Os primeiros vinhos da Beira Interior que provei enquanto jornalista do sector foram produzidos na Quinta do Cardo, na época o expoente máximo da região. Dado que comecei a escrever sobre o tema em 1989, isso já diz muito sobre a longevidade desta casa. Mas, na verdade, a sua estreia enquanto produtora de vinhos dá-se bem antes disso. Situada junto à aldeia medieval de Castelo Rodrigo, a história vitivinícola “moderna” da Quinta do Cardo tem início em 1932, com a plantação dos primeiros talhões de vinha pelo casal José António Andrade Maia e Esmeralda Aguilar Fonseca Maia, a quem seu pai tinha oferecido a propriedade. Mantida na família até ao início dos anos 80, acabou por ser perdida ao jogo (imagine-se!) e colocada em hasta pública. E assim, em 1983, os 200 hectares da quinta (dos quais 12 de vinha tradicional) chegaram às mãos de Maria Luíza Lima e do seu marido, Artur Ribeiro da Silva.
Maria Luíza e Artur não eram estranhos ao mundo do vinho, longe disso. Ambos engenheiros, ela tinha um conhecimento profundo da produção vitivinícola, enquanto profissional em empresas de topo e proprietária no Douro; e ele foi, sem dúvida alguma, um dos mais brilhantes criadores de equipamentos para a indústria do vinho nos anos 80 e 90, através da empresa Vinipal, com várias patentes registadas no curriculum.
Não espanta por isso que a nova adega, por eles construída em 1984, integrasse o que de mais moderno havia em equipamento enológico na época, incluindo, por exemplo, remontagem gasosa para vinificação de tintos, estabilização pelo frio em contínuo, prensa pneumática, pasteurização flash e cubas com atmosfera inerte. Quando, no início de 1990, a visitei pela primeira vez, a adega era um verdadeiro centro de investigação e experimentação da tecnologia do vinho.
Também a vinha foi objecto de grandes ampliações, tendo sido plantados, ao longo dos anos, mais de 40 hectares, num mix entre as castas identitárias da região (Síria, Arinto, Mourisco) e as que na vizinha região do Douro tinham provas dadas (Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Francesa). O pioneirismo da adega estendeu-se à abordagem vitícola: todas as parcelas foram instaladas em regime de proteção integrada (algo raro numa época em que o conceito de sustentabilidade ambiental era praticamente desconhecido) e com rega gota-a-gota. Inovador para aqueles tempos, foi também o facto de o casal ter encarado a vinha velha como um tesouro a preservar, tendo-a recuperado e suprido as falhas das cepas mortas. O primeiro branco com o rótulo Quinta do Cardo nasceu em 1986 e dois anos depois o primeiro tinto. A marca tornou-se famosa em muito pouco tempo, sobretudo pelos brancos, uma notoriedade que terá certamente beneficiado da conjugação entre um terroir perfeitamente adequado e uma adega onde avançados sistemas de frio imperavam. Nos melhores restaurantes de Lisboa e Porto, ouvia-se pela primeira vez falar de vinhos de Castelo Rodrigo. E jornalistas novos no ofício, como era o meu caso, estreavam-se a provar nas cubas brancos e tintos estremes de Síria, Rufete e Mourisco.
Com propriedade e marca tão apetecíveis, Maria Luíza Lima e Artur Ribeiro da Silva acabariam por não resistir à proposta da Companhia das Quintas que em 1999 iniciava o seu ambicioso projecto de instalação nas principais regiões de Portugal. Foi esta empresa que concluiu a plantação das novas vinhas e ampliou a adega tendo em vista o aumento da produção. Em 2009 todos os vinhedos do Cardo passaram ao sistema de produção biológico, certificado pela Sativa, tornando-se assim no primeiro produtor nacional a fazê-lo naquela escala. Em 2014, a certificação bio estendia-se a todos os vinhos da Quinta do Cardo.
