Barrosinha: De regresso ao brilho de outrora

Barrosinha regresso brilho

Após importante reorientação estratégica, a Companhia Agrícola da Barrosinha tem recuperado lentamente a sua vida agrícola, e produz arroz, pinhão, cortiça, madeira, gado e uvas para vinho. A sua albergaria deu origem a um hotel de quatro estrelas e os vinhos voltaram ao mercado. 75 anos depois de ter sido criada, muito tem mudado na […]

Após importante reorientação estratégica, a Companhia Agrícola da Barrosinha tem recuperado lentamente a sua vida agrícola, e produz arroz, pinhão, cortiça, madeira, gado e uvas para vinho. A sua albergaria deu origem a um hotel de quatro estrelas e os vinhos voltaram ao mercado. 75 anos depois de ter sido criada, muito tem mudado na vida desta emblemática propriedade de Alcácer do Sal.

Texto: José Miguel Dentinho    Fotos: Ricardo Palma Veiga

Quem atravessa o rio Sado junto a Alcácer do Sal é difícil não notar o complexo de edifícios da Companhia Agrícola da Barrosinha. Criada há 75 anos para abastecer as necessidades da Abel Pereira da Fonseca, uma das mais fortes empresas comerciais de vinhos e licores do início do século 20, teve uma vida de altos e baixos que quase terminou com o fecho da maioria das suas actividades, agrícolas e outras. A sua integração no Fundo ECS Capital está a contribuir para a revitalização da empresa e da sua propriedade, incluindo a adega, que produz vinhos mais consensuais e adaptados ao mercado. Para o futuro, está prevista a construção de mais um hotel, para além do actual, e diversos aldeamentos turísticos.

Carlos Trindade, 55 anos, aceitou, há quase 10 anos, o repto de gerir todo o negócio agrícola da Sociedade Gestora de Fundos ECS Capital, proprietária da Barrosinha. “Foi um desafio muito interessante para quem estava, há 20 anos, na consultoria de gestão aplicada ao sector agrícola, principalmente de aprendizagem sobre o que é o dia a dia de um agricultor e tudo o que isso acarreta”, conta.

Com propriedades em diversas regiões nacionais, do Douro ao Algarve, o património agrícola da ECS Capital integra, entre outros, o Solar da Rede, na primeira região, que tem, segundo o gestor, sobretudo grande potencial turístico. Outra propriedade é o Morgado do Reguengo, no Algarve. Com 900 hectares de área, fica perto de Portimão e inclui dois campos de golfe e um hotel, os seus principais negócios. Mas também tem 32 hectares de vinha plantados há quatro anos. “Quando a adquirimos, a empresa proprietária tinha direitos de plantação que estavam quase a caducar, mas nós decidimos aproveitá-los”, conta Carlos Trindade, referindo que, por agora, o vinho produzido no Algarve é vendido a granel.

Barrosinha regresso brilho

Dois mil hectares de área

O sector agrícola da ECS Capital engloba um pinhal de 600 hectares perto da Nazaré, diversas propriedades próximas de Reguengos de Monsaraz, que incluem montado de azinho e pastos para gado e, é claro, a Companhia Agrícola da Barrosinha, com os seus cerca de dois mil hectares de área.

A empresa nasceu em 1947, segundo Carlos Trindade como produtora de vinhos para a Abel Pereira da Fonseca, que tinha sido criada por um dos mais importantes empresários portugueses do início do século 20. O seu negócio, que se tinha expandido até ocupar quase um quarteirão do Bairro de Marvila, em Lisboa, dedicava-se inicialmente à produção e comercialização de vinhos e licores. Mas foi depois alargado a uma rede de mercearias que chegou a ter mais de 100 unidades abertas na capital.

A Barrosinha “produzia, na altura, vinho a granel, como é evidente, mas também arroz”, conta Carlos Trindade, afirmando que essa foi a época mais pujante da empresa. “Depois houve o ciclo que se iniciou com a revolução de 25 de Abril, com as ocupações, intervenção, “desintervenção” e devolução aos seus proprietários que, na época, não se mostraram interessados em permanecer, e venderam a propriedade”. Na fase posterior, que terminou após o falecimento de um dos sócios, o aparelho produtivo da companhia esteve ligado à pecuária intensiva de bovinos, suínos e aves. Houve depois uma cisão da empresa e quem ficou com a Companhia Agrícola da Barrosinha tentou implementar um projeto imobiliário que envolvia a construção de aldeamentos turísticos e mais um hotel, com um total de três mil camas, que não chegou a acontecer.

 

Barrosinha regresso brilho
Carlos Trindade, administrador da Companhia Agrícola da Barrosinha, veio revolucionar a estratégia da empresa.

Um projeto desafiante

“O projecto entrou numa situação financeira complicada devido à crise na construção e foi por água abaixo, apesar de ainda manter o estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN)”, conta Carlos Trindade, acrescentando que a aposta no imobiliário tinha levado à descontinuação da maior parte do projeto agrícola e agroindustrial, pois a fábrica de rações e de descasque de arroz já não existiam quando chegou, tal como a suinicultura. Por tudo isto, quando Carlos Trindade começou a geri-la, a recuperação da Companhia Agrícola da Barrosinha era um projeto desafiante, não só por causa da sua dimensão, mas também por incluir muitas áreas de negócio que era preciso revitalizar.

No sector agrícola produz hoje arroz, pinhão, cortiça, madeira de eucalipto, gado bovino e vinho. Também foram reactivadas actividades adormecidas, por uma ou outra razão. Foi assim que o posto de combustível foi de novo aberto, tal como o restaurante do hotel e a taberna da propriedade, que voltou a ser lugar onde as gentes de Alcácer do Sal vão comer, pelos sabores dos seus pratos e pelos preços cómodos praticados.

Foi igualmente recuperada a antiga Albergaria da Barrosinha, hoje um hotel de quatro estrelas, com 37 quartos, e reconvertidas sete moradias para exploração turística, anexas a esta unidade.  “Este é o princípio de um projecto imobiliário muito maior na Barrosinha, que inclui um plano de urbanização em fase de aprovação na Câmara de Alcácer do Sal, para a construção de um hotel e diversos aldeamentos turísticos”, conta Carlos Trindade.

A serração, que “estava moribunda”, foi recuperada e está hoje a cargo de Mircea Anghel, artista de origem romena que aceitou o desafio de se mudar, com a mulher, Joana Cabral, e os três filhos, para a Barrosinha. Muito mais do que um carpinteiro ou marceneiro, que o é, é um artista conceituado a nível internacional, com peças cotadas em dezenas de milhar de euros. Basta pesquisar um pouco na internet para o constatar.

A única indústria ainda em actividade quando Carlos Trindade começou a gerir a Barrosinha era a adega, que estava praticamente intacta, mas produzia vinhos sofríveis, vendidos a granel. Era preciso recomeçar.

Primeiro, investindo na melhoria da sua qualidade, “porque a entrada dos nossos vinhos no mercado podia trazer mais visibilidade e chamar a atenção que o público dava há 50 anos à Barrosinha, quando era uma propriedade emblemática”, explica Carlos Trindade, defendendo que isso já foi conseguido. A mudança começou sob a batuta do enólogo António Saramago, a quem foi lançado o desafio de produzir vinhos de qualidade, mas fáceis de beber. “É alguém que sabe muito bem fazê-los com capacidade para se beberem hoje ou daqui a 10 anos e nós estamos agora a usufruir disso, porque temos alguns reservas que têm essa idade e estão fantásticos”, conta o gestor. O processo implicou também uma aposta mais forte na comunicação e a mudança de imagem das garrafas e rótulos.

 

Revolução enológica

Há quatro anos, António Saramago, que tem actualmente 60 anos de profissão, decidiu reformar-se e diminuir a intensidade do seu trabalho. Assim, a Barrosinha contratou Felipe Sevinate Pinto e Frederico Vilar Gomes, dois experientes enólogos consultores, o que contribuiu para melhorar ainda o perfil dos vinhos. Sara Carapucinha, que entrou um pouco depois, é a enóloga residente.

Como a produção de uva não estava a acompanhar, também foi preciso fazer alterações na viticultura. A Barrosinha produzia uva a partir de uma vinha de sequeiro com 100 hectares, com mais de 30 anos, cujos rendimentos estavam abaixo do desejado. Por isso, foi iniciado um processo de mudança da zona produtiva para terrenos de cota mais baixa da herdade, junto ao rio Sado, onde há disponibilidade de água para assegurar uma produção mais estável e volumosa todos os anos. A vinha nova tem actualmente 15 hectares, três dos quais plantados em areias e os restantes 12 sobre solos argilo-calcários, segundo conta Sara Carapinha. Revela também que as mudanças climáticas estão a afectar o ciclo da videira na Barrosinha, e “a vindima, que habitualmente começava em meados de Setembro, inicia-se agora um mês antes”. Para além disso, “castas que habitualmente eram colhidas no fim, acabaram por ser as primeiras”, revela. Foi o que aconteceu com a Alicante Bouschet, habitualmente a última a ser vindimada e este ano a primeira na vinha de sequeiro da Barrosinha.

A colheita iniciou-se a 16 de Agosto, como habitual pelas castas brancas e pelas tintas destinadas à produção de vinho rosé. Mas o grau álcool teimou um pouco em evoluir nestas últimas, “o que nos trouxe um sentimento de incerteza”, diz a enóloga, acrescentando que 2022 foi um ano muito atípico, completamente diferente dos anteriores, apesar de a produção dos cerca de 100 hectares de vinha ter sido de 320 toneladas de uva, volume significativamente superior ao habitual, que rondava entre 180 e 200 toneladas, valor muitíssimo baixo. A vindima na Barrosinha é feita casta a casta e à máquina, porque não é fácil arranjar mão de obra para colher as uvas. Para além do Alicante Bouschet, na vinha da Barrosinha pode encontrar-se Castelão, Trincadeira, Cabernet Sauvignon e Aragonez, entre as variedades tintas, sendo as brancas Fernão Pires, Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Moscatel.

O mais recente Grande Reserva tinto da empresa foi produzido com uvas das castas Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon “porque dão vinhos com mais personalidade, corpo e cor”, explica Sara Carapinha. Foram fermentadas em cubas argelinas, onde decorrem entre 80 e 150 remontagens durante os 8 a 10 dias em que decorre a fermentação, cuja temperatura é controlada por um tubo de refrigeração. Depois, estagia entre 16 a 18 meses em barrica, enquanto os vinhos vão sendo provados até à decisão do lote final que foi engarrafado.

Para a produção do lote do ano é sempre usado, como testemunho, o vinho do ano anterior, para que se equipare em termos de aroma e sabor, o que não significa, necessariamente, que tenha as mesmas percentagens de cada casta. “Temos clientes fiéis que não querem alterações no perfil do vinho”, explica Sara Carapinha, acrescentando que habitualmente se produzem entre 15 a 20 mil litros de Barrosinha branco e 20 a 23 mil de tinto. “O rosé é um pouco menos”. Esta e outras marcas são vendidas sobretudo nos concelhos de Alcácer do Sal e de Grândola, região onde a Barrosinha está inserida, mas também em Lisboa, sobretudo na restauração.

