Red line
Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021 Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente. […]
Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021
Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente.
Luís Lopes
Gosto das pessoas e das coisas que são diferentes, quando são boas. Prefiro, de muito longe, algo diferente e bom do que algo apenas bom. A diferença mexe comigo, faz-me pensar, questiona-me, desafia-me. Isto é válido para tudo, da pintura ao futebol, da literatura aos comportamentos sociais, da comida ao vinho. Porém, é impossível fazer a diferença sem correr riscos. A segurança está, sem dúvida, na base da eficácia e até, admito, da perfeição. Mas dificilmente é um caminho para a singularidade.
Tenho por isso uma admiração sem limites por aqueles que arriscam e que, na sua vida ou na sua actividade, caminham na chamada red line. É uma linha muito fina, onde é extremamente difícil manter o equilíbrio. Um passo em falso, e o que podia ser brilhante transforma-se numa coisa sem préstimo.
Deixem-me puxar pela minha paixão futebolística para fazer uma analogia com dois jogadores de vanguarda, Zlatan Ibrahimovic, sueco de ascendência bósnia e croata, e Mario Balotelli, italiano de ascendência ganesa. Dois egos do tamanho do mundo, ao ponto de um e outro, frequentemente, se compararem a deuses. Dois talentos extraordinários com a bola, duas personalidades complexas, no limite do risco na sua vida pessoal e profissional. Zlatan sempre caminhou na red line, deslizando na borda do precipício. Aos 39 anos, joga no Milan (equipa que lidera o campeonato italiano) e ainda esta época já marcou por cinco vezes dois golos numa partida. Mario, que tinha tudo para chegar ao mesmo nível e jogou nas melhores equipas do mundo, foi expulso de quase todas por comportamentos inaceitáveis recorrentes e, aos 30 anos, joga (até ver…) no Monza, segunda divisão italiana.
Uma última analogia, esta vinda da experiência pessoal: todos os que fazem ou fizeram competição automóvel sabem que, para ambicionar resultados, é preciso arriscar e andar muitas vezes na faixa vermelha do conta rotações. Mas também conhecem as consequências de um motor partido…
Tudo isto para, finalmente, falar de vinho. Cada vez aprecio mais vinhos diferenciadores, vinhos que me surpreendem com aromas e sabores que fogem do habitual. Para os fazer, é preciso arriscar, é necessário assumir um certo descontrolo controlado. Ao contrário do que muitos pensam e dizem, a menor utilização de produtos químicos nas videiras e nas cubas, que eu defendo em absoluto, deve corresponder sempre a uma muito maior intervenção física na vinha e na adega. A chamada “enologia de não intervenção ou intervenção mínima”, é uma irresponsabilidade que conduz, quase inevitavelmente, a maus vinhos.
Só quem sabe muito de viticultura e enologia se pode dar ao luxo de abdicar da segurança e correr riscos. Mas só correndo riscos se criam vinhos que nos seduzem e impressionam pela sua qualidade, originalidade, personalidade. E mesmo com todo o conhecimento, talento e atenção, quem caminha na linha vermelha sabe que, por vezes, as coisas correm mal. Aí há que admitir o falhanço, descartar o vinho, e tentar de novo. Andar na red line não é para todos. Uns são Zlatan. Outros, Mario.
Baga, paixão e razão
Editorial da revista nº45, Janeiro 2021 Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, […]
Editorial da revista nº45, Janeiro 2021
Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, identidade, notoriedade e valor, a produtores e apreciadores que procuram tudo isso.
Luís Lopes
A casta Baga e os vinhos que origina (sobretudo) na Bairrada está longe de ser consensual. E não é difícil perceber porquê. A forte personalidade dos seus tintos afasta-a completamente da grande maioria dos consumidores que, muito naturalmente, prefere vinhos com fruta madura e doce e sabor suave e polido. Mas esse mesmo vincado carácter atrai uma legião de fãs, dentro e fora de portas, que ali encontra aromas e sabores que saem fora do “mainstream”, independentemente do estilo adoptado por cada produtor.
