Herdade da Cardeira: Um blend de sucesso

Herdade da Cardeira

Parece que já ouvimos esta história um milhão de vezes. Em Portugal, gostamos disso. Talvez até demais. Chega alguém de fora, um estrangeiro, apaixona-se por Portugal, a nossa terra, os nossos costumes, o nosso chão, os nossos produtos, o nosso vinho. Apaixona-se por nós. E nós, velhos tugas, agradecemos a atenção, recebemos como só nós […]

Parece que já ouvimos esta história um milhão de vezes. Em Portugal, gostamos disso. Talvez até demais. Chega alguém de fora, um estrangeiro, apaixona-se por Portugal, a nossa terra, os nossos costumes, o nosso chão, os nossos produtos, o nosso vinho. Apaixona-se por nós. E nós, velhos tugas, agradecemos a atenção, recebemos como só nós sabemos, abraçamos os estrangeiros e de repente já não são estrangeiros. E eles sabem, apreciam a nossa hospitalidade e tornam-se verdadeiramente um de nós. Todos ganhamos, todos somos mais felizes de sermos um país assim definido. Definido pela confiança, hospitalidade, versatilidade, pelo quente abraço. Portugal é um abraço.

Foi esse abraço que Erika e Thomas Meier sentiram em 2010, quando um telefonema os trouxe da Suíça. Nunca tinham estado em Portugal, nunca tinham feito vinho, nada disso, ou seja, tudo boas razões para comprar uma adega. Visitaram a Herdade da Cardeira, ao pé de Orada, Borba, apaixonaram-se, e a sua vida mudou. Thomas trabalhava na Ásia, por isso Erika teve de liderar o projecto, mas ambos tinham ideias claras sobre o que queriam fazer: a junção de duas culturas, a Suíça, sob o mote “unidade sim, uniformidade não” e a portuguesa, baseada no orgulho dos seus valores tradicionais e no terroir da Orada. Na Herdade da Cardeira, Erika encontrou Filipe Ladeiras, enólogo. Ambos são músicos, ele fadista, ela pianista, e isso ajudou a encontrarem logo uma harmonia. Mas nunca fizeram música juntos, fiz logo o desafio, vamos ver se acontece. Fado e piano, um clássico sempre elegante.

A herdade tem 100 hectares no total, dos quais 21 são de vinha. As vinhas mais velhas são de 2003-4, e os Meier plantaram mais em 2015. A adega data de 2010, era nova quando compraram a propriedade, vieram estreá-la. Produzem ainda gado em modo biológico, em parceria com uns vizinhos e amigos. Em 2010 todas as uvas iam para a cooperativa, e ainda hoje têm algum excesso de uvas, o que lhes permite manter os padrões de qualidade que desejam nos vinhos da casa. Na produção agrícola, a sustentabilidade é cada vez mais uma preocupação, por exemplo, há mais de 8 anos que não usam herbicidas.

Os encepamentos são tradicionais alentejanos, temperados com algumas castas “novas”. De brancas têm Antão Vaz, Arinto e Verdelho, as tintas são Touriga Nacional, Touriga Franca, Aragonez, Tinta Caiada, Petit Verdot e Cabernet Sauvignon. Todos os anos fazem uma severa monda de cachos, o que torna as uvas bastante caras, exigindo um posicionamento cuidado dos vinhos. O conceituado enólogo Paulo Laureano, o bigodão mais famoso do vinho português, juntou-se à equipa Cardeira a partir de 2018, porque “acreditou no projecto, nos seus objectivos bem definidos, e na paixão dos proprietários.” A produção anual varia entre 60 e 70 mil garrafas, entre brancos (20%) e tintos (80%), sendo que 85% é exportada para a Suíça. Por uma questão de diversificação e também para aumentar o reconhecimento da marca, a aposta será agora em aumentar as vendas no mercado nacional. A quantidade total vai, no entanto, manter-se, por isso vai ser preciso aumentar o valor dos vinhos.

A marca segmenta-se em Cardeira e Cardeira Reserva, com dois tintos e dois brancos logo desde o princípio. Para além destes, e por curiosidade e vontade de experimentação da equipa de enologia, há outros vinhos, como os monocastas, o vinho de talha ou o espumante. Para além do monocasta de Verdelho, os varietais tintos seguem o seguinte princípio: como as castas são vindimadas, fermentadas e estagiadas separadamente, todos os anos são separadas as três melhores barricas da melhor casta e engarrafam-se pouco mais de 700 garrafas. Em 2018 foi o Touriga Nacional, em 2019 Alicante Bouschet, em 2020 Touriga Franca, e em 2021, como foi impossível decidir fizeram-se dois: Alicante Bouschet e Touriga Franca. Em 2022 será Touriga Nacional. Há ainda o Renée’s Rosé, assim chamado porque foi uma ideia da filha Renée do casal, é o único vinho proveniente de um lote que vem já da vinha: Aragonez, Touriga Nacional e Tinta Caiada. Há uma importante aposta em engarrafamentos em magnuns, que tem funcionado cada vez melhor. Com várias colheitas disponíveis, os clientes procuram já colheitas específicas.

Baixa produção, elevada qualidade

As uvas são recebidas e refrigeradas numa câmara, e depois há muita atenção nas macerações para que cada vinho chegue ao estilo desejado. A ênfase é nas castas e nos talhões de onde elas provêm. Apesar de não haver uma pré-definição, o Alicante Bouschet e a Touriga Nacional começam a emergir como as grandes origens dos melhores vinhos, e assim vão para os balseiros de carvalho de 3500 litros. As remontagens são feitas à mão, e a pisa é feita com macacos, ao estilo da Borgonha.
Para os vinhos de talha são usadas talhas antigas, da zona de Portalegre. São apenas 1500 garrafas de tinto, e 300 de branco. Nas talhas apenas entram castas portugueses: Touriga Nacional, Tinta Caiada, Alicante Bouschet, Aragonez, Touriga Franca. No branco um lote de Arinto e Antão Vaz que vêm da vinha.

Nos outros vinhos, excepto o rosé, as castas são colhidas e fermentadas separadamente. Os tintos estagiam ano e meio em garrafa, o reserva dois anos e meio. Só o tinto da talha não vai à barrica, os outros todos vão, são barricas de 300 litros de carvalho francês, com um máximo de 7 anos de uso. O percurso dos vinhos é peculiar: sempre separados, fazem a maloláctica, e com a percepção do que cada vinho oferece vão para a barrica, seis meses para os DOC, 12 meses para o reserva. Feito o blend, voltam para a barrica para terminar o estágio.
Usualmente, a produção por hectare é de 4 a 5 toneladas para os tintos, e 6 para os brancos. Para isso é preciso fazer a monda de cachos, porque apenas controlando a produção na altura da poda, o rendimento seria de 8 a 9 toneladas. Os solos são variados, com argilas vermelhas e calcários, havendo zonas com bastante xisto. Este ano, o granizo de Junho destruiu 30% da produção na Cardeira. Para salvar as vinhas e ajudar à cicatrização das feridas, foi preciso intervir logo no dia seguinte com aplicação de cálcio, aminoácidos e alguns azotos.
A zona da Orada sempre foi considerada especial na região de Borba (recordemos que Borba chegou a ser uma DOC, antes da reestruturação das denominações do Alentejo). Orada fica na parte Norte de Borba, entre a Serra de Ossa e a Serra de Portalegre e tem um microclima específico, com nevoeiros, e noites mais frescas. A zona da Cardeira é especialmente ventosa. Há assim uma grande amplitude térmica diária, fundamental para uma maturação equilibrada, que preserva os ácidos das uvas.