A casa faz também a marca dos Hotéis Nau, que pertencem ao mesmo grupo empresarial. “Depois temos a loja, que representa entre 20 e 25% das nossas vendas totais de vinhos em valor, conta Carlos Trindade, acrescentando que “foi uma conquista que aconteceu logo desde que a abrimos, porque as pessoas de Alcácer e de Grândola voltaram a comprar e beber vinhos da Barrosinha”.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

Grande Prova: Douro tinto – A classe de uma região sem igual

Grande Prova Douro

É impressionante, como o Douro consegue ser uma das regiões mais completas no mundo. A fama dos Porto não impediu que a região crescesse enormemente na dimensão dos vinhos não fortificados. Os DOC Douro, e em particular os seus tintos, são hoje uma referência nacional e mundial. E como como a nossa prova o demonstra, […]

É impressionante, como o Douro consegue ser uma das regiões mais completas no mundo. A fama dos Porto não impediu que a região crescesse enormemente na dimensão dos vinhos não fortificados. Os DOC Douro, e em particular os seus tintos, são hoje uma referência nacional e mundial. E como como a nossa prova o demonstra, mais uma vez, a diversidade de estilos é acompanhada por um nível de qualidade ímpar.

Texto: Valéria Zeferino   Fotos: Ricardo Palma Veiga

Desde a demarcação de 1756, praticamente tudo girava à volta do vinho do Porto (chamado na altura “vinho de embarque”, mesmo não sendo aguardentado ainda) que deu a fama à região e era uma grande fonte de rendimento para a economia nacional. Ainda nos anos 30 do século passado, o vinho do Porto representava 75% das receitas do sector do vinho português.

Os vinhos não fortificados eram produção residual e tinham designações pouco apelativas, quase de desprezo, como “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo”, não ostentando nem denominação de origem, nem  regulamentação própria. Isto só aconteceu em 1982, quando “a designação “Douro” ficou reconhecida como denominação vinícola de origem, reservada aos “vinhos de consumo típicos regionais, brancos e tintos, tradicionalmente produzidos na mesma região demarcada que os vinhos do Porto”.

Antes disto existiam algumas marcas de vinhos de mesa. A Real Companhia Velha, por exemplo, tinha Grantom, Granléve e Evel (esta última marca, foi lançada em 1913 e existe ainda hoje) e Real Companhia Vinícola do Norte fazia Marquis de Soveral. Nos rótulos destes vinhos apareciam “tinto especial” ou “vinho maduro tinto” (para distinguir do Verde tinto, claro) e até “garrafeira”, mas nada de referenciar a região. Mesmo os primeiros Barca Velha também eram simplesmente “vinho tinto de mesa”.

A entrada de Portugal para a União Europeia em 1986 e o acesso a fundos comunitários deu o impulso importante aos produtores. A partir dos anos 90 e na viragem do milénio começa a moderna história dos DOC Douro, o que coincide com uma geração de novos enólogos, com formação universitária, talento e ambição e que hoje são bem conhecidos, mas na altura estavam a começar a sua aventura profissional. Jorge Moreira, Manuel Lobo, Francisco Olazabal, Tiago Alves de Sousa, Jorge Borges e Sandra Tavares da Silva, só para nomear alguns, que se vieram juntar aos pioneiros João Nicolau de Almeida ou José Maria Soares Franco, entre outros. Ao mesmo tempo, e na senda de nomes como Quinta da Pacheca ou Quinta do Côtto, aparecem os novos “vinhos de quinta”, como Quinta do Crasto, Quinta do Vale Meão, Quinta da Gaivosa, Quinta Vale D. Maria, Quinta do Vallado, Quinta da Leda, Pintas ou Poeira, muito deles tendo como mentor e impulsionador o visionário Dirk Niepoort.

O sucesso dos vinhos DOC e a crescente procura do consumidor pelos vinhos não fortificados motivaram várias casas produtoras de Porto a iniciarem-se nos vinhos de mesa. É o caso da Niepoort, Ramos Pinto, Quinta do Noval, Poças, Quinta do Vesúvio, entre outros. Mais tarde alguns pequenos produtores que forneciam uvas para o vinho do Porto aderem ao movimento e começam a criar marcas próprias.

Se no início, os vinhos do Douro entraram no palco internacional à boleia dos vinhos do Porto, ao longo das últimas décadas ganharam um lugar cimeiro alicerçado no mérito próprio. Não é de estranhar que, segundo os dados do IVDP, em 2021 a produção de vinhos com denominação de origem Douro tenha ultrapassado a produção do vinho do Porto, com 76.424.479 litros vs. 72.746.586 litros, respectivamente.

Os topos de gama com designações Grande Reserva e equivalentes representam 1,6% dos vinhos comercializados em volume e 5,7% em valor, com um preço médio de 16 euros por litro. Se bem que esta informação é relativa, porque nem todos os topo de gama do Douro ostentam estas designações de qualidade. A começar pelo próprio Barca Velha, mas também Chryseia, Quinta do Vale Meão, Poeira, Quinta do Vesúvio, Quinta da Manoella ou Pintas, entre muitos outros.

O Douro e a mudança

A mudança é inevitável e constante. Mudam as filosofias, práticas de viticultura, abordagens enológicas, hábitos de consumidores e os estilos de vinhos. E no meio disto tudo ainda acontecem as mudanças climáticas e as alterações demográficas na região que condicionam o resto.

Tiago Alves de Sousa, enólogo da nova geração da família Alves de Sousa, explica que nos anos 60 houve uma grande vaga de emigração que reduziu drasticamente a mão-de obra. O Douro precisava de soluções que passaram por mecanização, e acabámos por “adaptar a encosta à máquina”.

Nos anos 80 foi iniciado o chamados PDRITM, um programa de desenvolvimento assente em novas plantações e reestruturações da vinha existente, financiado com fundos comunitários. Mais tarde, passando o entusiasmo, ficou evidente o seu impacto ambiental negativo como a modificação de encostas, a alteração da sua cobertura vegetal e a erosão hídrica, que é um dos efeitos mais graves das plantações do PDRITM.

Há 25 anos as condições e os problemas eram outros: difícil maturação, falta de arejamento na vinha, muitas doenças – conta Jorge Moreira. “Importaram-se uma série de práticas e massificaram-nas rapidamente. A tradicional forma de condução das videiras, Guyot de tronco baixo, foi substituída pelo cordão bilateral ou unilateral. Na altura fazia sentido ter uma grande parede foliar para amadurecer cachos bem expostos. Agora não temos água para tanta folha. E temos de proteger os cachos da radiação solar e calores extremos”, continua o produtor e enólogo de Poeira, La Rosa e Real Companhia Velha. O cordão, devido a orografia e vinhas inclinadas, não permite escolher a exposição, e algumas vinhas apanham sol na mesma face do meio-dia até as 7 da tarde.

Já para Tiago Alves de Sousa, “o cordão é basicamente um painel fotovoltaico: pode ser bom para regiões com baixo nível de insolação, mas nós temos sol a mais. Com uma só camada de folhas o cacho fica mais exposto e vulnerável ao escaldão. No modelo Guyot, a vegetação envolve mais o cacho com 2-3 camadas de folhas e protege melhor.”

Para além disto, a poda em cordão implica muitos cortes na videira que são uma porta de entrada para as doenças do lenho. Exigência de produção e extensão de cordão acaba por esgotar a planta. Muitas vinhas plantadas há 20 anos nunca chegam a ser centenárias.

Alterou-se assim a forma de plantar vinha. Pelos viveiristas foram propagados os enxertos prontos para facilitar a plantação e diminuir a necessidade de mão de obra e o tempo que uma vinha leva a entrar em produção. Mas, dizem vários técnicos, parece que esta prática não ajuda ao desenvolvimento de raízes.  Jorge Moreira descreve que o enxerto americano se regava cerca de 2 anos antes da enxertia, desenvolvia raízes, e esperavam-se mais 3 ou 4 anos para a formação da planta. Agora com rega em 3 anos pomos a planta a produzir. É mais rápido, mas as raízes acabam por não ser bem desenvolvidas e os exertos prontos têm maior tendência para doenças de lenho. Nas vinhas velhas não se encontram tantas.

Os porta-enxertos também são diferentes do tradicional. Segundo Tiago Alves de Sousa os porta-enxertos tradicionais (Rupestris du Lot, chamado “Montícola”) que quebra o xisto, mas induzia vigor vegetativo e a produção não acompanhava, foram substituídos por outros, que são todo-o-terreno e com maior potencial produtivo. As produções por videira duplicaram ou triplicaram, o que altera, naturalmente, as caracteristicas qualitativas das uvas no final da maturação. Para contrariar este efeito e amadurecer cachos mais abundantes, é necessária uma parede vegetativa mais ampla. E chegámos a um círculo vicioso.

Grande Prova DouroOs desafios actuais

Os grandes desafios do Douro, actualmente: situações mais extremas, temperaturas mais altas, invernos mais secos que não repõem os níveis de água no solo e as precipitações mais agrupadas (cai uma grande quantidade de chuva em pouco tempo). A queda de granizo tornou-se numa constante anual. O ano de 2020 – foi continuamente seco, o 2022 também, exemplifica Manuel Lobo, enólogo da Quinta do Crasto. As vinhas velhas aguentaram-se melhor e pela primeira vez viram-se muitas videiras do PDRITM secas, não se sabendo se vão rebentar para o ano.

“A frequência e a duração de ondas de calor aumentou”, acrescenta Tiago Alves de Sousa, – “este ano não foi uma onda, foi uma maré de calor com o impacto forte nas maturações.”

Quando, no final dos anos 90 início dos 2000 se começou a falar da questão da rega, a maioria dos produtores era contra. Discutiam-se várias questões, sociais, económicas, etc., menos a questão técnica. Depois dos anos muito secos como 2015 e 2017, percebemos que temos mesmo de regar, mas outra questão se coloca agora – com que água?

Num mundo ideal, a rega é uma ferramenta poderosíssima, mas a água é um bem cada vez mais escasso. Por outro lado, a rega não é um penso rápido. Há formas de diminuir perdas de água por transpiração, por exemplo, a sombra no próprio solo diminui a evaporação. A plantação com densidade mais elevada também estimula o enraizamento, obrigando a raiz ir ao fundo por falta de espaço ao lado e ter acesso à água durante mais tempo.

Manuel Lobo explica que no Douro Superior, a vinha da Cabreira tem rega instalada que garante homogenidade produtiva e estabilidade qualitativa. Mas a viticultura de precisão é essencial. Usam sondas para obter informação e perceber qual é a capacidade de campo, quanto tempo a água se vai manter no solo e qual é a quantidade disponível para a planta e o consumo da própria planta.

