro gerações, a casa foi fundada em 1810 pelo 1º Conde de Silves e sempre ali se produziu vinho, a par de outras culturas, nesses tempos sobretudo para consumo próprio, a exemplo de muitas outras propriedades na região. O que aqui merece relevo, é que os seus proprietários souberam resistir à tendência geral da região nos anos 80 e 90 do século passado de abandono da vinha e porfiaram em manter a produção, entregando as uvas na adega cooperativa local. Mas foi só mais recentemente, em 2016, que Filipe Vasconcellos e sua irmã Teresa, com a morte de sua mãe assumiram a gestão da propriedade e resolveram ensaiar a produção de vinho engarrafado. Primeiro, de uma forma tímida, com o lançamento de 2000 garrafas e depois a pouco e pouco, à medida que estendiam a área de plantação até chegar hoje aos 18 hectares e com uma produção que anda em média nas 30 000 garrafas. Mas Filipe e Teresa tinham ideias claras do que queriam fazer e foram em contramão à tendência de reproduzir no Algarve as castas e os métodos que fizeram o sucesso dos vinhos alentejanos. Com vinhas muito velhas, algumas com mais de 90 anos e de produção exígua, resistiram ao impulso de as arrancar e fizeram delas a imagem de marca da sua casa. Negra Mole e Castelão nos tintos e Crato (Síria) nos brancos eram as cepas tradicionais do Algarve de antanho. E foram nestas que apostaram, com o incentivo entusiasmado da enóloga Joana Maçanita que assumiu a direção de enologia e que hoje dá a cara e, ouvindo como fala, o coração, pelo projecto.

 

 

Filipe Vasconcellos e a sua irmã Teresa assumiram, em 2016, a gestão da propriedade.

 

 

 

 

 

As vinhas novas entretanto plantadas respeitam esta filosofia da casa e reproduzem em alguns aspectos as condições das vinhas primitivas: castas misturadas, ou como hoje dizemos “field blend, pouca intervenção na vinha e na adega. Mas as preocupações na sustentabilidade e a aposta na produção biológica que está em vias de ser certificada são bem contemporâneas. Na prova que nos proporcionaram sob a sombra generosa de uma oliveira milenar (Filipe avançou que ela teria mais 2000 anos!) ficou muito claro o perfil pretendido dos vinhos ali produzidos. Joana Maçanita explicou que esta era a verdadeira identidade dos vinhos do Algarve e aquilo que defende ser o seu futuro. Vinhos brancos frescos e com boa acidez e tintos com pouca cor e também carregados de frescura, para se beberem no verão escaldante. Por isso a aposta vincada na Negra Mole, a porta bandeira dos vinhos algarvios, fazendo com ela os seus Claretes de Negra Mole, com os quais fizemos uma prova vertical muito interessante, lembrando os Pinot Noir. O espírito inquieto de Joana tem convencido os proprietários a avançarem por experiências desafiantes que também nos foram dadas a provar, como é o caso do Espumante de 2019, um pouco resinoso mas delgado na boca, um Palhete que junta Negra Mola com Crato, um Branco de Ânfora 2021 carregado de salinidade e outro Branco de Tintas 2021.

 

A casta Negra Mole é a grande aposta do projecto

Esta aposta tem sido bem conseguida, os grupos de visitantes (a maior parte estrangeiros) sucedem-se aos portões da propriedade e os vinhos do Morgado do Quintão são hoje um dos principais pontos de atracção na exploração do enoturismo, para o qual a casa está muito bem apetrechada com os seus pequenos chalés pitorescos e com o suporte de uma cozinha criativa e bem apresentada, baseada nos produtos e sabores tradicionais da região.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Herdade do Gamito: Abegoaria no Norte alentejano

Herdade do Gamito

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e […]

A Herdade do Gamito fica no Crato, distrito de Portalegre. A propriedade está hoje englobada no universo da Abegoaria Wines, grupo vitivinícola com produção de vinhos nas regiões de Açores, Douro, Lisboa, Tejo e Alentejo. Nesta última região, o maior polo produtivo está na Granja-Amareleja, onde se situa a casa mãe, Herdade da Abegoaria, e as adegas/marcas associadas Cooperativa da Granja e José Piteira. Um terroir que não podia ser mais distinto daquele que encontramos na Herdade do Gamito, no coração do norte alentejano.

