Quinta do Casal Branco: Uma fábula para gente crescida

De todos os recantos e pormenores que caracterizam a Quinta do Casal Branco em Almeirim, o mais impressionante são as vinhas centenárias. Ao dar o primeiro passo para dentro de uma delas — neste caso, a Vinha do Tojal, a primeira da visita — senti-me como a Ofélia a descobrir, pé ante pé, o Labirinto do Fauno. É certo que a movimentada estrada está mesmo junto à vinha, mas as videiras com mais de cem anos são aqui tão imponentes no tamanho, e surreais nas formas, que o ruído sonoro e visual que de lá advém é por elas abafado, como se o labirinto se fechasse atrás de nós após a entrada. Com 3,20 hectares, a Vinha do Tojal foi plantada ainda na primeira década do século XX, por D. Manuel Braamcamp Sobral. As cepas velhas (hoje bem afastadas em compasso), que desenham curvas e contracurvas retorcidas em todas as direcções, como que feitas com magia, escondem Castelão e Alicante Bouschet. Os maiores e mais largos braços, da maioria das videiras, acusam a passagem do tempo pela vontade que mostram em descansar no solo. Em comprimento, algumas devem aproximar-se dos dois metros, e as oliveiras presentes, também elas centenárias, parecem gostar da companhia. Tanto que há pelo menos uma cepa e uma oliveira que se abraçam, a primeira em jeito de trepadeira e a segunda firme e altiva, sem vacilar.
Plantada na mesma altura, e com características semelhantes, foi a Vinha Velha do Castelão, só desta casta tinta, com 2,70 hectares. Vinhas velhas há muitas, mas poucas são as que nos mesmerizam assim. E o resultado dentro da garrafa não é difícil de adivinhar, também tendo em conta que a enologia é chefiada por Manuel Lobo de Vasconcellos — reconhecido enólogo de projectos como Quinta do Crasto ou Roquette & Cazes, e agora no próprio, Lobo de Vasconcellos Wines — membro da família proprietária. Manuel Lobo entrou com esta função no Casal Branco, juntamente com a agora enóloga residente Joana Silva Lopes, em 2014.

 

História

Fundada em 1755, a propriedade conhecida como Quinta do Casal Branco — que foi coutada real durante quatro séculos — totaliza 1100 hectares e, como é tradicional nas propriedades da região desta dimensão, sempre foi local de várias culturas agrícolas e de dedicação ao cavalo, com a Coudelaria do Casal Branco a remontar ao século XIX e ao 2º Conde de Sobral, D. Luis de Mello Breyner, cujo trabalho foi continuado pelos seus sucessores, até hoje. Através de várias gerações Braamcamp Sobral e Lobo de Vasconcelos, o Casal Branco manteve-se sempre na mesma família, que acabou por se dedicar de forma mais afincada à vinha e ao vinho, face aos outros projectos agrícolas, tendo já celebrado 200 anos de produção vitivinícola. Muito recentemente, como resultado de um processo de partilhas do património agrícola familiar, o negócio de vinhos da empresa “Casal Branco, Sociedade de Vinhos” passou a ser unicamente detido por José Lobo de Vasconcelos, neto de D. Manuel Braamcamp Sobral, que já geria esta parte, traduzida em cerca de 400 hectares, 118 dos quais de vinha. Na verdade, o Casal Branco foi, de acordo com José Lobo de Vasconcelos, o primeiro produtor do Tejo a certificar um vinho, da colheita 1989 e marca Falcoaria, em 1990, ano que marca o nascimento do projecto de vinho engarrafado. Esta marca, que hoje representa o segmento dos topos de gama no portefólio da casa, é inspirada na prática da falcoaria, cujo único testemunho actual na propriedade é um pombal secular, destinado outrora ao treino dos falcões.
A primeira adega do Casal Branco data de 1817 e já sofreu algumas intervenções, uma das mais importantes e profundas no século XX, por parte de D. Manuel Braamcamp Sobral, transformando-se na primeira adega industrial a vapor da região. A vinificação é ainda realizada nesta adega, que teve uma remodelação total em 2004, e a produção anual bate sensivelmente nos 900 mil litros de vinho, 90% da qual é exportada para mais de 20 mercados. Para José Lobo de Vasconcelos, a região do Tejo ainda sofre de muito preconceito em Portugal, uma das razões para um peso tão grande da percentagem de exportação.