Ao contrário de Estremoz, igualmente incluída na denominação Alentejo-Borba, o prestígio de Orada é ainda só local, com qualidade reconhecida junto dos viticultores e produtores da região. Mas talvez possa agora seguir pelo mesmo caminho de Estremoz, gerando massa crítica para ganhar notoriedade como polo de excelência vínica. Filipe Ladeiras explicou que Orada contribui com 2300ha de vinhas só para a adega cooperativa. Segundo Filipe, durante muito tempo, no concelho de Borba, por questões de ordenamento do território, não se podiam construir edifícios acima de certa dimensão. Algumas adegas foram assim “empurradas” para concelhos vizinhos, como Estremoz.

A estratégia de Erika e Thomas para os vinhos Cardeira é de seguir as suas próprias preferências e gostos pessoais, não perseguir modas ou tendências. Os vinhos são distribuídos por empresas regionais, não vão para a chamada “distribuição moderna”, ou seja, super e hiper mercados. Apesar de não viverem em Portugal a tempo inteiro, estão com muita frequência na Cardeira e envolvem-se na vida local. Erika tem um projecto de abrigo para animais em fim de vida, chegarão em breve dois cavalos e um burro. A adega está também rodeada por algumas pequenas casas muito bonitas, para alojar convidados, e talvez um dia hóspedes. As filhas de Erika e Thomas nadam, por isso foi construída uma pequena piscina, que tem o formato da silhueta que associamos a Portugal.
Paixão, identidade, autenticidade, Portugal. Rigor, dedicação, definição, exigência, Suíça. Pode muito bem ser fórmula de sucesso.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Quinta de Monforte: Cem hectares de pujança e ambição

Quinta de Monforte

Já falámos anteriormente do projecto da Quinta de Monforte. Fizemo-lo para destacar a raiz familiar e a história do seu fundador Daniel Rocha que, literalmente, cresceu a olhar para a propriedade que viria a adquirir anos depois. Falamos de uma propriedade com origem no século XVII, atualmente com 100 hectares, cerca de metade com vinha […]

Já falámos anteriormente do projecto da Quinta de Monforte. Fizemo-lo para destacar a raiz familiar e a história do seu fundador Daniel Rocha que, literalmente, cresceu a olhar para a propriedade que viria a adquirir anos depois. Falamos de uma propriedade com origem no século XVII, atualmente com 100 hectares, cerca de metade com vinha plantada entre 2015 e 2016. O projecto vitivinícola arrancou com pujança e ambição. Pujança relativamente aos investimentos: um sistema de drenagem, em toda a propriedade, e levantamento de muros de granito a suster os terraços de vinha, entre outros melhoramentos. Ambição, pois o objectivo é de atingir as 500 mil garrafas no prazo de 10 anos.

Voltámos a falar com Francisco Gonçalves, técnico encarregue dos vinhos e com muita experiência também no Douro e em Trás-os-Montes, que nos confirmou a excelência do terroir da propriedade, já de si sita numa das sub-regiões da região dos Vinhos Verdes com mais horas de sol e menor pluviosidade. A aposta em castas tradicionais, algumas até esquecidas, como veremos, todas muito bem-adaptadas à região, e as referidas condições climatéricas, asseguram uma produção regular e uma qualidade excepcional, mesmo que as vinhas sejam relativamente novas.
A par do terroir e clima, a filosofia da Quinta de Monforte parece também ser vencedora, num conceito de gama premium e ultra-premium com vinhos diferenciados do perfil habitual, ou seja, privilegiando-se vinhos complexos e estruturados, ainda que mantendo a frescura e acidez, e apostando em castas tradicionais, mas, como acima referimos, quase esquecidas.

Quinta de Monforte
O enólogo Francisco Gonçalves

Pode-se assim falar de algum exotismo, sobretudo nos novos vinhos da Quinta de Monforte, agora lançados, que demonstram ousadia e confiança. É o caso da casta Padeiro, anteriormente conhecida por Padeiro de Basto que, apesar de pouco valorizada, revela nas mãos do enólogo Francisco Gonçalves uma faceta fascinante, sobretudo para os aficionados de vinhos leves e com fruto encarnado definido. O enólogo diz-nos que, nesta quinta do interior da região dos Vinhos Verdes, a variedade Padeiro consegue preservar alguns taninos que lhe dão estrutura, sem que o lado adstringente habitual se manifeste. E é o caso também da casta Azal, normalmente utilizada para corrigir vinhos devido à sua elevada acidez, que consegue, uma vez mais nas encostas ensolaradas da Quinta de Monforte, uma maturação longa, mantendo, também aqui, a acidez viva que se pretende.

Para o produtor Daniel Rocha, vive-se um momento especial para a sua propriedade, com o lançamento de dois vinhos muito diferentes, fermentados em barricas de carvalho francês, de duas variedades pouco trabalhadas na região. Com este atrevimento, diz-nos, “quisemos dar um lado nobre e sério a estas variedades”. No lançamento, provámos ainda dois varietais de Vinhão, nas versões tinto e rosé, e um Colheita Selecionada branco a partir de Loureiro com uma pequena parte de Alvarinho. No portefólio do produtor, há ainda um varietal de Loureiro e outro de Alvarinho, e um entrada de gama.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

 

Aliança: Como alfaiataria para espumantes

Aliança Espumantes

Foi em 2018 que a Aliança Vinhos de Portugal decidiu dar mais um passo na produção dos seus espumantes de topo na Bairrada, com a casta Pinot Noir. Em versão blanc de noirs (branco de uvas tintas), este “bruto natural” vem juntar-se à gama onde já se encontrava o Aliança Grande Reserva branco, um lote […]

Foi em 2018 que a Aliança Vinhos de Portugal decidiu dar mais um passo na produção dos seus espumantes de topo na Bairrada, com a casta Pinot Noir. Em versão blanc de noirs (branco de uvas tintas), este “bruto natural” vem juntar-se à gama onde já se encontrava o Aliança Grande Reserva branco, um lote de Chardonnay e Baga cuja colheita de 2018 sai também agora para o mercado.

