Enoturismo: Madeira – Uma oferta com qualidade e diversidade

Concluímos aqui o relato do nosso périplo pelo enoturismo da Madeira, começado na edição de Fevereiro. Se pudéssemos resumir a impressão geral que esta visita de quatro dias nos deixou em três palavras chave, não tenho dúvidas que “surpresa” seria a primeira que me viria à mente, tão inesperado foi o impacto causado pela realidade […]
Concluímos aqui o relato do nosso périplo pelo enoturismo da Madeira, começado na edição de Fevereiro. Se pudéssemos resumir a impressão geral que esta visita de quatro dias nos deixou em três palavras chave, não tenho dúvidas que “surpresa” seria a primeira que me viria à mente, tão inesperado foi o impacto causado pela realidade que observei na ilha, logo seguida pela “diversidade” e “qualidade”. O breve registo, necessariamente telegráfico, das visitas aos restantes cinco empreendimentos visitados, ajuda a perceber esta avaliação.
Socalco Nature Calheta
Visto de cima, do miradouro do Museu de Arte Contemporânea no Estreito da Calheta, a paisagem é deslumbrante. Em baixo a praia artificial, feita a partir de areias trazidas de longe, surpreende pelo inusitado. Um pouco mais acima, avistam-se socalcos primorosamente compostos, em que as vinhas alinhadas e as casas de traço moderno se abraçam num cenário que deixa antever existir ali algo de muito especial.
Não nos enganámos. E quando demos de frente com o portão do Socalco Nature após uma agradável descida a pé pela encosta, percebemos que nada ali foi deixado ao acaso. Estamos em presença de um Agroturismo inaugurado em plena pandemia, no final de 2020. São apenas 10 quartos mais 10 casinhas, suites premium com kitchenette encaixadas nos socalcos, entre fileiras de vinhas postas como se de um jardim se tratasse, mais um restaurante e uma piscina, com o mar azul brilhante em pano de fundo.
É um projecto de Octávio Freitas, chefe de cozinha com uma estrela Michelin no celebrado Desarma, no Funchal, que aqui ergueu um refúgio onde a sofisticação consegue parecer simples e casual. Dirigida pela sua irmã, Nélia Freitas, o empreendimento aproveitou umas velhas ruínas do século XVI, já inseridas nos socalcos, que a mão competente de um arquitecto transformou numa unidade exemplar. O restaurante Razão tem vida própria e está aberto a não hóspedes, funcionando também para eventos e outras actividades, como ateliers de cozinhas e masterclasses. Com uma cozinha aprimorada, com práticas sustentáveis e adepto da política “zero desperdício” e ingredientes “Km 0”, ganhou, em 2023, o Prémio Nacional de Turismo na categoria de Turismo Gastronómico. Como nos disse Nélia, o conceito é o de um restaurante com quartos. Foi no Razão que tivemos a oportunidade de provar os vinhos da casa, que são o visível orgulho do chef Octávio Freitas, para além de um inspirado almoço preparado pelo chef residente, André Gonçalves. Feitos a partir das uvas das vinhas alinhadas à nossa volta, regadas por uma levada, e de outra vinha, provámos diversas variações em torno das castas Verdelho, Boal, Malvasia Fina e Terrantez.
Foi em 2021 que apareceu o primeiro vinho, Galatrixa, a que se seguiu uma segunda marca em 2022, Cagarra, e mais recentemente, a Massaroco, em 2023, todos vinificados na Adega de São Vicente. O portefólio de Octávio Freitas contempla ainda um rosé e um clarete, feitos a partir de tinta Negra e Merlot. São belos vinhos, com uma personalidade muito própria, plenos de frescura marítima, salinidade e com excelente aptidão gastronómica.
Socalco Nature Calheta
Morada: Caminho do Lombo do Salão, 13, Calheta
Email: info@socalconature.com
Tel.: + 351 291 146 910/925 975 844
Aberto todo o ano. Preço/noite a partir de 125€
Quinta do Barbusano
Não é fácil chegar à Quinta do Barbusano, situada no município de São Vicente, na encosta norte da Madeira, estando a propriedade entalada entre montes e vales, como dizia o poeta, e sendo servida por uma estrada sinuosa. Mas para o enófilo ou gastrónomo é um percurso que vale a pena fazer e um pretexto para ter uma experiência gratificante e usufruir de prazeres simples que nos reconciliam com o melhor da vida. O nome Barbusano vem de uma espécie vegetal endémica inserida na Floresta Laurissilva, Património Mundial Natural, reconhecida pela UNESCO. António Oliveira, o proprietário, é hoje, e de longe, o maior possuidor de área de vinha, tendo 25 hectares na ilha da Madeira, 12 dos quais na quinta que visitamos, mais umas parcelas em Ponta Delgada, em São Vicente, na Ribeira da Janela, em Porto Moniz e ainda no conselho de Santana. Não satisfeito, ainda adquiriu três hectares na Ilha de Porto Santo, onde a casta branca Caracol tem a sua maior expressão. Na Barbusano, as vinhas estão espalhadas pela encosta em socalcos, conduzidas em latada, como é tradicional.
Tudo começou em 2006, com a plantação da primeira vinha, mas António já tinha bastante experiência acumulada em lidar com viticultores, vinhas e uvas mercê da sua actividade anterior, de venda de produtos fitofármacos. Foi aí que nasceu o bichinho que hoje ocupa grande parte do seu tempo e o faz verdadeiramente feliz: produzir os seus próprios vinhos onde, com a ajuda e orientação do enólogo Paulo Laureano, consegue já ter uma mão cheia de referências no mercado.
As castas que trabalha dividem-se entre o Verdelho, que é base dos seus belos brancos, e a Tinta Negra, com que faz um rosé muito interessante. Mas também tem uns poucos hectares de uva Arnsburger, de origem alemã, que usa para temperar os seus lotes. Os seus vinhos tintos são feitos sobretudo a partir da Touriga Nacional e Aragonez. No total, António Oliveira produz hoje mais de 100 mil garrafas por ano de vinho não fortificado, o que é absolutamente notável e inédito na ilha.
O que o visitante pode encontrar na Quinta do Barbusano é a paz e tranquilidade de um passeio pelos socalcos das vinhas, a prova de vinhos que revelam um forte carácter e grande singularidade, para além de uma refeição servida no restaurante com capacidade para 100 comensais. Mas desengane-se quem esperar uma ementa sofisticada. Ali a especialidade que todos querem provar é a espetada madeirense em pau de louro, salpicada com sal grosso e grelhada sobre as brasas que o próprio António maneja como ninguém. O acompanhamento são batatas e salada. O tradicional bolo do caco, barrado a manteiga e alho, previamente servido, já nos tinham acalmado o estômago. Nada mais simples, nada tão autêntico e gratificante.
Quinta do Barbusano
Morada: Caminho Agrícola, 26, São Vicente
Email: geral@barbusano.pt
Tel.: + 351 926 637 730
Visita guiada às vinhas e prova de seis referências: 20€. Visita, prova e almoço: 65€
Terrabona Nature & Vineyards
Paz, tranquilidade, silêncio e natureza e respeito absoluto pela sua privacidade, são a garantia que os hóspedes alojados no Terrabona têm como adquirido. O projecto, fundado pelo casal Marco Noronha e Maria João Velosa em 2014, em Boaventura, no concelho de São Vicente, é singular e exclusivo, dirigindo-se a um perfil de clientes particularmente exigentes na sofisticação dos serviços prestados e com alto poder de compra. Não espanta, por isso, que sejam visitantes estrangeiros os quase exclusivos clientes do empreendimento.
O trabalho no sector da banca, no Funchal, permitiu ao casal ter um conhecimento privilegiado de terrenos e propriedades rurais disponíveis nos cantos mais escondidos da ilha. Assim, em 2014 surgiu a oportunidade de adquirir uma propriedade inserida em plena Floresta Laurissilva, na pequena localidade de Boaventura. Inicialmente a ideia era fazer um agroturismo de luxo com sete casas encaixadas nos socalcos. Hoje estão construídas apenas quatro vilas, para além da recepção, mas a produção de vinho próprio passou também a constituir uma prioridade do projecto. As vinhas espalham-se pelos socalcos, rodeando as habitações, cuidadas como um jardim. As variedades passam pela já falada casta branca alemã Arnsburger, obtida do cruzamento de clones de Riesling, trabalho feito nos anos 30 pelas autoridades locais quando se estudava o potencial de castas para a produção do vinho fortificado.