Com o aproximar do final da década, os problemas financeiros que a Companhia das Quintas atravessava levaram a forte limitação dos investimentos nas propriedades, primeiro, e posterior desagregação da estrutura produtiva. Depauperada, quase sem actividade, a Quinta do Cardo seria então adquirida pelo casal Artur Gama e Eva Moura Guedes, que trouxeram para a sociedade outro membro da família, António Mexia. E assim, a mais histórica referência da Beira Interior ganhava uma nova vida e uma segunda oportunidade.
Uma nova vida
Artur Gama e Eva Moura Guedes já sabiam o que custa produzir vinho e colocar uma marca a rodar no mercado. Afinal de contas, desde 2015 que tinham em mãos a Quinta da Boa Esperança, na região de Lisboa, a que se soma a vasta experiência de Artur no trading de vinhos. Mas porquê, agora, a Quinta do Cardo? “Foi resultado de uma oportunidade, mas também de um ‘amor à primeira vista’. Quando percorremos o caminho que nos levou à quinta, ficámos desde logo marcados pela beleza, pela história, pelo silêncio, pela relação das pessoas com estas terras altas”, revela Artur Gama. O potencial para as práticas sustentáveis foi outro factor de decisão. “A localização do Cardo, o seu clima, altitude e natureza do terroir, tornam este projecto vinícola particularmente adaptado às alterações climáticas e à consequente necessidade de reduzir o consumo de água e de adoptar métodos de agricultura regenerativa, permitindo o desenho de vinhos de grande qualidade, amigos do ambiente e, ainda, das novas tendências em termos de consumo”, explica o produtor.
A experiência e os resultados obtidos pelo modelo de produção integrada na Quinta da Boa Esperança (situada numa região bem mais difícil para estas práticas, devido à humidade) ajudaram a fortalecer a convicção dos sócios de que a Quinta do Cardo só faria sentido com a aposta “numa visão sustentável integrada – nas vertentes ambiental, económica, social e cultural.” A história pioneira da Quinta do Cardo na agricultura biológica era igualmente trunfo a não desperdiçar.
Não foi nada fácil, porém, colocar a propriedade de novo em marcha. Quando da sua aquisição, em 2021, a Quinta do Cardo estava praticamente inoperacional. A vindima de 2020 não chegou a ser feita, o sistema de rega estava desactivado, a vinha sem cuidados, o parque de máquinas não existia, a adega tinha muitos problemas infra-estruturais e tecnológicos. Foi preciso intervir rápido e estabelecer prioridades: “reparar” a vinha e recuperar equipamentos de adega, para garantir a vindima de 2021. Após estas intervenções urgentes que devolveram a operacionalidade da Quinta, fizeram-se os primeiros investimentos estratégicos. Assim, em 2022 foram plantados 10 hectares com Síria, Arinto e Malvasia Fina, sobretudo, e também Rufete. Uma nova captação e sistema de irrigação automatizou parte significativa da vinha existente. Ao mesmo tempo, adquiriram-se tractores, alfaias agrícolas, uma bateria de cubas para vinificação de brancos e reestruturou-se o parque de barricas. “Todas as intervenções feitas até agora tiveram como propósito aprofundar a dimensão da sustentabilidade, nos seus quatro pilares, e valorizar o contexto extraordinário da Beira Interior para a exploração vinícola e para a produção de vinhos”, diz Artur Gama.
“O Futuro da Quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos
Um território único
A Quinta do Cardo merece, na verdade, todo o carinho que lhe possam dar. E, dando-lhe oportunidade, ela retribui com vinhos que expressam um território pleno de singularidades. A começar pelo clima. A serra da Marofa e Castelo Rodrigo, ali ao lado, ajudam a suavizar os ventos continentais e limitam a ocorrência de granizo. A uma altitude média de 750 metros, os Invernos são rigorosos, os abrolhamentos tardios, as maturações lentas (preservando a acidez das uvas), com grandes amplitudes térmicas no Verão, favorecido com noites frescas. As vinhas do Cardo estão plantadas em solos profundos, com pouca matéria orgânica, enorme prevalência de argila, com pH ácido e rocha-mãe de granito quartzítico a mais de 2 metros de profundidade.