“Não há uma solução universal que sirva para tudo”, – aponta Jorge Moreira. “Se seguirmos uma política mais intensiva na produção, temos que assumir que vamos ter de replantar a cada 20 anos”, refere.

Na casa Alves de Sousa, desde 2014 plantam vinha tradicional com bacelo e porta-enxerto antigo, de alta densidade em Guyot duplo, com co-plantação de castas (cerca de 15) a apontar para 8 mil videiras/ha. Uma espécie de “novas vinhas velhas”. “O factor mão-de-obra não pode ditar-nos como plantar” – defende Tiago. Plantam assim a vinha a pensar nos próximos 100 anos. A zonagem correcta é importante, considera Tiago Alves de Sousa. Há castas que estão plantadas nos sítios errados e em vez de fazer um pouco de tudo em todo o lado, tem de se prestar mais atenção às condições de cada zona específica. Ele também acredita que com desenvolvimento científico e experimental, vão surgir novas oportunidades, como por exemplo, o uso de drones agrícolas.

Vinhas e castas

 A vinha na região do Douro ocupa mais de 43.000 ha, com a maior parte na sub-região de Cima Corgo com mais de 20.000 ha, cerca de 13.000 ha no Baixo Corgo e cerca de 10.000 ha no Douro Superior – dizem-nos os dados mais recentes do IVDP.

As castas tintas mais plantadas no Douro são Touriga Franca que ocupa 23% de plantação, Tinta Roriz com 16,4%, Touriga Nacional com 10,6% e Tinta Barroca com 7,4%.  É um facto que as castas do Douro sempre foram pensadas na óptica do vinho do Porto. Quanto ao estudo de castas, no ultimo relatorio da Estacao Vitivinicola (então já designada por CEVD), elaborado em 1979 pelo Engº Gastão Taborda (o grande responsável pela recuperação da casta Touriga Nacional graças a inúmeros estudos experimentais que realizou sobre as castas do Douro) escreveu: “O número exageradíssimo de castas de uvas para vinho existentes na Região – mais de 130 – constitui um dos problemas mais graves e difíceis de resolver, mas que é preciso encarar a sério, dada a influência que a casta tem na qualidade do Vinho do Porto.”

A pouco e pouco, o universo das 70 castas tintas e 50 brancas foi grandemente reduzido, ao ponto de quase se resumir às 5 castas seleccionadas, que se encontram em maioria no encepamento e formam o blend típico dos DOC Douro (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão). E a verdade que as mesmas castas também produzem óptimos vinhos do Douro, complementando-se em qualidades.

A Touriga Franca, basicamente é a coluna dorsal de um lote, dá dimensão e volume. Tem uma película mais espessa, a folha é mais rugosa, o que permite aguentar melhor o stress hídrico e térmico, “só é pena não ter acidez da Touriga Nacional”, diz Manuel Lobo. Tiago Alves de Sousa acrescenta que a Touriga Franca é mais sensível ao stress térmico do que ao stress hídrico. Com o calor, pode chegar até 10-10,5% de álcool provável e de repente pára.  Algumas nem com a chuva recuperam.

Já a Touriga Nacional confere frescura, elegância e também alguma estrutura. É muito flexível na adega. No entanto, exige algum cuidado com exposição solar para evitar que as folhas de base sequem e que fique com aromas sobremaduros. A Tinta Roriz nunca foi consensual. Tem um teor de tanino muito alto e quando produz em demasia, não amadurece bem e é muito dependente do terroir. Por isto raramente tem um papel a solo, mas há excepções, como é o caso da Quinta Nova e da Quinta do Portal, sendo ambos os vinhos excelentes exemplos da casta.

A Tinta Barroca é uma uva precoce, ganha açúcar elevado e perde acidez, ainda por cima, tem pouca cor. É importante para o vinho do Porto de estilo tawny, mas a sua participação nos topos de gama do Douro é muito reduzida. O Tinto Cão é o oposto da Tinta Barroca – casta muito tardia de ciclo longo e preserva bem a acidez; tem tanino notável, produz vinhos com frescura e algum potencial de envelhecimento. No entanto, nem todos os produtores apostam nesta casta. Manuel Lobo, por exemplo, acha que em termos enológicos não é muito interessante, adapta-se melhor para rosés.

As vinhas velhas com castas misturadas ainda se encontram em vários encepamentos no Douro e espelham o notável património varietal da região. E o DOC Douro foi a primeira denominação de origem em Portugal a regulamentar a designação “Vinhas Velhas” (com mais de 40 anos). A Quinta do Crasto foi a primeira no Douro a introduzir a menção Vinhas Velhas no rótulo (até chegou a ser marca registada…) e a produzir e comunicar, desde 1998, os vinhos das centenárias e famosíssimas Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa.

Hoje o Crasto faz tudo para preservar estas vinhas. Manuel Lobo conta que identificaram 54 genótipos na parcela Maria Teresa (com 111 anos). Dispõem da sua base genética e do campo de multiplicação, onde ficam os bacelos. Isto para garantir que quando é necessário substituir uma planta, o mesmo genótipo é plantado na mesma coordenada GPS.

Os vinhos das vinhas velhas são muitas vezes vistos pelo produtor e pelo consumidor como vinhos de qualidade superior pela sua autenticidade e pela história que contam. E nesta prova houve muitos belíssimos exemplos. Entretanto, é preciso lembrar que estes vinhos precisam de uma abordagem correcta nas adegas. Como muitas vezes têm castas com pouca estrutura, não aguentam muito tempo em barrica, sobretudo nova e com muita tosta. Perdem a sua autenticidade e delicadeza. Também tivemos em prova casos destes.

Grande Prova DouroO estilo dos vinhos

O estilo de vinhos no Douro também está sujeito a mudanças. Já passou por uma fase de robustez, concentração e grande extracção. Basicamente, era uma versão seca dos vinhos do Porto. O uso de madeira, até há bem pouco tempo, também era excessivo. Aprendeu-se aplicar o estágio em barrica com parcimónia, e introduziram-se vasilhas de madeira de maior capacidade, para marcar menos o vinho. O momento certo de vindima em função da casta e da parcela tornou-se um ponto essencial. Os vinhos tendem hoje a ser mais frescos, mais leves, com menos extracção e concentração.

Jorge Moreira conta a sua experiência na Quinta de La Rosa e na Real Companhia Velha: “antes a extracção era total e profunda, agora cada vez mais usam bagos inteiros, cachos inteiros, prensam mais cedo, não deixam extrair tanto em macerações longas. Mesmo no seu Poeira, que começou há 20 anos e já na altura era um dos vinhos mais leves, frescos e ácidos do Douro, ele releva a diminuição da extração e acentuar frescura. As alterações no estilo e perfis dos vinhos, no entanto, devem sempre ter em conta as características da região, das suas uvas, do seu clima, do seu solo, no fundo a sua identidade, aquilo que faz os Douro cheirarem e saberem a Douro. “Não podemos exagerar e procurar fazer de um Douro um Borgonha”, alerta Manuel Lobo. E com inteira razão.

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2022)

 

Passarella: Saber e tradição da Serra

casa da passarella

O lançamento oficial do Casa da Passarella Vindima 2011 foi o pretexto para este produtor da serra da Estrela mostrar as novidades da quinta. Entre vinhos recém chegados e promessa de outros, a vitalidade da empresa é uma realidade. Texto: João Paulo Martins   Fotos: Anabela Trindade/Abrigo da Passarela Esta quinta do Dão, situada na sub-região […]

O lançamento oficial do Casa da Passarella Vindima 2011 foi o pretexto para este produtor da serra da Estrela mostrar as novidades da quinta. Entre vinhos recém chegados e promessa de outros, a vitalidade da empresa é uma realidade.

Texto: João Paulo Martins   Fotos: Anabela Trindade/Abrigo da Passarela

Esta quinta do Dão, situada na sub-região da serra da Estrela, tem sido amiúde objecto de notícias, sempre por boas razões. Trata-se de uma propriedade antiga, mais propriamente 130 anos, ao que nos foi dito, estendendo-se os vinhedos por inúmeras parcelas espalhadas nos 100 ha da quinta. Renovar e dar nova vida a estas vinhas e dar o salto para um hotel rural a funcionar na antiga casa da quinta são os objectivos do novo proprietário, personagem que faz questão de se manter distante da comunicação social ou destes eventos de apresentação de novidades, o que se respeita.

casa da passarella

Uma velha quinta produtora tem necessariamente tradições, hábitos e formas de fazer que podem ter duas leituras e dois destinos: o primeiro é o mais habitual: sim senhor, muito interessante, muito etnográfico mas vamos fazer a coisa em moldes modernos, ter uma vinha nova a produzir bem com castas que nos interessam e uma adega adequada e preparada para receber as novas tecnologias; o segundo destino é menos espectacular: vamos tentar perceber o que aqui se fazia, vamos olhar para o património com olhos do séc. XXI mas na perspectiva de conservar o que for de conservar; na adega a mesma coisa – manter o que for útil, descartar o que já não serve. Paulo Nunes está aos comandos da enologia desde que esta nova história da Passarella se iniciou nos anos 90 e a sua perspectiva e o seu olhar sobre todo o projecto “encaixam” no segundo modelo que acima referi: não estragar, não arrancar, não deitar abaixo, não cair na ditadura da folha Excel, manter, inclusivamente, as pessoas que são as guardiãs das memórias da casa. É o caso da adegueira que lá trabalha há já muitos anos, filha de adegueira e neta de adegueira. Como nos diz Paulo, “há um saber empírico que vai passando de geração em geração e temos de ser capazes de saber ouvir”. Depois, dizemos nós, há que ir para casa pensar e dormir sobre o assunto para perceber o que é de manter e o que há que alterar. Sabendo-se que “naquelas terras serranas fazer vinho é uma consequência de estar vivo”, há sempre muito para ouvir e entender. Também porque a perspectiva de Paulo Nunes quanto ao vinho é muito clara quando diz, “não nos interessa fazer um vinho perfeito mas sim criar um vinho que respeite o saber e a tradição da casa”. Quase me apetecia aqui adaptar a frase, que já está no altar das frases célebres do mundo do vinho, um dia proferida por Aubert de Villaine, co-proprietário do Domaine de la Romanée-Conti, a mítica propriedade da Borgonha: “Eu não sou enólogo, sou apenas o guardião do terroir!” A atitude de Paulo Nunes sugere algo de semelhante: manteve vinhas que estavam na calha para serem arrancadas, conservou as velhas cubas de cimento e os lagares da adega e está a tentar que o perfil dos vinhos desta nova era sejam o espelho da fama e glória passadas. Pelo que temos visto e provado, a missão está ser levada a bom porto.

