Fernão Pires: Uva de antigamente, casta de futuro

É uma casta antiga, já conhecida no século XVIII, mencionada em 1788 no Douro, nas Beiras e Estremadura e em 1790 em Castelo Branco e Guarda. No seu trabalho “O Portugal Vinícola” de 1900, Cincinnato da Costa descreve Fernão Pires como “uma boa das castas brancas da região do Tejo” que “produz muito e as suas uvas dão grande rendimento em mosto”. Também refere que a casta “forma a base de alguns vinhos brancos afamados das proximidades de Lisboa e que “os vinhos extremes de Fernão Pires quando bem fabricados, dão excelentes vinhos de pasto, próprios para peixe, delgados, citrinos, de paladar e aroma delicados”.
A casta terá surgido por cruzamento natural de Malvasia Fina com uma variedade desconhecida. Para além do sinónimo oficial de Maria Gomes utilizado na Bairrada, tem outras sinonímias regionais menos conhecidas que praticamente caíram em desuso, como o Gaeiro (provavelmente por estar muito disseminada na localidade das Gaeiras, no concelho de Óbidos), Molinho na Península de Setúbal ou até Alvarinhão em Melgaço. Aguiar em 1866 descreveu uma sub-variedade desta casta com origem na freguesia do Beco, concelho de Ferreira do Zezere, chamada “Fernão Pires do Beco” com porte erecto (ao contrário do habitual semi-erecto e horizontal) e Cincinnato da Costa analisou cachos de Fernão Pires e Fernão Pires do Beco, bem diferentes entre si. Hoje tudo indica que se tratava de um clone da mesma casta.

Omnipresente mas não compreendido

É a casta branca mais presente em Portugal, ocupa 6% das plantações da vinha no nosso país. Já ocupou mais (9% em 1989 e 8% em 1999) e chegou mesmo a ser a casta mais plantada, branca ou tinta. Ficou popular pela mesma razão que a impedia de tornar-se numa estrela – a sua forte identidade aromática e produções generosas, bom grau e acidez média/baixa. É um grande componente de lote, onde contribui com aromas e volume de boca. Mas nunca foi admirada e tornou-se “démodé” quando o rumo mudou para a qualidade e perfis de vinhos mais frescos. Abriu-se a porta às castas estrangeiras e outras nacionais; não gostar da Fernão Pires tornou-se quase obrigatório por ser “demasiado alcoólica”, “chata”, “enjoativa” e “com falta de frescura”.
O que vale é que as tendências não cristalizam e agora o país lembrou-se, e bem, de dar protagonismo às castas menos compreendidas e mal-amadas por “falta disto” ou “excesso daquilo”, mostrando que no sítio certo, com dedicação certa, cada casta pode ter uma performance gloriosa. Um actor popular também pode merecer um óscar com um papel certo.
Graças a umas casas consistentes, sobretudo na região do Tejo, onde a casta é identitária, e a alguns produtores entusiastas, hoje temos excelentes exemplos de Fernão Pires em várias regiões do país.

Qual é o melhor terroir?