Vinhas e terroir

Estamos na zona da Charneca (um dos três grandes terroirs da região, juntamente com o Bairro e o Campo) — na margem esquerda do Tejo, a Sul e Sudeste — com solos pobres franco-arenosos e, segundo Manuel Lobo, “quatro zonas de transição com barro e calhau rolado”. É uma zona mais seca e quente do que as outras duas, o que, juntamente com a componente arenosa e a pobreza geral dos solos, gera condições de rendimento controlado que favorecem especialmente o Castelão. Isto em oposição, sobretudo, à zona do Campo, de solo bem fértil e hidratado, pela proximidade ao rio. A Charneca é, assim, uma zona que acaba por ser ideal para a generalidade dos tintos e óptima para alguns brancos, com destaque para a Fernão Pires, casta bandeira da região, ao lado da tinta Castelão.
A área de vinha do Casal Branco passou, em grosso modo, por três fases determinantes. A primeira foi a plantação das vinhas centenárias já referidas, do Tojal e a Velha do Castelão. Depois, nos anos 50/60 do século XX, o pai de José Lobo de Vasconcelos, o engenheiro agrónomo Francisco Xavier Lobo de Vasconcellos, foi responsável pela plantação da também já bem velha Vinha do Tanxual, 7,5 hectares de Fernão Pires agora com 70 anos. É esta que origina o branco Falcoaria Vinhas Velhas. Este plantou, ainda, a Vinha dos Sertões, com 15,3 hectares de Fernão Pires e 11 de Castelão, tendo importado também Cabernet Sauvignon e Merlot de França (onde estudou), que representam a Vinha do Bico, com dois hectares.
Já na actual geração, entre 1999 e 2000, apostou-se nas castas tintas Syrah, Petit Verdot, Alicante Bouschet e Touriga Nacional, e mais tarde nas brancas Gouveio, Viognier, Alvarinho e Sauvignon Blanc. Em 2018, já com a presença da dupla actual de enólogos, iniciou-se a restruturação da Vinha dos Sertões, tendo sido arrancado parte do Castelão e plantado Moscatel, Touriga Franca e Sousão. Em 2022, plantou-se mais Touriga Franca, Touriga Nacional e Syrah, na mesma vinha. “Para 2023 está planeado continuar a fase de expansão da vinha, com a plantação total de 11 ha das castas Arinto, Sousão e Alicante Bouschet. “O plano estratégico passará sempre por manter as vinhas centenárias e potenciar ao máximo a sua qualidade, também reconverter parcelas cujo resultado é menos interessante do ponto de vista qualitativo, e introduzir castas que aportem aos nossos vinhos características melhoradoras, adaptadas ao terroir e à realidade das alterações climáticas”, explica Joana Silva Lopes.

 

Vinhos e espumantes

A Quinta do Casal Branco completou agora 30 anos de produção do seu espumante Monge, de Castelão, “o primeiro espumante com certificação na região”, marco que celebrou com o lançamento do Monge Blanc de Noirs Castelão Reserva 2015. Ambos produzidos pelo método clássico, de segunda fermentação em garrafa, distinguem-se pela utilização de leveduras encapsuladas no Monge Colheita, e livres no Reserva, que “trabalharam” na garrafa durante os cinco anos de estágio em cave. Ambos foram provados nesta reportagem. Em prova estão também os “entrada de gama” Terras de Lobos — branco, rosé e tinto — Quinta do Casal Branco — nas edições Alvarinho, Sauvignon Blanc, Syrah e Red Blend — e os “topos” Falcoaria Vinhas Velhas branco, tinto e Grande Reserva tinto. Em jeito de micro-vertical, provaram-se também duas colheitas anteriores do Falcoaria Vinhas Velhas branco e outra do Grande Reserva tinto. O Vinhas Velhas branco 2018 já mostra bem a excelente capacidade de evolução em garrafa deste vinho, com muita pólvora no nariz e alguma redução mas a revelar toda a sua finesse, elegância e complexidade na boca (18,5). O 2016, por sua vez, confirma mesmo isso, a trazer uma amplitude excelente, gigante complexidade e frescura natural de luxo (19). O Falcoaria Grande Reserva tinto 2015, tal como a edição que está no mercado, invoca fruta madura, componente mentolada e resinoso, resultando exótico, com cedro, sândalo, cera de abelha e tabaco tipo cigarrilha. Com muito “para andar” (18,5). Mas todos estes vinhos vêm reforçar sobretudo uma coisa: que o preconceito (sobretudo nacional, como desabafou José Lobo de Vasconcelos) sobre o Tejo já é só mesmo isso, e está na altura de ser largado.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2023)

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