Visitei a Bairrada pela primeira vez, na pele de director de uma revista de vinhos, em 1989. Numa época em que pouquíssimos consumidores sabiam o que era uma casta de uva, foi nessa visita que percebi verdadeiramente a Baga. Acostumado a vinhos com alguma idade e de perfil austero e clássico (em 1984, aos 23 anos, o meu primeiro salário de jornalista foi comemorado com uma garrafa de Pasmados!) os tintos da Bairrada foram para mim uma revelação. E nomes como Casa de Saima, Luis Pato, Quinta da Dôna, Quinta de Baixo, Sidónio de Sousa e Quinta das Bágeiras saltaram para o topo das minhas preferências vínicas. Essa paixão pelos Baga da Bairrada solidificou-se com o tempo e com o conhecimento. E ampliou-se mesmo, nos últimos cinco ou seis anos, devido a dois motivos: o aparecimento de novos produtores apostados traduzir a plasticidade da uva em diferentes interpretações, sem perder a identidade que a caracteriza; e a “explosão” dos espumantes Baga-Bairrada que vieram dar outra dimensão e popularidade à casta e, ao mesmo tempo, resolver o problema da Baga inadequada (que existe!) para vinho tinto.
O trajecto da Baga na Bairrada não tem sido fácil. Se nos anos 90 era inquestionável, nos anos 2000 passou a ser demonizada, culpada de todos os males, acusada de estar desenquadrada das tendências de mercado e ocasionar o descalabro nas vendas dos tintos da região. Pessoas desesperadas tomam, compreensivelmente, medidas desesperadas. De um momento para o outro, a Bairrada tornou-se na Denominação de Origem portuguesa mais permissiva em termos de castas, ao ponto de hoje um Bairrada tinto poder ser feito de, entre outras, Syrah, Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot ou Pinot Noir. E, no entanto, os grandes tintos de Baga, elaborados a partir de vinhas plantadas no local certo e com produção controlada através de monda, mantiveram o seu percurso, continuaram a ganhar notoriedade e valor. Quase duas décadas passadas de uma “liberalização” que regiões como Dão ou Douro, por exemplo, nunca aceitariam, os vinhos mais reputados e valorizados da Bairrada são, hoje e cada vez mais, baseados em Baga. Para chegarmos aqui, no entanto, convém não esquecer aqueles que, rejeitando o canto da sereia dos Merlot e afins, se mantiveram irredutíveis no seu caminho, até o tempo (e o mercado) acabar por lhes dar razão. Luis Pato e Mário Sérgio Nuno, sobretudo eles, são, sem sombra de dúvida, os grandes guardiões da Baga, conseguindo através do seu exemplo de sucesso mudar práticas e mentalidades. Sem eles, a Bairrada seria outra coisa. A entrevista que publicamos nesta edição e que, pela pela primeira vez, fazem em conjunto, é bem ilustrativa do seu percurso, do que os separa, do que os une.
Na Bairrada, a Baga nunca poderá fazer vinhos baratos e de volume. Mas pode assumir-se, enquanto casta identitária, como determinante para a valorização e notoriedade dos vinhos da região. Num mercado que busca, cada vez mais, a diferença com qualidade, a Baga pode ser, ao mesmo tempo, paixão e razão.
Que venha 2021
Editorial da revista nº44, Dezembro 2020 O ano que agora caminha para o final, claramente, não deixa saudades. Há doze meses, nesta mesma página, procurando antecipar as tendências vínicas para 2020, escrevia eu que “todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior”. Estávamos muito longe de imaginar o que […]
Editorial da revista nº44, Dezembro 2020
O ano que agora caminha para o final, claramente, não deixa saudades. Há doze meses, nesta mesma página, procurando antecipar as tendências vínicas para 2020, escrevia eu que “todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior”. Estávamos muito longe de imaginar o que aí vinha. 2020 termina, porém, com alguns sinais de esperança e alento. Vamos, pois, virar vigorosamente a página e, em conjunto, fazer de 2021 um ano (muito) melhor.
Luís Lopes
Antecipar tendências em anos “normais” é sempre difícil e falível. Num quadro de tantas incertezas é-o muito mais. No caso concreto do sector do vinho, nunca ninguém pensou que o comportamento dos consumidores, das empresas ou dos mercados, pudesse estar dependente de uma coisa tão “simples” quanto uma vacina. Mas este é o novo normal, e é com ele que vamos viver em 2021.