Trata-se de uma casta bastante flexível em termos de clima, adapta-se bem a diferentes tipos de solo, desde que haja humidade suficiente. Não se importa com calor, mas é muito sensível à falta de água – a folha fica amarela e cai, comprometendo a actividade fotossintética. Precisa de ter compromisso com área foliar significativa.
É na região do Tejo que o Fernão Pires detém maior protagonismo, ocupando mais de 35% das plantações. Mas o Tejo não é todo igual. A responsável de enologia na Falua, Antonina Barbosa, distingue o Fernão Pires da zona das lezírias (na sub-região do Campo), mais jovem e exuberante que funciona sobretudo na composição de lotes, onde contribui com a parte aromática, e o Fernão Pires de vinha mais velha e de produção muito baixa da Charneca, onde a empresa possui a já famosa vinha do Convento, com um magnífico terroir de pedra rolada. Já o Fernão Pires mais impactante da Quinta do Casal Branco fica nos solos arenosos com argila a 1-1,5 metro. É uma vinha muito velha, plantada em vaso e não regada.
Na Beira Atlântica, que inclui a DOC Bairrada, a sua versão feminina, Maria Gomes, é responsável por 21,5% das plantações. Também é muito importante na região de Lisboa, ocupando mais de 10% de encepamento. Na Península de Setúbal, Fernão Pires é a segunda casta mais plantada, com 9,4% de encepamento (até fica à frente do Moscatel de Setúbal com 8,5%).
Menos relevância tem no Minho com apenas 2,5% do total, pois com as consagradas Alvarinho e Loureiro, e o Avesso como estrela em ascensão, Fernão Pires não tem tido muito espaço. No entanto, nas novas plantações regionais, começa a aumentar a sua presença, sendo importante na estratégia vitícola da Aveleda, por exemplo. A presença mais residual é registada no Dão (1,6%), Alentejo (1,4%) e Trás-os-Montes (1,2%).
A casta Fernão Pires não é muito associada à Beira Interior, ocupando cerca de 1% de vinha. Entretanto, a produtora e enóloga Patrícia Santos ficou fascinada pela performance da casta na zona de Pinhel, onde mostra quase uma salinidade inexplicável. Compara com vinhos de Sancerre, que, feitos de uma casta aromática, naquela região revelam uma personalidade diferente.
Na Bairrada, o vinho Avó Fausto da Quinta das Bágeiras é feito 100% de Maria Gomes, mas a uva não vem sempre do mesmo sítio. Há zonas mais argilo-calcárias, outras com maior percentagem de areia, e a qualidade varia com as condições de cada ano e a capacidade de retenção de água em solos diferentes.
O produtor Daniel Afonso tem as suas vinhas na zona de Colares com forte influência atlântica e confessa que gosta da Fernão Pires porque dá sempre um volume de boca muito bom e, passado dois anos depois da vindima, quase se mastiga, sem a frescura ser prejudicada. Tem um toque exótico e consegue ser bastante complexa. Conta que quando começou a trabalhar com a casta muitas vezes ouviu: “Eh, esta casta só faz vinhos maus e chatos”. Olha que não, depende da zona!
A data de vindima também varia bastante. Na Quinta do Casal Branco, neste ano de 2023, já vindimaram Fernão Pires no final de Julho. Na bairradina Quinta das Bágeiras a vindima da Maria Gomes ocorre normalmente a 8-10 de Setembro. O importante é apanhar a casta no momento certo para o vinho que se pretende produzir com ela.

Fernão Pires

O momento de vindima é crucial

É amiga do produtor… até ao momento de vindima. É campeã em todas as fases fenológicas como o abrolhamento (é preciso podar mais tarde para evitar as geadas), a floração, o pintor e a maturação e serve de referência nacional para estados fenológicos de outras castas. Não espera por ninguém e não deixa margem de manobra nas vindimas. Obriga os enólogos a regressar de férias no final de Julho para controlar a maturação. A parte boa é que não tem problemas com as chuvas do equinócio.
Manuel Lobo que conhece bem Fernão Pires por ser o enólogo consultor na Quinta do Casal Branco, propriedade de seu tio José Lobo de Vasconcelos, diz que o próprio bago da casta é muito expressivo e reflecte a qualidade. Se se trincar o bago no momento de perfeita maturação é uma explosão de sabor. “Passado apenas 1-2 dias a acidez cai a pique e os aromas já não são tão atraentes”. Manuel lembra-se que, no início, foi difícil explicar às pessoas que “tem de se vindimar amanhã” independentemente de ser um fim-de-semana ou acontecer uma festa local neste dia.
Antigamente quando se vindimava com calma, o açúcar subia, os ácidos degradavam e os aromas tornavam-se sobremaduros. Os vinhos eram mais alcoólicos, com falta de frescura e por vezes enjoativos. O que os safava era a possibilidade de serem loteados com vinhos de outras castas, como Arinto, por exemplo. A Quinta da Lapa faz um vinho que recupera essa história, chama-se mesmo Fernão Pirão, como se apelidava o vinho feito das uvas apanhadas tarde vinificadas com curtimenta e a temperaturas elevadas.
No entanto, a vindima no momento certo não tem que ver apenas com o nível de açúcar e com o teor de álcool provável, do género “até 12% temos acidez, depois perdemos a frescura”. Não é linear que o Fernão Pires apanhado com 11,5% seja melhor do que apanhado com 13%. No mesmo sítio talvez, mas há muitos factores em jogo, como o solo, o clima, a idade da vinha, o clone, o porta-enxerto, a produção, a variação do ano. A combinação destes factores leva ao equilíbrio próprio para cada caso. Por exemplo, Daniel Afonso, na zona de Colares, normalmente apanha Fernão Pires com 13% e 7 g/l de acidez, e em 2021 apanhou com 14% e 8 g/l de acidez. Manuel Lobo costuma ter cubas com parâmetros analíticos diferentes para depois lotear da melhor forma.