Estava abandonada há mais de 20 anos. Mas foi de Marco e Maria João a ideia peregrina de plantar Loureiro, caso único em toda a ilha, como forma de homenagem à Laurissilva. Em 2016 fazem a primeira experiência de vinificação na adega comunitária de São Vicente. Agradavelmente surpreendidos com o resultado, decidem expandir as vinhas. Introduzem o Terrantez e o Verdelho e começam a produzir em modo biológico, sendo o primeiro produtor com vinhas licenciadas em produção integrada.
Outras experiências incluem o estágio dos vinhos em barrica e em ânforas de terracota, uma originalidade de aromas e sabores que surpreendeu os proprietários e os hóspedes. A boa recepção que os primeiros vinhos tiveram levou a que Marco e Maria João se aventurassem a enviar amostras para concursos como o IWC, e a revistas como a Decanter e Robert Parker, com resultados que superaram as suas expectativas. A integração da cultura do vinho num turismo rural de luxo é hoje uma marca do Terrabona Nature & Vineyards.
Terrabona Nature & Vineyards
Morada: Estrada do Cardo 117, Boaventura
Email: comercial@terrabonawine.com
Tel.: + 315 925 864 904
Alojamento numa das quatro suites a partir de 370€
Vinhos Barbeito
Não é hoje possível falar do vinho da Madeira e ignorar o trabalho desenvolvido nos últimos anos nos Vinhos Barbeito, tal como falar em Barbeito sem referir o nome de Ricardo Diogo. Criatividade e inovação são a marca que o neto do fundador, Mário Barbeito, imprimiu aos vinhos produzidos com a sua chancela, desde que tomou conta da enologia da casa em 1991. Com quase 80 anos de actividade, a empresa localizada em Câmara de Lobos conta hoje com cerca de 70 viticultores a quem compra uvas.
O que permite fazer, não só os prestigiados vinhos fortificados, como, desde 2017, vinhos tranquilos. Para a produção dos vinhos da Madeira, as castas nobres tradicionais como o Sercial, Verdelho, Boal e Malvasia constituem a base dos seus Colheitas, a que se juntam a Tinta Negra, aqui submetida ao envelhecimento em canteiro, que dá origem ao Single Harvest, para além do Bastardo. Nos últimos tempos a casa tem lançado novos vinhos, que vão dos Colheitas antigos aos Frasqueiras (com estágio em cascos com um mínimo de 20 anos) e vários monovarietais. Só os vinhos entrada de gama, feitos a partir de Tinta Negra, são submetidos à técnica de estufagem, em que os vinhos são aquecidos em grandes tanques por um período de três meses a temperaturas entre 47 e 50 graus centígrados. Este método de envelhecimento forçado, que permite lançar, no mercado, vinhos a preços muito mais acessíveis que os envelhecidos lentamente pelo método clássico, é comum a todos os produtores de Madeira.
Mas o que lançou verdadeiramente o nome de Barbeito para a atenção dos mercados, das revistas da especialidade e dos consumidores mais exigentes foram os seus notáveis vinhos velhos, de lote, com 40 e 50 anos, vinhos especiais, alguns deles estagiados em garrafões de vidro, lançados em quantidades reduzidas e com preços naturalmente elevados, que aguçam o apetite daqueles para quem o vinho da Madeira é algo de único e inigualável. Todas as vicissitudes deste processo de produção são convenientemente explicadas ao visitante que percorre as recentes instalações da Adega Barbeito, numa visita guiada disponível em várias línguas.
No dia em que estivemos no Barbeito tivemos oportunidade de presenciar alguns passos de uma numerosa excursão de visitantes da Bulgária, onde, num inglês fluente, o guia conseguiu passar a sua mensagem com um entusiasmo contagiante. que se traduziu depois em bastantes compras na loja da Adega. O visitante tem, assim ao seu dispor, visitas guiadas agendadas a diferentes horários conforme as línguas, que terminam na sala de provas com a possibilidade de experimentar vários vinhos. Um prova Gold com um vinho branco tranquilo e três vinhos Madeira tem o preço de 15€, enquanto uma prova Platinum, composta por um branco e seis vinhos Madeira de diferentes idades, custa 28€.
Vinhos Barbeito
Morada: Estrada da Ribeira Garcia, Parque Empresarial da Câmara de Lobos, Lote 8, Câmara de Lobos
Email: info@vinhosbarbeito.com.pt
Tel.: + 351 291 761 829
Visita e provas de vinhos desde 15€ por pessoa. Encerra ao Sábado e Domingo
Blandy’s Wine Lodge
A Blandy’s é uma das marcas mais conhecidas entre os vinhos Madeira e integra hoje o universo da Madeira Wine Company, o maior produtor de vinho Madeira. O seu centro de visitas está localizado na baixa do Funchal e é um autêntico museu vivo da história deste fortificado. Os vetustos edifícios que compõem o Lodge são datados dos séculos XVII e XVIII e foram adquiridos pela família Blandy, de origem inglesa, em meados do século XIX.
Em instalações modelares, repletas de história, memórias e objectos que vão desde instrumentos de trabalho, testemunhos de todas as fases do processo produtivo, até documentos raros, onde se pode descobrir, por exemplo, cartas de Winston Churchill, o visitante tem oportunidade de mergulhar a fundo no conhecimento sobre o vinho da Madeira, suas características e diferentes variedades, por entre pipas e cascos que albergam mais de 700.000 litros de vinho. Não pense, contudo, que é apenas esta a quantidade de vinho da Madeira armazenado ou a envelhecer pela Blandy’s. Um novo armazém, construído na zona do Caniçal, perto do aeroporto dispões de quase cinco milhões de litros e permitiu tirar, do centro da cidade, o tráfego pesado e a actividade laboral, libertando as velhas instalações para o seu destino nobre: serem a verdadeira sala de visitas do vinho da Madeira.
Amparados por uma visita guiada, orientada por pessoal muito competente e conhecedor, o visitante facilmente se deslumbra perante a nobreza do que lhe é revelado. No final, na bonita e espaçosa sala de provas, decorada por centenas de estantes com garrafas de todos os anos, o conhecimento sobre os vinhos da Madeira, e também sobre os vinhos tranquilos de que a Blandy’s foi pioneira, é aprofundado com uma prova didática e esclarecedora. Com preços a partir de 10,50€, variando conforme a quantidade e qualidade dos vinhos servidos, todo um universo de aromas inebriantes se desenrola diante dos nossos sentidos. História e cultura viva em movimento!
Blandy’s Wine Lodge
Morada: Avenida Arriaga, 28,Funchal
Email: seclodges@madeirawinecompany.com
Tel.: + 351 291 228 978
Visitas de Segunda a Sábado, disponíveis em cinco línguas
Comer na Madeira
Durante a nossa visita de quatro dias, a convite do Turismo da Madeira, tivemos oportunidade de comer em vários restaurantes, o que permitiu perceber que a ilha tem hoje uma farta oferta, com opções de qualidade de vários estilos e tipos de cozinha e para diferentes orçamentos.
Eis aqueles que achámos mais significativos:
Adega do Pomar
Rua Maria Ascensão, Camacha. Tel.: +351 938 799 379
Restaurante de cozinha tradicional, com decoração rústica, onde se pode provar pratos típicos como Sopa de Trigo à Antiga, Açorda Madeirense, Sopa de Tomate e Ovo, Espetada Madeirense, Atum, etc. O restaurante está ligado à produção da Sidra Quinta da Moscadinha, cujas diversas variedades também se posem provar e comprar no local.
Akua by chef Júlio Pereira
Rua das Murças, 6, Funchal; Tel.: + 351 938 034 758
Situado na baixa funchalense, é um restaurante de cozinha de autor em que a oferta predominante se baseia nos peixes e mariscos. Ambiente cosmopolita, desde as entradas aos pratos principais, o sabor e apresentação são cuidados ao pormenor.
Kampo
Rua da Alfândega, 74, Funchal; Tel.: +351 924 438 080
Também na baixa da cidade e do mesmo proprietário e chefe do anterior, este espaço de linhas modernas e atraentes, onde se privilegia o conforto à mesa e a apresentação tentadora das iguarias, é dedicado sobretudo ao universo das carnes e outros sabores campestres.