Algumas tendências assinaladas para 2020 vão manter-se no próximo ano. Acredito, por exemplo, que os espumantes vão continuar a crescer, depois da quebra acentuada que certamente ocorrerá na quadra festiva condicionada que se aproxima. Também estou certo de que vectores como a sustentabilidade ambiental (a noção do efémero leva-nos a olhar com mais atenção para o que realmente importa), os vinhos brancos de topo (de castas como Alvarinho ou Encruzado, terroirs especiais ou lotes com alguma idade), as transacções de propriedades (inevitáveis com a descapitalização das empresas menos “almofadadas”) vão acentuar-se em 2021.
Por outro lado, as tremendas dificuldades que a HORECA enfrenta, em particular nos segmentos mais orientados para o “fine dining” e para o turismo, bem como a menor afluência presencial às lojas de vinho (parcialmente mitigada pelas vendas online), vieram desvalorizar o aconselhamento personalizado que encontramos naqueles pontos de venda e consumo e, ao mesmo tempo, reforçar desmesuradamente o peso da chamada distribuição moderna, super e hipermercados. A esmagadora maioria dos vinhos são ali vendidos em promoção, com descontos monumentais. E se nos habituámos, nos últimos anos, a ver algumas marcas de menor estatuto (mas que fazem números impressionantes) em “promoção permanente”, agora deparamo-nos com marcas clássicas, algumas com várias décadas de idade, a entrar no mesmo modelo. Implanta-se a fidelização à promoção e não à marca. Ou seja, o cliente dos hipers compra apenas o vinho que estiver em promoção e não a marca que reconhece; e as marcas tradicionais promocionadas arriscam nunca mais poder voltar aos seus preços de referência.
Mas há coisas boas que se vão manter. O consumidor de nicho vai, muito provavelmente, continuar a procurar a diferença. Os vinhos de talha estão em alta (quem diria…), quando há pouco mais de uma década, em muitas casas alentejanas reconstruídas para os novos proprietários citadinos, as talhas eram partidas para fazer entulho. Os brancos de curtimenta, brancos de tintas, vinhos de castas raras ou de vinhas centenárias, orgânicos, “naturais”, “pet nat” e outros que tais, vão manter a procura, alicerçada nas redes sociais e na venda online.
Estes vinhos diferenciadores são importantes para assegurar a vitalidade e diversidade de um sector que provavelmente se vai bipolarizar, entre os “promocionados” dos hipermercados que ocupam quase todo o espaço e os “alternativos” que ficam com as especialidades. Dificuldades acrescidas para muitos dos melhores e mais consistentes vinhos portugueses, que não são nem “promocionados” nem “alternativos”, e que correm o risco de ficar encalhados em terra de ninguém. Deixo dois conselhos aos seus produtores: resistam o mais que puderem, mantenham-se firmes no projecto que criaram, nas vinhas e nos vinhos que amam como se filhos fossem; e aprendam a construir e a contar uma boa história, utilizando para a comunicar todas as plataformas que estão ao vosso dispor. Pela nossa parte, continuaremos a apoiá-los e a ajudar a estreitar os laços entre quem produz e quem consome.
Termino com um prognóstico que não deve falhar: 2021 será melhor do que 2020. Que chegue depressa o novo ano. Saúde para todos, fiquem bem.
Online
Editorial da revista nº43, Novembro 2020 A internet aumentou desmesuradamente o seu peso nas nossas vidas profissionais (e pessoais!) desde março de 2020. No sector do vinho, a verdade é que o online, não resolvendo nada e, muito menos (longe disso), substituindo a interação pessoal, atenua os efeitos que o distanciamento social nos impõe. E […]
Editorial da revista nº43, Novembro 2020
A internet aumentou desmesuradamente o seu peso nas nossas vidas profissionais (e pessoais!) desde março de 2020. No sector do vinho, a verdade é que o online, não resolvendo nada e, muito menos (longe disso), substituindo a interação pessoal, atenua os efeitos que o distanciamento social nos impõe. E em algumas áreas, quando bem usadas, as soluções online são de tal forma eficazes que, acredito, nunca mais voltaremos a trabalhar como antes da pandemia.
Luís Lopes
Reuniões, apresentações, vendas, muito do que fazemos hoje deixou de ser presencial e passou a virtual. No meu caso, nunca acreditei naqueles que, quando o covid-19 dinamitou os negócios, apontaram o e-commerce como solução milagrosa. Hoje, a grande maioria dos produtores de vinho portugueses possui uma loja online ou trabalha com um parceiro nessa área, mas quase todos confessam que as vendas são residuais.
