Jacinta Sobral da Silva herdou, em 2006, dois hectares de vinha velha perto de Grândola. O pai tinha-a plantado em 1961 e 1970, num terreno de 23 hectares propriedade da família há 300 anos. Era um field blend de castas tintas e brancas, cujas uvas vinificava e vendia a granel na região.
A actual proprietária de A Serenada é farmacêutica de formação, curso que tirou na Universidade de Lisboa. Na altura em que tomou posse da herdade tinha poucos conhecimentos sobre vinho e a sua produção, o que a levou a tirar o mestrado em enologia e viticultura no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Queria “meter mãos à obra” e dar continuidade à actividade do pai, mas precisava de conhecimento para o fazer.
Para além da terra, e da vinha, o pai, que tinha falecido em novembro, pouco depois da vindima, deixara-lhe quatro cubas cheias de vinho de 1000 litros, oito de 500 litros, várias de 150 e mais outras mais pequenas. Parecia que adivinhava o gosto da filha para fazer pequenos volumes de vinho, que procura que sejam diferentes, e certamente apelativos para quem os consome. E tenham o cunho do terroir, mas também da alma criativa que teima em continuar a experimentar, à procura que as suas ideias se transformem no vinho que quer fazer, até o conseguir. “É isso que me permite fazer as coisas à minha maneira”, explica. Uma delas é vinificar o tinto em cubas de 1500 litros ou em cubas de 225 ou 500 litros, a que abre os topos. Talvez por isto, mas certamente, por nostalgia, ficou com todos os recipientes herdados, e já acrescentou mais alguns. E diz que está a pensar vender a cuba de maior dimensão, aquela que aconselharam a comprar quando se meteu no projecto.
Conhecimento e inspiração
Começou a engarrafar o vinho a partir de 2010, também com base no aprendeu em algumas viagens em que gosta de misturar turismo com aquisição de conhecimento. Fez isso a regiões de Espanha, França e Suíça, “sempre a coisas pequenas”, mas também à Austrália e África do Sul.
Diz que duas das regiões que mais a influenciaram foram as de Valdeorras e Bierzo, pelas características dos seus vinhos das castas Mencia (Jaen) e Godello (Gouveio). Já tinha a última na vinha, a partir da qual produz “um vinho muito elegante, que seria o meu preferido se eu fosse chefe de cozinha, porque é suave, delicado e tem personalidade”. Também faz um monocasta de Verdelho, “de características mais marcantes”. É produzido com base nas uvas de uma vinha plantada por Jacinta Sobral em 2008, na zona de cima da propriedade. “Nessa altura havia poucos vinhos de Verdelho à venda em Portugal e eu tinha provado os desta casta na Austrália numa viagem que fiz ao país em 2005, e gostei”, conta. Diz, também, que não foi fácil arranjar o material vegetativo e foram os contactos que tinha estabelecido com a Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, quando estava a fazer o mestrado, que lhe permitiram saber que esta entidade estava a plantar uma vinha da casta. “Foram eles que me prepararam e forneceram as varas”, conta. O primeiro vinho que engarrafou desta variedade foi da colheita de 2013. Ainda está a vender o do ano seguinte e começou há pouco a colocar no mercado o de 2015 porque decidiu, há alguns anos, vender estes vinhos sempre com tempo em garrafa.
Os vinhos da mina
A ideia surgiu-lhe depois de ter provado um vinho do Esporão que estava, há muito tempo, no restaurante onde tinha ido e que “ninguém queria por ter o rótulo estragado. “Estava maravilhoso”, comenta, dizendo que isso a levou a fazer uma experiência semelhante na A Serenada e guardar o vinho alguns anos antes para comercializar apenas quando considera que estão prontos. Os das colheitas de 2016 a 2019 estão a estagiar, engarrafados, na Galeria Valdemar da Mina do Lousal, “para os termos em condições mais standard e estabilizadas, em condições semelhantes às dos vinhos que são mergulhados na água do mar: ausência de luz e temperatura constante e muito fresca. Faço tenção de os deixar lá muito tempo”, afirma a proprietária de A Serenada. A iniciativa para este projecto, a que aderiram também a Companhia Agrícola da Barrosinha, a Herdade do Canal Caveira e o Monte da Carochinha, partiu da Câmara Municipal de Grândola.