No evento de apresentação de ambos, que teve como palco as Caves Aliança e o Underground Museum, em Sangalhos (concelho de Anadia) a equipa da casa proporcionou um dia totalmente dedicado a este tipo de vinhos. Mas, antes de uma prova de bases de espumante, de outra das várias colheitas do Grande Reserva branco e do novo espumante Pinot Noir, conduzidas pelo enólogo Francisco Antunes, foi visitada a nova vinha da empresa em Sangalhos — Quinta da Rigodeira II — concebida exclusivamente para originar vinhos base para os espumantes. E isto, na verdade, é coisa rara…

Aliança Espumantes

Em solo argilo-calcário, com algumas manchas arenosas, a Quinta da Rigodeira II teve os seus primeiros quinze hectares plantados em 2021, e mais nove já em 2023, sendo que para 2024/2025, estão previstos seis hectares adicionais. O que se encontra nesta vinha em início de vida, que terá este ano a sua segunda produção, são as castas mais emblemáticas na produção de espumantes da Bairrada: Baga, Chardonnay e Pinot Noir.

“Os clones deste Chardonnay e deste Pinot Noir são específicos para espumante. Já o material vegetativo da Baga, que provém da Estação Vitivinícola da Bairrada, é enviado para Itália, voltando enxertos já prontos para plantar”, elucidou Francisco Antunes. O director de enologia da Aliança, que chegará aos 30 anos de casa em Setembro de 2023, é actualmente um dos maiores especialistas em espumante do país. Também responsável pelos vinhos de outras regiões onde o grupo opera — Vinhos Verdes, Douro, Beira Interior e Dão — e pelas aguardentes, Francisco Antunes formou-se em Engenharia Agrícola na Universidade de Évora, e em Enologia em Bordéus.

“Queremos ter matéria-prima nossa, que possamos controlar totalmente, para o projecto dos espumantes de topo” afirmou, junto à vinha da Quinta da Rigodeira II, onde Eduardo Medeiro, vice-presidente executivo do grupo Bacalhôa (proprietário da Aliança Vinhos de Portugal), salientou ter sido “muito importante definir um foco para a Bairrada, nomeadamente os espumantes e a casta Baga”. Este incremento na região levou a que, segundo o viticólogo e director técnico Clemente Almeida, o custo da uva Baga passasse de cerca de 15 cêntimos, por quilo, para mais de 50 cêntimos em apenas 15 anos.

Aliança Espumantes

Francisco Antunes, director de enologia da Aliança, chegará aos 30 anos de casa em Setembro. É um dos maiores especialistas em espumantes do país.

De volta às caves, estiveram em prova três bases de espumante, de vinhos que sairão a partir de 2026: Quinta da Rigodeira 2022, um novo espumante que nasce na vinha agora plantada, de Baga, Chardonnay e Pinot Noir; Grande Reserva branco 2022 e Pinot Noir Grande Reserva branco 2022. Surpreendentemente, os três mostraram enorme equilíbrio e harmonia, a fugir da “agressividade” que se espera numa base de espumante. Depois da prova vertical do Grande Reserva branco — colheitas 2012, 2015, 2016, 2017 e a mais recente 2018 — chegou-se à estrela do dia. O Aliança Pinot Noir Grande Reserva branco 2018 viu o seu vinho base estagiar durante 5 meses, antes do engarrafamento, e permaneceu depois, “sur lies”, 43 meses em cave.

A Aliança produz, de acordo com Francisco Antunes, um milhão de garrafas de espumante por ano, das quais 156 mil são do Baga-Bairrada, outro produto “flagship” da empresa. Ainda segundo o alfaiate dos espumantes Aliança, em Setembro deste ano será lançado um vinho branco Bairrada Clássico, 100% Bical, proveniente de uma parcela descoberta na Quinta da Rigodeira… de 1931.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

Caminhos Cruzados: Em modo Clandestino

Caminhos Cruzados Clandestino

Em 2012, o empresário Paulo Santos iniciava o seu negócio de produção de vinho em Vilar Seco, Nelas. Anos mais tarde, a sua filha Lígia tomava as rédeas da empresa, mas o destino mostrou ser outro: Em finais de 2020, a empresa foi adquirida pelos empresários Paulo Pereira e o casal Maria do Céu Gonçalves […]

Em 2012, o empresário Paulo Santos iniciava o seu negócio de produção de vinho em Vilar Seco, Nelas. Anos mais tarde, a sua filha Lígia tomava as rédeas da empresa, mas o destino mostrou ser outro: Em finais de 2020, a empresa foi adquirida pelos empresários Paulo Pereira e o casal Maria do Céu Gonçalves e Álvaro Lopes, do Grupo Terras e Terroir, proprietário da famosa Quinta da Pacheca, no Douro, e de outras quintas na Bairrada e Alentejo. A nova gestão não só manteve a estrutura de produção, como continuou receptiva à experimentação. Esta equipa é a responsável pelos vinhos Titular, a marca mais conhecida da empresa do Dão, mas também por vinhos com Descarada, Caminhos Cruzados, Vinhas da Teixuga e Teixuga.

Nesta casa com 40 hectares de vinha, a enologia está a cargo de Carla Rodrigues, uma engenheira química industrial convertida em enóloga (depois de formação adicional). Carla não está só: os enólogos consultores Manuel Vieira e Carlos Magalhães dão-lhe apoio há vários anos, aportando à adega décadas de experiência.

 

A linha Clandestino nasceu da cabeça da jovem Lígia Santos, actualmente responsável pelos departamentos de comunicação e sustentabilidade do grupo Terras e Terroir. O primeiro elemento surgiu em 2017, o Clandestino tinto, que agora vai na colheita de 2019. E logo no ano a seguir, surge o branco, que está na versão de 2022. Este é oriundo de castas estrangeiras plantadas junto à adega, na Quinta da Teixuga, e que, por razões legais, não podem dar origem a vinhos com Denominação de Origem Dão. Como é Clandestino, a bem-disposta Lígia armou o seu melhor sorriso e não quis dizer quais as castas usadas: Chardonnay, Sémillon… quem sabe?

O mais recente da linha é outra provocação da equipa: um vinho com mistura de uvas brancas e tintas, que recebeu o nome de Clandestino Cuvée EC + TN. É da colheita de 2022 e resulta da adição de películas de Touriga Nacional (resultantes da produção de um rosé) ao mosto de Encruzado. Afinal, diz Lígia, estas são as duas “castas rainhas do Dão”.