Novas castas, histórias velhas

O encontro em Lisboa teve lugar a 12 de Outubro, o primeiro dia que se seguir ao fecho da vindima, uma vez que no dia anterior ainda estavam a entrar uvas da casta Baga, curiosamente com apenas 12% de álcool provável; o facto tem alguma graça porque a Baga, ainda que nascida no Dão, foi na Bairrada que encontrou o seu ambiente preferido e os varietais de Baga são praticamente inexistentes no Dão. Paulo, porém, adianta que irá sair um Baga na colecção Fugitivo.

No momento tivemos duas estreias absolutas: um branco de Barcelo e um tinto de Pinot Noir. Barcelo, diz-nos Paulo Nunes, estava, juntamente com a casta Dona Branca, na base dos principais lotes de brancos do Dão, segundo Cincinato da Costa (em 1900). O interesse enológico da casta levou a que se plantasse, já há dois anos, mais um hectare para manter a produção no futuro. A casta, que não tem sinonímia, sobrevive na Passarella numa parcela que tem agora 80 anos. No estágio deste vinho apenas utilizam barricas com muito uso, por forma a manter toda a delicadeza aromática e o perfume que este vinho exala.

A outra novidade foi o Pinot Noir. A casta era muito antiga na quinta e, dada a localização da vinha, era uma casta precoce e usada para fazer um “pé de cuba” que funcionava como concentrado de leveduras que ajudava despois ao arranque da fermentação dos volumes grandes. A vinha que deu origem a este vinho foi plantada em 2008 e na confecção usou-se algum engaço por forma a conferir ao vinho um carácter mais vegetal e um pouco mais rústico, ou seja, mais próximo do modelo inspirador, os tintos da Borgonha. Também este tinto vai passar a ter produção anual.

Um dos vinhos que foi apresentado tem já estatuto de habitué: o branco de curtimenta, cuja primeira edição remonta há 10 anos. Trata-se de um vinho de homenagem, já que até há 40 anos era assim que se faziam os vinhos brancos, com as películas a fermentaram juntamente com o mosto. O resultado é um branco carregado na cor, todo ele a transpirar rusticidade. Quando sai do lagar está castanho de cor mas, segundo Paulo, “com dois invernos em cima a cor cai muito e fica com este tom alaranjado”. É de tal forma diferente dos actuais brancos que virou uma curiosidade, com muitos adeptos. É sempre um branco difícil, mas com inesperada capacidade de ser bom parceiro à mesa.

O Villa Oliveira Encruzado, verdadeiro porta-estandarte da empresa, nasceu na colheita de 2011 e tem, em cada ano, origem em parcelas diferentes, conforme a maturação. É já hoje uma referência obrigatória dos brancos do Dão feitos com a casta-rainha da região. E para completar a apresentação tivemos “o vinho que aqui nos trouxe”, o Casa da Passarella Vindima 2011, em segunda edição, após a estreia com o 2009. O longuíssimo tempo de estágio em garrafa é a sua principal característica e, pensado que está para viver muito tempo em cave, todas as garrafas foram re-rolhadas já este ano. Um método que se aplaude e que bem podia encontrar seguidores noutras casas produtoras. Com o hotel em fase final, é caso para dizer que não faltarão motivos para ver e rever os segredos da Passarella.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2022)

Furtiva Lagrima: A voz de um Alentejo improvável

Alentejo Furtiva lágrima

Projecto de nicho, o topo de gama do produtor Monte da Raposinha já se espraia por 7 edições que alcançaram o aplauso da crítica e do consumidor. Falamos do tinto Furtiva Lagrima, uma marca cujo percurso se iniciou em 2007 num “Alentejo improvável”. Provámos todas as colheitas e os vinhos mostraram-se em grande forma. Texto: […]

Projecto de nicho, o topo de gama do produtor Monte da Raposinha já se espraia por 7 edições que alcançaram o aplauso da crítica e do consumidor. Falamos do tinto Furtiva Lagrima, uma marca cujo percurso se iniciou em 2007 num “Alentejo improvável”. Provámos todas as colheitas e os vinhos mostraram-se em grande forma.

Texto: Nuno de Oliveira Garcia   Fotos: Monte da Raposinha

Recordo-me bem dos primeiros vinhos que provei do Monte da Raposinha, e de quanto curioso fiquei sobre este terroir em pleno norte Alentejo, mas territorialmente situado entre as cidades de Portalegre e Santarém. É, com efeito, um local de transição e sem presença massiva de vinhas. O Monte de Raposinha está localizado apenas 500 metros a jusante da barragem de Montargil, sendo que, como nos revela João Nuno Ataíde, essa proximidade à barragem faz com que sejam frequentes nevoeiros até meio da manhã, aportando frescura aos vinhos, mas já lá iremos…

Alentejo Furtiva lágrima

Comecemos, então, pelo nome do monte: em criança, Rosário Ataíde, actual proprietária e mãe de João Nuno Ataíde – gestor executivo do projeto –, era carinhosamente apelidada pelo seu pai de “Raposinha”, daí o nome da propriedade e de alguns dos vinhos. Ou seja, é uma homenagem ao próprio pai (e avô) mas também a toda a família. Temos, portanto, um verdadeiro lugar de família, e tudo isto antes de existir qualquer pé de vinha plantado. Por falar de vinha, os primeiros 2 hectares foram plantados apenas em 2005, tendo existido posteriores plantios em várias fases, as últimas das quais em 2010 e 2014. Actualmente, o total de vinha é de 15 hectares, menos de 10% da dimensão da propriedade, dos quais a clara maioria é tinta, sendo que parte conta com certificação biológica e a restante área está em transição. Nas tintas, encontram-se plantadas Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet e Trincadeira, enquanto nas brancas (cerca de 1/5 da vinha) produz-se Arinto, Antão Vaz, Viosinho e Chardonnay. Existe também produção de azeite, actividade de enoturismo com alojamento local e loja. Com o projeto vitivinícola em movimento, que inclui rega por parcelas, construiu-se uma adega que, descrita pela enóloga Paula Bragança, é “simples, prática e funcional”. Paula e João Nuno são casados (reforçando o lado familiar do projecto) e, no final do dia, são o duo responsável por todas as principais decisões no que aos vinhos diz respeito. Referimo-nos a 100.000 garrafas produzidas por ano, dispersas por 3 gamas fixas: Raposinha (gama de entrada), Monte da Raposinha e Athayde Grande Escolha (premium e ultra-premium) e Furtiva Lagrima (topo de gama). Existem ainda edições especiais, sem regularidade programada, caso das marcas Ensaio (o nome diz tudo…) e Maria Antonieta, este um Touriga Nacional de uma parcela de areia e calau rolado, sem fermentação nem estágio em barrica (ambas por nós provadas, recordamos as edições de 2013 e 2017). Actualmente a produção divide-se equitativamente entre mercado nacional e exportação, sendo os principais mercados, depois de Portugal, o Brasil e a Suíça.

No que ao Furtiva Lagrima diz respeito, o nome advém da aria do compositor G. Donizetti, invocando-se a elegância, mas também vigor desta obra, tão cara ao pai de João Nuno e ao próprio (ambos melómanos com vocação interpretativa). As primeiras edições deste topo de gama – as de 2007, 2009 e 2010 – eram um lote de Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet, sendo que, ano após ano, esta última casta foi ganhando protagonismo, até se tornar monocasta (as últimas 3 colheitas são mesmo 100% Alicante). A fruta advém sempre da mesma parcela de 0,5 hectares de Alicante Bouschet. Plantada em 2010, mesmo por detrás da adega, em solo franco-argilo-arenoso, a parcela conta com um clone diferente das demais parcelas com a mesma casta. A uva francesa dá-se bem no Alentejo, já sabemos, e aqui um pouco mais a norte o mesmo sucede. Não há altitude, mas existe a frescura proporcionada pelos nevoeiros matinais a que aludimos no início deste texto (por sua vez, e ao invés, a Trincadeira sofre com o mesmo fenómeno climatérico). Com abrolhamento e floração precoces, nem sempre a maturação fenólica acompanha a maturação alcoólica, sendo essencial um grande controlo da produção (poda curta de 1 olho e monda de cachos), para que o Alicante não ultrapasse as 5 toneladas por hectare, para, assim, originar vinhos com qualidade e carácter para poderem ser Furtiva Lagrima. Na adega, para onde a fruta é transportada em caixas de 15 quilos, as fermentações alcoólica e maloláctica são feitas em inox, sendo depois trasfegado para barricas novas (ou novas e usadas, dependendo do ano) de 225 litros e de diferentes tanoarias. Até à edição de 2010, o estágio incluía uma parte em carvalho americano. Ao longo dos meses provam-se as barricas para selecionar as melhores que constituirão o lote de Furtiva Lagrima.

Alentejo Furtiva lágrima

Desde o início do projecto, e antes de Paula Bragança, passaram pela enologia os conceituados Carlos Magalhães e Susana Esteban, sendo que “a mão” de cada um (combinação de castas, escolhas de tipos de barrica) está evidente em várias colheitas do Furtiva Lagrima. Em todas as edições encontramos um vinho intenso e balsâmico, sem perder frescura ao longo das várias colheitas, e que provou evoluir muito bem em garrafa. Contudo, com a vinha a entrar numa idade já adulta, e um cada vez maior conhecimento da casta, não espanta que a edição de 2019 seja das melhores deste tinto. São 1500 garrafas de muito prazer, num perfil muito personalizado e de grande carácter.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2022)

 

Grande Prova: Espumantes de Portugal – A festa é quando alguém quiser

Grande Prova Espumantes

Não é preciso cantar os parabéns ou contar as batidas do relógio para abrir uma garrafa de espumante. Não é o espumante que é o atributo da festa, é a festa que se desenvolve em torno de uma garrafa de espumante, a qualquer momento. Se não há uma razão formal para festejar, o espumante só […]

Não é preciso cantar os parabéns ou contar as batidas do relógio para abrir uma garrafa de espumante. Não é o espumante que é o atributo da festa, é a festa que se desenvolve em torno de uma garrafa de espumante, a qualquer momento. Se não há uma razão formal para festejar, o espumante só por si já é uma, pois o pequeno fogo de artifício no copo traz o ânimo e cria o ambiente. Parafraseando Oscar Wilde, só as pessoas pouco criativas não conseguem encontrar um motivo para beber espumante.

Texto: Valéria Zeferino     Fotos: Ricardo Palma Veiga

A tendência mundial é o aumento do consumo do espumante. É um tipo de vinho que harmoniza com vida, oferecendo menos álcool e mais alegria, cativando as fracções mais jovens de população.

De acordo com o relatório da OIV de 2020, os cinco maiores produtores de espumantes a nível mundial são Itália com 27% (só o Prosecco corresponde a 66% de toda a produção de espumantes italianos, a juntar Franciacorta e Trento para os consumidores mais refinados), França com 22% (Champagne, claro, mais os cremants de outras regiões como a Alsácia, Borgonha, Loire e Bordeaux), Alemanha com 14% (já agora, é o pais onde mais espumante se bebe, sendo o nacional sekt o mais consumido), Espanha com 11% (onde o Cava assume 89% de produção) e Estados Unidos com 6%, sendo a Napa Valley a liderar nesta matéria.

