A criação de um bom lote é obtida através da sobreposição de componentes com atributos únicos usados para melhorar aspectos como cor, frescura, estrutura ou adicionar características específicas de frutas ou especiarias com a finalidade de realçar sabor, ganhar complexidade, aperfeiçoar o equilíbrio e dar ao vinho melhor qualidade. Fazer o ‘lote’ ou ‘blend’ é simplesmente o acto de misturar diferentes vinhos com o objectivo de obter um produto cuja soma das partes é superior às partes individuais.
Em épocas distantes, diferentes castas eram misturadas na mesma parcela como uma espécie de seguro contra pragas, doenças, guerra ou desafios da natureza, com o objetivo de proporcionar um rendimento regular. Através desse método, ainda utilizado hoje, uvas provenientes de vinhedos mistos, conhecidas como “field blends”, são colhidas, esmagadas e fermentadas em conjunto. Os resultados são menos previsíveis e precisos, mas a combinação dos diferentes estágios de maturação ajuda proporcionar equilíbrio e complexidade.
De certa forma, é possível considerar a maioria dos vinhos como vinhos de lote, pois mesmo no caso de um ‘Single Vineyard’ a fruta é oriunda de diferentes partes do vinhedo cujo microclima específico irá adicionar nuances ao resultado final.
Exceptuando alguns casos específicos, como o vinho do Porto, antes do século XX, quando as leis que supostamente governavam a produção de vinhos raramente eram respeitadas, o acto de fazer lote em vinhos tranquilos tinha pouco a ver com qualidade, chegando mesmo a ser utilizado para fins comerciais ilícitos. Fazer um lote era algo visto como suspeito, quase uma falsificação. Actualmente, o acto de fazer um lote é frequentemente utilizado como uma ferramenta para oferecer um produto de qualidade superior.
Os vinhos de lote elaborados hoje foram lapidados ao longo dos anos e o método de eleboração sobreviveu ao teste do tempo pelo facto de ter produzido bons resultados. O interesse dos consumidores por vinhos distintos tem incentivado os produtores portugueses a lançar vinhos monovarietais, o que tem ajudado viticultores e enólogos a compreender o extraordinário potencial de castas menos conhecidas. A herança histórica, experiência e o extraordinário número de variedades encontradas no território português oferecem um número invejável de componentes que permitem aos produtores demonstrar criatividade e gerar alguns dos melhores e mais interessantes vinhos de lote do mundo. Alguns desses vinhos são misturas regionais clássicas bem estabelecidas, outros são vinhos incomuns, exóticos, capazes de surpreender os paladares mais exigentes.
Estilos e segmentos
A arte do lote é vital tanto na produção dos vinhos mais ambiciosos quanto na criação de vinhos para o dia à dia. Para vinhos mais simples, o lote pode ajudar mitigar imperfeições e suavizar diferenças entre as vindimas, conferindo consistência. Eis porque, na maioria dos países europeus, a legislação permite a adição de até 15% de uma colheita, casta ou origem diferente da que está especificada no rótulo. Carlos Lucas, enólogo e CEO da Empresa Magnum, acredita que fazer um lote para um vinho de entrada de gama pode muitas vezes ser um grande desafio, no sentido em que se torna importante adicionar um elemento vital na equação, ou seja, volume. Não basta apenas ir ao encontro do vinho pretendido, mas é preciso levar em consideração as respectivas quantidades disponíveis e avaliar o que é possível fazer. A exigência de quantidade e consistência que existe no segmento dos vinhos dos primeiros escalões de preço pode tornar o processo de execução de lote desafiante e envolvente.
Para Pedro Correia, enólogo chefe dos vinhos Douro da Symington, fazer lotes para vinhos de entrada de gama significa demonstrar preocupação em manter certo estilo ou perfil pré-determinado da marca, levando em consideração as características do público-alvo. Por outro lado, vinhos premium exigem, além de harmonia, tipicidade e alta qualidade, a capacidade reflectir as características da colheita e do terroir. Como refere Luís Sottomayor, director de enologia da Sogrape no Douro, o lote de um vinho de alta qualidade precisará de componentes com mais amplitude e complexidade e, como tal, vai necessitar uma gama de aromas e sabores mais diversos.
Os desafios do lote
São vários os desafios na hora de fazer um lote, desde limitações de componentes, fatores logísticos, espaço e estabilidade química, dentre outros. Carlos Lucas descreve o lote como a combinação de três factores: inspiração, habilidade técnica e experiência. Todos são cruciais para se obterem vinhos equilibrados e elegantes. Explicado de forma simples, Luís Sottomayor acredita que manter o equilíbrio entre as distintas variedades de uva e, ao mesmo tempo, permitir que as mesmas expressem seus aromas e demonstrem as suas características, são os principais desafios. Na opinião de Pedro Correia o aspecto mais desafiante é tentar encontrar uma combinação perfeita entre os diferentes componentes, de modo que, o resultado seja melhor do que as partes individuais. Além disso, caso haja um perfil organoléptico a manter, o desafio é chegar ao mesmo resultado partindo de um conjunto de componentes diferentes ano após ano. Dependendo do estilo do vinho, existem parâmetros que se tornam mais relevantes na hora de executar o lote. De acordo com Carlos Lucas, a cor é algo importante a considerar independentemente do estilo, mas quando se trata de um vinho tinto é crucial pensar também na estrutura e taninos da mesma forma que quando se trata de um branco, espumante e rosé é importante considerar o perfil aromático e acidez acima de tudo. Fazer um lote para espumantes, para Carlos Lucas, constitui uma arte bastante mais especifica (e, também, especializada). O objectivo é iniciar com uma base neutra e isso requer do enólogo experiência e capacidade de previsão, visto que o vinho ainda deve passar pela segunda fermentação, período de envelhecimento, seguido pelo ‘degorgement’ e adição do ‘licor de expedição’; tudo isso vai alterar o vinho radicalmente antes de ele chegar ao mercado.