A área actual de vinha ronda os 80 hectares, com destaque para algumas parcelas “históricas”. É o caso da Vinha do Lomedo, plantada no início dos anos 70. São cerca de 10 hectares de Síria, a uva branca identitária da Beira Interior, onde nascem consistentemente vinhos de excelência, tornando-a uma verdadeira referência regional e nacional desta casta. A Vinha do Pombal, com mais de 25 anos, é outra parcela estreme: exclusivamente Touriga Nacional, 4 hectares de cepas plantadas com compasso apertado, dá origem a alguns dos melhores tintos da casa. Já a Vinha do Castelo, plantada em 1999 com Tinta Roriz, está a ser trabalhada para, no futuro, originar também ela um vinho de parcela. Para além destas, encontramos noutros talhões Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, além de pequenas parcelas de Tinto Cão, Alicante Bouschet, Merlot e Caladoc.
Tirando a vinha plantada em 2022 com Síria, Arinto, Malvasia Fina e Rufete, foi isto que os enólogos Jorge Rosa Santos e Rui Lopes encontraram quando foram convidados a “tomar conta” da produção da quinta. “Chegámos em Agosto de 2021”, recorda Jorge, “e felizmente a vindima apenas começou em meados de Setembro, o que nos deu tempo para programar a colheita, fazer revisões na adega e, na medida do possível, conhecer as vinhas, muito com a ajuda do Sr. Ermindo Coelho o feitor da casa, que aqui já fez 35 vindimas.” Jorge e Rui têm apenas duas vindimas na Quinta do Cardo (quando escrevo estas palavras estarão à beira da terceira que, segundo eles, “promete imenso”), mas dois anos são suficientes para perceberem o que têm em mãos. “A quinta tem um potencial tremendo”, refere Rui Lopes. “Logo na vindima de 2021, e com a vinha no estado em que estava, foi possível produzir brancos de enorme finura, precisão, mineralidade e elegância e tintos expressivos e genuínos, com taninos firmes e marcadas nuances balsâmicas”, acentua.
De então para cá, a equipa de viticultura da casa tem vindo a desenvolver trabalhos que vão permitir aumentar a produtividade – tremendamente escassa, é o maior problema da quinta, afectando a rentabilidade – e a qualidade das uvas. Para tal, foram alteradas as podas em alguns talhões, com a descompactação do solo, correcção do pH, incorporação de matéria orgânica e enriquecimento do coberto natural com sementeiras. “A vinha está a reagir de forma fantástica”, exulta Artur Gama, “ela percebe quando é bem tratada…”
Orgânico é marca da casa
Como atrás referi, todas as vinhas da Quinta do Cardo são trabalhadas em modo orgânico desde 2009, um compromisso e uma forma de estar que saem reforçadas com os seus novos proprietários. Mas quais são os principais desafios colocados pela viticultura orgânica na Quinta do Cardo? Jorge Rosa Santos responde: “O modo de produção orgânico em regiões ou vinhas com chuva ou humidade frequentes pode ter consequências drásticas para a própria preservação ambiental, seja pela sobredosagem de cobre e enxofre ou gasto desmesurado de combustível no controlo da flora na linha e entre-linha. Já para não mencionar o impacto enorme na produtividade, o qual, acrescido ao modo de produção mais trabalhoso, torna o vinho mais caro ao consumidor.” Não é o caso da Quinta do Cardo, que parece talhada para o modelo bio. “Estamos a 750 metros de altitude, temos aqui um ciclo vegetativo curto, abrolhamento tardio e amplitudes térmicas enormes”, salienta Jorge. “Além disso, a precipitação média anual, tal como em toda a região do Ribacôa, é muito baixa. Ou seja, estão reunidas todas as condições para operarmos em modo produção orgânico, sem redução da produção. Em termos vitícolas, o maior desafio prende-se com o controlo da flora na entrelinha e com as intervenções na sebe, que permitam o bom arejamento”, conclui.
Existem riscos, claro, mas a equipa está preparada para eles. “Sabemos que teremos anos mais desafiantes do que outros”, diz Rui Lopes. “As vindimas de 2002, 2010, 2014 foram problemáticas. Por dedução lógica, a cada 10 vindimas, teremos talvez duas com problemas de sanidade e consequente baixa produtividade. Mas, actualmente, temos as nossas vinhas com um vigor médio-baixo, logo uma sebe bastante arejada e produtividade média-baixa, pelo que o risco é moderado. Além disso as vinhas são todas ao alto e em parcelas contíguas, o tempo de reacção para um tratamento orgânico é muito rápido”, remata o enólogo.