É um tinto de cor clara mas, também pelo corpo que apresenta, hesitamos em classificá-lo. Manuel Vieira diz que “não é um clarete e certamente não é um rosé”. E talvez não seja um palhete. Afinal, diz Carla Rodrigues, “é um vinho fora da caixa”. Ou, diríamos nós, um vinho de perfil “Clandestino”.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

Domínio do Açor: À procura de Borgonha em terras de granito

Domínio do Açor

A tarefa de procura pelo terroir perfeito coube a Guilherme Correia, um sommelier brasileiro que mora em Portugal, já há alguns anos, e é bem conhecido na comunidade vínica pela sua competência profissional e delicadeza no trato. Trabalha na indústria do vinho há quase 30 anos e foi duas vezes o melhor sommelier do Brasil. […]

A tarefa de procura pelo terroir perfeito coube a Guilherme Correia, um sommelier brasileiro que mora em Portugal, já há alguns anos, e é bem conhecido na comunidade vínica pela sua competência profissional e delicadeza no trato. Trabalha na indústria do vinho há quase 30 anos e foi duas vezes o melhor sommelier do Brasil. Guilherme também é um dos sócios da distribuidora Temple Wines. Descobriu a Quinta Mendes Pereira (que estava à venda) situada junto à vila de Oliveira do Conde, no concelho de Carregal do Sal, rodeada de floresta, com um património fabuloso de vinhas velhas com mais de 60 anos, inseridas num ambiente com forte apelo cultural e histórico, onde ruínas milenares dos celtas e romanos assinalam os nomes das parcelas.

A sub-região Terras de Senhorim, onde a quinta está enquadrada, fica praticamente no meio da região do Dão, entre dois rios (Dão e Mondego), e goza de um mesoclima mais fresco do que nas zonas mais quentes e menos frio e húmido do que na Serra da Estrela. Os solos são de origem granítica, de textura arenosa e franco-arenosa, pobres em matéria orgânica e fraca capacidade de retenção de água, duas características que não induzem grande vigor na planta e naturalmente regulam a produção.

 

João Costa, enólogo residente, e Luís Lopes, enólogo consultor, partilham da visão de Guilherme Corrêa, um dos proprietários.

 

Os sócios desta aventura avançaram com aquisição da quinta em Maio de 2021, o ano que deu origem aos primeiros vinhos da Domínio do Açor. O nome do projecto é inspirado no conceito francês de “domaine” — sítio/propriedade com/dedicada à produção de vinho — mais associado à Borgonha, ao qual se junta o nome da Serra do Açor, moderador climático das vinhas daquela zona. A necessidade de ir para além de um “feeling”, motivou os sócios para contratar um dos maiores especialistas em solos, o Mr. Terroir chileno, Pedro Parra.

Como diferem as parcelas entre si? Quais têm o maior potencial? Como devem tratar as uvas de cada parcela na adega? Dos 11 plotes, através do estudo de granulometria e conductividade electromagnética dos solos, Pedro Parra identificou que mais de metade “corresponde” a Grand Cru e Premier Cru, os outros a Village e um não apresenta grande qualidade. Por muito potencial que o terroir tenha, a equipa de enologia tem que ser bem escolhida, partilhar a visão com o produtor e ser capaz de trazer o terroir até ao copo.

Domínio do Açor
Vinha da Ruína

Nesta aposta contam com o enólogo consultor Luís Lopes, formado em enologia na UTAD. Estagiou no aclamado Comte Lafon, na Borgonha, e posteriormente no Martinborough Vineyards, na Nova Zelândia. Em Portugal, era enólogo na Quinta da Pellada e apoiou o projecto de António Madeira e da Quinta das Marias. O papel do enólogo residente foi assumido por João Costa, natural do Dão e com ligação à agricultura familiar, que recentemente trabalhou na Quinta da Lomba (Niepoort), no Dão.

O primeiro vinho é um blend de Cerceal-branco, Malvasia Fina e Encruzado, mantido em inox quase um ano com borras finas. Ao lote juntraram-se mais 20% de Encruzado vinificado em barrica de 500 litros. Estágio sem sulfuroso, sobre borras, não passam a limpo, só tocam no vinho quando for para engarrafar, para fixar a tal “redução intelectual”, como lhe chamou Guilherme Correia. Deste vinho foram produzidas 3550 garrafas. O monovarietal de Cerceal foi originado pelas uvas da melhor parcela da vinha Ruína, feito só em inox. Fermentou com leveduras indígenas, pois gostaram mais do resultado final. Um ensaio com leveduras inoculadas não correu bem, “o vinho perdeu drama”, explicou Guilherme Correia. Foram produzidas apenas 230 garrafas magnum.

O monovarietal de Bical provém das vinhas velhas, plantadas nos anos 60 do século passado. Para a vinificação usaram 2 barricas usadas de 228 litros de Chenin Blanc. Demorou 2 meses para acabar a fermentação. Foram produzidas 677 garrafas. O Encruzado foi submetido ao estágio longo sobre borra, sem bâtonnage, em madeira maioritariamente nova mas “invisível”. Foram produzidas 1364 garrafas. O Jaen da melhor parcela fermentou com 30% de engaço no lagar (no granito com mais limo esta uva precisa de engaço). Ao fim de 10 dias prensaram na prensa vertical. A fermentação maloláctica ocorreu em inox e depois o estágio em barrica usada Taransaud de 400 litros. Foram produzidas 511 garrafas.

A Tinta Pinheira queima-se com sol e apodrece com chuva, razão pela qual perdeu a popularidade. É uma casta vegetal, e apesar de estar no solo delgado, não precisa de engaço. Delicada e tem uma presença texturada, precisa de delicadeza na vinificação. Provém só de uma parcela, desengaçada e vinificada em lagar. Pisada à mão… é mais uma infusão do que extração. Fez a fermentação maloláctica em inox, estagiou numa barrica de 500 litros e foi engarrafada sem colagem nem filtração. Foram produzidas 645 garrafas.

Este é um projecção com bom senso. Não só tem pernas para andar, como tem a cabeça para escolher o melhor caminho. A elegância, finesse e precisão dos vinhos são marcantes. Dá para acreditar que os amigos-produtores encontraram a sua Borgonha em terras de granito.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

Douro Superior: Uma viagem por três produtores

Douro Superior

O que leva alguém no seu perfeito juízo a investir as suas poupanças numa região de agricultura muito pobre e, pior ainda, de clima quase a roçar o “desértico”? Na verdade, a terra de onde somos originários é – e continua a ser – um factor importante. Mas tem de haver muito mais, porque senão […]

O que leva alguém no seu perfeito juízo a investir as suas poupanças numa região de agricultura muito pobre e, pior ainda, de clima quase a roçar o “desértico”? Na verdade, a terra de onde somos originários é – e continua a ser – um factor importante. Mas tem de haver muito mais, porque senão teríamos as vilas e aldeias da sub-região cheias de vitalidade. Na verdade, estão a diminuir de população todos os anos, como acontece, aliás, com praticamente todo o interior. Um factor igualmente importante é a qualidade das uvas que daqui saem. E, claro, do vinho que com elas é feito. Não se estranha assim que a actividade vitivinícola seja das mais importantes nos concelhos pertencentes à sub-região do Douro Superior e em especial em Vila Nova de Foz Côa.