Audax
Rua Imperatriz Dona Amélia 104, Funchal. Tel.: +351 291 147 850
Define-se a si próprio como “progressive madeiran cuisine” e isso ajuda a perceber que estamos em presença de um restaurante de fine dinning, com interpretações modernas e por vezes ousadas de sabores tradicionais. Tem uma boa carta de vinhos, com possibilidade de provar a copo velhas raridades de vinhos da Madeira, com um serviço apropriado.
Barbusano
Quinta do Barbusano, Caminho Agrícola, 26, São Vicente. Tel.: +351 926 637 730
Aqui não há que enganar. A entrada é bolo do caco e o prato é espetada madeirense grelhada em pau de louro, acompanhada por batatas. Acrescente-se que a carne vem dos Açores, é de excelente qualidade e é grelhada nas brasas pelo proprietário. O espaço é amplo, ruidoso e informal, num ambiente campestre com as vinhas e a montanha em frente a compor o cenário.
(Artigo publicado na edição de Abril de 2025)
Madeira Wine Company: Grandes Madeira, salgados e eternos

A ilha da Madeira, com 66% da superfície classificada como Parque Natural, tem no seu vinho generoso um dos seus ex-libris. Esta é uma espécie de verdade de La Palice, uma vez que o reconhecimento das virtudes e qualidades daquele vinho é já secular. Mas uma história tão antiga está sujeita a flutuações, períodos de […]
A ilha da Madeira, com 66% da superfície classificada como Parque Natural, tem no seu vinho generoso um dos seus ex-libris. Esta é uma espécie de verdade de La Palice, uma vez que o reconhecimento das virtudes e qualidades daquele vinho é já secular. Mas uma história tão antiga está sujeita a flutuações, períodos de euforia e de retracção.
Estamos actualmente a enfrentar tempos difíceis, como nos foi dado a conhecer na recente apresentação dos novos vinhos da Madeira Wine Company. Ali fomos informados que a área de vinha da ilha continua paulatinamente a diminuir e que a superfície que, até há pouco, era sempre anunciada – 450 ha de vitis vinífera – já está agora (dados de 2023) reduzida a 400 ha, correspondendo a 1680 produtores. Lamentavelmente, diz Francisco Albuquerque, enólogo da empresa, “continuamos a ver serem construídas casas em terrenos que até há pouco tempo eram vinhas”, tendência que só piorará se nada for feito.
O processo de candidatura da produção do Vinho da Madeira a Património da Unesco está em marcha e poderá haver novidades em 2025.
Uma luz ao fundo do túnel poderá advir da candidatura da Produção de Vinho da Madeira a Património da Unesco. O processo está em marcha e, dizem-nos, poderá haver novidades em 2025. Não será o vinho que será objecto de classificação, mas sim o processo, das vinhas em latada aos canteiros. Pode ser que assim se proíba, por exemplo, o arranque de vinhas e, até por comparação com o que aconteceu nos Açores – actualmente com mais de 1000 ha de vinhas – a própria área seja substancialmente alargada.
A casta Tinta Negra – que em Colares tinha o nome de Molar – foi dali levada para o Porto Santo porque por lá também havia terrenos de areia. Como se revelou muito produtiva, foi também introduzida na Madeira, onde ganhou o estatuto de casta mais plantada, ocupando actualmente uma considerável área de 240 ha (contra quatro de Terrantez, 14 de Bual, 25 de Sercial, 60 de Verdelho e 35 de Malvasia), tudo áreas de vinha que, pela sua escassez, não podem deixar os apreciadores satisfeitos.
Para alegrar um pouco a preocupação que grassa, quer do lado dos consumidores quer do lado da empresa, com as exportações em queda “numa época em que os vinhos com mais álcool tendem a perder apreciadores”, com salientou Cris Blandy, para alegrar, dizia, foram dados à prova os novos Colheita, agora da edição de 2011 e, no mesmo evento, foram também apresentados dois vinhos DOP Madeirense de 2023. Trata-se de um rosé, cuja 1ªedição remonta a 1991 e um Verdelho, produzido a partir da colheita de 1996.
Os vinhos de Frasqueira – indubitavelmente os mais famosos generosos da ilha – estão obrigados a um mínimo de 20 anos de casco e dois anos de garrafa antes de serem comercializados, indicando, no rótulo, o nome da casta. Estes vinhos têm, com frequência, muito mais de 20 anos, porque é norma da empresa não engarrafar tudo de uma vez e, assim, há alguns que são vendidos com muito mais idade. Por norma apresentam-se como Blandy’s ou Cossart Gordon. A Cossart, cuja fundação remonta a 1745, o que faz dela a empresa de vinho Madeira mais antiga ainda em actividade, apresenta tradicionalmente vinhos mais secos e tem mesmo um armazém próprio para o envelhecimento dos vinhos. A empresa juntou-se à Madeira Wine em 1958.
Os vinhos da Madeira têm vindo a ser presença assídua em leilões, onde atingem valores consideráveis com alguma frequência. No entanto, por vezes sem selo da entidade certificadora, nem sempre é fácil saber exactamente o que se está a comprar. É uma jogada de risco, mas que muitas vezes é amplamente compensadora.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)
-
Cossart Gordon
Fortificado/ Licoroso - 1988 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1987 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1989 -
Cossart Gordon
Fortificado/ Licoroso - 2013 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2011 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2011 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2011 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2011
JUSTINO’S: De olhos no futuro sem esquecer a tradição

Se as (boas) tradições existem para se manter, as experimentações e inovação são formas de dinamizar o presente e projectar o futuro, até porque as condições sócio-económicas estão em constante mudança e é preciso acompanhar e, de certa forma, antecipar estas alterações. Foi o tema de conversa com o Director Geral e enólogo da casa, […]
Se as (boas) tradições existem para se manter, as experimentações e inovação são formas de dinamizar o presente e projectar o futuro, até porque as condições sócio-económicas estão em constante mudança e é preciso acompanhar e, de certa forma, antecipar estas alterações. Foi o tema de conversa com o Director Geral e enólogo da casa, Juan Teixeira e Nuno Duarte, que é responsável pelos seus vinhos tranquilos, Colheitas e Single Cask da Justinos, ao longo de dois dias de visitas à adega e às vinhas e das provas, onde a vertical de Frasqueiras foi absolutamente memorável.
A história da Justino’s começou numa pequena empresa familiar, fundada em 1870. Hoje, juntamente com Henriques & Henriques, integra um dos maiores grupos internacionais de bebidas, La Martiniquaise e, juntas, representam cerca de 60% de volume de produção e vendas dos vinhos da Madeira.
A Justino’s produz 1.400.000 garrafas anualmente, incluindo os vinhos não fortificados com os designativos DO Madeirense e IG Terras Madeirenses, onde também se enquadram os pequenos projectos de edições ultralimitadas, explorando determinadas parcelas e técnicas de vinificação. Neste âmbito, foram apresentados, em estreia absoluta, dois vinhos tranquilos com forte sentido do lugar.
Fanal é uma marca de 1935, cujo nome é inspirado num sítio de grande beleza paisagística – um planalto a mais de 1000 metros de altitude, muitas vezes coberto de nevoeiro, que transforma as figuras das árvores numa floresta encantada. Para a marca Fanal fazem vinhos provenientes das uvas (no caso dos vinhos tranquilos) ou dos cascos (no caso dos fortificados) das proximidades desta zona. Assim, as uvas de Sercial vêm da Fajã do Barro, Porto Moniz, onde a casta é plantada em espaldeira, com viticultura biológica praticada por um casal de viticultores em parceria com a Justino’s. Uma parte do lote estagiou em barrica semi-nova de 700 litros. Deste vinho, intenso e assento na acidez, foram produzidas apenas 1.266 garrafas.
A casta Listrão vem de dois viticultores do Porto Santo. É uma variedade muito cara, dada a quantidade mínima existente e a subida de procura. Na última vindima os preços chegaram a 4,20€/kg, que é praticamente o dobro de outras castas brancas, cujos preços rondam 2,40-2,50 €/kg. As uvas chegam refrigeradas do Porto Santo. Metade vão inteiras para prensa e outra metade faz maceração pelicular de seis horas para extrair algum aroma, pois a casta é bem neutra. Estagia em inox e em carvalho francês usado de 500 l. Resulta num vinho comedido na acidez, com um perfil delicado. Só foram produzidas 1.303 garrafas.
Os projectos mais arrojados vão para além do vinho: nos planos está o lançamento de rum estagiado em cascos de Verdelho e cerveja.