Fora dos “big five” o maior crescimento em termos de produção de espumantes foi registado em Inglaterra, Portugal, no Brasil e Austrália. O crescimento no nosso país representa 18% ao ano.

Em Portugal, de acordo com os dados do IVV relativamente aos vinhos espumantes e espumosos (estes últimos são vinhos gaseificados cuja efervescência é produzida pela introdução de gás carbónico) a exportação dos espumantes nacionais está a aumentar, em volume e em valor, nos últimos 6 anos (até 2020), embora o preço médio não varie muito, mantendo-se à volta dos 3,35 euros/litro.

Na Bairrada certifica-se quase 40% dos vinhos com bolhas (embora, presumo, que se desta equação retirar os vinhos espumosos, a quota de espumantes da região vai chegar aos 53% comunicados pela CVR Bairrada). Em Távora-Varosa certifica-se 25%, tendo o segundo maior peso na produção de espumantes portugueses. O Tejo aparece com quase 22% e a região dos Vinhos Verdes também tem uma palavra a dizer com a certificação de mais de 9% de vinhos espumantes.

Regiões clássicas e promissoras

 Um dos pioneiros do espumante português foi o Engenheiro Agrónomo José Maria Tavares da Silva que começou aplicar o método champanhês (há algum  tempo, por imposição da CIVC – Le Comité Interprofessionnel du vin de Champagne, chamado “tradicional”) 1889-1890 como director da Escola Prática de Viticultura e Pomologia da Bairrada. E em 1893 fundou-se a Associação Vinícola da Bairrada com o objectivo produzir e comercializar “vinhos espumantes typo champagnes”, onde o Engº Tavares da Silva era director técnico. Ao mesmo tempo o enólogo da Real Companhia Vinícola do Norte, visconde de Villar d’Allen, também começa a produzir espumante. E poucos anos mais tarde as Caves Raposeira juntam-se à festa.

A seguir à Segunda Guerra Mundial foi fundada a Murganheira em Távora-Varosa, desde então o porta-estandarte desta região, demarcada em 1989.

No mundo do vinho as tradições nem sempre coincidem com a sua fixação formalizada. Na Bairrada, por ironia de destino, os espumantes só obtiveram o estatuto DOC em 1991, mas 130 anos de tradição ninguém lhes tira. Não é por acaso, que em Julho deste ano a Bairrada foi a anfitriã da primeira sessão de espumantes do reputado Concurso Mundial de Bruxelas (que, por tradição, é realizado em sítios diferentes com especialização em determinados tipos de vinhos). E os espumantes portugueses projectaram uma imagem muito boa nesta competição.

Em 1989 foi fundada em Alijó a empresa Caves Transmontanas que apostou no estudo do melhor local para plantação das vinhas e das castas mais apropriadas, com o único objectivo – criar grandes espumantes em Portugal.

A partir dos anos 1990 a região dos Vinhos Verdes entra em jogo. Com clima ameno, solos graníticos e castas com grande estrutura ácida e baixo teor alcoólico – têm todas as condições para se afirmar neste nicho. A Casa da Tapada foi a pioneira, numa altura em que os espumantes locais nem tinham direito à DO, o que só ficou possível a partir de 1999. Em Monção e Melgaço na viragem do século o Alvarinho apresentou-se numa versão efervescente pela Provam, Soalheiro e Quintas de Melgaço.

Com proliferação de “bolhas”, os vinhos espumantes têm vindo a crescer em Portugal em todas as regiões. Algumas empresas começam a produzir espumantes para completar o portefólio, mas como a prática mostra, produzir bolhas é fácil, criar um espumante de qualidade superior exige conhecimento específico e experiência.

As castas do espumante

 Parece unânima a predilecção dos produtores portugueses pela Chardonnay e Pinot Noir, quando se fala dos espumante de qualidade excepcional. Mario Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, afirma que “Chardonnay dá uma cremosidade única”, por isto mesmo sendo fiel às castas bairradinas, no seu espumante Pai Abel com Bical (maioritariamente) e Cercial acrescentou 15% de Chardonnay.

Luís Pato, repetindo a experiência de plantar Baga em pé franco no solo arenoso que deu vinho excepcional, em 2015 plantou Bical (a casta que gosta muito) num terreno arenoso junto à adega e fez o primeiro espumante de grande personalidade proveniente desta vinha, numa edição ultra-limitada de 333 garrafas.

A Baga tem, naturalmente, um grande peso na Bairrada. Sendo uma casta de maturação tardia e com boa capacidade de preservar acidez, presta-se muito bem para elaboração de espumantes, sobretudo no clima da Bairrada, onde este amadurecimento traz mais uma vantagem – a estratificação de vindima em função do propósito final.

A casta Alvarinho é uma nova estrela na região de Vinhos Verdes, sobretudo em Monção e Melgaço, ainda não em termos de quantidade, mas sem dúvida, em termos de qualidade. A casta consegue juntar duas dimensões, importantes para o espumante: o volume de boca e a óptima estrutura acídica. Obviamente tem carácter varietal vincado, mas numa vindima mais precoce para espumantes, os compostos aromáticos ainda se encontram em muito menor quantidade do que mais tarde na maturação plena. Por isto é possível obter espumantes com grande equilíbrio aromático.

Nas zonas quentes, como Alentejo, o Arinto desempenha um papel importante, graças ao seu perfil aromático bastante neutro e à grande capacidade de reter ácidos.

Pedro Guedes, enólogo da duriense Caves Transmontanas, para além Pinot Noir e Chardonnay destaca o Gouveio pelo excelente equilíbrio entre ácido natural e álcool, não sendo uma casta particularmente aromática.

Mas o sítio é mais importante do que a casta – afirmam todos.

Grande Prova EspumantesO que é preciso garantir

 O que não se pode subestimar para produzir um espumante de grande elegância e carácter, são as uvas e o tempo de estágio com borras. Mas há muitas pequenas nuances que podem fazer diferença no resultado.

Pode parecer banal, mas um grande espumante é antes de tudo feito com uvas e o perfil e qualidade da matéria-prima é primordial. Por um lado, as uvas que dão origem ao espumante têm de ser preferencialmente neutras nos aromas que apresentam no vinho base (a menos que se pretenda um espumante deliberadamente aromático). Por outro lado, é importante que demonstrem alguma personalidade, sendo minimamente expressivos. E o ponto de maturação é essencial. As uvas colhidas de propósito para espumante não são a mesma coisa que as uvas imaturas, que darão aromas vegetais e herbáceos. Ao invés, as uvas sobremaduras produzirão um vinho pesadão, alcoólico e aromaticamente excessivo.

Nas regiões mais frescas torna-se mais fácil conseguir este equilíbrio de maturação. Em Portugal uma moderação do clima consegue-se ou através da forte influência atlântica (Bairrada, Vinho Verde, Lisboa), ou pela altitude (acima dos 500 metros) com clima mais continental, como é o caso do Douro e Távora Varosa, onde hoje são produzidos alguns dos melhores espumantes portugueses.

A enóloga da Murganheira, Marta Lourenço, confessa que está apaixonada pela região da Távora-Varosa. Tem ali condições especiais para elaborar espumantes, onde as castas Chardonnay e Pinot Noir com 11% de álcool provável apresentam 24 g/l de ácido tartárico e pH 2,7 – valores fantásticos para a elaboração de um vinho base de espumante.

A sanidade das uvas parece estar muito distante dos copos elegantes com bolhas, mas é absolutamente indispensável. A presença de botrytis cinerea (fungo que provoca a podridão) pode ser desejável para colheitas tardias, mas pode arruinar um espumante causando um impacto negativo no aroma e nas propriedades efervescentes.

O bairradino Luís Gomes, produtor do Giz, ainda sublinha que “para quem quer produzir um bruto natural, sem adição de açúcar, a uva tem de ser muito boa, senão o espumante vai ser rude”. Tendo nível de sulfuroso baixo e teor alcoólico igualmente baixo no vinho base, para além da sanidade das uvas, a higiene na adega é um ponto fulcral , assim o define Pedro Guedes.

Prensagem, tiragem, leveduras

 A prensagem das uvas é um momento importantíssimo, confirmam Marta Lourenço e Pedro Guedes. Os cachos vão inteiros para a prensa, com engaço que ajuda a drenagem, permitindo uma boa extracção a baixas pressões. Quanto mais fraccionado o mosto – melhor, permite uma gestão de lotes mais individualizada. À medida que a prensagem avança, a acidez diminui, o pH sobe e aumenta o teor de potássio e extracção de compostos fenólicos. O mosto fica menos elegante e mais susceptível à oxidação.

Marta Lorenço conta que rejeita o primeiro mosto lágrima, pois este contém sempre as impurezas, “é como se fosse lavar as uvas com o próprio mosto”. Esta fracção nunca entra nas categorias especiais. A fracção que vai logo a seguir é a melhor de todas, “produz vinhos com grande limpeza em boca”.

Para iniciar a segunda fermentação, que leva à produção de bolhas, é necessário introduzir ao vinho base licor de tiragem com leveduras e açúcar para as pôr a trabalhar. Luís Gomes está convencido de que a tiragem deve ser feita no inverno, com temperaturas ainda baixas, pois quanto mais lenta for a fermentação, mais fina fica a bolha. Se fazer a tiragem no verão, a segunda fermentação desenvolve-se muito rápido, produzindo uma bolha mais grossa.

Pedro Baptista, o enólogo da Cartuxa, faz a tiragem no início da primavera e Pedro Guedes em Maio, quando os vinhos estão a uma temperatura à volta de 14˚C pelo que não é preciso aquecê-los para arrancar a fermentação e a temperatura não está muito alta para a segunda fermentação ser demasiado rápida.

Tradicionalmente, para a segunda fermentação, usam-se as leveduras livres que obrigam aos processos típicos de remuage para a sua posterior expulsão do vinho. Este processo pode ser feito manualmente ou recorrendo a giropaletes. Já as leveduras encapsuladas (presas numa estrutura de alginato) são uma “invenção” relativamente recente. O alginato é suficientemente poroso e permeável para deixar uma troca de solutos (açúcar, álcool e outros produtos resultantes da autólise das leveduras), supostamente, eficiente entre o vinho e o interior das cápsulas. Estas leveduras encapsuladas facilitam todos os processos desde a sua introdução na garrafa até à expulsão da mesma. Ainda poupam espaço na adega, permitindo o armazenamento das garrafas em pilhas, sem necessidade de remuage manual ou o uso de giropaletes. Mas são, também, tudo menos consensuais.