Quinta da Vineadouro

A história desta casa de Numão tem mais de 250 anos. O seu actual proprietário, Carlos Lacerda, pertence à sétima geração e quase foi por causa dele que se teria interrompido o ciclo familiar. De facto, a vida de executivo de topo levou-o a abraçar cargos muito exigentes em Portugal e, mais recentemente, na Malásia. Ou seja, não tinha de todo tempo para explorar o património familiar, composto por floresta, olival e vinha, num total de 140 hectares. Triste, mas pragmático, decide vender.

Numa das últimas visitas — já com agência imobiliária e tudo — a mulher, Teresa, convence-o a não vender. “Eu aligeiro a minha carga horária [Teresa é professora universitária de Gestão] e consigo gerir a propriedade”. Carlos aceita e começa em 2015 o nascimento de um dos mais promissores projectos da região. Aconselham-se com quem sabe, lêem muito, e decidem duas coisas: instalar fibra óptica e começar a recuperar a vinha, parte dela com mais de 120 anos. Mas, ao invés de arrancarem, reenxertam com as mesmas castas que lá existiam antes, planta a planta.

Douro Superior

O património inclui as típicas “actuais” do Douro (brancas e tintas) mas também outras como Casculho, Bastardo, Rufete ou Marufo. Há ainda vinha nova, já com rega, apenas para ajudar as plantas jovens. Todas as plantas estão georreferenciadas, pelo que a vindima por castas é tarefa muito facilitada. Uma parte das uvas vai para a cooperativa local, mas o restante passou a ser vinificada em casa. Enquanto a adega da quinta não é recuperada, os vinhos são feitos numa adega vizinha, com o auxílio de dois nomes grandes do ensino da enologia: Manuel Malfeito Ferreira e Virgílio Loureiro. A filosofia de base é, diz-nos Teresa, minimalista, “para deixar falar o lugar”.

Todos os vinhos são da marca Vineadouro, neste momento com referências de brancos, tintos e um Clarete, este numa homenagem aos métodos antigos, onde todas as uvas eram vinificadas em conjunto. Dois dos vinhos são exclusivamente feitos das uvas das parcelas com mais de um século, e ambos têm a designação “Vinhas Velhas”. Na calha está um Marufo (de 2021) e um vinho do Porto, um Tawny 20 Anos. Todos os vinhos estão à venda no site da empresa (vineadouro.com) e Carlos garante que faz entregar em menos de 24 horas.
O casal Lacerda não vai ficar por aqui. A fibra óptica não está aqui por mero capricho de Carlos ou Teresa. Na quinta está a nascer um wine hotel, que Carlos afirma ser “o primeiro EcoTech Resort sustentável do Douro”. Será constituído por pequenas casas, num registo de decoração moderna e muito confortável. Uma das casas já está pronta e, pelo que vimos, o resultado é fenomenal.

Este será, sem dúvida, um dos projectos nacionais a seguir atentamente nos próximos anos. Os vinhos actuais mostram já uma seriedade impressionante, mas apostamos que muita e boas coisas estão ainda por acontecer aqui.

Quinta do Gravançal

Chegar às vinhas deste produtor não é tarefa rápida. Se vier de Foz Côa, tem que atravessar a parede da barragem do Pocinho, sobre o Douro, e virar imediatamente à direita. Depois é seguir uma estrada estreita e muito sinuosa, montanha acima. Nada de novo no Douro, e menos mal que o trânsito é residual. A meio de nada, esperam-nos dois irmãos, Armindo e João Rodrigues. São eles os proprietários das vinhas em encosta que vemos do outro lado do vale, por onde corre o ribeiro do Arroio, um pequeno afluente do Douro. Ao fundo, Vila Nova de Foz Côa.

As vinhas começaram a surgir pela mão do pai, Armindo Rodrigues, que as plantou desde o final da década de 80. Antes, aconselhou-se com amigos, procurando por castas e exposições, entre outras coisas. As primeiras vinhas — com castas misturadas — nasceram assim com exposição predominante a Norte, entre as cotas 150 e 300 metros. Aqui há uma mistura de patamares, nas zonas mais escarpadas, com vinha ao alto, instalada em zonas onde há argila, que segura melhor o solo e assim previne erosões. Com o falecimento do pai, os irmãos continuaram o sonho, mas optaram, em novas plantações, pela separação das castas em talhões.

Douro Superior

A restante vinha fica ali próximo e mais acima, em Peredo dos Castelhanos, uma aldeia trasmontana do concelho de Torre de Moncorvo. Aqui há uma mistura de encosta com zonas de planalto, a mais próxima da adega, nascida em 2018. Parte desta área estava, aliás, em preparação do terreno para nova plantação. No total, a exploração tem assim plantas de Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinta Roriz e Tinta Barroca. Nas castas brancas predomina Rabigato, Viosinho e Malvasia-Fina. Ao todo são perto de 12 hectares de vinha, cuidados especialmente por João, que habita em Torre de Moncorvo.

Armindo, residente no Porto, passa por aqui com menos frequência, mais ao fim-de-semana. Apesar de pequena, a adega está bem equipada, não lhe faltando o frio, especialmente usado nas uvas brancas. Só uma parte das uvas é aqui vinificada. No total, entre 15 a 20 mil garrafas por ano. “Mas podemos crescer até às 50 mil”, diz-nos Armindo. A casa estava, à data da visita, à procura de um enólogo residente, que irá receber ajuda do consultor Rui Cunha. No entanto, Armindo tem conhecimentos de enologia, graças a uma formação ministrada na Universidade Católica do Porto.

A marca principal da casa chama-se Mimus, que tem duplo significado: é o nome de um pássaro da região (Mimus Polyglottos) e, ao mesmo tempo, pretende retractar o cuidado colocado nas uvas, na altura da vindima. A marca de topo, contudo, é a Quinta do Gravançal, que alberga dois Grande Reserva de 2019 (branco e tinto). Além do retalho, os vinhos são vendidos no site da empresa, em quintadogravancal.com, e os preços oscilam entre os 8 e os 24 euros. O negócio está a crescer e já existe mesmo uma casa anexa, com três quartos e piscina, onde se faz enoturismo. Tudo muito bem arranjado, com muito mimo.

Mapa

Dentro dos 3 projectos aqui abordados, o dos vinhos Mapa será certamente o mais conhecido. Não que tenha muitos anos, nada disso. Mas sobretudo porque desde cedo atingiu boa notoriedade sobretudo pela qualidade e consistência dos seus vinhos.

No início da história está Pedro Garcias, irrequieto jornalista e cronista no jornal Público. Desde sempre se mostrou amante da boa mesa e do bom vinho, paixão que partilha com a mulher, Cristina, e com alguns amigos, enófilos militantes. Já datam de há muito os famosos jantares de prova de vinhos, em que cada participante levava as suas garrafas. Pedro chegou mesmo a ter um restaurante.