No que respeita à comunicação produtor/líderes de opinião ou produtor/consumidor, também, confesso, desconfiei da eficácia do online. As muitas apresentações de vinhos a que assisti através das habituais plataformas (Zoom, Teams...) reforçaram essa desconfiança. Algumas foram absolutamente patéticas, com produtores calados e estáticos enquanto meia dúzia de jornalistas e sommeliers provavam, igualmente sisudos, o vinho que fora enviado para casa, interrompendo o desconfortável silêncio com uma ou outra pergunta do tipo “que grau tem este vinho?” mostrando que nem a ficha técnica do produto se tinham dado ao trabalho de consultar. No entanto, no meio de tudo isso, uma ou outra apresentação dinâmica, bem conseguida, interventiva, sugeriu-me que o online poderia funcionar como ponte de comunicação, desde que bem utilizado. Recentemente, dois eventos completamente distintos, derrubaram as minhas dúvidas e revelaram-me o enorme potencial da ferramenta que temos em mãos.
Num deles, participei como convidado na adega de um produtor, enquanto através do Zoom era feita a apresentação de um vinho para um grupo de 20 jornalistas e sommeliers de topo no Brasil. Não foi uma apresentação vulgar. Espalhados pela gigantesca metrópole de São Paulo, esses 20 profissionais receberam, ao mesmo tempo, um kit composto por um prato de bacalhau elaborado por um famoso restaurante de cozinha portuguesa e um frappé selado com garrafa e gelo. Na adega, um ecrã de grande formato revelava as caras dos participantes, incluindo o importador local. O almoço decorreu como se estivéssemos todos na mesma sala. O produtor, e eu próprio, fomos bombardeados com perguntas interessantes e interessadas, ouvidas e respondidas mais facilmente do que se nos encontrássemos numa comprida mesa. Saí dali a pensar que: primeiro, a acção deve ter saído muito mais barata ao produtor do que se tivesse voado para São Paulo e pago a refeição num restaurante; segundo, muitas daquelas pessoas nem sequer iriam comparecer no restaurante e ali estavam todas, confortavelmente, em suas casas; terceiro, nenhum deles se vai esquecer nem do momento nem do vinho.
O outro evento foi muitíssimo mais ambicioso, na escala e nos meios envolvidos. Nunca, no mundo, se fez algo como o Vinhos de Portugal, realizado nos dias 23, 24 e 25 de outubro e transmitido online para os domicílios de quase 1100 pessoas, que compraram os bilhetes (com a opção de packs de vinhos) no Brasil e em Portugal. O evento dos jornais Público, O Globo e Valor Económico, em parceria com a Viniportugal, e em que tive o privilégio de participar como um dos orientadores das sessões, realizou 62 lives/entrevistas de 25 minutos com produtores e 16 provas temáticas de 60 minutos. A milhares de quilómetros do local da acção, grupos de amigos e famílias abriam as garrafas recebidas, assistiam às provas, questionavam oradores e produtores.
O enorme sucesso desta iniciativa substitui o contacto pessoal e a interacção numa sala de provas? Não, definitivamente. Mas evidenciou-se como um modelo alternativo, agora, e complementar, no futuro. O online é uma ferramenta, como um martelo ou um automóvel. Posso estragar uma parede quando queria pregar um prego ou atropelar alguém quando apenas pretendia levar-me a um local. No fundo, o online não é mais do que o reflexo das pessoas que o usam.
Atípico
Editorial da revista nº42, Outubro 2020 Enquanto martelo o teclado, já se vão lavando a maior parte dos cestos da colheita de 2020. Como profissional da escrita de vinhos, esta foi a trigésima primeira vindima que acompanhei, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. São muitas colheitas, todas diferentes, cada uma com particularidades e […]
Editorial da revista nº42, Outubro 2020
Enquanto martelo o teclado, já se vão lavando a maior parte dos cestos da colheita de 2020. Como profissional da escrita de vinhos, esta foi a trigésima primeira vindima que acompanhei, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. São muitas colheitas, todas diferentes, cada uma com particularidades e perfis de vinhos bem distintos.