O investimento previsto também visa melhorias na parte de produção da adega e a construção de um novo armazém de barricas. No Funchal, ao pé do teleférico para a freguesia do Monte, será aberto um centro de visitas com uma sala de provas, uma garrafeira, um museu, um centro de formação e alojamento local. Está programado para abrir no final de 2025.
Juan Teixeira, director geral e enólogo da Justino’s, com Nuno Duarte, enólogo responsável pelos Vinhos Tranquilos, Vinhos Madeira Projects e Premium
A realidade insular
A realidade da viticultura na Madeira prende-se com a sua insularidade. Não se pode falar de um ano bom na Madeira… Tem de se especificar o sítio exacto onde foi… O minifúndio (O maior viticultor tem 10 ha, mas, normalmente, a área por viticultor não ultrapassa 0,3 ha) reflecte-se em múltiplas entregas, que chegam a ser duas mil por vindima, que dura da 3ª semana de Agosto à 2ª semana de Outubro. Dos 4 milhões de quilos de uva existente na Madeira, a Justino’s fica com 1,5 milhões.
Mas o número de viticultores está a diminuir a olhos vistos. Ainda em 2000 havia 2400. Agora são cerca de 1100. Os jovens não estão interessados nesta actividade e é extremamente importante fixar os viticultores no campo, para não abandonarem as vinhas.
Por outro lado, a viticultura agora é mais cuidada. Antigamente as empresas escolhiam a uva à porta da adega. Agora acompanham o produtor e escolhem o dia da vindima. A Justino’s trabalha com cerca de 700 viticultores, 50 dos quais acompanha por perto, ajudando a melhorar as suas práticas de viticultura.
Na adega, também antigamente, havia menos cuidados com os mostos porque o vinho, de qualquer forma, ia sofrer uma transformação. Agora procura-se que esteja analiticamente bem no momento de aguardentação. Por exemplo, as prensas pneumáticas vieram substituir as prensas contínuas, permitindo, logo na origem, obter o mosto de melhor qualidade.
Na Justino’s, os Madeira de castas brancas a partir de Colheita estagiam em canteiro sem maceração pelicular. Os vinhos feitos a partir das castas tintas (Tinta Negra e Complexa) podem ser vinificados com ou sem curtimenta, em função de se querer mais estrutura ou menos cor. Fazem estufa mais prolongada (quatro meses contra o mínimo obrigatório de três meses) e temperatura mais baixa (a 40-45˚C, sendo o limite máximo estabelecido de 50˚C), para ter uma evolução mais lenta e mais homogénea. O desafio hoje é conferir mais complexidade aos vinhos da Madeira de 3-5 anos, para os tornar mais apetecíveis para o consumidor, uma vez que, pelo preço, cumprem o papel de iniciação aos vinhos da Madeira. Quanto melhores forem, mais futuros apreciadores podem conquistar.
Para ter mais opções de composição de lotes, a empresa dispõe de 5.500 cascos de variadíssimas proveniências e capacidades. Quanto mais pequeno for, mais rápida é evolução. Por isto, os de
Por muita inovação que se faça, o melhor que a ilha da Madeira é capaz de produzir são os vinhos da Madeira de estágios prolongados. Não existe um apreciador de vinho que possa ficar indiferente perante este fenómeno.650 litros têm o tamanho ideal, explica Juan Teixeira. Neste momento 2,5 milhões de litros de vinho encontram-se em estágio.
Frasqueiras, os guardiões da tradição
Os Frasqueiras representam o expoente máximo da tradição dos Vinhos da Madeira, pela sua capacidade de superar o tempo e evoluir com ele infinitamente. Para um jornalista de vinhos, uma prova vertical de sete Frasqueiras do século passado, um por década, é muito mais do que um trabalho. É um prazer e privilégio. O Frasqueira mais antigo que a Justino’s guarda nas suas instalações é de 1933. A prova começou no 1934 e acabou no 1998, mostrando a interpretação do ano pela casta, lapidada pelo tempo.
Os Frasqueira
Esta categoria do vinho da Madeira é produzida a partir de uma única casta e de uma única colheita em anos excepcionais e envelhecido em cascos em canteiro sem estufagem, beneficiando de amplitudes térmicas criadas naturalmente, por um mínimo de 20 anos.
Embora sejam produzidos no mesmo ano, um Frasqueira é sempre um blend de barricas, porque o vinho evolui de forma diferente em função da dimensão e características do casco e da sua localização.
Os Frasqueira desenvolvem uma complexidade e profundidade únicas, com aromas intensos e sabores ricos. São vinhos à prova do tempo, indestrutíveis.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)
-
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1934 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1940 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1954 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1964 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1978 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1988 -
Justino’s
Fortificado/ Licoroso - 1998 -
Justino’s Fanal
Branco - 2022 -
Justino’s PXO
Branco - 2022
Barbeito: O mundo de Ricardo Diogo

Pedi para o Ricardo repetir a resposta e ele persistiu: “sim, são mesmo onze novos vinhos”! Ricardo é Ricardo Diogo Vasconcelos de Freitas, líder da empresa Vinhos Barbeiro, fundada pelo seu avô há quase 80 anos, e onze são as novidades vínicas acabadas de lançar neste ano. Se para o universo de Vinhos da Madeira […]
Pedi para o Ricardo repetir a resposta e ele persistiu: “sim, são mesmo onze novos vinhos”! Ricardo é Ricardo Diogo Vasconcelos de Freitas, líder da empresa Vinhos Barbeiro, fundada pelo seu avô há quase 80 anos, e onze são as novidades vínicas acabadas de lançar neste ano. Se para o universo de Vinhos da Madeira lançar onze vinhos novos num único ano é já um feito para qualquer empresa, para a Barbeito, que se especializou, quanto aos seus topos de gama, em vinhos de verdadeiro nicho, é um feito ainda maior! Por isso não hesitei e fiz-me a caminho que, no caso, significa voar até à ilha da Madeira…
Por motivos diversos, sou um daqueles continentais que já foi há Madeira bem mais do que uma dezena de vezes. Isso, longe de me trazer alguma vantagem na prova dos seus magníficos vinhos, faz-me, isso sim, escrever sobre ilha de forma saudosa. Com efeito, e apesar da expansão imobiliária um pouco por todo o seu território (sobretudo em redor da cidade do Funchal, crescentemente mais metropolitana), aterro sempre na Madeira com a saudade reconfortante do seu clima ameno e da abundante vegetação. A propósito do clima, e uma vez que na Madeira as amplitudes térmicas são baixas durante todo o ciclo vegetativo, deve-se sobretudo aos solos de origem basáltica com pH baixo a produção de vinhos com elevada acidez e longevidade. Algumas castas, como o Sercial, ajudam nesse perfil também, o mesmo se dizendo quanto ao baixo álcool com que se vindima na ilha, muitas vezes abaixo dos 10%.
Não há outro lugar no país com paisagens tão repletas de inclinações dramáticas preenchidas por plantações verdejantes, ora de vinha, ora de banana, ora até, cada vez mais parece-me, de cana de açúcar. Pouca gente o sabe, e tenho sempre dificuldade em convencer os meus amigos continentais desse facto, mas a verdade é que, na Madeira, não há dia em que não se veja uma, ou muitas, manchas de vinhas no horizonte. Estão (quase) por toda a parte, ainda que associadas discretamente na paisagem verde da flora copiosa, apenas interrompida por estradas (invariavelmente a subir e a descer) ou aldeias mais ou menos isoladas. E basta olhar para essas vinhas, para concluir que os sistemas de condução mais utilizados são a latada ou pérgola, e a espaldeira. O cultivo da vinha é, efetivamente, muito disperso na Madeira, com as várias geografias locais a contribuírem para diferentes terroirs. É disso bom exemplo o facto de ouvirmos, todos os dias, que na costa sul ou norte, em redor desta ou daquela aldeia ou fajã ou praia, é melhor uma ou outra casta, uma ou outra exposição, etc. Mas o facto de a vinha se encontrar dispersa e presente em quase toda a ilha não significa que a área agrícola total seja significativa, bem pelo contrário, sendo que a pressão imobiliária e turística piora a situação. Falamos sempre de parcelas de pequena dimensão, quase sempre em “poios”, que são socalcos construídos de forma a contrariar o declive acentuado das encostas e a permitir a sua utilização agrícola. Naturalmente, a orografia montanhosa do território resulta na quase impossibilidade de recurso à mecanização, pelo que a maioria das práticas agrícolas (vindimas, podas, intervenções em verde) são efetuadas ainda manualmente.