Todos os enólogos com quem falei concordam que é uma solução interessante e prática para espumantes comuns e jovens, mas dispensam-na quando se entra no patamar superior. Para além de que há sempre um factor de risco associado de que algumas células de leveduras escapem do interior das esferas de alginato, contrariando as vantagens operacionais das leveduras encapsuladas. Mesmo produtores de espumante mais recentes, como a Cartuxa, torcem o nariz quando se coloca a hipótese de utilizá-las para espumantes com mais idade. Pedro Baptista confessa que os espumantes que provou com leveduras encapsuladas lhe evidenciaram menos complexidade aromática e menor volume de boca. Em resumo, existem neste momento duas (ou, melhor, três) grandes correntes nesta matéria: os que as usam para todos os espumantes; os que as usam apenas para os espumantes mais simples; e os que que não admitem um espumante “método clássico” com outras que não as leveduras livres tradicionais.

Grande Prova EspumantesFermentação e estágio

Se a primeira fermentação para o vinho base pode ser relativamente rápida, a segunda tem de ser lenta. É aqui que se começa a produzir a tão apreciada bolha fina com CO2 que não podendo escapar, fica diluído no vinho. Pedro Guedes aponta para cerca de 6 semanas a 13-14˚C, ganhando, em média, 1 bar por semana. As leveduras introduzidas na tiragem com açúcar, não têm vida fácil. Trabalham literalmente sob pressão, no meio com acidez elevada e pH baixo e ainda por cima já com álcool de cerca de 10,5-11,5% e com pequena dose de dióxido de enxofre (que terá de ser bem medida). Por isto é importante criar para elas as condições de equilíbrio, garantindo que a fermentação não amue e, por outro lado, não se desenvolva demasiado rápido. Neste sentido, até a posição das garrafas faz diferença. Há mesmo quem as prefira na posição vertical para limitar a superfície de contacto com o vinho, prolongando assim, o tempo de fermentação.

O espumante não gosta de atalhos e apela à paciência (e estofo financeiro) do produtor, pois o tempo afina. Vários processos acontecem no vinho durante o estágio e o mais importante é autólise – desnaturação das membranas das células levurianas e degradação da sua parede celular libertando para o vinho glucanas, manoproteinas, aminoácidos, péptidos e outras substâncias que têm impacto na complexidade aromática, sensação em boca e qualidade de espuma. Mas a autólise é um processo muito lento e não ocorre nos espumantes que estagiam apenas uns meses. Um espumante feito com mesmo vinho base que envelhece durante nove meses terá um perfil muito diferente de um vinho que é envelhecido vinte meses ou mais.

Os produtores sabem disto e não dispensam o factor tempo quando se trata de um espumante de topo. Para Pedro Baptista, o estágio mínimo não pode ser inferior de 18 meses, mas com 3-4 anos já se conseguem resultados mais interessantes. Nas caves da Murganheira, Vértice e alguns produtores da Bairrada, estagiam espumantes com borras por 6-8 ou mais anos.

Em Portugal o tempo mínimo de estágio para espumantes com denominação de origem e  elaboração pelo método clássico é de 9 meses. Por comparação, em Champagne, o tempo mínimo para a segunda fermentação e estágio em garrafa é de 15 meses para non-vintage e três anos para o Champagne datado. Mas em Poertugal também se caminha, progressivamente, para estágios mais prolongados. Por exemplo, para aumentar o potencial qualitativo dos espumantes com logomarca Baga/ Bairrada, a região alterou a lei inicial e determinou que, a partir de colheita de 2019, os produtores deverão respeitar o estágio de 18 meses depois da tiragem.

Para maximizar o contacto entre o vinho e as leveduras, nas barricas faz-se bâtonnage e nas garrafas de espumante faz-se poignetage – agitam-se as garrafas para pôr o sedimento em suspensão, provocando a desorganização celular e estimulando o processo autolítico, que melhora a complexidade aromática e a textura. Para as categorias especiais da Murganheira e do Vértice esse trabalho é feito 2-3 vezes por ano e, como é fácil calcular, exige muita mão-de-obra.

O nível de doçura no espumante é manipulado através de licor de expedição que é adicionado a seguir ao dégorgement. Antigamente o espumante bebia-se doce (até vinho do Porto se adicionava no licor de expedição), a tendência de hoje vem a “secar” as bolhas. Cada vez há mais produtores (Quinta das Bágeiras e o Giz, por exemplo) a fazer exclusivamente espumantes com dosagem zero, ou seja, sem qualquer adição de açúcar, apenas atestando as garrafas com o próprio vinho.

 Espumante na mesa e na cave

 Dada a sua acidez cintilante e sabor delicado, o espumante ganha a qualquer bebida no papel de aperitivo. Estimula o apetite e a apetência para a refeição. E há muitos espumantes, com suficiente corpo e estrutura para acompanhar toda a refeição. As bolhas não só oferecem um espectáculo dentro de um copo, criam sensação táctil em boca e transportam os aromas à superfície, onde os libertam no momento do seu colapso.

Usadas outrora, as tradicionais taças de champagne são demasiado largas e rasas para permitir às bolhas o “levantar voo” e perdem rapidamente os aromas, enquanto os flutes, sendo compridos, mostram a efervescência (e já agora permitem encher o copo com menos vinho dando a ideia de copo cheio), mas não deixam espaço para os aromas. Por isto muitos escanções e apreciadores de vinho hoje preferem usar o copo normal de vinho branco ou um flute próprio para espumantes em forma de tulipa. Em minha opinião, o espumante é muito mais interessante à mesa do que numa prova técnica, pois um simples facto de engolir (em vez de cuspir) o líquido efervescente contribui para uma plena percepção da sua cremosidade.

Ao contrário da prática habitual, as garrafas de espumante devem ser guardadas em pé, defende Marta Lourenço. Não estando em contacto com o vinho, não se alteram as propriedades mecânicas da rolha. Quando humedecida, ela não consegue expandir dentro do gargalo e o vinho deixa de estar protegido: entra o oxigénio e escapa o gás carbónico.

E como guardar um espumante depois de aberto? Não sei qual poderá ser a razão que leva alguém a não acabar uma garrafa de espumante… mas se tal acontecer, o melhor é fechar com uma daquelas rolhas que agarram o gargalo de garrafa e a fecham hermeticamente. É importante guardá-lo no frigorífico, pois com temperaturas baixas o gás carbónico fica mais diluído no vinho e conserva-se mais tempo. Mas o melhor mesmo é beber a garrafa aberta. E, como disse no início, não é preciso um pretexto. Basta querer.

(Artigo publicado na Edição de Novembro de 2022)

 

Johnny Graham: 50 vindimas a ouvir o Douro

vindimas douro

Cada vindima tem a sua história, cada uma diferente da outra, e se forem 50 então dá um romance. A olhar o rio e sentados na varanda da Quinta da Gricha fomos ouvir o muito que Johnny Graham tem para contar sobre uma vida dedicada ao Porto e ao Douro.    Texto: João Paulo Martins  […]

Cada vindima tem a sua história, cada uma diferente da outra, e se forem 50 então dá um romance. A olhar o rio e sentados na varanda da Quinta da Gricha fomos ouvir o muito que Johnny Graham tem para contar sobre uma vida dedicada ao Porto e ao Douro.

 

 Texto: João Paulo Martins          Fotos: Churchill Graham e Luís Lopes

Vindimas douro

“As quintas da Água Alta, Fojo e Manoella foram a fonte de uvas para os primeiros vinhos da Churchill Graham’s que foi, recorde-se a única empresa criada de raiz em 50 anos.”

Chegámos à quinta da Gricha ao final da tarde. Para se alcançar esta propriedade, que fica na margem esquerda do rio, acima do Pinhão e antes de se chegar à foz do Tua, percorremos uma estrada que, como se diz em Lisboa, parecia o Rossio às seis da tarde. O que acontece é que esta é a estrada que dá acesso a várias quintas, todas vizinhas umas das outras, e os nomes são todos sonantes: quinta de S. José, quinta de Roriz, quinta do Pessegueiro, quinta das Tecedeiras; mais à frente quinta da Vila Velha que pertenceu a James Symington. Foi então aqui, neste “coração” do Cima Corgo, que se materializou o sonho de Johnny Graham de ter uma quinta própria. Foi a minha segunda visita à propriedade, mas já lá vamos. Deixem-me jantar primeiro que ao saber que seria a cozinheira Fernanda a elaborar a refeição fiquei sem capacidade de raciocinar. É que a fama dela vem de longe e a sopa de lombardo trouxe-me à memória o que de melhor tenho no arquivo mental de sopas campestres; simplesmente divinal, aqui melhorada pela “técnica Churchill” de colocar uma colher de sopa de molho picante para alegrar e espevitar o conjunto. O molho é feito em casa, com o piri-piri colocado numa garrafa a que se junta Porto branco; deixa-se macerar um mês e só depois é usado. As várias garrafas na mesa dizem-nos que é prática habitual. Coisa séria. Noutro momento, as míticas pataniscas, a deixarem-me meio envergonhado, logo eu que até pensava que fazia umas boas pataniscas…

“A quinta da Gricha dispunha de vinhas velhas mas, sobretudo visando a produção dos novos vinhos, foram plantadas parcelas de Touriga Nacional e Touriga Francesa.”

Johnny Graham recebeu-nos na varanda sobre o Douro que é, na minha modesta opinião, a melhor parte da casa. Todo o interior foi remodelado e, da primeira para a segunda visita, foi notório que o bom gosto inglês marcou aqui presença: manteve-se o espírito da casa e da região, melhorou-se o que era de melhorar. Parece simples, mas é muito mais complicado do que se pensa. Ao longo das duas refeições que tivemos na quinta, Johnny fez questão de ir servindo alguns dos vinhos que fazem parte do arquivo da casa: branco de 2012, tinto de 2005, vintage 1985 e 1982, este o primeiro elaborado pela empresa criada em 1981. O ponto vínico mais alto de toda a visita foi o Graham 1966, o último feito pela sua família, provavelmente na quinta dos Malvedos, antes da empresa ser vendida à Symington. O 66 foi um ano clássico e este vintage disse-nos porquê, todo ele em elegância, em perfeita definição de fruta, com um balanço incrível ente polimento e concentração.

Recuemos então no tempo. A família de Johnny estava ligada ao vinho do Porto desde a primeira metade do séc. XIX, tendo vindo da Escócia para negociar em têxteis. Ele nasceu e cresceu nos lagares, no meio das rogas da vindima, a olhar para o rio ainda sem barragens e a ver os barcos rabelo a serem puxados à sirga, rio acima. Um tempo longínquo que a nova “arquitectura” da região mudou em definitivo. Quando chegou à altura de abraçar a profissão, Johnny percorreu um traçado variado, trabalhou na Cockburn’s de 1973 a 80 onde aprendeu com um dos nomes míticos do sector do Porto na segunda metade do séc. XX, John Smithes. À época ninguém falava de DOC Douro, de vinhos não fortificados ou, se se quiser, em “vinhos de pasto” como também eram conhecidos. Era de vinho do Porto que se falava. Mas a venda da Graham em 1970 deixou Johnny com a vontade de fazer a sua própria companhia, tarefa difícil uma vez que, para constituir uma empresa exportadora era preciso constituir um stock de 300 pipas de Porto, qualquer coisa como 150 000 litros. Difícil? Não, apenas praticamente impossível. Actualmente aquela quantidade baixou para metade, o que continua a ser muito complicado, ainda que não impossível. Mas Johnny arregaçou as mangas e contou com a colaboração do grande lavrador duriense Jorge Borges de Sousa que tinha um enorme stock de vinhos e que permitiu que a empresa arrancasse. E com a boa vontade de amigos que entraram para sócios, reuniu-se o capital necessário.