Luís Lopes
Fazendo um esforço de memória, recordo-me de todas as trinta e uma vindimas que experienciei, bem como das características mais marcantes dos anos vitícolas a que estão associadas. Posso agrupá-las de muitas e variadas maneiras: as vindimas frescas; as vindimas quentes; as vindimas molhadas; as vindimas secas; as vindimas escassas; as vindimas abundantes; a vindimas precoces; as vindimas tardias. E, claro, posso igualmente categorizá-las em termos da qualidade média dos vinhos a que deram origem. Porém, uma vindima nunca se se integra numa única categoria. Uma dada vindima pode ser, ao mesmo tempo, quente, escassa e precoce, por exemplo. Os anos vitícolas também ficam marcados por uma grande diversidade de factores: as temperaturas médias ou a pluviosidade em fases decisivas do ciclo da videira – abrolhamento, floração, pintor, maturação…; acidentes climatéricos muito localizados (geada, granizo) ou um pouco mais generalizados (escaldão); ou ainda, a maior ou menor incidência de pragas e doenças da videira.
As variáveis ao longo de um ano vitícola que culmina na colheita são inúmeras, tornando cada vindima completamente diferente da anterior. E sendo certo que assim é, não se torna fácil perceber de imediato a razão pela qual tantos viticultores e produtores de vinho, sobretudo ao longo da última década, escolhem a mesma palavra para definir a vindima que acabaram de viver: atípica. Foi assim em praticamente todas as colheitas desde 2014. Curiosamente, ninguém classificou 2011 como um ano atípico. No final dessa vindima, “excelente” era a expressão que se ouvia de todas as bocas e que desde logo se colou aos vinhos desse ano.
Mas afinal o que é uma vindima “típica”, por oposição à “atípica”? Não será, no fundo, uma vindima idealizada? Ou seja, aquela que resulta de um ano em que a chuva caiu na quantidade e época certa, granizos e geadas, pragas e doenças não fizeram grandes estragos, o verão foi ameno, com noites frescas e maturação a decorrer sem pressas, culminando numa colheita genericamente seca, com alguns chuviscos pontuais que refrescaram as uvas, possibilitando colher todos os cachos no momento perfeito de equilíbrio entre açúcar, acidez e taninos. Que maravilha! O problema é que essa vindima perfeita é coisa cada vez mais rara, e talvez tenhamos de nos habituar a uma “tipicidade” feita de excessos climatéricos, estações do ano desnorteadas e, sobretudo, um elevado nível de imprevisibilidade.
Mas mesmo aceitando esse “novo normal” como dado adquirido, não sei como classificar a colheita de 2020, a não ser como a mais insana de que me lembro. Desde logo, porque foi a vindima da covid-19, com tudo o que isso implicou em termos logísticos, económicos, psicológicos, até. Foi uma vindima associada a um ano de desavinho, granizo, oídio, míldio, cicadela, escaldão, desidratação, vagas de calor prolongadas. Foi uma vindima em que as maturações pareciam não querer avançar e depois dispararam quase incontroláveis, perdendo-se a preciosa acidez nas castas mais precoces. Foi um ano de enorme heterogeneidade entre regiões, mas também heterogeneidade na mesma vinha, na mesma cepa, no mesmo cacho. Um ano em que se colheram tintos antes de brancos, uma vindima onde açúcares e ácidos desafiaram a lógica, uma colheita onde, para meu desgosto, a Touriga Nacional deu 10 a 0 à Francesa.
O ano vitícola e a vindima de 2020 exigiram o máximo de competência, dedicação, esforço, resiliência, por parte de todos aqueles que fazem da vinha e do vinho a sua vida. Um ano atípico? Se atípico significar que, por um lado, não se vai repetir tão depressa e, por outro, que dentro das dificuldades vai originar grandes vinhos, atípico seja.
A gente que faz o vinho
Editorial da revista nº41, Setembro 2020 No dia em que escrevo estas linhas já as uvas estão a ser colhidas um pouco por todo o país. Em algumas regiões, a vindima vai em velocidade de cruzeiro, noutras cortam-se os primeiros cachos. Este tempo de colheita faz-me pensar no trabalho dos muitos profissionais, produtores, viticólogos, enólogos, […]
Editorial da revista nº41, Setembro 2020
No dia em que escrevo estas linhas já as uvas estão a ser colhidas um pouco por todo o país. Em algumas regiões, a vindima vai em velocidade de cruzeiro, noutras cortam-se os primeiros cachos. Este tempo de colheita faz-me pensar no trabalho dos muitos profissionais, produtores, viticólogos, enólogos, que têm agora a sua “prova de fogo”, o momento por que esperaram ao longo de um ano inteiro.