Douro Superior

Corria o ano de 1999 e o casal descobria uma quinta à venda junto a Vila Nova de Foz Côa, com cerca de 7 hectares de terra. O preço não era exorbitante e decidiram comprar. Juntaram todos os tostões que possuíam, recorreram a crédito e lançaram-se na aventura. No entanto, os primeiros vinhos só nasceram dez anos depois, em 2009. Os vinhos ganharam o nome Mapa e rapidamente começaram a ter notoriedade. Pedro vai rapidamente ganhando conhecimentos e experiência, especialmente na viticultura. Uma das suas vinhas, uma parcela com cerca de 1 hectare, ao pé de Foz Côa, tem largas décadas de idade. Na parte de cima, uma nova plantação: “Estou a plantar Rabigato no cimo desta vinha… Tinha esta casta noutra vinha, mais alta e virada a Norte, mas o Rabigato, que gosta de calor, tinha dificuldade em amadurecer”.

Já com três filhas, o casal vende a quinta original para adquirir uma nova e maior, em Muxagata. A área de vinha aumentou (e muito), mas a aventura está longe de acabar aqui. Mais recentemente vendeu parte das suas vinhas no Douro Superior e usou o dinheiro para adquirir a Quinta de São Bento, na região de Alijó, de onde Pedro é natural. Com um sorriso nos lábios conta-nos: “Estou a preparar-me para as alterações climáticas”. É aqui que está a sua adega e onde trabalha o seu enólogo, Sérgio Mendes. Pedro não lança novas colheitas para o mercado sem estas passarem, pelo menos, 2 a 3 anos em casa. “Dois Invernos ajudam a estabilizar os vinhos”, garante ele.

A produção de vinho sobe, entretanto, bem acima das 50 mil garrafas, entre branco, tinto, rosé e vinho do Porto. Além dos vinhos, Cristina e Pedro produzem azeite de olivais próprios em modo biológico, em Muxagata. Os vinhos sempre se mostraram sérios, mas os cumes têm sido ocupados pelas edições especiais, com designações como Vinha dos Pais, Vinha Clara ou Vinha dos Altos. Com o alargamento da produção e do portefólio, Cristina e Pedro decidem fazer contracto com um distribuidor. A escolha recaiu na conhecida empresa Garcias, uma feliz coincidência de nomes.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

 

Rufete ou Tinta Pinheira: A casta das serranias

casta rufete

O mais recente livro de João Afonso, uma obra de grande fôlego dedicada às castas usadas em Portugal, confirma, se tal era preciso, que o universo das variedades usadas por cá é isso mesmo: um universo imenso, confuso, ainda pouco estudado. Mas não nos podemos queixar, já que temos em Portugal equipas que se dedicam […]

O mais recente livro de João Afonso, uma obra de grande fôlego dedicada às castas usadas em Portugal, confirma, se tal era preciso, que o universo das variedades usadas por cá é isso mesmo: um universo imenso, confuso, ainda pouco estudado. Mas não nos podemos queixar, já que temos em Portugal equipas que se dedicam ao estudo científico das castas e à preservação das mesmas para memória futura.

O problema é que elas são tantas e chegaram a ter tão desvairados nomes e sinónimos que não fica facilitado o trabalho da PORVID, a empresa que estuda clones, faz análises genéticas e mantém um enorme campo clonal em Pegões. A casta de que hoje nos ocupamos é a Rufete, que também usa o nome de Tinta Pinheira. Usada sobretudo no Dão e na Beira Interior, presente residualmente no Douro, sobretudo nas vinhas velhas e em alegre convívio com dezenas de outras, a Rufete já esteve na lista das indesejáveis.

Como nos lembra Paulo Nunes, enólogo da Passarela, as fragilidades de outrora são as virtudes de hoje. E explica: até há pouco tempo era considerada uma casta menor porque não tinha cor, porque a componente vegetal se sobrepunha à fruta, porque a fragilidade não permitia uma boa ligação à barrica nova; ora tudo isso se alterou e hoje é apreciada exactamente porque origina vinhos mais elegantes, menos corados, menos alcoólicos e a componente mais vegetal é, agora, especialmente apreciada. Ganhou quem a conservou, porque é uma variedade que mostra muita originalidade e tem tudo para agradar aos novos consumidores.

Os enólogos com quem falámos são unânimes em considerar que o traço mais comum da casta é precisamente a pouca intensidade corante. No entanto, João Afonso conta-nos a história do tinto de Rufete que produziu, em 1995 na zona de Pinhel, e que originou um vinho muito carregado de cor. Duas hipóteses se levantam: ou era outro clone da casta Rufete ou era outra casta. Afonso mantém a dúvida: na altura o classificador “afiançou” que era a mesma casta mas que naquela zona se tinha desenvolvido outro clone.

A dúvida irá permanecer até à análise do ADN comparativo das duas variantes, algo que está por fazer. Mesmo que se tratasse de outro clone, a verdade é que ele não está presente nos vinhos disponíveis no mercado. Iremos continuar a associar a Rufete com este estilo elegante, vegetal e que contribui com notas de pinheiro para o aroma do vinho; podemos até levantar a dúvida sobre se não advirá daí o nome de Tinta Pinheira. Os vinhos que provámos confirmam este perfil.

 

“Se o ano for quente, surge com um pouco mais de cor, mas em climas mais frescos, como no Dão, a Tinta Pinheira ganha notas vegetais que até lembram Pinot Noir.” – Jorge Moreira

 

Uma casta feita princesa

Na vinha e na adega, a Rufete é casta caprichosa. Na vinha pode, em virtude da finura da película, ser atreita a míldio e oídio e, como se não bastasse, com golpes de calor desidrata facilmente e com chuva apodrece. Como se vê, tem tudo para ser variedade pouco amiga do agricultor. A pequena quantidade de cepas que existem no Dão “não permite que haja muitos vinhos varietais”, diz-nos Luís Lopes, enólogo na Quinta das Marias e no Domínio do Açor mas, acrescenta, no Açor “estamos a plantar mais umas linhas de Rufete que irão substituir as de Tinta Roriz que lá estavam”.

Sobretudo no Dão, ela sempre foi usada para compor os lotes, dando mais vibração vegetal, nomeadamente à Touriga Nacional. A cor pode variar um pouco em função do clima do ano. Como nos recorda Jorge Moreira, que trabalha a casta no Douro, na Real Companhia Velha, mas também no Dão, “se o ano for quente ela surge com um pouco mais de cor, mas em climas mais frescos, como o Dão, e em anos de menos calor, a Tinta Pinheira surge com umas notas vegetais que até lembram Pinot Noir”, uma ideia que também nos foi confirmada pelo enólogo do Domínio do Açor. O apreço que as castas mais vegetais e menos tintureiras está a ter no mercado, até faz com que aquele comentário possa ser usado para falar de muitas outras variedades.