Já para Pedro Correia, é importante ter em conta se o vinho tem data de colheita, caso em que o blend deve reflectir as características do ano; ou caso se trate de uma mistura de anos (como acontece num Porto tawny, por exemplo), será fundamental manter inalterado, em cada engarrafamento, o estilo e perfil da marca ou produtor.
Exercendo controlo
Para assegurar sucesso é importante que o enólogo tenha o objetivo claro antes da fruta chegar na adega e que desde o início esteja no controle do processo. Luís Sottomayor considera mais vantajoso fazer o lote o mais cedo possível para que o vinho já nasça com seus componentes ligados, o que pode acontecer mesmo na cuba onde irá fermentar, salvo algumas excepções, pois acredita que sua harmonia será melhor, mais natural e equilibrada. Pedro Correia prefere manter os componentes separados ou fazer uma junção parcial e acompanhar a evolução do lote por cerca de 12 meses dando tempo para uma melhor consolidação da matriz para então fazer nova avaliação antes de definir o blend final, evitando engarrafar demasiadamente cedo. Carlos Lucas recomenda abstrair-se de uma prova muito técnica e prefere pensar em como agradar o consumidor final. Para Pedro Correia, o segredo é nunca ter pressa, ponderar decisões, dar tempo de modo a não tomar decisões precipitadas. Luís Sottomayor diz que “seguir a intuição” é um dos melhores conselhos que já lhe foi dado.
As mudanças climáticas
Melhor análise de parâmetros enológicos e novas tecnologias laboratoriais tem resultado em vinhos de lote de maior precisão e qualidade. Luís Sottomayor complementa dizendo que a grande evolução que aconteceu nos últimos anos está relacionada com a experiência pessoal que torna os enólogos mais aptos e confiantes no seu trabalho, o que consequentemente gera maior índice de sucesso. Para Pedro Correia o aprofundamento do conhecimento das castas, de como evoluem e a capacidade de integração de cada uma delas tem contribuído significantemente para elaboração de vinhos cada vez melhores e mais profundos. Já Carlos Lucas defende que, actualmente, é possível fazer lotes com mais convicção e com características que permitem ao vinho manter-se na garrafa durante mais tempo.
Entretanto, as mudanças climáticas que estamos observando nos últimos anos vão requerer capacidade de adaptação. Além de mudança no perfil da fruta, devemos esperar, também, colheitas irregulares, e que as castas mais frágeis desapareçam. Carlos Lucas prevê que castas capazes de suportar as ameaças climatéricas, e oferecer rendimento adequado, ganharão muito maior expressão, tanto a nível varietal como em lotes. Isso vai exigir mais investigações das castas autóctones, muitas delas ainda não devidamente estudadas. Os lotes serão dominados por castas mais resistentes ao calor, não tanto por estilo, mas por necessidade. Luís Sottomayor concorda que será imprescindível conhecer melhor as castas, suas características e principalmente como respondem às diferentes condições climatéricas, mas acrescenta que Portugal, devido ao seu terroir tão heterogéneo, terá a possibilidade de misturar uvas oriundas de locais com exposições e altitudes distintas para obter o resultado esperado.
Portugal e os lotes do futuro
A arte de fazer vinhos de lote teve origem há seculos desde quando vinhas plantadas com muitas castas, brancas e tintas, serviam como uma garantia contra desastres naturais e calamidades. Crescente investigação, desenvolvimento das técnicas de viticultura e métodos de vinificação modernos proporcionam hoje aos produtores melhor controle e mais precisão na hora de fazer o lote. Os produtores portugueses, grandes mestres na arte de fazer lote, contam com invejável número de castas para demostrar a sua criatividade e gerar vinhos únicos, o que em muitos casos pode significar uma vantagem comercial formidável. Para consumidores que buscam algo diferente e autêntico, é inegável que os vinhos portugueses oferecem excelentes alternativas. No entanto, os desafios impostos pelas mudanças climáticas certamente exigirão adaptações por parte dos produtores para conseguir manter o estilo, qualidade e a consistência dos vinhos no futuro. Para que isso aconteça é crucial investir tempo, energia e recursos agora. É preciso aprimorar ainda mais a compreensão sobre o comportamento das castas para que no futuro os produtores portugueses continuem sendo os mestres da arte do lote.
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2023)
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