Controlar a produção

É casta bastante vigorosa e produtiva, varia de 8 a 18 tn/ha em média, existindo extremos como 25-30 tn/ha nos solos mais férteis do Campo e produções baixíssimas como na Vinha do Convento, da Falua, onde produz apenas 3-4 tn/ha, chegando a 5 tn/ha em alguns anos.
Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras, atribui grande importância à quantidade de produção. Nas vinhas dele não ultrapassa as 6-7 tn/ha. Também dá para fazer 2-3 vindimas, apanhando primeiro a uva para espumante e aguardente e, passado 15 dias já tem o equilíbrio para o vinho branco.
Na vinha velha, com mais de 70 anos, da Quinta do Casal Branco, a produção de Fernão Pires fica no nível dos 8-9 tn/ha, mas com compasso mais apertado (ou seja, com mais plantas por ha). Daniel Afonso observa que com 3 kg/planta e 15 tn/ha não tem falta de qualidade.

Fernão Pires

Abordagem enológica

A Fernão Pires é bastante plástica, tanto dá para fazer um espumante ou aguardente, como um colheita tardia. O mosto e o vinho apresentam alguma sensibilidade à oxidação, mas os produtores que trabalham com o pH mais baixo não se queixam. É uma casta de assinatura claramente terpénica, com grande número e concentração de compostos aromáticos livres (que apresentam aromas ainda nas uvas) e ligados, que podem ser libertados durante a vinificação. A maceração pelicular, por exemplo, aumenta bastante a complexidade e intensidade aromática do vinho e se a acidez for de bom nível, não apresenta o perigo de perder a frescura.
Para os vinhos mais expressivos, cada vez mais produtores apontam para fermentação com leveduras indígenas (e uvas sãs apanhadas antes das chuvas do equinócio não apresentam tanto risco). Assim faz Mário Sérgio na Quinta das Bágeiras, Manuel Lobo na Quinta do Casal Branco, Antonina Barbosa na Falua e Daniel Afonso no seu projecto Baías e Enseadas.
O estágio em madeira para Fernão Pires não é uma questão consensual, considera-se que dado o perfil aromático intenso, a barrica não lhe fica bem, sobretudo nova. Mas há excelentes exemplos de tudo.
Manuel Lobo deixa arrancar a fermentação em cuba e quando baixa os 30 pontos de densidade vai para a barrica (40% nova), onde fica 18 meses com bâtonnage. Mas uma parte fica só em cuba para compor o lote. Mário Sérgio estagia tudo em barricas bastante usadas de 500 litros e Daniel Afonso prefere as de 225 litros. Antonina Barbosa não usa barrica de todo para Fernão Pires, mas aproveita muito as borras para dar volume de boca e textura. Faz maceração pelicular, depois da prensagem, fica ainda com borras totais a baixa temperatura para criar volume e estrutura. Claro que isto tudo só é possível com pH baixo. A seguir à fermentação, sem trasfega, o vinho fica com as borras da fermentação na cuba durante mais 1 ano. Não vai para a barrica precisamente para mostrar o puro carácter da casta e do terroir.

Fernão Pires com ambição

Ao contrário da ideia generalizada de que os vinhos de Fernão Pires não justificam guarda, lembro-me de uma prova temática organizada pela CVR Tejo, onde provámos alguns vinhos de 2003, 2000, 1994 e 1983 com 12-12,5% de teor alcoólico, uma bela frescura e concentração do sabor. Isto prova mais uma vez que não devemos por todas as culpas na casta, quando não lhe damos a devida atenção.
O que falta à Fernão Pires é talvez aquela patine de casta chique, para toda a gente falar nela. A sua omnipresença não permite contar uma história do género “desencantámos uma variedade rara e salvámo-la do esquecimento”. Mas o que podemos fazer é salvar do esquecimento a sua reputação e agora já temos muitos argumentos ao seu favor. Basta olhar (e provar!) os vinhos que sugerimos nesta peça.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

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