As vinhas da Herdade do Gamito foram inicialmente plantadas em 2003 e actualmente são 27 ha que estão à disposição da equipa que inclui Marcos Vieira como enólogo residente e António Braga como consultor. Além daqueles 27, há mais 7 ha arrendados bem perto da propriedade onde, entre outras, está plantada a casta Cabernet Sauvignon, da qual António Braga é grande apreciador, “até vou começar a usar mais porque a casta dá aqui vinho de muita qualidade”, disse. Depois há Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Petit Verdot. Os solos são graníticos, mas de textura variada, desde blocos enormes de pedra dura até terrenos quase arenosos que correspondem ao esfarelamento do granito antigo. Na adega, moderna e bem equipada, da Herdade do Gamito, são também processadas algumas uvas que chegam das vinhas da Granja. “Vamos fazer uns lotes especiais, mas só para o ano poderão ser apresentados, tal como acontecerá com os vinhos de Moreto de vinhas velhas em pé-franco que só daqui a algum tempo estarão disponíveis”, diz-nos Manuel Bio, administrador do grupo Abegoaria.

Herdade do Gamito
Manuel Bio

Na Granja é a Abegoaria que é responsável pela adega cooperativa, onde os 100 associados originais continuam a entregar aas uvas, “Creio que a breve prazo teremos de começar a pagar as uvas das vinhas velhas bem mais caras”, diz Manuel Bio, a propósito. “É que a produção por hectare é muito baixa e a tendência será de arranque das vinhas velhas com a consequente perda irreparável de património vitícola e genético”, confirma. A Abegoaria gere igualmente a produção da Adega Cooperativa de Alijó (Douro) e da Quinta de Vale Fornos (Tejo) e adquiriu as Caves Vidigal (Lisboa) onde produz um vinho de tremendo sucesso, o Porta 6. São quase 7 milhões de garrafas e, diz-nos Manuel Bio, “é marca líder de mercado, quer no Reino Unido quer nos Estados Unidos. E se descontarmos o Vinho do Porto, esta marca corresponde a 1/3 dos vinhos portugueses exportados para Inglaterra.”
Na Herdade do Gamito, Alicante Bouschet é a casta mais plantada, perto de 6 hectares. Recentemente, foram replantados 5 hectares onde entraram castas tradicionais da região (Tinta Caiada, Grand Noir, Trincadeira) e ainda Touriga Nacional.

Nos vinhos ora apresentados, o Verdelho corresponde a 5000 garrafas, é só feito em inox com bâtonnage sobre borras; do rosé são 3500 garrafas. Achámos que fazia sentido ter um rosé, não havia no portefólio”, diz António Braga. Já do Herdade do Gamito branco foram feitas 13 000 garrafas. A abordagem enológica iniciou-se na vindima de 2022, tendo influência directa já nos vinhos deste ano e também nos lotes finais das colheitas anteriores. Também houve mudança ao nível do desenho dos rótulos: a nova imagem acentua o lado granítico da do terroir da Herdade do Gamito. Na base da pirâmide dos vinhos ali produzidos, está a marca Terras do Crato
Para o futuro, em termos de perfil dos vinhos, António Braga é claro: “queremos mais tensão, queremos acentuar um pouco mais o lado dos taninos e da frescura e passar a ter menos preocupação com a cor e a concentração”. O crescendo de ambição estende-se igualmente, e de forma natural, ao conjunto do negócio, seja do Gamito, seja da totalidade das empresas que fazem parte do universo Abegoaria. “O nosso objectivo para 2024 é que 50% de toda a produção se destine à exportação, já que acreditamos que esse é o caminho que nos porá a salvo de sobressaltos do mercado interno”, remata Manuel Bio.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)