Luís Lopes
A vindima é feita de gente. Em nenhum outro período do ano há tamanho movimento de pessoas numa propriedade vitivinícola. No meio das vinhas, de tesoura na mão ou caixa às costas, nos tractores e atrelados, nas máquinas de vindimar, descarregando as uvas nas prensas, puxando mangueiras na adega, medindo mostos no laboratório, vigiando as fermentações. Muitas destas pessoas só ali vão uma vez por ano, precisamente nestas semanas em que se cortam os cachos e se transformam em vinho. Outras, estão no local praticamente todos os dias, ajudando as videiras no seu percurso até à vindima seguinte ou acompanhando os vinhos que se fizeram na colheita anterior.
Onde há pessoas existe pensamento e acto, reflexão e decisão. Sendo um fruto da natureza, o vinho não é feito por ela, é produto exclusivo da intervenção humana. As uvas que agora se colhem são tanto o resultado das condições do ano vitícola como das opções que foram seguidas para mitigar, em alguns casos, ou potenciar, noutros, a obra da natureza.
Muitas dessas decisões aconteceram bem antes da vindima. Já nem falo das que estiveram na base da criação da vinha e que resultam de opções estratégicas de longo prazo: onde, quando, como, o que plantar. Bastam-me todas aquelas operações que ocorrem ao longo do ciclo vegetativo da videira e que implicam processos de ponderação e decisão quase diários: podas, empas, tratamentos, desfolhas, correções de solos, rega, mondas, a lista é infindável. O ano de 2020 foi especialmente desafiante nesse sentido, com ataques de míldio e oídio difíceis de controlar e tudo isto num contexto agravado pela pandemia e os cuidados a ter na gestão do espaço e do movimento das pessoas. O trabalho do viticólogo e da sua equipa vai a exame agora, à medida que os cachos entram na adega. Não sei o que passará pela cabeça do chamado “pessoal de campo”: ansiedade, sentimento de dever cumprido, ou aquele misto de preocupação e alívio que os pais sentem quando um filho se emancipa e sai de casa?
O fruto que uns entregam fica agora a cargo de outros, a gente da enologia, na adega. E, de novo, as decisões sucedem-se, frequentemente sem tempo para reflectir o suficiente antes de as tomar. Prensagens, pisas, fermentações, remontagens, desencubas, lagares, cubas, barricas. Em muitos casos, fruto do histórico de anos anteriores, as uvas que chegam à adega já têm um destino específico, esperam-se que origine um vinho concreto. Umas vezes cumprem, outras não. Nunca esqueço o que o enólogo Michel Rolland me disse, há quase 20 anos: partindo das mesmas uvas, a diferença entre um vinho muito bom e um grande vinho está nos detalhes. Ou seja, de cada vez que, pressionados pelas circunstâncias, decidimos por um compromisso, facilitamos num detalhe, descemos um degrau na escada que leva à grandeza.
Opções são tomadas minuto a minuto enquanto os mostos fermentam. Assentes na experiência e no saber empírico, ou alicerçadas no conhecimento científico, são essas decisões que, somadas às que aconteceram na vinha, vão definir os vinhos que agora nascem e que vamos beber dentro de alguns meses ou daqui a muitos anos.
Neste tempo de vindima, enquanto apreciador e profissional da escrita, agradeço sentidamente a todos aqueles que fazem o vinho acontecer. O vinho tem, obviamente, uma base natural que não dominamos. Não está nas nossas mãos criar um terroir de excelência onde ele não existe, não conseguimos evitar um granizo ou um escaldão. Do mesmo modo que um pescador não domina o mar onde pesca. Mas ao contrário do peixe, o vinho é um produto transformado, fruto de decisões humanas. E é muito bom saber que algumas coisas ainda dependem de nós.
Um vinho à procura de si próprio
Editorial da revista nº40, Agosto 2020 O rosé, mais do que qualquer outro tipo de vinho, mostra bem a volatilidade das modas e dos estilos. Basta atentar no que tem sido o seu percurso ao longo dos últimos anos. O que hoje é verdade, amanhã é mentira, o que agora está in, daqui a pouco […]
Editorial da revista nº40, Agosto 2020
O rosé, mais do que qualquer outro tipo de vinho, mostra bem a volatilidade das modas e dos estilos. Basta atentar no que tem sido o seu percurso ao longo dos últimos anos. O que hoje é verdade, amanhã é mentira, o que agora está in, daqui a pouco está out. Cor clara ou escura? “Bica aberta” ou “sangria”? Levemente doce ou absolutamente seco? Inox ou madeira? A expressão “à vontade do freguês” nunca fez tanto sentido.