Talvez por isso, a vinha tem uma implementação claramente familiar, com muitas famílias a produzir uvas, entre outros frutos. Também encontramos muitas adegas familiares e até pequenos armazéns de estágio de vinhos junto a casas particulares, geralmente cobertos por telhados de zinco e com as pipas, encimadas umas nas outras, suportadas na base por pedra de canteiro (daí o nome Canteiro que se atribui ao método mais nobre de evolução dos Vinhos da Madeira, sendo o método da estufagem para vinhos mais novos). A empresa Barbeito, a que nos dedicamos neste texto, utiliza alguns destes armazéns familiares para envelhecer os seus cascos (quase sempre barricas entre os 200 e os 500 litros), em diferentes localizações e altitudes na ilha.
Um percurso impressionante
A Madeira dispõe atualmente de menos de uma dúzia de produtores (já foram mais de 30 em meados do século passado), que processam cerca de 90% da uva da ilha, sendo o restante para consumo local. Em quase todos os casos, as casas produtoras compram uva, não sendo, até há bem pouco tempo, comum que uma casa de Vinho da Madeira fosse proprietária de vinhedos próprios com significativa dimensão. Nos últimos anos, parte destes produtores, inclusivamente alguns clássicos, foram sendo adquiridos por empresas maiores, em muitos casos estrangeiras e até multinacionais, o que espelha o prestígio do Vinho da Madeira, ainda que o seu consumo se tenha alterado de mais generalizado para mais ocasional, à semelhança de todos os generosos. Grande parte do Vinho da Madeira é ainda exportado, cerca de 80%, sendo os principais mercados europeus a França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica e Suíça, e fora da Europa os EUA e o Japão (não por acaso, o capital social da Barbeito tem uma participação há várias décadas de um conglomerado japonês). O vinho não exportado é quase todo consumido na região, grande parte pelos muitos turistas que anualmente visitam a ilha.
Nesse lote de produtores clássicos, a Barbeito tem um lugar muito especial. Com efeito, a trajetória da empresa Barbeito nos últimos 20 anos tem sido impressionante, não só ao nível da qualidade dos seus vinhos, mas também da projeção nacional internacional dos mesmos. Isso deveu-se a vários fatores, sendo os principais a aposta de Ricardo em vinhos especiais, em muitos casos recorrendo a vinhos únicos estagiados em garrafões, e o perfil mais fresco e vibrante que todos os vinhos com sua assinatura têm. Voltando um pouco atrás no texto, é altura para confidenciar que Ricardo licenciou-se em História e deu aulas da disciplina, ainda que por pouco tempo. Teve uma garrafeira (que deixou saudades) no Funchal, a ‘Diogo’s’ que funcionava (ainda existe apenas online) ainda como um pequeno museu do vinho. Começou na empresa ao lado da mãe em 89 e, a acompanhar as vindimas, a partir de 1993 assumindo progressivamente a área de preparação dos vinhos, o que implicava já o loteamento final dos néctares à sua disposição. Alguns anos volvidos e sucede naturalmente à sua mãe, ascendendo a presidente do conselho de gerência da empresa e aí se mantém como a face mais visível, e a mais dinâmica dizemos nós, deste magnifico produtor.
De facto, desde o início, Ricardo implementou um estilo novo na sua empresa. Ainda que, no início, o tenha feito de forma pouco consciente (era o seu gosto e não um perfil estilizado), a verdade é que, ao longos dos anos, os consumidores de Vinho da Madeira foram habituados a um perfil mais seco e fresco sempre que provavam e bebiam uma garrafa de Barbeito. De tal modo que estou convencido até que esse perfil menos doce e mais vibrante, de que Ricardo tanto gosta, “fez escola” na região e contagiou positivamente algumas das restantes casas de Vinho da Madeira. Basta provar comparativamente os vinhos que a “concorrência” lança atualmente, e os que lançava há 10 ou 15 anos, para comprovarmos esta minha intuição. Hoje, como dantes, continuam soberbos; mas estão hoje menos doces.
Vinhos únicos e irrepetíveis
A par do estilo mais seco, Ricardo incutiu, na sua empresa, uma espécie de irrequietação positiva, uma necessidade de lançar vinhos novos e diferentes, algo que, no Continente, podemos encontrar noutras personagens vínicas como Dirk Niepoort, Anselmo Mendes, e, mais recentemente, António Maçanita, entre alguns outros. No caso de Ricardo, em vez de juntar vários lotes para criar um lote maior de algumas dezenas de milhares de litros, a sua preferência sempre foi produzir vinhos únicos, por vezes irrepetíveis. O seu gosto por História, e as recordações de ver a sua mãe a trabalhar na empresa, fazem com que Ricardo não dispense o contacto pessoal frequente com dezenas de viticultores, mesmo com aqueles com quem não colabora, e até com produtores e proprietários antigos de casas de vinho que, por esta ou aquela razão, já não comercializam. É disso bom exemplo a colaboração ativa com a família Eugénio Fernandes, cujas vinhas e adega ficam no Seixal, defronte da praia mais bonita e visitada do norte da ilha. Com efeito, tal adega (são famosos os Verdelhos e os Serciais antigos) fica a meras dezenas de metros da praia, algum comum na Madeira, mas sem que nenhum dos milhares de turistas que por lá veraneiam imaginem que tal seja possível. O mesmo sucede, agora no sul, na mítica Fajã dos Padres, uma língua de terra estreita, toda literalmente a beira-mar, no final de uma falésia vertical de 250 metros. Nesse pequeno território, entre mangas e peras-abacate (e lagartos!), crescem algumas videiras de Malvasia Cândida, uma das mais antigas da região e que só ali existem, há gerações ao cuidado da família Vilhena de Mendonça, que vinifica um pouco de vinho. As restantes uvas, quando existem (há anos de pouquíssima produção) ficam para Ricardo vinificar com mestria um dos seus vinhos mais excitantes e mais limitados. Como se denota do que venho escrevendo, percorrer a Madeira com Ricardo ao lado é ir parando, aqui e ali, para conversar com viticultores e visitar adegas antigas. Melhor é impossível.
No dia a dia, a atividade de Ricardo é, desde há muitos anos, fazer lotes de vinhos. Por dia, e não foi a primeira que o constatamos, Ricardo analisa e prepara entre 15 a 20 lotes. Ora está a aproximar-se de uma versão final em que trabalha há várias semanas, ora está a refrescar alguns lotes, sempre diagnosticando em que fase da evolução cada barrica e casco se encontram. No fundo, é como se estivesse diariamente a estudar e criar várias peças de um puzzle, para que um dia as venha a utilizar. Pode tratar-se de um trabalho por vezes solitário, encontrar-se, todos os dias, em sala de prova, sobretudo na definição e decisão dos lotes finais. Por um lado, é verdade que, após décadas de laboro, esse trabalho isolado de Ricardo acabou por ter a vantagem de revelar, aos consumidores, o gosto pessoal do seu criador. Porém, há já algum tempo que Ricardo tinha compreendido que beneficiaria de um parceiro constante e habitual na sala de prova. Não por acaso, aliás, Ricardo sempre procurou colaborações: fez dois lotes com Dirk Niepoort e, mais recentemente um vinho com Susana Esteban (este provado abaixo no texto), tendo no passado participado com Rita Marques no desenho de um Vinho do Porto. Ora, esse parceiro surgiu na pessoa de Sérgio Marques, madeirense de gema, sommelier de formação, com passagem por restaurantes de elevado gabarito, nacionais (caso do ‘Il Gallo d’Oro’, no Hotel Porto Bay, com duas estrelas Michelin) e internacionais. Provador nato, é ainda grande conhecedor, e colecionador, de vinhos Madeira, tendo sido, até há bem pouco tempo, o responsável pela loja de vinhos da Blandy’s (o ‘Wine Lodge’). Sobre a participação e intervenção de Sérgio, Ricardo não tem dúvidas: tem sido fundamental na definição dos últimos vinhos da Barbeito, enriquecendo a decisão final dos lotes pela troca de experiências e pontos e vista que, sendo diferentes, são convergentes.
E, efetivamente, isso mesmo constatámos mais uma vez, inclusivamente na sala de prova. Ricardo e Sérgio falam uma mesma linguagem, gostam de perfis muito parecidos, mas nem sempre coincidem totalmente. Quando isso acontece, ou quando reconhecem que o ponto de vista do outro é valido e beneficia o lote final, surge magia! Os 11 vinhos agora lançados são o reflexo dessa magia.