De Borges de Sousa até à Gricha

As quintas da Água Alta, Fojo e Manoella foram a fonte de uvas para os primeiros vinhos da Churchill Graham’s que foi na época, recorde-se, a única empresa criada de raiz em 50 anos. Não podendo usar a designação Graham para baptizar a empresa, por razões óbvias, o nome do célebre estadista britânico foi ser escolhido por via do apelido da mulher de Johnny. Nasceu então o primeiro vintage Churchill em 1982.

A história da empresa foi assim baseada nestas fontes de matéria prima durante década e meia. Com a morte de Borges de Sousa e sem acesso a propriedades fornecedoras de uvas uma vez que as três quintas foram divididas pelos herdeiros, colocou-se a questão de adquirir uma quinta e é assim que a Gricha chegou ao património Churchill em 1999. Com 50 ha de área e 40 de vinha estavam reunidas as condições para arrancar com vinhos de quinta e iniciar também a produção de DOC Douro, além de poder também fazer um Vintage de quinta. A propriedade dispunha de vinhas velhas mas, sobretudo visando a produção dos novos vinhos, foram plantadas parcelas de Touriga Nacional e Touriga Francesa, as novas coqueluches dos vinhos tintos da região. Mantiveram-se os lagares, datados de 1852 e é lá que, teimosamente, Johnny e Ricardo Nunes, o enólogo da casa, continuam a fazer os vinhos do Porto, sempre com pisa a pé. Ricardo confessa-nos que “enquanto for possível obter mão de obra vamos manter este sistema, costumamos ter um grupo que vem todos os anos fazer a pisa. Já no caso dos vinhos DOC optamos por fazê-los em S. João da Pesqueira.”

Desfiando histórias e memórias, a conversa com Johnny é fácil. Com ele partilhamos a paixão pelo vinho do Porto e pelo Douro. Só se torna difícil quando ele nos tenta convencer das maravilhas da sua outra paixão, o cricket, o tal desporto que ninguém aqui entende e que, ao fim de dois dias de jogo, ainda pode estar empatado. Ficamos contentes de saber que foi capitão da selecção portuguesa mas fica-nos a dúvida sobre onde foi buscar jogadores para constituir uma equipa, em terras onde os adeptos gostam mais de futebol do que da família (Johnny, isto é uma graçola…). Gostos…

O motivo do nosso encontro foi a comemoração das 50 vindimas de Johnny Graham, agora com a filha Zoe totalmente envolvida no projecto. Com o surgimento dos vintages Quinta da Gricha, com o primeiro a aparecer em 1999, o portefólio alargou-se. São vinhos totalmente diferentes, o Churchill mais clássico, bastante fechado em novo, e o Gricha mais elegante, talvez mais fino e com grande harmonia, mais preparado para ser consumido quando jovem.

Os vinhos têm agora nova apresentação e o momento foi também aproveitado para lançar um fantástico tawny 40 anos, uma estreia da casa em vinhos desta idade.

Cinquenta vindimas são muitas vindimas, são muitas noites mal dormidas e, actualmente, muito consulta a tudo quanto é site de informação meteorológica. Muito dificilmente iremos ouvir Johnny Graham falar de uma vindima igual a outra. Provavelmente o fascínio da profissão é exactamente nunca se saber o que vai acontecer até que as últimas uvas entrem na adega. E Johnny e a sua família têm tudo para continuar a olhar o futuro com esperança e optimismo.

 

Ramos Pinto: Celebrar o passado na vinha da Urtiga

Ramos Pinto Urtiga

A vinha tem mais de 100 anos e está incluída na quinta do Bom Retiro. Foi Adriano Ramos Pinto que a adquiriu em 1933. Frágil mas resistente, a vinha exige, de todos, os cuidados máximos para que a intervenção seja mínima. Uma carga de trabalhos que só a ideia, militante diríamos nós, da conservação do […]

A vinha tem mais de 100 anos e está incluída na quinta do Bom Retiro. Foi Adriano Ramos Pinto que a adquiriu em 1933. Frágil mas resistente, a vinha exige, de todos, os cuidados máximos para que a intervenção seja mínima. Uma carga de trabalhos que só a ideia, militante diríamos nós, da conservação do património, aliada à excelência vínica, pode justificar.

Texto: João Paulo Martins  Fotos: Ramos Pinto

O Verão corria seco mas quando visitámos a vinha da Urtiga o céu resolveu dar um ar da sua graça e brindou-nos com chuva. Da boa e da necessária, embora, como se imagina, já tardia para o que se podia esperar da vindima. Foi ali, mesmo no meio da vinha da Urtiga – parcela que integra a quinta do Bom Retiro – que iniciámos a conversa com a equipa da Ramos Pinto. Para o efeito a empresa deslocou para o centro da vinha da Urtiga uma mesa e uns copos para que o vinho fosse apreciado em seu sitio. A ideia era boa mas não previa a chuva e lá teve de vir uma emissária com chapéus de chuva para que tudo corresse bem. O que ali se passou foi um verdadeiro encontro civilizacional. As cepas, ali à nossa beira, respiravam ainda saúde apesar de serem maioritariamente centenárias; para as interpretar, conhecer, reconhecer e preservar havia ali um tablet onde tudo estava registado, a começar pela geo-localização de cada pé de vinha e as informações adicionais que se revelam da maior importância para a equipa de cuidadores daquela parcela. Que casta é, que vigor tem, quantos cachos produz, em que estádio fenológico se encontra ou a resistência à secura e à seca. Esta tarefa é igual para cada um dos 12 500 pés de vinha que ocupam os 3,4 ha da Urtiga. Temos então patamares com 200 anos, cepas com 100 e tecnologia do séc. XXI que, num futuro próximo, irá também incluir drones de alguma dimensão que farão transporte (caixas de até 40 kg) entre a vinha e a adega.

Bem perto da vinha encontra-se uma mata de medronheiros, reconhecida hoje como a última mancha original das matas de medronheiros que outrora povoavam grandes áreas do Douro. Ali ninguém toca, ali não está previsto plantar nada; apenas numa zona que, entretanto, tinha ficado a descoberto, foram plantadados mais 0,5 ha em velhos patamares pré-filoxéricos, idênticos aqueles onde estivemos sentados a ouvir as histórias da Urtiga. Para quem não está familiarizado com o conceito, os patamares pré-filoxéricos são muito baixos e apresentam-se agora com uma grande “desorganização”, bem diferentes dos muros dos terraços feitos após a filoxera, com os da Quinta do Noval, bem visíveis para quem passa na estrada.
Carlos Peixoto trata das vinhas e, como nos confessou, “adoro este trabalho, já ando cá há 44 anos e não me vejo a fazer outra coisa; ainda me consigo entusiasmar com cada vindima, cada poda, cada nova plantação. Este trabalho que estamos a fazer na Urtiga é notável, é uma revolução que traz para a vinha todos os novos conhecimentos de informática.” A Urtiga, confessa, não estava abandonada mas estava esquecida; “não era colhida quando devia, não tínhamos noção do que aqui havia; foi a partir de 2015 e 2016 que começámos a olhar para esta parcela com olhos de ver”. Jorge Rosas, actual CEO da Ramos Pinto lembra-nos que “em tempos a empresa já teve um Vinho do Porto com o nome Urtiga e que esta vinha era, como todas as vinhas velhas do Douro, usada para fazer vinho para Porto. As castas eram muitas e contámos 63. No entanto a Tinta Amarela é a mais representada e há 7 variedades que, juntas, representam 90% dos encepamentos. Às restantes, chamamos hoje, o sal e pimenta”. Das variedades, muitas delas com nomes estranhos, é sempre possível descobrir mais algumas que nunca tínhamos ouvido falar, como São Saul, Carrega Branco, Tinta Aguiar e Caramela. Ficámos também a saber que “a Tinta Amarela é por norma a casta mais representada nestas vinhas muito velhas”, diz-nos Peixoto.

Nos tratamentos da vinha estão a ser usados preparados biodinâmicos que são importados de França. Conta Jorge Rosas, “é um modelo que queremos aprofundar, mas sem preocupação de certificação. O caos burocrático que a certificação obriga leva-nos a fazer escolhas: queremos e acreditamos nas práticas mas não nos impomos a certificação e não alinhamos em fundamentalismos. O que é que adianta a vinha ser bio se depois não temos uvas?”, comentou. Uma equipa pequena muito dedicada a esta vinha e muitos cuidados na prevenção das doenças ajudam a que, de uma vinha tão pouco produtiva, saia um tinto que se coloca de imediato no patamar mais alto dos vinhos da empresa. Sobre o tema, Jorge Rosas, secundado por Ana Rato, responsável comercial comentam: “é verdade que colocamos o vinho num patamar muito alto de ambição e preço mas é também porque queremos, exactamente, que ele seja entendido como vinho muito especial que é. Temos mais de 100 mercados para onde vendemos vinho e este será por alocação. Não vai ser nada difícil colocar o vinho, até já houve importadores que nos disseram que podíamos enviar a quantidade que quiséssemos e que o preço não seria problema.”
Na véspera da vindima a equipa faz uma passagem na vinha e retira logo tudo o que não estiver em condições de ser vindimado. No dia seguinte vindima-se, faz-se nova selecção à entrada da adega onde os trabalhos são coordenados pelo enólogo João Luis Baptista. Após desengace, as uvas vão para o lagar para o primeiro corte (lagar com pisa a pé) e depois a manta vai sendo movimentada até ao momento da prensagem. De seguida é conduzido para tonéis de pequenas dimensões e 10% do vinho vai para barricas novas e por lá fica durante 16 meses. É nesta altura que se decide se o vinho tem a qualidade pretendida para ser Urtiga. Caso se entenda que não tem, entrará noutros lotes. O estágio prolonga-se por dois anos depois do engarrafamento. Resultaram, nesta primeira edição, 3100 garrafas, disponibilizadas em caixa individual.

Não foram encontrados produtos correspondentes à sua pesquisa.

Ravasqueira: A caminho da grandeza

Ravasqueira caminho sucesso

De 1 milhão de garrafas em 2016, para 8 milhões em 2021. A Ravasqueira tem traçado um percurso, desde a sua génese, não só de crescimento, mas também de criação de valor. Agora, prepara-se para subir mais um degrau: David Baverstock juntou-se à equipa como responsável de enologia, para arrasar nos vinhos de topo. Texto: […]

De 1 milhão de garrafas em 2016, para 8 milhões em 2021. A Ravasqueira tem traçado um percurso, desde a sua génese, não só de crescimento, mas também de criação de valor. Agora, prepara-se para subir mais um degrau: David Baverstock juntou-se à equipa como responsável de enologia, para arrasar nos vinhos de topo.

