Pedi para o Ricardo repetir a resposta e ele persistiu: “sim, são mesmo onze novos vinhos”! Ricardo é Ricardo Diogo Vasconcelos de Freitas, líder da empresa Vinhos Barbeiro, fundada pelo seu avô há quase 80 anos, e onze são as novidades vínicas acabadas de lançar neste ano. Se para o universo de Vinhos da Madeira lançar onze vinhos novos num único ano é já um feito para qualquer empresa, para a Barbeito, que se especializou, quanto aos seus topos de gama, em vinhos de verdadeiro nicho, é um feito ainda maior! Por isso não hesitei e fiz-me a caminho que, no caso, significa voar até à ilha da Madeira…
Por motivos diversos, sou um daqueles continentais que já foi há Madeira bem mais do que uma dezena de vezes. Isso, longe de me trazer alguma vantagem na prova dos seus magníficos vinhos, faz-me, isso sim, escrever sobre ilha de forma saudosa. Com efeito, e apesar da expansão imobiliária um pouco por todo o seu território (sobretudo em redor da cidade do Funchal, crescentemente mais metropolitana), aterro sempre na Madeira com a saudade reconfortante do seu clima ameno e da abundante vegetação. A propósito do clima, e uma vez que na Madeira as amplitudes térmicas são baixas durante todo o ciclo vegetativo, deve-se sobretudo aos solos de origem basáltica com pH baixo a produção de vinhos com elevada acidez e longevidade. Algumas castas, como o Sercial, ajudam nesse perfil também, o mesmo se dizendo quanto ao baixo álcool com que se vindima na ilha, muitas vezes abaixo dos 10%.
Não há outro lugar no país com paisagens tão repletas de inclinações dramáticas preenchidas por plantações verdejantes, ora de vinha, ora de banana, ora até, cada vez mais parece-me, de cana de açúcar. Pouca gente o sabe, e tenho sempre dificuldade em convencer os meus amigos continentais desse facto, mas a verdade é que, na Madeira, não há dia em que não se veja uma, ou muitas, manchas de vinhas no horizonte. Estão (quase) por toda a parte, ainda que associadas discretamente na paisagem verde da flora copiosa, apenas interrompida por estradas (invariavelmente a subir e a descer) ou aldeias mais ou menos isoladas. E basta olhar para essas vinhas, para concluir que os sistemas de condução mais utilizados são a latada ou pérgola, e a espaldeira. O cultivo da vinha é, efetivamente, muito disperso na Madeira, com as várias geografias locais a contribuírem para diferentes terroirs. É disso bom exemplo o facto de ouvirmos, todos os dias, que na costa sul ou norte, em redor desta ou daquela aldeia ou fajã ou praia, é melhor uma ou outra casta, uma ou outra exposição, etc. Mas o facto de a vinha se encontrar dispersa e presente em quase toda a ilha não significa que a área agrícola total seja significativa, bem pelo contrário, sendo que a pressão imobiliária e turística piora a situação. Falamos sempre de parcelas de pequena dimensão, quase sempre em “poios”, que são socalcos construídos de forma a contrariar o declive acentuado das encostas e a permitir a sua utilização agrícola. Naturalmente, a orografia montanhosa do território resulta na quase impossibilidade de recurso à mecanização, pelo que a maioria das práticas agrícolas (vindimas, podas, intervenções em verde) são efetuadas ainda manualmente.
Talvez por isso, a vinha tem uma implementação claramente familiar, com muitas famílias a produzir uvas, entre outros frutos. Também encontramos muitas adegas familiares e até pequenos armazéns de estágio de vinhos junto a casas particulares, geralmente cobertos por telhados de zinco e com as pipas, encimadas umas nas outras, suportadas na base por pedra de canteiro (daí o nome Canteiro que se atribui ao método mais nobre de evolução dos Vinhos da Madeira, sendo o método da estufagem para vinhos mais novos). A empresa Barbeito, a que nos dedicamos neste texto, utiliza alguns destes armazéns familiares para envelhecer os seus cascos (quase sempre barricas entre os 200 e os 500 litros), em diferentes localizações e altitudes na ilha.