Nota: o autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2024)
-
Barbeito Projecto MEF
Fortificado/ Licoroso - 1978 -
Barbeito Projecto MEF
Fortificado/ Licoroso - 1994 -
Barbeito O Americano
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito O Engenheiro
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Ribeiro Real Lote 2
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Rainwater Lote Especial
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Single Harvest
Fortificado/ Licoroso - 2011 -
Barbeito Casco Único
Fortificado/ Licoroso - 2007 -
Barbeito Curtimenta
Fortificado/ Licoroso -
Justino’s: Madeirenses 2.0

A Justino´s Madeira Wines, estabelecida na ilha em 1870, como produtora e exportadora dos vinhos da Madeira, dedica-se, desde 2003, também à produção de vinhos tranquilos sob a marca Colombo. O acompanhamento dos viticultores com determinadas parcelas é um dos pressupostos essenciais deste projecto. Cada lote tem vinhas associadas e um trabalho no campo diferenciado […]
A Justino´s Madeira Wines, estabelecida na ilha em 1870, como produtora e exportadora dos vinhos da Madeira, dedica-se, desde 2003, também à produção de vinhos tranquilos sob a marca Colombo. O acompanhamento dos viticultores com determinadas parcelas é um dos pressupostos essenciais deste projecto. Cada lote tem vinhas associadas e um trabalho no campo diferenciado em função das condições do local e das castas. Umas são variedades internacionais, como é o caso de Sauvignon Blanc, único na Madeira, introduzido pela Justino’s há oito anos, outras portuguesas – Aragonez e Touriga Nacional – vindas do continente, e finalmente castas tipicamente madeirenses, algumas quase desconhecidas, que, no sítio certo, dão resultados bem interessantes.
Imagem renovada
Os cinco vinhos apresentados são certificados como DO Madeirense. Revelam uma imagem renovada e uma filosofia enológica focada nos vinhos nítidos e expressivos, à responsabilidade de Juan Teixeira e Nuno Duarte, que se juntou à equipa em 2021.
O primeiro vinho representa o terroir do Norte da ilha. As uvas vêm das vinhas com 20 anos, conduzidas em espaldeira a uma altitude entre 400 e 500 metros. É um lote de Arnsburger (60%), Boaventura e Verdelho (40%) de São Vicente. Arnsburger é uma variedade de origem alemã, obtida por cruzamento de Muller-Thurgau e Weisser Gutedel (também conhecido como Chasselas Blanc) nos meados do século passado. Foi introduzida na Madeira em meados dos anos 80, numa leva de castas oriundas de Portugal Continental, França, Itália e Alemanha. Hoje Arnsburger é mais popular no norte da ilha do que no seu país de origem.
O segundo branco é composto por 70% de Verdelho do Estreito de Câmara de Lobos (Sul da ilha) e 30% de Sauvignon Blanc de São Jorge (Norte da Ilha). A altitude das vinhas, também conduzidas em espaldeira, varia entre 200 e 300 metros.
Ambos os vinhos partilham a mesma abordagem na adega. Fermentam em inox com temperatura controlada. 50% estagia em barricas de 500 litros, novas e semi-novas, 50% em inox com levantamento regular de borras finas. Como são bem providos de acidez, optou-se por permitir parcialmente a fermentação maloláctica, para “domar” a acidez e enriquecer a sensação de boca.
Do Caracol ao rosé
O terceiro vinho é uma curiosidade tipicamente madeirense. É praticamente um monovarietal de Caracol, que entra no lote com 97% (mais 3% de Listrão na qualidade de sal e pimenta). A casta foi introduzida na ilha de Porto Santo no início do século passado, onde também é conhecida como Olho de Pargo ou Uva das Eiras, pelo sítio onde foi plantada. A sua origem ainda é desconhecida, mas existe uma relação genética com a variedade Cédres, das ilhas Canárias, e o Listrão (Palomino Fino em Jerez ou Malvasia Rei no Douro). As vinhas bem velhas, com idade de 80 anos, rastejam no chão de areia com compostos calcários ao nível do mar, protegidas por muros de pedra, denominados “crochê”.
Como as duas castas são neutras aromaticamente, optou-se por uma ligeira maceração de cinco horas, antes da prensagem para extrair alguns compostos aromáticos das películas, com fermentação a temperatura ambiente. O estágio decorreu da mesma forma como os outros dois vinhos.
O rosé é originado por um feliz dueto de 57% de Tinta Negra com 43% de Complexa. A primeira é a casta mais plantada na ilha e assegura a maior parte de produção de vinhos da Madeira. As uvas vêm do Estreito da Câmara de Lobos, plantadas a 700 m de altitude e conduzidas em latada, com declives de 45%. A Complexa quase nunca é falada, mas é a segunda casta mais plantada na Madeira. Foi obtida, em 1959, no centro de investigação de Dois Portos, através de uma série de cruzamentos que envolveram Castelão, Alicante Bouschet e Moscatel de Hamburgo e foi introduzida na Madeira nos anos 70. Produz vinhos com nível de álcool moderado, e mais acidez e menos cor do que a Tinta Negra. Não obstante ter a polpa corada, tem poucas antocianas na película, o que faz dela uma óptima escolha para rosés. As uvas vêm de Santana, na parte norte da ilha.
Apenas a primeira lágrima dá origem ao rosé. Fermenta a temperatura controlada e não faz a fermentação maloláctica para preservar a frescura. Trabalham borra fina para dar mais textura e o estágio decorre em barrica usada (com 10 anos) de 500 litros.
A composição do tinto deste ano é diferente: 50% de Aragonês e 30% de Touriga Nacional do Porto Moniz, mais 20% de Merlot da Rocha, vinhas localizadas no Norte da ilha, 400 m acima do mar. Depois de sete dias de curtimenta, só molhando a manta, das fermentações alcoólica e maloláctica, seguiu-se um estágio de 12 meses em barricas de 500 litros, novas e seminovas.
(Artigo publicado na edição de Abril de 2024)
Barbeito: Cascos únicos, vinhos únicos

Já descrevemos nesta revista o fantástico percurso de Ricardo Diogo Barbeito, que pegou na empresa familiar em que nasceu e a transformou numa das marcas mais dinâmicas do Vinho da Madeira. Apesar da notoriedade alcançada, é um homem discreto que não procura as luzes da ribalta e raras vezes faz aparato aquando do lançamento dos […]
Já descrevemos nesta revista o fantástico percurso de Ricardo Diogo Barbeito, que pegou na empresa familiar em que nasceu e a transformou numa das marcas mais dinâmicas do Vinho da Madeira. Apesar da notoriedade alcançada, é um homem discreto que não procura as luzes da ribalta e raras vezes faz aparato aquando do lançamento dos seus magníficos vinhos. Por isso foi com redobrado prazer que estivemos no lançamento recente de, nada menos, nada mais, 6 novos vinhos da Barbeito.
Foi o primeiro na ilha a engarrafar “cascos únicos, por regra uma ou duas vezes por ano. Agora também pela primeira vez, lançou seis ao mesmo tempo e alguns deles com vinho de uma só vinha…
Como não poderia deixar de ser, quando falamos de Ricardo Diogo, não se trata de vinhos sem contornos diferenciadores… São todos lançamentos da sua gama “casco único”, ou Single Cask, uma gama criada pelo produtor com assumida inspiração no exemplo das bebidas destiladas, com o whisky à cabeça. O conceito encaixa na perfeição no perfil de um produtor que gosta de produzir pequenas quantidades e de ir lançando vinhos com alguma regularidade, em alguns casos algumas vezes ao ano. O cuidado e afinação de cada casco é uma paixão do produtor, não sendo de estranhar que o rótulo de cada vinho identifique o número do casco e o, ou os, armazéns em que o vinho foi envelhecido. Com efeito, na Barbeito, cada vinho é envelhecido atendendo ao seu perfil individual, não sendo raros os casos em que, por determinado vinho precisar de maior vivacidade, acabar por ser transportado para outro local mais fresco do armazém.
Outras vezes até, um casco passa por mais do que um armazém, sempre na busca do estilo que Ricardo Diogo pretende, ou seja, vinhos com boa acidez, tendencialmente secos e muito viçosos. Outra novidade é que quase todos os vinhos agora lançados provém de vinhas específicas, identificadas nos rótulos também, ou seja, o vinho engarrafado não resulta de um lote de diferentes vinhas, como tantas vezes sucede nos Madeira. Temos por isso um Tinta Negra de uma vinha plantada a sul da ilha acima dos 550 metros de altitude, e temos também um Sercial da costa norte junto à praia. E temos também um Malvasia Cândida da Fajã dos Padres (pois só ali ela existe) na costa sul e ainda um Verdelho, neste caso Frasqueira, de vinha em latada no Arco de S. Jorge no norte da ilha. Em comum a qualidade, o exotismo e a marca da frescura vibrante do produtor.