Texto: Mariana Lopes   Fotos: Igor Pinto

A origem é familiar, mas no DNA da Ravasqueira, o N significa negócio e o A, ambição. E é normal que assim seja, quando a assinatura é José de Mello. O grupo, com capital em várias empresas-chave em Portugal — como a CUF, a Brisa ou a Bondalti, entre outras — pegou no mesmo padrão de exigência que sempre exerceu nos outros sectores, e aplicou-o no projecto de vinho que nasceu com a compra de uma propriedade em Arraiolos, em 1943, por D. Manuel de Mello. O objectivo do patriarca, porém, era apenas ter um refúgio no Alentejo (que na altura não tinha vinhas), sobretudo para caçar e descansar, longe de saber que, décadas mais tarde, os seus descendentes teriam outros planos. Hoje, sob a alçada do neto Pedro de Mello e da égide “Ravasqueira Vinhos SA”, a Ravasqueira é um dos principais players na cena vínica nacional, de marcas reconhecidas pelos consumidores e com muito sucesso no canal off trade (pense-se em Guarda Rios, Coutada Velha e Dona Vitória), até à gama a que se referem como “luxury”. Esta última, está neste momento a atravessar uma fase de transformação, com reforço de investimento, o que se materializa na contratação de um dos enólogos mais respeitados no país, o australiano David Baverstock, que se vem juntar a Vasco Rosa Santos, enólogo da casa desde 2012 e actual Administrador de Operações. David chegou a Portugal em 1982, e passou por grandes casas como Symington, Quinta do Crasto e Esporão, onde esteve até há pouco tempo como responsável máximo de enologia.
Após o falecimento de D. Manuel de Mello, em 1966, o monte da Ravasqueira fica ao cuidado do seu filho José Manuel de Mello, que durante muitos anos se dedicou ali à agricultura e ao apuramento da raça do Cavalo Lusitano. Em 1996, quatro Cavalos Lusitanos do monte da Ravasqueira deram-lhe o título de campeão mundial de Atrelagem e, depois disso, em 1998, “como ele não sabia estar quieto, partiu para a plantação das primeiras vinhas, coisa em que já andava a pensar há um par de anos”, conta Pedro de Mello, um dos 12 filhos de José Manuel de Mello que cresceram na propriedade, actualmente presidente da Ravasqueira e vice-presidente do grupo. Na verdade, membros de outros ramos da família já estavam, nessa altura, na área do vinho, o que também teve influência na decisão de plantar vinha. Em 2001, José Manuel de Mello faz “uma primeira brincadeira, e põe os netos a pisar as uvas”, lembra o filho, o que deu origem a um vinho que nunca saiu para o mercado, rotulado como MR. Deu-se aqui o pontapé de saída para o negócio pois, na colheita seguinte, viria a produzir-se o primeiro vinho com objectivo comercial, o tinto Fonte da Serrana.
Com o desaparecimento de José Manuel de Mello, em 2006, os filhos decidiram continuar com o projecto de vinhos e concretizar o sonho do pai: fazer da Ravasqueira crescer, e transformar-se numa referência no sector. “Sentimos responsabilidade nisso, já empregávamos muita gente. Os primeiros anos foram desafiantes, naturalmente, mas depois veio o Pedro [Pereira Gonçalves] que mostrou ser a pessoa ideal para liderar o projecto”, diz Pedro de Mello. Pedro Pereira Gonçalves, engenheiro agrónomo de formação, com especializações na área da gestão e negócio em instituições como Harvard e MIT, chegou à Ravasqueira em 2012 para repensar estratégia de vinhos da empresa, e fazê-la crescer. Pouco tempo depois, chegou Vasco Rosa Santos, para complementar a enologia. “Assim, fomos desenvolvendo a marca e os canais, sempre com o objectivo de criar escala e valor”, desenvolve Pedro de Mello. “Sempre tive dificuldade em ver, em Portugal, projectos de vinho de pequena dimensão que fossem grandes criadores de valor. Sabíamos que tínhamos de ter escala, se queríamos ambicionar ser um dos principais players nacionais do vinho. Foi por aí que caminhámos.”, remata. Quando Pedro Pereira Gonçalves integrou a Ravasqueira, a produção anual era de pouco mais de 100 mil garrafas. Hoje, é de 8 milhões.

Uma estratégia de sucesso

“A Ravasqueira tem uma história de 80 anos na família, 25 desde a primeira ideia de negócio. Tudo aqui, desde o início, foi bem feito e muito estudado, tanto na parte da plantação das vinhas como na estruturação da gama”, lembra Pedro Pereira Gonçalves. A partir da sua chegada em 2012, e até 2015, o que se fez na Ravasqueira foi aproveitar o legado dos patriarcas e aprofundar o estudo da vinha e da marca, procurando a melhor via para a relevância no sector. “Houve um foco muito grande no factor produção, em como poderíamos aproveitar melhor o que tínhamos na vinha, e na restruturação de portefólio. Nasceram assim novas marcas e referências, como o Reserva da Família, com uma dedicação enorme àquilo que era a qualidade e o perfil do produto”, adianta o actual CEO da empresa. “A partir de 2015, percebemos que precisávamos de ganhar escala. Desenhámos uma estratégia concentrada nas marcas, até termos algumas das mais admiradas pelos consumidores. Diversificámos, reestruturámos as equipas comerciais, e fomos construindo, a cada passo que dávamos, um novo segmento no portefólio [como os Clássico, Superior ou Seleção do Ano], com posicionamentos diversos”, refere. A partir daqui, foi sempre a subir. Em 2016 deu-se o kick-start de um crescimento acentuado, de um milhão de garrafas nesse ano para as 8 milhões de hoje, que fazem da Ravasqueira um dos produtores que mais vende no canal “off trade” (super e hipermercados). “Sabemos que cerca de 80% das vendas de vinho se dão neste canal e temos um modelo de negócio muito enquadrado com isso. Queremos ser uma referência em Portugal, apostando na qualidade”, afirma Pedro Pereira Gonçalves.

Heritage, David e a expansão da adega

No entanto, há uma parte importante desta ambição dedicada ao canal HoReCa, que para esta empresa tem tido um crescimento acentuado nos últimos tempos, reflexo de uma aposta cada vez maior nos vinhos de topo. “Desde 2016 que nunca parámos de prestar atenção às gamas de alto relevo para o consumidor. Nem poderia ser de outra forma, porque isso está sustentado no Reserva da Família, no Vinha das Romãs, e na gama Premium, que agora se chama Heritage”, avança o administrador. Este rebranding da gama Ravasqueira Premium, com o novo nome “Heritage”, faz parte da estratégia de revitalização deste segmento da empresa. Mas não é só o nome que muda, também há uma afinação do perfil destes vinhos, e é aqui que entra David Baverstock, como explica Pedro Pereira Gonçalves: “A entrada dele constitui uma nova aposta naquilo que é o reforço das gamas luxury, de nicho. É alguém que nos vai ajudar a traçar este novo caminho. A abordagem dele vem trazer imenso valor acrescentado e isso vai expressar-se nos vinhos”. Vasco Rosa Santos desenvolve que o enólogo “tem muito respeito por todas as castas. Traz, também, uma serenidade muito necessária nos momentos certos, decisórios, que vem dos seus muitos anos de experiência. Queremos, de facto, ser um projecto de referência no Alentejo, e o David dá muita credibilidade, por tudo o que já fez. Hoje, finalmente, achamos que temos a equipa ideal para atacar aquilo que sabemos que podemos vir a ser”. A dupla está empenhada, também, em criar novidades, segundo Pedro. “O David e o Vasco estão com imensa energia e vontade de fazer coisas diferentes. Vamos usar a casta Nero d’Avola, que temos no nosso encepamento desde o início, e também apostar mais na Sangiovese. E para além das gamas da espinha dorsal da Ravasqueira, vamos ter algumas especialidades. O consumidor, cada vez mais, pede isso”. Aumentar a área da adega em 2 mil m2 é, adicionalmente, um objectivo a curto prazo, com reformulação da zona de vinificação, criando uma espécie de adega de “fine wines”, dentro da que já existe.
Para produzir os seus vinhos, a Ravasqueira — que exporta 40% — recorre a 45 hectares de vinha própria, a mais de 200 arrendados e a quase 600 hectares de fornecedores, espalhados por todo o Alentejo. “Desta forma, podemos adaptar as uvas que vamos buscar às necessidades a nível de produto. Este ‘sourcing’ é, portanto, estratégico. Servimos assim melhor os interesses da empresa, a nível qualitativo e de diversidade”, garante o CEO.
No final de 2021, David Baverstock — que tinha ideia de reduzir a sua actividade após a saída do Esporão — foi contactado por Pedro Pereira Gonçalves, para visitar a Ravasqueira. “Eu já o conhecia. Explicou-me o modelo de trabalho da empresa, mas o que mais me puxou foi a ambição dele em levar a Ravasqueira para outros patamares, apostando num conjunto de vinhos de alta gama, e a cultura de qualidade, transversal a toda a gente desta casa”, confessa David. “Para mim, isso foi música. Um desafio onde eu achei que poderia ser verdadeiramente útil”. E quando questionado sobre do que mais tinha gostado no início do trabalho na Ravasqueira, David, que apresenta quase sempre uma postura mais reservada, brinca: “Do Vasco! Temos um ‘bromance’”, e ri-se. “Agora a sério, não fiquei muito impressionado com a vinha, mas os resultados da vindima mostraram-me que estava errado, embora existam coisas que podemos melhorar nesse campo, e vamos fazê-lo. Nesta última vindima, a Touriga Franca e a Syrah foram fantásticas, bem como o Alicante Bouschet, depois da chuva. Temos também um belíssimo Alfrocheiro em barrica. Nos brancos, temos muita coisa boa em co-fermentação, como Sémillon com Arinto e com Viognier, e isto pode sair muito bem. A qualidade dos brancos, em geral, é muito elevada”.
Depois de percebermos a estamina deste projecto vínico de Arraiolos, pensamos que, realmente, é preciso muita racionalidade para transformar algo que começou com um cariz emocional forte, num negócio tão profissional e próspero. “Sempre tivemos a perspectiva de ter racionalidade económica. É preciso escala, estar em quase todas as regiões do país, para sermos dos principais a nível nacional. Isto caracteriza as áreas todas do grupo, seja na saúde, na indústria, na parte química… Hoje, para nós, o vinho é um negócio estratégico, mesmo que haja uma parte emocional, que há sempre. O facto de estar a imagem de meu pai com o cavalo nos rótulos, é mesmo isso”, declara Pedro de Mello. E é disto que se fazem as empresas de sucesso.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2022)