Para o produtor, Artur Gama, não subsistem quaisquer dúvidas: “Apesar de todos os riscos, acreditamos que nesta região a produção em modo orgânico é, neste momento e nos anos vindouros, a escolha certa. A região tem ganho espaço e reconhecimento, mas no posicionamento médio-alto continua a ter algumas dificuldades. A nossa missão é apostar nesse posicionamento e achamos que o modo de produção orgânico contribui como factor de diferenciação. Além de estar absolutamente alinhado com os nossos valores institucionais de sustentabilidade.”
“Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes
Castas e identidade
Variedade identitária da Beira Interior, a casta Síria tem lugar de destaque na Quinta do Cardo. “O futuro da quinta e da marca passa, sem dúvida, pela Síria”, garante Jorge Rosa Santos. “Acreditamos muito no potencial da casta a esta altitude e nestes solos. Tem enorme maleabilidade, pois aceita bem a madeira ou o estágio sobre borras em cuba de inox. E em casos especiais consegue representar muito bem a identidade da parcela, como no caso do branco Vinha do Lomedo”, acrescenta. Certamente por isso, a casta representa 90% da área de branco da Quinta do Cardo. Já nos tintos, o panorama é algo diferente. Apesar de produtor e enólogos estarem muito satisfeitos com o desempenho de variedades como Touriga Nacional ou Touriga Franca, reconhecem a necessidade de uma maior representatividade das castas autóctones no encepamento da propriedade. “Queremos no futuro reconverter parte das vinhas tintas e apostar em castas como Rufete, Marufo e Jaen”, revela Rui Lopes. “Vamos manter alguma Tinta Roriz, que tão bom resultado tem na Beira Interior e em regiões vizinhas portuguesas e espanholas. Mas, acreditamos que esta região terá também potencial para outras castas portuguesas, tal como a Trincadeira e Alicante Bouschet, esta última com excelentes resultados, numa pequena parcela que temos”, adianta. A Garnacha, amplamente plantada ali bem perto, do outro lado da fronteira, nas regiões de Arribe e de Toro, é outra possibilidade para ensaiar quando existir oportunidade.
Hoje, a Quinta do Cardo está a produzir cerca de 300 toneladas de uva/ano, mas quando a vinha plantada em 2022 entrar em plena produção, será possível atingir as 400 toneladas. A vindima de 2022 deu origem a cerca de 200.000 garrafas. O mercado nacional é o destino de cerca de 70% das vendas, com a exportação a subir tendencialmente, ampliando os principais mercados já existentes (Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa central) e abrindo outros.
Artur Gama tem uma visão muito clara do que pretende para a sua mais recente aposta vitivinícola: “Vemos a Quinta do Cardo a afirmar-se como o projecto de referência da Beira Interior e como líder nos vinhos orgânicos. No final desta década queremos ultrapassar o milhão e meio de garrafas, num posicionamento de segmento alto e muito virado para exportação, onde se valoriza a componente orgânica e a sustentabilidade global.”
Sustentabilidade que, como faz sempre questão de realçar, não deve ser apenas ambiental, mas também económica, social e cultural. Nesse sentido, há algo que o preocupa e que, infelizmente, não é novo e nem exclusivo da Beira Interior. “Estamos particularmente inquietos com a desertificação da região e com os inerentes problemas sociais e económicos criados”, diz. “Também por isso, queremos contribuir positivamente para os atenuar, estabelecendo parcerias com empresas, polos de ensino locais e com o concelho de Figueira Castelo Rodrigo, para o desenvolvimento de projectos nas áreas cultural, social e de investigação. Não tenho dúvidas: a Beira Interior será ‘the next big thing’. Tivemos a sorte de encontrar a Quinta do Cardo. Queremos partilhá-la.”
(Artigo publicado na edição de Stemebro de 2023)