Destaque ainda para a degustação, durante uma refeição servida no final da prova, dos vinhos tranquilos da Barbeito, todos a merecer elogios, com destaque para o Vinhas do Lanço, um Verdelho da colheita de 2021, parcialmente estagiado em barrica, do qual foram produzidas menos de 800 garrafas. No final, o privilégio de beber um copo do Barbeito 50 anos Três Amigos, um extraordinário vinho, meio doce, com pouco mais de 500 exemplares engarrafados no final de 2022.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)
-
Barbeito Casco Único 103 A+C
- 1993 -
Barbeito Casco Único Vinha da Lage 530 D
Fortificado/ Licoroso - 2015 -
Barbeito Casco Único 198 E
Fortificado/ Licoroso - 2008 -
Barbeito Casco Único 40 D+E
Fortificado/ Licoroso - 2006 -
Barbeito Casco Único Vinha da Torre 22 E
Fortificado/ Licoroso - 2008 -
Barbeito Casco Único Vinha do Charlot 707 D+E
Fortificado/ Licoroso - 2005
Madeira Wine Company: Novidades e velhidades Blandy’s

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776. Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não […]
Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776.
Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não favorecem o amadurecimento das uvas. Os terrenos são muito férteis, as temperaturas moderadas, as altitudes elevadas. Por outro lado, a acidez é excepcional, e, ao amuar a fermentação com álcool vínico a 96%, nasce um vinho que, sendo envelhecido em velhos cascos de madeira e sujeito às condições climáticas dos velhos sótãos, se torna indestrutível. A Blandy’s é uma empresa familiar, com mais de 200 anos de história na ilha, hoje dentro do universo da Madeira Wine Company, mas sempre com gestão familiar, desde 2010 personificada em Chris Blandy, jovem de 40 e poucos anos.
Gerir uma empresa antiga de Vinho Madeira é gerir um tecido de incrível complexidade. Na apresentação dos novos lançamentos, no restaurante Kabuki, em Lisboa, Chris e o seu enólogo principal e master blender, Francisco Albuquerque, foram sempre citando números: “De Bual há 14ha na ilha, com 104 viticultores na Calheta. A MWC tem 1 ha”. “A Madeira tem 22ha de Sercial, são 125 produtores”. E continuando. Vocês percebem, é só fazer as contas, como dizia o António Guterres. É preciso gerir as nossas vinhas, decidir os tratamentos e datas de colheita, acompanhar as vinhas dos outros (muitas dezenas de) viticultores, colher e separar todas as parcelas, com as castas separadas, já que na Madeira cada casta é também um estilo de vinho.
Francisco Albuquerque, que começou a carreira na Blandy’s em 1990 (e aliás, começou imediatamente a mudar o sector) disse-nos que experimentou fazer algumas castas ao estilo de outras (ou seja, com o nível de doçura “errado”) e descobriu que o resultado era horrível. Diz ele: a doçura está bem assim: Sercial seco com um máximo de 60g de açúcar por litro, Verdelho meio-seco com 60 a 75g de açúcar, Bual meio-doce com 75 a 100g e Malvasia doce com mais de 125g.
Mais um problema: fazer chegar as uvas ao Funchal. Muitas vinhas são em sítios bastante isolados. Há imensa pressão demográfica na Madeira, com apenas 13,5% dos terrenos com declives inferiores a 16%, as vinhas têm de lutar pelo seu espaço contra os hotéis e as habitações. Felizmente, a viticultura tem evoluído e os porta-enxertos aguentam cada vez mais altitude. 80% da ilha da Madeira está acima dos 700m.
Mas a complexidade não termina aqui: feitos os vinhos há que envelhecê-los. E segundo Albuquerque, o sítio onde fica o armazém de envelhecimento também determina o estilo dos vinhos. A Blandy’s tem 16 armazéns de envelhecimento, e em cada localização, as diferentes castas desenvolvem de forma diferente os ácidos orgânicos que dão ao Madeira o seu carácter. Por exemplo, o Caniçal é mais húmido do que o Funchal e há castas que envelhecem lá melhor. É preciso diminuir os factores aleatórios para manter o estilo de cada vinho.
Depois de mais de 30 anos de trabalho, Francisco Albuquerque conseguiu pela primeira vez fazer 4 vinhos do mesmo ano, os 2010 hoje apresentados. Para além desses, viajámos um pouco no tempo para provar alguns vinhos históricos, e comparar estilos da Blandy’s com a sua marca-irmã, Cossart-Gordon. Ao jantar, mais desafios: o IG Madeirense (“de mesa”) Atlantis, Verdelho da Fajã da Ovelha, feito em parceria com Rui Reguinga, e a provocação de harmonizar vinho Madeira com os pratos da cozinha japonesa, uma proposta desenhada com a ajuda de Victor Jardim, escanção do Kabuki e também ele madeirense. Sashimi de atum com Sercial, toro com Sercial e Verdelho, wagyu com Bual. Aposta ganha, num dia em que honrámos as tradições da Madeira com os seus vinhos de enorme delicadeza, etérea profundidade e eterna longevidade.
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)
-
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1976 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2010 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1982 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1991 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 1990 -
Cossart-Gordon
Fortificado/ Licoroso - 1995 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2010 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2010 -
Blandy’s
Fortificado/ Licoroso - 2010
Quinta do Barbusano: Na ilha, entre a floresta e o mar

Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a […]
Ilhas felizes. É este o significado etimológico de “Macaronésia”, palavra de origem grega que representa quatro arquipélagos do Atlântico Norte, a oeste do estreito de Gibraltar, onde se insere o da Madeira. Pela localização e condições edafo-climáticas, são ilhas de uma vegetação única e abundante, com elevadíssimo rácio de espécies vegetais endémicas. Mas havendo a oportunidade de visitar a ilha da Madeira, sobretudo a parte norte, não é preciso ler muito sobre isto, é ela que nos mostra. A floresta Laurissilva, que ocupa cerca de 20% do território da ilha (aproximadamente 15 mil hectares), apresenta-nos uma paisagem de um verde intenso que se estende em altitude, numa presença imponente e mística, carácter que se acentua quando é abraçada pelos nevoeiros frequentes das manhãs húmidas e nubladas (quando a ilha está de “capacete”, como dizem os madeirenses…). No município de São Vicente, a Laurissilva — que se divide em três “comunidades” distintas — assume o nome Laurissilva do Barbusano, inspiração para a identidade da Quinta do Barbusano, que tem a floresta como pano de fundo, até aos 450m, e uma vista privilegiada para a capelinha de Nossa Senhora de Fátima, um dos símbolos de São Vicente, situada no topo de uma colina. A caminho da quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo, com um V formado por duas escarpas. V de verde, V de Verdelho.
O início
António Oliveira, natural de São Vicente, fundou a Quinta do Barbusano em 2006. Antes de fazer vinho ou de ter vinhas, trabalhava com produtos fitofármacos, numa empresa própria que os vendia aos produtores de uva e dava todo o tipo de apoio aos mesmos. Tinha, ainda, outra empresa de preparação de terrenos e plantações agrícolas. Paralelamente, era — e ainda é, embora em menor escala — “ajuntador de uvas”, conceito muito peculiar: as grandes empresas de vinho Madeira têm, em todos os concelhos da Madeira, alguém que fala com os viticultores para entrega de uvas. É como ter uma pessoa de confiança total, encarregue de ser mediador de uvas, entre os viticultores e a empresa. “Há mais de 30 anos que faço esse trabalho e continuo a fazê-lo, mas apenas para a Blandy’s. Nenhuma uva lá entra sem passar por mim e pela minha decisão”, explica António. Entretanto, durante um trabalho que estava a levar a cabo numas vinhas, desafiou o proprietário das mesmas a fazer com ele “algo diferente” em São Vicente, e foi aqui que arrancou o projecto do Barbusano.