O perfil mais fino e elegante exige na adega alguns cuidados e os enólogos com quem falámos estão de acordo: se queremos que a casta expresse as suas virtudes, são de evitar fermentações com muita maceração e extracção e também é de evitar o recurso a barricas novas para o estágio; barricas usadas, tonéis ou mesmo depósitos de cimento são os mais aconselháveis para a casta, que tem de resto muita capacidade para se mostrar bem com pouco tempo de estágio. Daqui poder-se-ia inferir que não é variedade para ser conservada em cave.

Era essa a ideia que Jorge Moreira tinha da casta, mas confessa que ficou surpreendido com a evolução dos vinhos em garrafa e hoje acredita que o vinho poderá durar 5 e mais anos. Temos, assim, como balanço, algumas notas a registar: é casta fácil de trabalhar mas exigente na vinha, sobretudo com a escolha do momento certo de ser colhida; na adega exige pouco e dá-se bem com estágios curtos e que permitam exprimir a sua componente vegetal; para lote pode ser indispensável para a Jaen, para segurar a acidez e equilibrar os “excessos” da Touriga Nacional e tem, last but not least, aquele Je ne sais quoi que recolhe a preferência de muitos consumidores.

Os vinhos provados não escondem as virtudes: fáceis de gostar, muito gastronómicos, pertencem ao grupo dos tintos consensuais que agradarão a todos. Como se disse no início do texto, fez-se da fraqueza, força. E a verdade é que temos muitas outras castas que pertencem a este clube, algumas já em fase de recuperação, sobretudo no Douro. Já nas zonas da Dão e Beiras, outras há que esperam a sua vez, como a Alvarelhão, só para citar um exemplo. Estes vinhos são um bom exemplo do que é expectável da Tinta Pinheira/Rufete: elegância, evidente componente vegetal, capacidade para dar prazer na prova, mesmo com tenra idade, e ser excelente companhia para a mesa.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

Quinta da Roeda: A single jóia da Croft

quinta da roeda

Num longo passeio pelas vinhas, na companhia do responsável de enologia do grupo, David Guimaraens, e do responsável de viticultura, António Magalhães, deu para ver o estado saudável das videiras, mesmo na altura em que muitos já se estão a queixar da seca. Segundo David Guimaraens “o Porto Vintage é a máxima expressão da região”. […]

Num longo passeio pelas vinhas, na companhia do responsável de enologia do grupo, David Guimaraens, e do responsável de viticultura, António Magalhães, deu para ver o estado saudável das videiras, mesmo na altura em que muitos já se estão a queixar da seca.

Segundo David Guimaraens “o Porto Vintage é a máxima expressão da região”. Assim, um Vintage Single Quinta é a máxima expressão de uma propriedade. Permite cruzar as características de um local com as condições de um ano vitícola. Na Croft, o Vintage Port quinta da Roeda é declarado nos anos que não coincidem com as declarações clássicas, mas “o Vintage Croft é muito Roeda (85-90%)”. David lembra-se que em 2007 a identidade da Roeda foi tão forte que a decisão entre o Vintage clássico e single quinta foi difícil. Os single quinta normalmente são mais acessíveis e prontos para beber mais cedo. Como diz David Guimaraens, “é bom que os Vintage single quinta evoluam mais depressa, podemos bebê-los ainda na nossa vida”.

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A Quinta da Roeda e o seu património vitícola

As primeiras vinhas na Quinta da Roeda foram plantadas em 1811. Em 1844 a quinta foi adquirida pela, já conhecida na altura, empresa Taylor, Fladgate & Yeatman, poucos anos antes do ataque de oídio. Na década de 1860, quando a quinta pertencia a John Fladgate, a área de vinha foi aumentada através de aquisição de terrenos vizinhos. Em 1889, a Croft comprou a propriedade e iniciou a replantação das vinhas que sofreram com a praga desastrosa da filoxera. As várias fases da replantação tiveram lugar na última década do século XIX e no início do século XX. Estas vinhas ainda fazem (a melhor) parte do património vitícola da propriedade.
A vida deu uma volta e em 2001 o grupo Taylor/Fonseca comprou a Croft, ficando novamente com a Quinta da Roeda. Foi uma aquisição estratégica. No Inverno de 2001 para 2002, António Magalhães, uma autêntica enciclopédia da vinha duriense, com a sua equipa começou a tomar conta da herança vitícola da Roeda. Ao mesmo tempo, tomando partido da experiência que tinham nas outras quintas do grupo, David Guimaraens apostou na construção de lagares de granito para vinificar vinho do Porto. Um Porto feito em inox resulta numa fruta mais exuberante e num perfil mais suave; no lagar fica mais fechado e mais denso. Nos lagares recorrem à pisa a pé, mas também dispõem de pisadores robóticos para trabalharem à noite. Desta forma têm o melhor dos dois mundos: o moderno permite aliviar a penosidade do trabalho humano. Destes lagares saiu o primeiro Vintage da Quinta da Roeda, de 2002, depois da aquisição. Foi simbólico e importante para a assinalar o início de uma nova era desta propriedade.

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“As Quintas distinguem-se pelas castas minoritárias, sobretudo devido ao excesso de tourigas (nacional e francesa)” – David Guimaraens

 

Dos 76 hectares da vinha da Quinta da Roeda, 23% são ainda da primeira geração de plantações pós-filoxera. As vinhas pós-filoxéricas como a vinha da Benedita ou da Ferradura, com uma grande densidade de plantação, tendo apenas 1m2 por videira, são autênticas jóias entre as parcelas da quinta. As videiras são torcidas mas de boa saúde e com mortalidade muito baixa. As vinhas antigas convivem lado a lado com vinha ao alto, plantada em 2006. Esta também é uma boa solução desde que a inclinação de terreno permita (até 35%). Durante os últimos anos, têm replantado a vinha, desdobrando os patamares com taludes muito altos para ficarem só com 1,5m de largura. Assim, já renovaram ¼ da vinha da quinta da Roeda. São mecanizáveis, com possibilidade de passagem de um tractor pequeno. A ideia é adaptar a máquina à vinha e não ao contrário, como foi feito na altura dos PDRITM. Com estas replantações conseguem aumentar a ocupação do solo com videiras em 36,5%, passando das 3500 videiras por hectare para 6000, e aumentar a eficiência e segurança do trabalho mecânico.