Um percurso impressionante
A Madeira dispõe atualmente de menos de uma dúzia de produtores (já foram mais de 30 em meados do século passado), que processam cerca de 90% da uva da ilha, sendo o restante para consumo local. Em quase todos os casos, as casas produtoras compram uva, não sendo, até há bem pouco tempo, comum que uma casa de Vinho da Madeira fosse proprietária de vinhedos próprios com significativa dimensão. Nos últimos anos, parte destes produtores, inclusivamente alguns clássicos, foram sendo adquiridos por empresas maiores, em muitos casos estrangeiras e até multinacionais, o que espelha o prestígio do Vinho da Madeira, ainda que o seu consumo se tenha alterado de mais generalizado para mais ocasional, à semelhança de todos os generosos. Grande parte do Vinho da Madeira é ainda exportado, cerca de 80%, sendo os principais mercados europeus a França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica e Suíça, e fora da Europa os EUA e o Japão (não por acaso, o capital social da Barbeito tem uma participação há várias décadas de um conglomerado japonês). O vinho não exportado é quase todo consumido na região, grande parte pelos muitos turistas que anualmente visitam a ilha.
Nesse lote de produtores clássicos, a Barbeito tem um lugar muito especial. Com efeito, a trajetória da empresa Barbeito nos últimos 20 anos tem sido impressionante, não só ao nível da qualidade dos seus vinhos, mas também da projeção nacional internacional dos mesmos. Isso deveu-se a vários fatores, sendo os principais a aposta de Ricardo em vinhos especiais, em muitos casos recorrendo a vinhos únicos estagiados em garrafões, e o perfil mais fresco e vibrante que todos os vinhos com sua assinatura têm. Voltando um pouco atrás no texto, é altura para confidenciar que Ricardo licenciou-se em História e deu aulas da disciplina, ainda que por pouco tempo. Teve uma garrafeira (que deixou saudades) no Funchal, a ‘Diogo’s’ que funcionava (ainda existe apenas online) ainda como um pequeno museu do vinho. Começou na empresa ao lado da mãe em 89 e, a acompanhar as vindimas, a partir de 1993 assumindo progressivamente a área de preparação dos vinhos, o que implicava já o loteamento final dos néctares à sua disposição. Alguns anos volvidos e sucede naturalmente à sua mãe, ascendendo a presidente do conselho de gerência da empresa e aí se mantém como a face mais visível, e a mais dinâmica dizemos nós, deste magnifico produtor.
De facto, desde o início, Ricardo implementou um estilo novo na sua empresa. Ainda que, no início, o tenha feito de forma pouco consciente (era o seu gosto e não um perfil estilizado), a verdade é que, ao longos dos anos, os consumidores de Vinho da Madeira foram habituados a um perfil mais seco e fresco sempre que provavam e bebiam uma garrafa de Barbeito. De tal modo que estou convencido até que esse perfil menos doce e mais vibrante, de que Ricardo tanto gosta, “fez escola” na região e contagiou positivamente algumas das restantes casas de Vinho da Madeira. Basta provar comparativamente os vinhos que a “concorrência” lança atualmente, e os que lançava há 10 ou 15 anos, para comprovarmos esta minha intuição. Hoje, como dantes, continuam soberbos; mas estão hoje menos doces.