Jacinta Sobral diz que tem a vantagem de não ter ninguém acima a quem prestar contas, o que lhe permite fazer os vinhos como gosta, arriscando e experimentando, sem medo de errar. Na sua vinha, cujo maneio decorre com base método de produção integrada, a poda decorre habitualmente em dezembro e a vindima começa em agosto. Este ano a 15, e pela casta Verdelho. Ambas as operações são feitas à mão “porque, de outra forma, não saía nada de jeito com tanta coisa pequenina”, explica.
A proprietária de A Serenada diz que a decisão mais difícil que toma todos os anos é a da marcação do início da vindima. Sobretudo na vinha antiga, apesar de fazer sempre controlo de maturação com colheita de uvas, por vezes cachos inteiros, para análise e de prova de bagos. Nela “é difícil fazer a amostragem”. Para além disso, “as pessoas têm a tendência de apenas colher uvas da zona mais exterior, que amadurecem mais cedo do que as estão na zona mais interior, que precisam de mais um dia ou dois para estarem no ponto certo”, conta, explicando que é, por isso, que não deixa a decisão do dia da colheita da vinha velha para qualquer outra pessoa da sua equipa. Explica, no entanto, que esta é a sua vinha mais certa, porque é vindimada habitualmente entre cinco e sete de setembro e dá em média cerca de 2,5 toneladas de uva.
Uma nova marca
Talvez por isso respondeu logo ao desafio da sua filha, de criar uma marca com um nome pequeno, que fosse fácil de diferenciar e fixar. E deu-lhe a designação do antigo código matricial da quinta, Y14, que se apropriava ao conceito e reflecte, um pouco, a criatividade e irreverência de Jacinta Sobral. Basta contar que o primeiro branco lançado no mercado, da colheita de 2019, foi produzido com Moscatel Graúdo fermentado em talha. No ano seguinte experimentou fazê-lo em spinbarrels. Como não gostou muito do resultado, a colheita de 2021 foi fermentada em barrica e estagiada em talha. Das experiências, conta que “o primeiro vinho é, talvez, o mais consensual, mas os taninos ficam mais vivos quando a extracção é maior, o que é interessante para quem gosta de vinhos diferentes”.
A Serenada tem um espaço de enoturismo com oito quartos, alguns deles com uma vista que parece quase infinita e termina, a norte, na Serra da Arrábida. Disponibiliza também uma loja e um espaço para refeições onde organiza provas de vinhos, jantares vínicos com quatro tipos de harmonizações. Talvez por isso consiga vender, ali, entre 25 a 30% das 15 mil garrafas de vinho que a propriedade produz, uma boa parte comprada pelos seus hóspedes, que gostam e compram, ou encomendam para entrega nas suas casas, já que a maior são turistas estrangeiros.
O enoturismo de A Serenada foi recuperado a partir de uma ruína que Jacinta Sobral, que é de Grândola, e o marido, queriam fazer uma casa no seu monte. Apesar de morar em Lisboa, e ainda exercer a sua actividade como consultora da indústria farmacêutica, diz que é sobretudo uma agricultora, e que gosta é de estar na vinha e na adega.
Mas a família do marido está ligada à hotelaria, e “ele, que tem o bicho deste negócio, sugeriu fazermos o enoturismo, com quartos e salas de refeições”, conta a proprietária de A Serenada, acrescentando que as suites foram construídas mais tarde. Diz, também, que apesar do seu cepticismo em relação a este negócio, começou a ter reservas a partir do dia em que se ligaram ao site booking.com, e o hotel nunca mais parou de evoluir positivamente. De tal forma, que a facturação do enoturismo é significativamente superior à da venda de vinhos.
É a produzi-los na vinha e na adega que Jacinta Sobral gosta de estar. No dia da nossa conversa, a nossa entrevistada preparava-se para partir para mais uma viagem de férias com o marido, depois de um ano intenso e cheio de trabalho. “Só agora é que conseguimos fazê-lo”, disse, à laia de despedida, certamente para mais uma viagem de descoberta onde o vinho seria componente indispensável, porque é isso que gosta de fazer.