Luís Lopes
Recuemos vinte anos, não é preciso mais. Até aí, tudo era simples, claro, objectivo, no panorama dos rosés nacionais. Havia o Mateus, o Lancers, o Casal Mendes e mais alguns outros, o perfil estava perfeitamente definido – leve, frutado, com pouco álcool, algum gás e uma boa dose de açúcar para equilibrar a viva acidez – e os rosés de Portugal vendiam muitos contentores, na exportação, claro, que por cá era visto como “vinho de senhoras” e de estrangeiros.
Depois, a pouco e pouco, o rosé foi timidamente abrindo caminho no mercado nacional, dando um salto enorme na última década com a explosão do turismo. O turista trouxe com ele, numa primeira fase, um aumento da procura interna do modelo “frutado e doce”, mas logo a seguir, o visitante mais viajado e endinheirado passou a pedir o chamado “rosé tipo Provence”, caracterizado pela cor rosada muito clara. O Algarve do sol, praia e restaurantes transformou-se num importante mercado de rosé, os vendedores que fazem essa região começaram a exigir aos produtores o rosé clarinho e a cor tornou-se no principal elemento para definir o perfil do vinho: rosa escuro/clássico (outra palavra para “antiquado” no mundo rosado) ou rosa claro/moderno. Ainda os enólogos não estavam refeitos das dores de cabeça que tiveram para afinar a cor pretendida pela equipa de vendas, já começavam a chegar outras orientações: aquele quer mais seco, este quer mais doce, um cliente diz que rosé de sangria é feito de restos, outro só quer bica aberta. Como resultado, produtores há que experimentaram tudo e mais alguma coisa até assentarem no estilo (supostamente) “certo” para o seu rosé.
Depois dos rosés “comerciais”, chegaram aos vinhos mais ambiciosos. Objectivo: através de castas menos comuns (Pinot Noir virou um must have), vinificação (fermentação em barrica à cabeça) ou embalagem, oferecer um produto de preço superior e com maior percepção de requinte. Como quase sempre acontece, na busca da diferença extremam-se posições/perfis: de um lado, rosés praticamente sem cor e com muito pouco álcool; do outro, rosés ostensivamente corados, tipo claretes, e com álcool elevado. Por vezes, um mix dos dois, bem clarinho e com 14%…
Neste ponto do texto, e para evitar que se pense que não gosto de rosés, devo dizer que sou um fã. Conheço muito pouca gente que beba rosé em tantas ocasiões quanto eu. Há uma dezena de anos, li uma crónica de um conhecido jornalista britânico que dizia algo como: “não há nada que um rosé faça, que um branco ou tinto não faça melhor”. Se se referia à excelência absoluta, mesmo que contrariado, tenho de lhe dar razão. Claro que há rosés muitíssimo bons (nesta edição da Grandes Escolhas provámos vários) mas com excepção de Champagne, não vejo este vinho atingir, globalmente, o mesmo nível de sofisticação, complexidade, longevidade, de um grande branco ou tinto. (Antes de alguém levantar a espada em defesa da honra dos rosados, por favor, compare o número de garrafas de branco, tinto e rosé que tem em casa...)
Mas será que o rosé precisa mesmo desse estatuto de excelência para ter sucesso? Há imensas situações em que um rosé me sabe melhor e se mostra mais adequado do que um branco ou um tinto. Ainda há pouco tempo, num almoço com 8 amigos, só bebemos rosés, portugueses e franceses (já agora, os nossos eram bem melhores, apesar dos nomes consagrados de Provence).