Vinhos únicos e irrepetíveis
A par do estilo mais seco, Ricardo incutiu, na sua empresa, uma espécie de irrequietação positiva, uma necessidade de lançar vinhos novos e diferentes, algo que, no Continente, podemos encontrar noutras personagens vínicas como Dirk Niepoort, Anselmo Mendes, e, mais recentemente, António Maçanita, entre alguns outros. No caso de Ricardo, em vez de juntar vários lotes para criar um lote maior de algumas dezenas de milhares de litros, a sua preferência sempre foi produzir vinhos únicos, por vezes irrepetíveis. O seu gosto por História, e as recordações de ver a sua mãe a trabalhar na empresa, fazem com que Ricardo não dispense o contacto pessoal frequente com dezenas de viticultores, mesmo com aqueles com quem não colabora, e até com produtores e proprietários antigos de casas de vinho que, por esta ou aquela razão, já não comercializam. É disso bom exemplo a colaboração ativa com a família Eugénio Fernandes, cujas vinhas e adega ficam no Seixal, defronte da praia mais bonita e visitada do norte da ilha. Com efeito, tal adega (são famosos os Verdelhos e os Serciais antigos) fica a meras dezenas de metros da praia, algum comum na Madeira, mas sem que nenhum dos milhares de turistas que por lá veraneiam imaginem que tal seja possível. O mesmo sucede, agora no sul, na mítica Fajã dos Padres, uma língua de terra estreita, toda literalmente a beira-mar, no final de uma falésia vertical de 250 metros. Nesse pequeno território, entre mangas e peras-abacate (e lagartos!), crescem algumas videiras de Malvasia Cândida, uma das mais antigas da região e que só ali existem, há gerações ao cuidado da família Vilhena de Mendonça, que vinifica um pouco de vinho. As restantes uvas, quando existem (há anos de pouquíssima produção) ficam para Ricardo vinificar com mestria um dos seus vinhos mais excitantes e mais limitados. Como se denota do que venho escrevendo, percorrer a Madeira com Ricardo ao lado é ir parando, aqui e ali, para conversar com viticultores e visitar adegas antigas. Melhor é impossível.
No dia a dia, a atividade de Ricardo é, desde há muitos anos, fazer lotes de vinhos. Por dia, e não foi a primeira que o constatamos, Ricardo analisa e prepara entre 15 a 20 lotes. Ora está a aproximar-se de uma versão final em que trabalha há várias semanas, ora está a refrescar alguns lotes, sempre diagnosticando em que fase da evolução cada barrica e casco se encontram. No fundo, é como se estivesse diariamente a estudar e criar várias peças de um puzzle, para que um dia as venha a utilizar. Pode tratar-se de um trabalho por vezes solitário, encontrar-se, todos os dias, em sala de prova, sobretudo na definição e decisão dos lotes finais. Por um lado, é verdade que, após décadas de laboro, esse trabalho isolado de Ricardo acabou por ter a vantagem de revelar, aos consumidores, o gosto pessoal do seu criador. Porém, há já algum tempo que Ricardo tinha compreendido que beneficiaria de um parceiro constante e habitual na sala de prova. Não por acaso, aliás, Ricardo sempre procurou colaborações: fez dois lotes com Dirk Niepoort e, mais recentemente um vinho com Susana Esteban (este provado abaixo no texto), tendo no passado participado com Rita Marques no desenho de um Vinho do Porto. Ora, esse parceiro surgiu na pessoa de Sérgio Marques, madeirense de gema, sommelier de formação, com passagem por restaurantes de elevado gabarito, nacionais (caso do ‘Il Gallo d’Oro’, no Hotel Porto Bay, com duas estrelas Michelin) e internacionais. Provador nato, é ainda grande conhecedor, e colecionador, de vinhos Madeira, tendo sido, até há bem pouco tempo, o responsável pela loja de vinhos da Blandy’s (o ‘Wine Lodge’). Sobre a participação e intervenção de Sérgio, Ricardo não tem dúvidas: tem sido fundamental na definição dos últimos vinhos da Barbeito, enriquecendo a decisão final dos lotes pela troca de experiências e pontos e vista que, sendo diferentes, são convergentes.
E, efetivamente, isso mesmo constatámos mais uma vez, inclusivamente na sala de prova. Ricardo e Sérgio falam uma mesma linguagem, gostam de perfis muito parecidos, mas nem sempre coincidem totalmente. Quando isso acontece, ou quando reconhecem que o ponto de vista do outro é valido e beneficia o lote final, surge magia! Os 11 vinhos agora lançados são o reflexo dessa magia.
Nota: o autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2024)
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Barbeito Projecto MEF
Fortificado/ Licoroso - 1978 -
Barbeito Projecto MEF
Fortificado/ Licoroso - 1994 -
Barbeito O Americano
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito O Engenheiro
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Ribeiro Real Lote 2
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Rainwater Lote Especial
Fortificado/ Licoroso - -
Barbeito Single Harvest
Fortificado/ Licoroso - 2011 -
Barbeito Casco Único
Fortificado/ Licoroso - 2007 -
Barbeito Curtimenta
Fortificado/ Licoroso -