Paulo Laureano foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado no arquipélago da Madeira
Na ilha da Madeira, há poucos produtores a fazer vinho não fortificado, e António Oliveira não só é um deles como é, hoje, o maior de todos. Os produtores mais conhecidos de vinho Madeira generoso — como Madeira Wine Company (Blandy’s), Barbeito ou Justino’s — têm as suas marcas de DOC Madeirense e elaboram estes vinhos nas respectivas adegas. Os restantes, incluindo o próprio Barbusano, utilizam a Adega de São Vicente, uma adega “comunitária” criada pelo Instituto do Vinho da Madeira (actual IVBAM – Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira), que presta serviços de vinificação, sob supervisão de um enólogo residente. Até à última vindima, os produtores a utilizar os serviços desta adega, para vinho não fortificado, eram cerca de 12.
Foi precisamente pela existência desta adega que António conheceu Paulo Laureano, hoje enólogo consultor da Quinta do Barbusano. Paulo foi o primeiro enólogo a fazer vinho não fortificado na Madeira, tendo sido também o primeiro enólogo consultor do Governo Regional, quando da criação da Adega de São Vicente. No projecto do Barbusano, está desde o início. “O Paulo conhece muito bem o terroir da Madeira, os solos, as castas, a maneira de trabalhar dos viticultores, e isto é tudo muito importante”, refere António Oliveira.
As vinhas do António
António é também o maior proprietário de vinha da ilha, com parcelas em várias zonas. A Quinta do Barbusano está rodeada por 12 hectares maioritariamente de Verdelho, a uva em que se focam os brancos do projecto, com alguma Tinta Negra que vai para o rosé. Tudo vinha conduzida em latada. “Na altura, estes 12 hectares tinham 88 parcelas pertencentes a 56 donos. Tive de negociar com todos eles e foi muito difícil”, revela o produtor. “Foi tudo feito em três fases, devido ao capital que era necessário, em primeiro lugar, e em segundo, eram terrenos abandonados, e quando as pessoas começaram a ver ali interesse, plantações e luz, o valor das parcelas circundantes subiu muito”, lembra. Depois de criar a base em São Vicente, António Oliveira alugou terrenos no Arco de São Jorge, parcialmente abandonados, para plantar 2,5 hectares de vinha com uma uva branca de que tinha falta, a Arnsburger (casta trazida da universidade alemã de Geisenheim para a Madeira e que funciona aqui muito bem em lote); outro hectare em Ponta Delgada, com Verdelho e Arnsburger; e na Ribeira da Janela, em Porto Moniz, tem entre 6 e 7 hectares com as tintas Touriga Nacional e Aragonez. Estas duas vão para os vinhos tintos da casa que, apesar de não serem a estrela do produtor (nem da Madeira, na verdade…), “o mercado local pede muito”, diz António. Mas antes de tudo isto estar operacional, durante os primeiros quatro anos, os vinhos do Barbusano foram feitos com uvas compradas. O primeiro de todos originou apenas 4 mil garrafas. Hoje, a empresa já produz 100 mil por ano, incluindo um espumante 100% Verdelho, bem interessante, feito com leveduras livres e remuage manual. Há pouquíssima produção de espumante na Madeira, mas “estão a surgir pequenas produções”, segundo António, que investiu agora no equipamento para dégorgement, que antes tinha de alugar no continente e transportar para a ilha.
A caminho da Quinta, numa estrada que serpenteia pela montanha, não podemos evitar parar o carro num local já perto da propriedade: a floresta, feminina, enquadra o mar que aparece lá ao fundo., com um V formado por duas escarpas.
O projecto do Porto Santo
Um dos grandes canais de venda dos vinhos Barbusano é o próprio enoturismo da quinta, que desde 2018 recebe sobretudo turistas estrangeiros que procuram experiências vínicas autênticas. E quando se fala em autênticas, é mesmo assim, porque para os que escolhem o programa de provas com almoço, é quase sempre António que está na grelha a fazer as famosas (mas fiéis) espetadas madeirenses.
Porém, com a chegada da pandemia em 2020, a Madeira, que vive do turismo, parou totalmente e, consequentemente, pararam também as vendas. “Estava toda a gente com medo de viajar para outros países, e os portugueses viraram-se para a ilha do Porto Santo. Começaram a dizer-me, ‘vai para o Porto Santo, está a encher e lá vais conseguir vender o vinho’. Assim fiz, e consegui arranjar clientes”, confessa António Oliveira. Como era altura das vindimas, acabou por visitar várias vinhas, a ideia de fazer vinho nesta ilha começou a surgir, e o produtor acabou por consultar João Pedro Machado, enólogo residente da Adega de São Vicente, sobre a viabilidade da casta Caracol, a uva branca da ilha. António recorda: “A opinião dele era que, a solo, não acreditava muito nela, mas que combinada com Verdelho poderia dar um vinho excelente. Verdelho já eu tinha na Madeira, faltava-me o Caracol. Quando falámos com os viticultores do Porto Santo, nessa altura, disseram-me que já estava tudo vendido, e eu aceitei e vim-me embora. Passados uns dias, recebo uma chamada de um deles, a perguntar se eu ainda estava interessado nas uvas. Eu disse que sim, e regressei com o João Pedro ao Porto Santo para ver as ditas uvas e avaliar o estado de maturação. Decidimos comprá-las e, depois de vindimadas, trouxemo-las para a ilha da Madeira”. Note-se que, no ferry que faz a travessia Porto Santo-Funchal, transportar um camião de uvas custa mais de mil euros. A juntar aos mais de quatro euros/quilo que custa a uva Caracol… comprar uvas em Porto Santo fica tudo menos barato. Foi assim que surgiu o primeiro vinho Fonte d’Areia 2021, que juntou Caracol (51%) a Verdelho. “À terceira ou quarta prova do vinho, percebi que ou simplesmente beberíamos uns copos com ele, ou teria de começar a produzir uvas no Porto Santo. O resultado é que já estou com dois hectares próprios de vinha, e planos para plantar mais 1,5 em 2024. À partida, fico-me por aqui”, avança António Oliveira. Além de Caracol (que já entrou numa segunda e bastante melhorada edição do Fonte d’Areia, de 2022) estes dois hectares têm algumas parcelas de uvas tintas, como Syrah, Trincadeira ou Castelão.
O Porto Santo traz outra enorme vantagem ao portefólio do produtor: diferenciação. Ainda que a menos de 70 km de distância entre si, as ilhas da Madeira e Porto Santo poderiam estar em hemisférios distintos. Enquanto alguns locais da Madeira lembram partes do Brasil, com os morros cobertos de vegetação verde e clima húmido subtropical, quem caísse de para-quedas no Porto Santo pensaria estar no norte de África, com colinas áridas despidas de árvores, clima quente e muito seco. A escassez de água e o solo arenoso marcam profundamente a viticultura no Porto Santo, tendo influência decisiva no perfil dos vinhos. E, quem sabe, abrindo uma janela de oportunidade às castas tintas que António Oliveira pretende aproveitar.
O projecto Barbusano continua a crescer e a procura a aumentar. Também por isso, o produtor decidiu fazer uma mudança na imagem dos vinhos. “Os rótulos já vinham de 2008 e estavam muito cansados. Tudo isto tem custos e nós preocupamo-nos, obviamente, também com esta componente, mas, sobretudo da minha parte, há uma ainda maior preocupação pelo que coloco dentro das garrafas. Mas chegou a hora de o fazer e também de lançar novos vinhos”, adianta António. Quanto a próximos objectivos, a vontade é chegar ainda este ano às 150 mil garrafas. Fazer mais espumante é também um desejo, e para isso foram recentemente plantadas Baga e Loureiro na quinta, para bases de espumante.
Pelo que provámos, os vinhos brancos da Madeira são algo muito sério (aqui, palmas para a uva Verdelho), com um potencial nervoso e a pedir para serem mais explorados. A visita a uma garrafa de Barbusano Verdelho branco 2011 confirmou-o, deixando todos de queixo caído. Será esta uma das “next big things” da cena vitivinícola portuguesa?
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)
-
Quinta do Barbusano
Branco - 2019 -
Barbusano Barricas
Tinto - 2018 -
Barbusano Loucuras do Enólogo
Tinto - 2020 -
Barbusano
Tinto - 2020 -
Vinhas do António
Tinto - 2019 -
Barbusano
Rosé - 2022 -
Fonte d’Areia
Branco - 2022 -
Barbusano Lagar
Branco - 2021 -
Barbusano
Branco - 2019 -
Vinhas do António
Branco - 2020 -
Barbusano Leve
Branco - 2021 -
Barbusano
Espumante - 2014