Relativamente às castas, David Guimaraens e António Magalhães concordam que não se deve limitar a plantação a apenas duas ou três variedades. “As quintas distinguem-se pelas castas minoritárias, sobretudo hoje em dia com o excesso de Tourigas (Nacional e Francesa)”, afirma David. A Tinta Francisca tem uma grande importância nas vinhas velhas da Roeda. Não apresenta uma identidade tão óbvia quanto as Tourigas mas tem personalidade muito própria. Nas replantações foram buscar Tinta Francisca ao banco genético da vinha da Benedita. A Rufete plantou-se a partir de material genético de um viticultor com quem trabalham. “É o terreno que pede a casta” explica António Magalhães e mostra o exemplo com linhas alternadas de castas conforme as particularidades do terreno. Touriga Nacional fica na zona mais fértil. Junto com Tinto Cão podem ficar mais expostas ao sol porque naturalmente preservam bem a acidez, enquanto a Tinta Barroca, rica em açúcares, tem de ser plantada em sítios mais frescos, mais altos e virados a norte. A Tinta Amarela, plantada mais alto, precisa do terreno nem muito fértil, nem muito quente.

Um prelúdio à prova vertical

A prova vertical dos Vintage da Quinta da Roeda teve uma parte não oficial no dia anterior, onde provámos os Vintage 1914, 1960 e 1980. Estavam todos bem vivos, mas o 1914 impressionou mais. Com uma cor muito aberta, quase translúcida, aromas delicados de notas medicinais, farmácia, xarope de rosa espinhosa, especiaria. Pareceu untuoso e delicado, desenvolvendo notas de cedro, resinas e alperce seco. Apesar da sua idade avançada, ainda tinha bela presença, com certa força e frescura que conseguiu preservar durante mais de um século. Só havia três garrafas na Quinta e foi muito didáctico provarmos esta relíquia, porque deu para perceber uma coisa sobre o estilo dos Vintage da Quinta da Roeda: a sua aparente macieza e perfil arredondado não compromete a longevidade.

 

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Segundo David Guimaraens “O Porto Vintage é a máxima expressão da região”. Assim, um Vintage “Single Quinta” é a máxima expressão de uma propriedade.

 

A influência e a expressão dos anos

O clima no Douro traduz-se ao longo de dois anos. Na expressão de David, “2002 foi um ano trapalhão”. A seguir ao 1970 foi o ano mais árido. Além do Inverno seco, a temperatura esteve de tal forma baixa que o rio Pinhão gelou completamente no período do Natal. Mas como em 2001 choveu quase o triplo do normal (1600mm/ano), criou-se um “pulmão” que permitiu aguentar o ano árido. António Magalhães confessa que se tivesse de escolher o seu ano preferido, seria o 2004 (a seguir ao 1985). Um ano seco, com poucas doenças e pragas, onde tudo correu muito bem e pareceu um ano clássico à porta. Mas é o que acontece (ou acontecia…) quando há anos muito bons consecutivos – não foi considerado clássico.

2005 foi o ano que se destacou por ser extraordinariamente quente e seco. Em termos de índice de aridez, este ano passou do habitual semi-árido para árido. A videira defendeu-se restringindo o vigor e produzindo cachos mais pequenos com bagos também mais pequenos. O processo de maturação foi mais lento, aliviando-se a pressão da seca pela precipitação que ocorreu entre os dias 6 e 9 de Setembro, permitindo uma colheita perfeitamente equilibrada.

2008 foi um ano desalinhado do normal. Depois do Inverno mais seco e frio do que o habitual, o mês de Abril (com águas mil) reabasteceu as reservas de águas subterrâneas. A floração ocorreu em condições húmidas e frias o que, obviamente, resultou em rendimento mais baixo, mas com uma grande concentração de sabor. A temperatura média, que normalmente ronda os 15˚C, foi mais baixa durante todo o ano. Não foi chuvoso, mas uma chuva regular bem distribuída resultou num ano que nem semi-árido foi. Dias quentes combinados com noites frias permitiram uma óptima maturação das uvas.

2012 foi um óptimo ano, mas ficou na sombra de 2011. Começou com o Inverno muito seco, mas as chuvas de Abril e Maio salvaram o ano. Devido ao Inverno seco e Primavera mais fresca, as vinhas apresentavam baixo vigor. A vinha regulou-se pelo tamanho do bago, que não ultrapassava de uma moeda de 1 cêntimo, mas estes eram bem formados. A breve chuva em Setembro não afectou a vindima que decorreu sob perfeitas condições.

2015 pode ser comparado com 2008 em termos de padrão de chuva no que toca à quantidade e a distribuição. A diferença foi a temperatura média 1,2˚C mais quente do que em 2008. À excepção de dois dias de chuva, a 15 e 16 de Setembro, toda a vindima decorreu em excelentes condições, com dias de sol quentes e noites frescas. Baumé elevado, acidez um pouco mais baixa, excelente extracção. A vontade de declarar o 2015 como o ano clássico foi grande, até porque não houve declarações em 2012, 2013 e 2014 (que foi um desastre). Mas na altura já havia o 2016 que mostrou outro apelo. “Era mais fácil declarar o 2017 depois de 2016 do que o 2015 e o 2016 seguidos”, explica David. “Vivemos sempre com este trauma”.

 

quinta da roeda

 

No Inverno de 2001 para 2002, António Magalhães, autêntica enciclopédia da vinha duriense, começou a tomar conta da herança vitivinícola da Roeda.

 

E chegámos ao fabuloso 2017 que faz lembrar o relatório de vindima de 1945. Foi “impensavelmente árido” segundo António Magalhães, “mas no Douro existe a capacidade de ensanduichar um ano absurdo entre os anos perfeitos”. É o caso de 2017. Começou com a Primavera muito seca, apenas alguns milímetros de chuva caíram em Abril. As temperaturas estiveram acima da média e as condições secas continuaram durante todo o Verão e até o final de Setembro. Felizmente, as temperaturas em Agosto caíram para níveis mais moderados, principalmente à noite, dando equilíbrio à colheita. A vindima na Quinta da Roeda começou no dia 31 de Agosto, o início mais cedo nos últimos 70 anos. Já na adega os mostos demonstraram uma densidade excepcional.
A empresa declarou como clássico o 2017 Vintage Croft, mas a impressionante dimensão e riqueza dos vinhos provenientes das parcelas mais velhas merecia um destaque. Assim, quatro lotes resultaram num vinho memorável, do qual foram produzidos apenas 2200 litros. Basicamente foi um Single Quinta clássico… apelidado de Sérikos numa referência histórica à produção de seda na Quinta da Roeda nos anos seguintes à devastação pela filoxera e também ao seu carácter sedoso.

2018 começou extremamente seco dada a pouca chuva no ano anterior. Felizmente o stress nas videiras foi aliviado em Março graças a chuvas fortes. Junho frio e húmido, Julho seco e relativamente ameno e Agosto com temperaturas bem acima dos 40˚C. As abundantes reservas de água no solo, construídas na Primavera, permitiram que as uvas amadurecessem de maneira uniforme e gradual, apesar das condições quentes.

Em 2019, as condições relativamente frescas e a ausência de picos de calor traduziram-se na elegância, acidez vivaz, cor acima do normal e aromas muito atractivos. Este Vintage, anunciado em 2021, ainda não foi disponibilizado para o mercado, irá permanecer em cave durante mais alguns anos…

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)