Acredito que, mais do que qualquer outro tipo de vinho, o rosé é um vinho de momentos, lugares, pessoas. E é por isso que a busca do rosé “certo” é uma quimera. Qual o rosé de que mais gosto? Geralmente, prefiro rosés secos, com álcool médio/baixo e acidez elevada, aprecio corpo e sabor, e a intensidade da cor é-me completamente indiferente. Mas tem dias…
Mal me quer, bem me quer
Editorial da revista nº39, Julho 2020 Num movimento (vínico e não só) que um pouco por toda a Europa aponta para uma espécie de regresso às origens, um retorno ao tradicional e ao clássico, estamos a assistir também em Portugal à reabilitação de algumas variedades de uva que caíram em desgraça a partir dos anos […]
Editorial da revista nº39, Julho 2020
Num movimento (vínico e não só) que um pouco por toda a Europa aponta para uma espécie de regresso às origens, um retorno ao tradicional e ao clássico, estamos a assistir também em Portugal à reabilitação de algumas variedades de uva que caíram em desgraça a partir dos anos 90. E os resultados são bem interessantes.
Luís Lopes
Nesta edição da Grandes Escolhas publicamos dois trabalhos que, de alguma forma, se centram em castas mal amadas. Mariana Lopes relata e comenta uma prova temática de Fernão Pires organizada pela CVR da região do Tejo; e Dirceu Vianna Junior reflecte sobre o passado, presente e futuro da variedade Jaen.
A Fernão Pires é um caso paradigmático de casta incompreendida. É a variedade branca mais plantada em Portugal, presente de norte a sul do país e, sem sombra de dúvida, a casta identitária do Tejo. Nesta região, ao longo de décadas, foi utilizada como pau para toda a obra, explorada até ao tutano, plantada em terrenos de melão, sempre com o intuito de produzir quantidade a baixo preço. Quando o mercado mudou e exigiu mais qualidade, os produtores procuraram de imediato outras castas “salvadoras” em vez de tratar melhor aquela que tinham em casa. E, no entanto, Fernão Pires é uma uva plena de carácter, adaptável a diferentes tipos de solo e clima, muito plástica nos perfis de vinhos que pode originar. Apenas pede a atenção e cuidado que tantas vezes são disponibilizados a castas supostamente mais nobres.
A Jaen passou, no Dão, pelo mesmo calvário. Na primeira metade do século XX tomou o lugar da Touriga Nacional, porque esta produzia pouco e amadurecia tarde, e o que se queria era quantidade e fugir às chuvas de setembro que arruinavam a colheita. E a Jaen fazia tudo o que lhe pediam. No final da década de 80, quando a Touriga regressou do longo exílio, agora bem mais musculada e rejuvenescida, a Jaen tornou-se a casta a abater: fazia vinhos sem cor, sem taninos, sem longevidade. Pudera, se a obrigavam a produzir barbaridades de uva! Felizmente, tal como acontece com a Fernão Pires no Tejo, os produtores do Dão estão agora a redescobrir a Jaen e a dar-lhe a oportunidade de mostrar o que vale quando bem tratada. E, como revela a prova de Dirceu Vianna Junior, vale muito. É verdade que a maturação precoce que Fernão Pires e Jaen partilham, e que foi outrora uma “vantagem competitiva”, pode vir a ser um problema num cenário de alterações climáticas. Mas o conhecimento vitícola que hoje possuímos e as ferramentas que temos à nossa disposição permitem contornar favoravelmente essa aparente desvantagem.
Por outro lado, avaliar a qualidade de uma casta unicamente pelo seu desempenho enquanto vinho monovarietal é um enorme disparate. As variedades de uva não precisam, para ser muito boas, de fazer grandes vinhos a solo. Basta que cumpram um papel de relevo no “blend”, que se evidenciem como importante mais valia no conjunto, que sejam a base ou o complemento de um grande vinho. Nos melhores tintos de Bordeaux, raramente o Cabernet Sauvignon aparece sozinho. Nos melhores vinhos do Douro, dificilmente encontramos Touriga Franca sem companhia. Nos melhores clássicos alentejanos, Alicante Bouschet, Trincadeira, Aragonez, são complementares. Haverá casamento mais perfeito do que Fernão Pires e Arinto no Tejo? Ou Fernão Pires (Maria Gomes) com Bical e Cercial na Bairrada? Ou Jaen com Touriga Nacional e/ou Alfrocheiro no Dão?
Fernão Pires e Jaen, a solo ou acompanhadas, são capazes de nos oferecer muita qualidade sem perder personalidade. Mais do que isso, podem assumir-se como fundamentais no reforço da identidade regional. Além de que, convenhamos, dá sempre um certo gozo ver o patinho feio transformar-se em cisne… [/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/1″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][divider line_type=”Full Width Line” line_thickness=”1″ divider_color=”default”][/vc_column][/vc_row][vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/3″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_column_text]
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